Fortalecimento da governança regional e da rede de atenção à saúde em municípios pequenos no Brasil

Strengthening regional governance and the health care network in small municipalities in Brazil

Fortalecimiento de la gobernanza regional y de la red de atención de salud en municipios pequeños de Brasil

João Felipe Marques da Silva Cristiane Martins Pantaleão Clodoaldo Fernandes dos Santos Fernando Antônio Gomes Leles Karen Patrícia Wilke Pereira Rocha Luana Carla Tironi de Freitas Giacometti Sandro Haruyuki Terabe Socorro Gross Galiano Valdeni Alexandre Ciconello Neto Sobre os autores

RESUMO

No Brasil, 67,7% dos municípios têm menos de 20 mil habitantes, sendo caracterizados como de pequeno porte. O objetivo do presente artigo é sistematizar a experiência e identificar os desafios e as lições aprendidas na implantação do modelo de fortalecimento da governança regional e da organização da rede de atenção à saúde (RAS) em uma região do Brasil composta por esses municípios, que apresentam baixa capacidade técnica e orçamentária, além de fragilidades diversas relacionadas à organização da RAS. Na perspectiva do fortalecimento da governança regional e da organização do processo de trabalho da atenção primária em saúde (APS) e, por consequência, dos fluxos com os outros níveis de atenção, foi proposta a estratégia intitulada Mais Cuidado Mais Saúde, desenvolvida em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) e o Ministério da Saúde. O projeto foi executado por meio de processos de educação permanente em saúde e fortalecimento de capacidades institucionais na região de Ivaiporã/Paraná, com oficinas descentralizadas, contemplando três eixos prioritários: integração da RAS, formação de capacidades e gestão da informação. O público-alvo foram as equipes de APS ampliada. O projeto permitiu desenvolver capacidades locais e de governança regional por meio de reflexões conjuntas a respeito do modelo de atenção à saúde, de seus componentes e das mudanças necessárias nos processos de trabalho para a promoção de saúde com foco na qualidade de vida dos usuários. Por se tratar de uma experiência que considera as fragilidades, necessidades e autonomia dos atores locais, o projeto tem alto poder de replicação e customização para outras regiões com características similares dentro e fora do Brasil.

Palavras-chave
Regionalização; educação permanente; governança; atenção primária à saúde; Brasil

ABSTRACT

In Brazil, 67.7% of the municipalities are characterized as small, with a population of less than 20 thousand. The objective of this article is to systematize the experience and identify the challenges and lessons learned in the implementation of the model for strengthening regional governance and organizing the health care network (HCN) in a region of Brazil composed of these municipalities, which present low technical and budgetary capacity, in addition to various fragilities related to the organization of the HCN. With a view to strengthening regional governance and the organization of the primary health care (PHC) work process and, consequently, the workflow with other levels of care, a strategy entitled More Care More Health (Mais Cuidado Mais Saúde) was proposed, developed in partnership with the Pan American Health Organization/World Health Organization (PAHO/WHO) and the Ministry of Health. The project was developed through permanent health education and institutional capacity building in the region of Ivaiporã, state of Paraná, based on workshops and addressing three priority axes: HCN integration, capacity building and information management. The target audience were the extended PHC teams. The project made it possible to develop local and governance capacities through joint reflections on the health care model, its components and the necessary changes in work processes for health promotion with a focus on the quality of life of users. Because it is an experience that considers the weaknesses, needs and autonomy of local actors, the project has a high potential for replication and customization for other regions with similar characteristics inside and outside Brazil.

Keywords
Regional health planning; education, continuing; health governance; primary health care; Brazil

RESUMEN

En Brasil, 67,7% de los municipios se clasifican como pequeños, puesto que tienen menos de 20 000 habitantes. El objetivo de este artículo es sistematizar la experiencia adquirida y determinar cuáles son los desafíos y las enseñanzas extraídas en la implementación del modelo de fortalecimiento de la gobernanza regional y de la organización de la red de atención de salud en una región de Brasil compuesta por municipios de este tipo, que tienen poca capacidad técnica y presupuestaria y diversas debilidades relacionadas con la organización de dicha red. Desde la perspectiva del fortalecimiento de la gobernanza regional y de la organización del proceso de trabajo en el campo de la atención primaria de salud y, por consiguiente, de los flujos asistenciales con los demás niveles de atención, se propuso la estrategia Más cuidado, más salud, formulada junto con la Organización Panamericana de la Salud/Organización Mundial de la Salud (OPS/OMS) y el Ministerio de Salud. El proyecto se ejecutó por medio de procesos de educación permanente en salud y fortalecimiento de las capacidades institucionales en la región de Ivaiporã, Estado de Paraná, con talleres descentralizados, dentro de tres ejes prioritarios, a saber, integración de red de atención de salud, capacitación y gestión de la información. El público destinatario fueron los equipos de atención primaria de salud ampliada. El proyecto permitió el desarrollo de las capacidades locales y la gobernanza regional por medio de reflexiones conjuntas sobre el modelo de atención de salud, sus elementos constitutivos y los cambios necesarios en los procesos de trabajo para impulsar la promoción de la salud centrada en la calidad de vida de los usuarios. Por tratarse de una experiencia en la cual se tienen en cuenta las debilidades, las necesidades y la autonomía de los actores locales, el proyecto tiene un alto poder de repetición y adaptación en otras regiones con características similares dentro y fuera de Brasil.

Palabras clave
Regionalización; educación continua; gobernanza; atención primaria de salud; Brasil

As mudanças demográficas e epidemiológicas observadas no Brasil têm-se refletido em um perfil de morbimortalidade de tripla carga de doenças, com crