RESUMO
Objetivo
Identificar os ensaios clínicos com medicamentos realizados no Brasil entre 2012 e 2015, com destaque para os que envolvem doenças da pobreza.
Método
Foram pesquisados os repositórios de ensaios clínicos ReBEC e ClinicalTrials.gov. Verificou-se a distribuição dos ensaios clínicos identificados em relação à carga de doenças do país e em relação ao grau de iniquidade (doenças da pobreza vs. doenças não vinculadas à pobreza). Também foram investigadas as fases dos ensaios clínicos, as instituições que conduziram os ensaios e o tipo de financiamento (privado, público ou misto).
Resultados
Foram incluídos 866 ensaios clínicos, 88 identificados no ReBEC e 778 no ClinicalTrials.gov; 73 (8,5%) eram de fase I, 610 (70,5%) de fases II e III e 183 (21%) de fase IV. Foram identificados 38 ensaios (4%) enfocando as doenças relacionadas à pobreza. Quanto à carga de doenças, 734 (84,8%) ensaios abordaram as doenças não transmissíveis, que de fato representam a maior carga de doença no Brasil. A indústria farmacêutica foi a grande responsável pelo desenvolvimento de ensaios clínicos de medicamentos (55,3%). O financiamento privado predominou (57,1%); entretanto, considerando-se apenas os estudos com doenças da pobreza, 63,1% foram financiados por recursos públicos.
Conclusões
Os ensaios clínicos com medicamentos realizados no Brasil nos últimos anos possuem relativa conformidade com a proporção de carga de doenças. Porém, as doenças da pobreza não foram prioritárias. São necessárias ações mais efetivas para redirecionar a pesquisa clínica com medicamentos ao atendimento das necessidades nacionais.
Palavras-chave
Pobreza; doenças negligenciadas; ensaios clínicos como assunto; fatores socioeconômicos; Brasil
ABSTRACT
Objective
To identify clinical drug trials performed in Brazil between 2012 and 2015, with emphasis on those focusing on neglected diseases of poverty.
Method
Two clinical trial registries, ReBEC (Brazilian registry) and ClinicalTrials.gov were surveyed. The following aspects were investigated: distribution of clinical trials in relation to the burden of disease in Brazil, distribution of trials regarding their focus on diseases of poverty vs. diseases not linked to poverty, phase of trials, performing institution, and type of funding (private, public, or mixed).
Results
The search revealed 866 eligible trials, 88 registered in ReBEC and 778 in ClinicalTrials.gov. Of these, 73 (8.5%) were phase I trials, 610 (70.5%) were phase II and III trials, and 183 (21%) were phase IV trials. There were 38 trials (4%) focusing on neglected diseases of poverty. Regarding the burden of disease, 734 (84.8%) trials focused on noncommunicable diseases, which in fact represent the largest burden of disease in Brazil. Most trials were carried out by pharmaceutical companies (55.3%), with predominance of private funding (57.1%); however, if only the diseases of poverty are considered, 63.1% were financed by public resources.
Conclusions
The clinical drug trials carried out in Brazil in the study period are in agreement with the proportional burden of disease for the country. However, the neglected diseases of poverty were not prioritized. More effective action is necessary to redirect clinical research on drug development to meet national needs.
Key words
Poverty; neglected diseases; clinical trials as topic; socioeconomic factors; Brazil
No campo das pesquisas clínicas para novos medicamentos, é possível constatar um quadro global de “imperialismo científico”, onde os Estados Unidos ainda lideram a realização de ensaios clínicos, sendo responsáveis por metade dos estudos realizados globalmente. Porém, uma tendência de reversão desse quadro tem sido observada nos últimos anos, com migração de estudos inclusive para países em desenvolvimento (11 Andrews C. Ethical and scientific implications of the globalization of clinical research. N Engl J Med. 2009;360(26):2793.
2 U.S. National Institutes of Health. Locations of recruiting studies. Disponível em: https://clinicaltrials.gov/ct2/resources/trends#LocationsOfRecruitingStudies Acessado em outubro de 2016.
https://clinicaltrials.gov/ct2/resources... -33 Petryna A. Experimentalidade: ciência, capital e poder no mundo dos ensaios clínicos. Horiz Antropol. 2011;17(35): 127–60.).
Apesar da mudança na rota de pesquisa em direção aos países em desenvolvimento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem alertado sobre a manutenção do extenso impacto das chamadas doenças da pobreza sobre a carga de doença nesses países. Essas doenças, que atingem desproporcionalmente as populações mais vulneráveis, apresentam diversas lacunas de diagnóstico e tratamento, cuja resolução exigiria amplos investimentos em pesquisa (44 Chirac P, Torreele E. Global framework on essential health R&D. Lancet. 2006;367 (9522):1560–1., 55 World Health Organization (WHO). Global report for research on infectious diseases of poverty. Genebra: WHO; 2012. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/44850/1/9789241564489_eng.pdf Acessado em outubro de 2016.
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665... ).
Entretanto, a pesquisa e a produção de fármacos parecem estar orientadas para atender a um mercado consumidor com aparente sustentabilidade de financiamento, o que determina desigualdades de acesso aos medicamentos. Em países ricos, a média de gastos com medicamentos por pessoa é 100 vezes maior do que em países empobrecidos. A OMS estima que mais de 90% da produção farmacêutica em todo o mundo sejam consumidos por apenas 15% da população (66 Hunt P, Khosla R. The human right to medicines. Sur Rev Int Direitos Human. 2008;5(8):99–115.).
Um exemplo evidente da dependência global no que tange a alternativas terapêuticas para doenças da pobreza é a última epidemia de ebola, que se alastrou velozmente pela África Ocidental. Os fracassos nas medidas de contenção, o acometimento de vítimas norte-americanas e a chance real de globalização de uma doença até então restrita a zonas rurais isoladas da África acabaram por promover o envolvimento de centros de pesquisa de medicamentos e do governo dos Estados Unidos. Entretanto, essa mobilização chega tarde e evidencia anos de negligência, principalmente quando observados os milhares de mortos e afetados desde a descoberta do vírus em 1976 (77 Cohen J. Ebola vaccine: little and late. Science. 2014;345(6203):1441–2.).
Para solucionar essa dependência global, algumas iniciativas de fomento têm sido desenvolvidas. A iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (Drugs for Neglected Diseases initiative, DNDi), criada em 2003, é uma parceria global que envolve vários países em desenvolvimento, inclusive o Brasil, com o objetivo de pesquisar e desenvolver novos tratamentos para as doenças mais negligenciadas (88 Pontes F. Doenças negligenciadas ainda matam 1 milhão por ano no mundo. Inovação em Pauta. 2009;6:69–73., 99 DNDi. Por que é necessária uma convenção sobre P&D essencial em saúde? Genebra: DNDi; 2012. Disponível em: http://www.dndi.org/images/stories/advocacy/dndi_policy_port_27_04_2012.pdf. Acessado em 2012.
http://www.dndi.org/images/stories/advoc... ).
O Ministério da Saúde brasileiro, em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e com agências e fundações de fomento à pesquisa, tem definido algumas prioridades para doenças negligenciadas, tendo iniciado alguns investimentos. Em 2004, durante a II Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, foram definidas as doenças prioritárias para a agenda de pesquisa: dengue, doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase, malária, esquistossomose e tuberculose. O incentivo à formação de redes de pesquisa, como a Rede Malária e a Rede Tuberculose, foi outra estratégia adotada para fortalecer e interligar iniciativas nacionais nessa área. Investimentos em pesquisas com foco nessas doenças também têm sido alvo de editais governamentais que disponibilizam em torno de R$ 75 milhões ao ano; entretanto, esses recursos não se destinam exclusivamente à pesquisa de novos fármacos, nem são suficientes para o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes. Como exemplo, o desenvolvimento de um novo fármaco envolve valores estimados entre 100 e 150 milhões de euros (99 DNDi. Por que é necessária uma convenção sobre P&D essencial em saúde? Genebra: DNDi; 2012. Disponível em: http://www.dndi.org/images/stories/advocacy/dndi_policy_port_27_04_2012.pdf. Acessado em 2012.
http://www.dndi.org/images/stories/advoc...
10 Souza W, coordenador. Doenças neglicenciadas. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências; 2010. Disponível em: https://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-199.pdf Acessado em outubro de 2016.
https://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-199.p... -1111 Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Doenças negligenciadas: estratégias do Ministério da Saúde. Rev Saude Publica. 2010;44(1):200–2.).
Poucos são os trabalhos que avaliam o impacto dessas iniciativas ou que analisam o panorama dos ensaios clínicos com medicamentos realizados no Brasil, suas características e potencial de atendimento das necessidades nacionais, particularmente em relação às doenças da pobreza. Nesse contexto, o objetivo do presente estudo foi verificar a agenda de ensaios clínicos com medicamentos no Brasil, suas características, o perfil de instituições que conduzem e financiam essa pesquisa e ainda a relação de tais ensaios clínicos com a carga de doença e as doenças da pobreza no país.
MATERIAIS E MÉTODOS
Foram pesquisados os ensaios clínicos com medicamentos realizados no país durante o período de 2012 a 2015. Para tanto, foram identificados todos os registros de ensaios clínicos incluídos em dois repositórios: um nacional, o Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC), e outro internacional, o ClinicalTrials.gov. O ReBEC originou-se de uma parceria entre o Ministério da Saúde, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (1212 Brasil. Ministério da Saúde. Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC). Disponível em: http://www.ensaiosclinicos.gov.br/ Acessado em outubro de 2016.
http://www.ensaiosclinicos.gov.br/... ). A partir de 2012, o registro no ReBEC passou a ser obrigatório para ensaios clínicos realizados no Brasil (1313 Silva CF, Silva MV, Osorio-de-Castro CGS. Os ensaios clínicos e o registro de anticorpos monoclonais e biomedicamentos oncológicos no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2016;39(3):149–56.). O ClinicalTrials.gov é mantido pelos National Institutes of Health (NIH) do governo norte-americano (1414 U.S. National Institutes of Health. Clinical Trials.gov. Disponível em: https://clinicaltrials.gov/ Acessado em outubro de 2016.
https://clinicaltrials.gov/... ).
No ReBEC, dado o menor número de registros em comparação ao ClinicalTrials.gov, foi realizada uma verificação individual de cada registro para selecionar aqueles que envolviam ensaios clínicos com medicamentos. Já no ClinicalTrials.gov, foram utilizados filtros de busca: país (Brazil), período (1o de janeiro de 2012 a 31 de dezembro de 2015) e tipo de estudo (Interventional Studies and Exclude Unknown).
Em ambas as plataformas, foram selecionados todos os estudos de intervenção envolvendo pesquisa de novos fármacos ou melhoria/avaliação de tratamentos existentes, com resultados finalizados ou em andamento, independentemente da fase ou tipo de participante envolvido. Foram excluídos das análises estudos observacionais, estudos com status desconhecido, estudos que não envolviam medicamentos, não realizados no Brasil ou realizados fora do período selecionado. Para estudos registrados em ambos os repositórios, considerou-se apenas o primeiro registro.
Foi levantado o número de ensaios: 1) de acordo com o grau de iniquidade da doença para a qual o medicamento pesquisado se destinava; 2) de acordo com a carga da doença para a qual o medicamento pesquisado se destinava; 3) de acordo com a entidade responsável pelo estudo; 4) de acordo com o tipo de financiamento; e 5) de acordo com a fase do estudo.
Para identificação das doenças relacionadas à pobreza, os agravos e doenças foram agrupados em três categorias, de acordo com o grau de iniquidade. Essa classificação foi proposta pelos pesquisadores a partir de adaptação de proposições anteriores da organização Médicos Sem Fronteiras e OMS: doenças globais não transmissíveis, doenças globais transmissíveis e doenças relacionadas com a pobreza (55 World Health Organization (WHO). Global report for research on infectious diseases of poverty. Genebra: WHO; 2012. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/44850/1/9789241564489_eng.pdf Acessado em outubro de 2016.
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665... , 1515 Médicos Sem Fronteiras. Desequilibrio fatal: a crise em pesquisa e desenvolvimento de drogas para doenças negligenciadas. Genebra: Grupo de Trabalho de Drogas para Doenças Negligenciadas, Médicos Sem Fronteiras; 2001.). Destaca-se que o termo “global”, já utilizado pelas organizações citadas, faz referência à abrangência dessas doenças e agravos para além de um grupo social específico, diferentemente do que ocorre com as chamadas doenças da pobreza.
Para categorização dos ensaios de acordo com a carga das doenças e agravos, foi seguida a classificação proposta em estudos feitos no Brasil (1616 Schramm JMDA, Oliveira AF De, Leite IDC, Valente JG, Gadelha ÂMJ, Portela MC, et al. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doença no Brasil. Cienc Saude Colet. 2004;9(4):897–908.) e internacionalmente (1717 Murray CJL, Vos T, Lozano R, Naghavi M, Flaxman AD, Michaud C, et al. Disability-adjusted life years (DALYs) for 291 diseases and injuries in 21 regions, 1990-2010: A systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet. 2012;380(9859):2197–223.). Três grupos foram considerados: doenças infecciosas/parasitárias, maternas, perinatais e nutricionais; doenças não transmissíveis; e causas externas. Além disso, as doenças individuais para as quais os medicamentos estavam sendo pesquisados também foram consideradas.
Os dados de carga de doença baseiam-se no indicador “anos de vida perdidos por incapacidade” (disability-adjusted life years, DALY), que procura medir simultaneamente o impacto da mortalidade e dos problemas de saúde que afetam a qualidade de vida dos indivíduos. A escolha dessa forma de classificação foi considerada mais adequada pelos autores, pois boa parte das chamadas doenças da pobreza atualmente apresenta uma menor taxa de mortalidade, porém uma grande morbidade. O uso desse parâmetro permite ainda uma comparação relativa entre as doenças que são foco dos ensaios realizados no país e as principais doenças e agravos que atingem os brasileiros. As informações deste estudo foram então comparadas com dados publicados sobre carga de doença e projeções de Gadelha et al. (1818 Gadelha A, Leite I, Valente J. Relatório final do Projeto Estimativa da Carga de Doença do Brasil – 1998. Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz/Fensptec; 2002.) e Leite et al. (1919 Leite IDC, Beltrão KI, Rodrigues RN, Valente JG, Campos MR, Schramm JM. Projeção da carga de eoença no Brasil (1998-2013). Em: Temporao JG, Buss PM, Carvalheiro JR. Vacinas, soros e imunizações no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. Pp. 51–65.).
As entidades responsáveis pelo estudo foram classificadas em três categorias: instituições de ensino superior e pesquisa acadêmica (universidades, institutos de pesquisa governamentais); entidades que prestam serviços de saúde (hospitais, clínicas e unidades de saúde em geral); ou indústrias e instituições de pesquisa clínica (laboratórios farmacêuticos, empresas de execução de ensaios clínicos). O parâmetro de financiamento/patrocínio investigou quais instituições custeavam os estudos e se esse financiamento era proveniente de recursos públicos, privados ou mistos (parcerias público-privadas). Os estudos foram ainda categorizados de acordo com sua fase, ou seja: fase I (avaliação inicial em humanos, tolerância em voluntários saudáveis), fase II (estudo terapêutico inicial, foco na efetividade), fase III (estudo terapêutico ampliado, foco no risco/benefício) e fase IV (estudo pós-registro).
RESULTADOS
Foram identificados, nas bases pesquisadas, 1 922 registros de ensaios clínicos durante o período de 2012 a 2015. Desse total, foram excluídos registros repetidos e que não atenderam aos critérios de inclusão. Ao final, foram incluídos 866 ensaios clínicos registrados durante o período, 88 no ReBEC e 778 no ClinicalTrials.gov. Desses estudos, 73 (8,5%) eram ensaios de fase I, 610 (70,5%) eram de fases II e III e 183 (21%) eram de fase IV.
Dentre os 866 estudos selecionados, a menor proporção – 38 ensaios, ou 4% – enfocou as doenças relacionadas à pobreza. As doenças globais não transmissíveis corresponderam a 746 estudos (87%); e as doenças globais transmissíveis corresponderam a 82 estudos (9%). A tabela 1 mostra as categorias de doenças da pobreza abordadas nos estudos brasileiros. Foram identificados, majoritariamente, estudos com medicamentos para doenças infectocontagiosas não evitáveis por vacinação. Dessas, cinco coincidiram com as sete prioridades de pesquisa em doenças negligenciadas definidas pelo Ministério da Saúde em 2008, a saber: doença de Chagas, dengue, leishmaniose, malária e tuberculose (1111 Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Doenças negligenciadas: estratégias do Ministério da Saúde. Rev Saude Publica. 2010;44(1):200–2.).
Doenças da pobreza estudadas em 38 ensaios clínicos brasileiros registrados nos repositórios ReBEC e ClinicalTrials.gov, 2012 a 2015
A tabela 2 mostra a distribuição dos ensaios clínicos de acordo com os grupos de doenças (1616 Schramm JMDA, Oliveira AF De, Leite IDC, Valente JG, Gadelha ÂMJ, Portela MC, et al. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doença no Brasil. Cienc Saude Colet. 2004;9(4):897–908.) e a carga que cada grupo representa (expressa pela proporção de DALY que cada grupo contribui), conforme o Relatório Final do Projeto de Estimativa de Carga de Doenças no Brasil com dados de 1998 e estimativa de 2013 (1616 Schramm JMDA, Oliveira AF De, Leite IDC, Valente JG, Gadelha ÂMJ, Portela MC, et al. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doença no Brasil. Cienc Saude Colet. 2004;9(4):897–908., 1818 Gadelha A, Leite I, Valente J. Relatório final do Projeto Estimativa da Carga de Doença do Brasil – 1998. Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz/Fensptec; 2002., 1919 Leite IDC, Beltrão KI, Rodrigues RN, Valente JG, Campos MR, Schramm JM. Projeção da carga de eoença no Brasil (1998-2013). Em: Temporao JG, Buss PM, Carvalheiro JR. Vacinas, soros e imunizações no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. Pp. 51–65.). Pelos dados, é possível perceber que os ensaios clínicos realizados no país durante o período seguem uma tendência de maior abordagem de doenças não transmissíveis (grupo II), que de fato representam a maior carga de doença.
Destaca-se o percentual baixo de ensaios clínicos classificados no grupo III, de causas externas. Esse resultado pode ser atribuído à dificuldade de identificar as condições decorrentes de causas externas, como lesões por acidentes de trânsito ou violência, certamente incluídas em outras categorias de ensaios clínicos, como condições musculoesqueléticas ou neurológicas, por exemplo. No entanto, mesmo condições com maior facilidade de identificação nessa categoria, como envenenamentos ou outros tipos de intoxicações, não estiverem presentes nos ensaios selecionados.
Comparação entre percentual de ensaios clínicos com medicamentos realizados no Brasil, registrados no ReBEC e ClinicalTrials.gov, e carga de doenças, 2012 a 2015
A tabela 3 mostra a distribuição dos ensaios de acordo com o tipo de doença pesquisada e a carga que ela representava no ano de 1998. As cinco doenças mais pesquisadas foram câncer e doenças cardiovasculares, infecciosas, neuropsiquiátricas e musculoesqueléticas. Juntas, elas representaram quase 60% dos ensaios clínicos com fármacos realizados no país durante o período analisado. A carga representada por essas doenças foi de 52,9%.
Proporção de ensaios clínicos registrados no ReBEC e ClinicalTrials.gov por tipo de doença, 2012 a 2015
Por sua vez, a tabela 4 mostra as entidades responsáveis e o tipo de financiamento para ensaios em cada um dos três grupos de doença analisados. A indústria farmacêutica foi a grande responsável pelo desenvolvimento de ensaios clínicos de medicamentos. Ainda que com uma proporção menor para as doenças da pobreza, os laboratórios destacaram-se como responsáveis pela condução de mais de 50% dos estudos, independentemente da categoria de doença.
Instituições responsáveis pela condução e financiamento dos ensaios clínicos com medicamentos no Brasil, 2012 a 2015
DISCUSSÃO
Interesse reduzido pelas doenças da pobreza
Os resultados do presente estudo mostraram um baixo investimento nas doenças que atingem populações mais vulneráveis, o que está em consonância com as verificações de especialistas e entidades de saúde. A substituição gradual do termo “doenças negligenciadas” por “doenças da pobreza” é fruto do avanço na análise de componentes sociais na dinâmica da saúde, mostrando que a incidência dessas doenças está fortemente relacionada com a vulnerabilidade de determinadas populações e disparidades de acesso a medicamentos e serviços de saúde (2020 Manderson L, Aagaard-Hansen J, Allotey P, Gyapong M, Sommerfeld J. Social research on neglected diseases of poverty: continuing and emerging themes. Agyepong I, editor. PLoS Negl Trop Dis. 2009;24;3(2):e332.).
A falta de pesquisa sobre as doenças da pobreza gera, como consequência, um baixo número de inovações terapêuticas, conforme evidenciado por Chirac e Torreele (44 Chirac P, Torreele E. Global framework on essential health R&D. Lancet. 2006;367 (9522):1560–1.). Esses autores observaram que apenas 1,3% dos 1 556 novos medicamentos registrados entre 1975 e 2004 estava relacionado a doenças típicas de regiões mais pobres. Cohen et al. (2121 Cohen J, Dibner MS, Wilson A. Development of and access to products for neglected diseases. PLoS One. 2010;5(5):e10610.), utilizando outros métodos de identificação de medicamentos para essas doenças, e incluindo alguns medicamentos para HIV/Aids e doenças diarreicas, estimam que a porcentagem possa chegar a 4,6% dos lançamentos. Desde o ano 2000, o número de lançamentos vem crescendo; porém, os dois trabalhos observaram que não houve lançamentos significativos para algumas doenças consideradas ainda mais negligenciadas, como úlcera de Buruli, dengue, febre tifoide ou febre reumática (44 Chirac P, Torreele E. Global framework on essential health R&D. Lancet. 2006;367 (9522):1560–1., 2121 Cohen J, Dibner MS, Wilson A. Development of and access to products for neglected diseases. PLoS One. 2010;5(5):e10610.).
Quanto às doenças da pobreza abordadas nos ensaios analisados neste artigo, o baixo número de ensaios para doenças que possuem vacinas efetivas disponíveis pode ser a principal justificativa para o menor percentual de pesquisas nesse grupo. Já as doenças infectocontagiosas que ainda não contam com vacinas efetivas destacam-se como o principal alvo das iniciativas de pesquisa nas doenças da pobreza, sendo o desenvolvimento de vacinas o principal objetivo dos pesquisadores.
Dentre os ensaios analisados, destacam-se o estudo conduzido por um laboratório francês para desenvolvimento de uma vacina contra a dengue, recentemente registrada na Anvisa, e um estudo conduzido pelo governo brasileiro, também para o desenvolvimento de uma vacina tetravalente contra a dengue. Esses ensaios têm grande relevância para a saúde pública, uma vez que vive-se atualmente um quadro hiperendêmico de dengue no Brasil, com quatro sorotipos circulando por regiões urbanas e rurais, além da emergência de novos vírus transmitidos pelo Aedes aegypti, como Zika e chikungunya (2222 Aguiar R, Pimenta D. Lançando luz sobre a dengue. Cienc Cult. 2015;67(3):4–5., 2323 Hadinegoro SR, Arredondo-García JL, Capeding MR, Deseda C, Chotpitayasunondh T, Dietze R, et al. Efficacy and long-term safety of a dengue vaccine in regions of endemic disease. N Engl J Med. 2015;24;373(13):1195–206.).
Os ensaios que investigam novas formas de tratamento para a fase crônica da doença de Chagas também se destacaram, estando focados na busca de melhorias para as complicações da doença, que não conta com um tratamento efetivo de cura (2424 Reyes PA, Vallejo M. Trypanocidal drugs for late stage, symptomatic Chagas disease (Trypanosoma cruzi infection). Cochrane Database Syst Rev. 2011;(4):CD004102., 2525 Tanowitz HB, Machado FS, Jelicks LA, Shirani J, Campos de Carvalho AC, Spray DC, et al. Perspectives on Trypanosoma cruzi-induced heart disease (Chagas Disease). Prog Cardiovasc Dis. 2009;51(6):524–39.). Outras pesquisas abordam alternativas terapêuticas para o tratamento da coinfecção por HIV e tuberculose, situação que coloca em risco as estratégias de controle de ambas as doenças (2626 Jamal LF, Moherdaui F. Tuberculose e infecção pelo HIV no Brasil: magnitude do problema e estratégias para o controle. Rev Saude Publica. 2007;41(supl 1): 104–10., 2727 Brasil, Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Detectar, tratar e curar: desafios e estratégias brasileiras frente à tuberculose. Bol Epidemiologico. 2015;46(9):1–19.).
Ensaios clínicos e carga de doenças do Brasil
Estudos anteriores questionam se a proporção de pesquisas realizadas no mundo é condizente com a carga de doenças. Como relatado anteriormente, pesquisadores demonstraram que a proporção de medicamentos lançados no mundo para o combate de doenças da pobreza é inferior a 5% desde a década de 1970, mesmo que essas representem 11,4% da carga global de doenças (44 Chirac P, Torreele E. Global framework on essential health R&D. Lancet. 2006;367 (9522):1560–1., 2121 Cohen J, Dibner MS, Wilson A. Development of and access to products for neglected diseases. PLoS One. 2010;5(5):e10610.).
Para fins de comparação com a carga das doenças no Brasil, os dados dos ensaios clínicos levantados neste estudo foram classificados de acordo com grupos de doenças (com as doenças agrupadas conforme categorias propostas por Schramm et al.) (1616 Schramm JMDA, Oliveira AF De, Leite IDC, Valente JG, Gadelha ÂMJ, Portela MC, et al. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doença no Brasil. Cienc Saude Colet. 2004;9(4):897–908.) e com a carga das doenças expressa em DALY (1616 Schramm JMDA, Oliveira AF De, Leite IDC, Valente JG, Gadelha ÂMJ, Portela MC, et al. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doença no Brasil. Cienc Saude Colet. 2004;9(4):897–908., 1818 Gadelha A, Leite I, Valente J. Relatório final do Projeto Estimativa da Carga de Doença do Brasil – 1998. Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz/Fensptec; 2002., 1919 Leite IDC, Beltrão KI, Rodrigues RN, Valente JG, Campos MR, Schramm JM. Projeção da carga de eoença no Brasil (1998-2013). Em: Temporao JG, Buss PM, Carvalheiro JR. Vacinas, soros e imunizações no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. Pp. 51–65.). Observamos maior abordagem de doenças não transmissíveis, em concordância com as proporções de carga de doença no Brasil. Ativistas e estudiosos denunciam que apenas 10% das pesquisas globais em saúde são dedicadas a doenças e agravos que correspondem a 90% da carga global de doenças, quadro que ficou conhecido em todo o mundo como “desequilíbrio 10/90”. Esse desequilíbrio reflete o fato de que grande parte das doenças prevalentes em países de baixa renda é considerada “negligenciada” – e, sendo esses países normalmente populosos, acabam contribuindo significativamente para a carga global de doenças. Contrastando com essa necessidade, a pesquisa de novos medicamentos está concentrada em países desenvolvidos e é conduzida majoritariamente pela indústria farmacêutica, que centraliza seus investimentos em doenças e condições que atingem países e populações com maior renda (1515 Médicos Sem Fronteiras. Desequilibrio fatal: a crise em pesquisa e desenvolvimento de drogas para doenças negligenciadas. Genebra: Grupo de Trabalho de Drogas para Doenças Negligenciadas, Médicos Sem Fronteiras; 2001., 2828 Luchetti M. Global health and the 10/90 gap. Br J Med Pract. 2014;7(4):731.).
No Brasil, os dados levantados não corroboram essa tese, uma vez que o percentual de ensaios clínicos brasileiros foi condizente com o percentual de carga global de doenças no país. O percentual de ensaios com medicamentos para doenças infecciosas e condições maternas e perinatais, que representou 14,4%, ainda é inferior às estimativas de carga global tanto para 1998 (23,5%) quanto para 2013 (17%), o que não aconteceu com o grupo II, com 84,8% dos ensaios e representando cerca de 74% da projeção de carga de doença para 2013.
É necessário destacar, no entanto, que apenas a análise do percentual de ensaios não permite tirar conclusões sobre os valores investidos nessas pesquisas, nem tampouco sobre seu potencial de gerar medicamentos para as necessidades nacionais. Porém, essa análise permite demonstrar uma certa coerência entre os temas pesquisados e as necessidades de saúde do Brasil, um país em processo de transição epidemiológica.
A influência mercadológica na definição da pesquisa
É necessário discorrer sobre a influência mercadológica na definição dos estudos pesquisados no Brasil. O tema mais pesquisado e com a maior discrepância em relação à carga de doenças foi o câncer. Esse resultado pode estar relacionado ao elevado custo do tratamento oncológico, tanto para a assistência direta do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto para a saúde suplementar (2929 Nobrega CR, Lima AFC. Custo de procedimentos relacionados ao tratamento quimioterápico ambulatorial de mulheres portadoras de câncer de mama. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(4):699–705.), sendo os antineoplásicos os principais medicamentos objeto de ações judiciais contra o Estado para garantia de acesso (3030 Lopes LC, Barberato-Filho S, Costa AC, Osorio-de-Castro C. Uso racional de medicamentos antineoplásicos e ações judiciais no Estado de São Paulo. Rev Saude Publica. 2010;44(4):620–8.).
Dos 56 estudos classificados na categoria de doenças musculoesqueléticas, 34 (60%) tratavam de medicamentos para artrites. Os medicamentos para artrites são os que mais oneram o chamado componente especializado da assistência farmacêutica, com custos superiores a 1 bilhão de reais por ano; são também os que mais produzem pressão para incorporação na relação de medicamentos ofertados pelo SUS (3131 Brasil, Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos. Componente Especializado da Assistência Farmacêutica: inovação para a garantia do acesso a medicamentos no SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2014., 3232 Chieffi AL, Barata RDCB. Ações judiciais: estratégia da indústria farmacêutica para introdução de novos medicamentos. Rev Saude Publica. 2010;44(3):421–9.).
Na categoria doenças infecciosas e parasitárias, mesmo com um grande número de diferentes patologias, o foco principal dos trabalhos tem sido basicamente dois temas: hepatites e infecção pelo HIV, correspondendo a 33 (35,4%) ensaios clínicos. Diferentemente da maioria das enfermidades transmissíveis, essas duas doenças, talvez por suas características de cronicidade e melhores programas de acesso, despertam atenção e investimentos por parte do mercado farmacêutico.
Com um programa consolidado de acesso a antirretrovirais, o Brasil é uma referência internacional e vem demonstrando uma característica de rápida absorção das inovações (3333 Duarte PS, Ramos DG, Pereira JCR. Padrão de incorporação de fármacos antiretrovirais pelo sistema público de saúde no Brasil. Rev Bras Epidemiol. 2011;14(4):541–7.). Do mesmo modo, novos medicamentos para tratamento da hepatite C, que inclusive aqueceram o debate sobre a sustentabilidade dos sistemas de saúde em função de seus custos elevados, foram não só incorporados na lista do SUS, como na própria lista da OMS e em diferentes sistemas de saúde do mundo (3434 Canary LA, Klevens RM, Holmberg SD. Limited access to new hepatitis C virus treatment under state Medicaid programs. Ann Intern Med. 2015;163(3):226–8.).
Essa influência do interesse mercadológico na definição das doenças que serão pesquisadas pode ser explicada pelo perfil das instituições que conduzem e financiam esses ensaios clínicos: majoritariamente indústrias farmacêuticas, com patrocínio privado. A indústria farmacêutica é a grande responsável pelo desenvolvimento de ensaios clínicos de medicamentos. Ainda que com uma proporção menor para as doenças da pobreza, os laboratórios destacam-se como responsáveis pela condução de mais de 50% dos estudos, independentemente da categoria de doença.
Petryna (55 World Health Organization (WHO). Global report for research on infectious diseases of poverty. Genebra: WHO; 2012. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/44850/1/9789241564489_eng.pdf Acessado em outubro de 2016.
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665... ) relata que, mesmo com uma aparente estagnação na indústria farmacêutica e um número menor de lançamento dos chamados “medicamentos blockbuster” (vendas superiores a US$ 1 bilhão por ano), o mercado farmacêutico investe cada vez mais em uma grande cadeia de atividades empresariais de ensaios clínicos, com gestão de patrocinadores, companhias de recrutamento de pacientes, consultorias de ética em pesquisa e centros de pesquisa clínica (33 Petryna A. Experimentalidade: ciência, capital e poder no mundo dos ensaios clínicos. Horiz Antropol. 2011;17(35): 127–60.).
Esse investimento pode ser confirmado também pelos dados de financiamento dos ensaios clínicos brasileiros. A iniciativa privada foi responsável por quase 60% do custeio tanto dos ensaios voltados para doenças globais, transmissíveis, quanto para as não transmissíveis. Essa proporcionalidade não se confirma quando analisamos os ensaios das doenças da pobreza, que foram majoritariamente (63,1%) financiados por recursos públicos. O perfil predominantemente mercadológico dos ensaios clínicos brasileiros é um reflexo da globalização de pesquisas multicêntricas e inclusão dos países em desenvolvimento. Apesar da pior posição entre os BRICS, o Brasil cada vez mais entra na rota de investimentos dos ensaios multicêntricos de novos fármacos (3535 Gomes RDP, Pimentel VP, Landim AB, Pieroni JP. Ensaios clínicos no Brasil: competitividade internacional e desafios. Brasília: BNDES; 2012. Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/1504/1/A%20set.36_Ensaios%20cl%C3%ADnicos%20no%20Brasil.pdf Acessado em outubro de 2016.
https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitst... ). Contudo, assim como nos demais países em desenvolvimento, nota-se que as pesquisas multicêntricas não abordam necessidades locais e se caracterizam pela continuidade dos trabalhos iniciados nos países desenvolvidos.
A predominância das fases finais dos ensaios clínicos exemplifica isso – e, como mostrou o presente levantamento, no Brasil não é diferente. Foi observada uma predominância de ensaios das fases II e III, seguidos por fase IV e por ensaios de fase I em proporção menor (70,5%, 21% e 8,5%, respectivamente). As fases II e III envolvem um maior número de participantes. Assim, uma possível facilidade de captação de pessoas com menor custo de realização poderia justificar a escolha de países em desenvolvimento, o que se traduziria em um conflito ético. A fase I, que geralmente envolve maior conhecimento tecnológico, normalmente está restrita aos países desenvolvidos (3636 Garrafa V, Lorenzo C. Helsinque 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514–8.–3838 Gomes R, Pimentel V, Lousada M, Pieroni JP. O novo cenário de concorrência na indústria farmacêutica brasileira. BNDES Setorial. 2014;39:97–134.).
Considerações finais
Os resultados deste estudo mostraram que os ensaios clínicos com medicamentos realizados no Brasil nos últimos anos possuem relativa conformidade com a proporção de carga de doenças, não se evidenciando a tese do “desequilíbrio 90/10”. Porém, quando os ensaios são estratificados por classificação de vulnerabilidade, identifica-se um número reduzido de pesquisas (4%) para doenças relacionadas à pobreza.
O foco geral dos ensaios conduzidos no Brasil está marcado pela grande influência mercadológica, com condução majoritária pela indústria farmacêutica, com financiamento privado e com projetos que são apenas extensões de pesquisas originadas em outros países. Os temas mais pesquisados envolvem medicamentos de alto custo para doenças de caráter crônico e bom nível de internalização governamental, como vários tipos de câncer, artrites, HIV e hepatites virais. Já o perfil do grupo reduzido de ensaios com medicamentos voltados às doenças da pobreza caracteriza-se por um majoritário financiamento público, com foco nas doenças transmissíveis não evitáveis por vacinação, como doença de Chagas, dengue, malária e leishmaniose, dentre outras.
As informações revelam a falta de prioridade dessas doenças nos ensaios clínicos com medicamentos conduzidos no país, apesar de registradas iniciativas importantes capitaneadas por instituições públicas. São necessárias ações mais efetivas de fomento e redirecionamento das prioridades de pesquisa clínica com medicamentos para atendimento das necessidades nacionais. Também são necessários estudos adicionais para verificar o potencial dessas pesquisas em gerar novos medicamentos e mudanças nos tratamentos. Um maior protagonismo governamental na condução e incentivo a pesquisas nessas doenças é necessário.
Conflitos de interesse
Nada declarado pelos autores.
Declaração de responsabilidade
A responsabilidade pelas opiniões expressas neste manuscrito é estritamente dos autores e não reflete necessariamente as opiniões ou políticas da RPSP/PAJPH nem da OPAS.
REFERÊNCIAS
- 1Andrews C. Ethical and scientific implications of the globalization of clinical research. N Engl J Med. 2009;360(26):2793.
- 2U.S. National Institutes of Health. Locations of recruiting studies. Disponível em: https://clinicaltrials.gov/ct2/resources/trends#LocationsOfRecruitingStudies Acessado em outubro de 2016.
» https://clinicaltrials.gov/ct2/resources/trends#LocationsOfRecruitingStudies - 3Petryna A. Experimentalidade: ciência, capital e poder no mundo dos ensaios clínicos. Horiz Antropol. 2011;17(35): 127–60.
- 4Chirac P, Torreele E. Global framework on essential health R&D. Lancet. 2006;367 (9522):1560–1.
- 5World Health Organization (WHO). Global report for research on infectious diseases of poverty. Genebra: WHO; 2012. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/44850/1/9789241564489_eng.pdf Acessado em outubro de 2016.
» http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/44850/1/9789241564489_eng.pdf - 6Hunt P, Khosla R. The human right to medicines. Sur Rev Int Direitos Human. 2008;5(8):99–115.
- 7Cohen J. Ebola vaccine: little and late. Science. 2014;345(6203):1441–2.
- 8Pontes F. Doenças negligenciadas ainda matam 1 milhão por ano no mundo. Inovação em Pauta. 2009;6:69–73.
- 9DNDi. Por que é necessária uma convenção sobre P&D essencial em saúde? Genebra: DNDi; 2012. Disponível em: http://www.dndi.org/images/stories/advocacy/dndi_policy_port_27_04_2012.pdf Acessado em 2012.
» http://www.dndi.org/images/stories/advocacy/dndi_policy_port_27_04_2012.pdf - 10Souza W, coordenador. Doenças neglicenciadas. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências; 2010. Disponível em: https://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-199.pdf Acessado em outubro de 2016.
» https://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-199.pdf - 11Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Doenças negligenciadas: estratégias do Ministério da Saúde. Rev Saude Publica. 2010;44(1):200–2.
- 12Brasil. Ministério da Saúde. Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC). Disponível em: http://www.ensaiosclinicos.gov.br/ Acessado em outubro de 2016.
» http://www.ensaiosclinicos.gov.br/ - 13Silva CF, Silva MV, Osorio-de-Castro CGS. Os ensaios clínicos e o registro de anticorpos monoclonais e biomedicamentos oncológicos no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2016;39(3):149–56.
- 14U.S. National Institutes of Health. Clinical Trials.gov. Disponível em: https://clinicaltrials.gov/ Acessado em outubro de 2016.
» https://clinicaltrials.gov/ - 15Médicos Sem Fronteiras. Desequilibrio fatal: a crise em pesquisa e desenvolvimento de drogas para doenças negligenciadas. Genebra: Grupo de Trabalho de Drogas para Doenças Negligenciadas, Médicos Sem Fronteiras; 2001.
- 16Schramm JMDA, Oliveira AF De, Leite IDC, Valente JG, Gadelha ÂMJ, Portela MC, et al. Transição epidemiológica e o estudo de carga de doença no Brasil. Cienc Saude Colet. 2004;9(4):897–908.
- 17Murray CJL, Vos T, Lozano R, Naghavi M, Flaxman AD, Michaud C, et al. Disability-adjusted life years (DALYs) for 291 diseases and injuries in 21 regions, 1990-2010: A systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet. 2012;380(9859):2197–223.
- 18Gadelha A, Leite I, Valente J. Relatório final do Projeto Estimativa da Carga de Doença do Brasil – 1998. Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz/Fensptec; 2002.
- 19Leite IDC, Beltrão KI, Rodrigues RN, Valente JG, Campos MR, Schramm JM. Projeção da carga de eoença no Brasil (1998-2013). Em: Temporao JG, Buss PM, Carvalheiro JR. Vacinas, soros e imunizações no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. Pp. 51–65.
- 20Manderson L, Aagaard-Hansen J, Allotey P, Gyapong M, Sommerfeld J. Social research on neglected diseases of poverty: continuing and emerging themes. Agyepong I, editor. PLoS Negl Trop Dis. 2009;24;3(2):e332.
- 21Cohen J, Dibner MS, Wilson A. Development of and access to products for neglected diseases. PLoS One. 2010;5(5):e10610.
- 22Aguiar R, Pimenta D. Lançando luz sobre a dengue. Cienc Cult. 2015;67(3):4–5.
- 23Hadinegoro SR, Arredondo-García JL, Capeding MR, Deseda C, Chotpitayasunondh T, Dietze R, et al. Efficacy and long-term safety of a dengue vaccine in regions of endemic disease. N Engl J Med. 2015;24;373(13):1195–206.
- 24Reyes PA, Vallejo M. Trypanocidal drugs for late stage, symptomatic Chagas disease (Trypanosoma cruzi infection). Cochrane Database Syst Rev. 2011;(4):CD004102.
- 25Tanowitz HB, Machado FS, Jelicks LA, Shirani J, Campos de Carvalho AC, Spray DC, et al. Perspectives on Trypanosoma cruzi-induced heart disease (Chagas Disease). Prog Cardiovasc Dis. 2009;51(6):524–39.
- 26Jamal LF, Moherdaui F. Tuberculose e infecção pelo HIV no Brasil: magnitude do problema e estratégias para o controle. Rev Saude Publica. 2007;41(supl 1): 104–10.
- 27Brasil, Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Detectar, tratar e curar: desafios e estratégias brasileiras frente à tuberculose. Bol Epidemiologico. 2015;46(9):1–19.
- 28Luchetti M. Global health and the 10/90 gap. Br J Med Pract. 2014;7(4):731.
- 29Nobrega CR, Lima AFC. Custo de procedimentos relacionados ao tratamento quimioterápico ambulatorial de mulheres portadoras de câncer de mama. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(4):699–705.
- 30Lopes LC, Barberato-Filho S, Costa AC, Osorio-de-Castro C. Uso racional de medicamentos antineoplásicos e ações judiciais no Estado de São Paulo. Rev Saude Publica. 2010;44(4):620–8.
- 31Brasil, Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos. Componente Especializado da Assistência Farmacêutica: inovação para a garantia do acesso a medicamentos no SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
- 32Chieffi AL, Barata RDCB. Ações judiciais: estratégia da indústria farmacêutica para introdução de novos medicamentos. Rev Saude Publica. 2010;44(3):421–9.
- 33Duarte PS, Ramos DG, Pereira JCR. Padrão de incorporação de fármacos antiretrovirais pelo sistema público de saúde no Brasil. Rev Bras Epidemiol. 2011;14(4):541–7.
- 34Canary LA, Klevens RM, Holmberg SD. Limited access to new hepatitis C virus treatment under state Medicaid programs. Ann Intern Med. 2015;163(3):226–8.
- 35Gomes RDP, Pimentel VP, Landim AB, Pieroni JP. Ensaios clínicos no Brasil: competitividade internacional e desafios. Brasília: BNDES; 2012. Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/1504/1/A%20set.36_Ensaios%20cl%C3%ADnicos%20no%20Brasil.pdf Acessado em outubro de 2016.
» https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/1504/1/A%20set.36_Ensaios%20cl%C3%ADnicos%20no%20Brasil.pdf - 36Garrafa V, Lorenzo C. Helsinque 2008: redução de proteção e maximização de interesses privados. Rev Assoc Med Bras. 2009;55(5):514–8.
- 37Cabral MML, Schindler HC, Abath FGC. Regulamentações, conflitos e ética da pesquisa médica em países em desenvolvimento. Rev Saude Publica. 2006;40(3):521–7.
- 38Gomes R, Pimentel V, Lousada M, Pieroni JP. O novo cenário de concorrência na indústria farmacêutica brasileira. BNDES Setorial. 2014;39:97–134.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Nov 2016
Histórico
- Recebido
21 Abr 2016 - Aceito
11 Set 2016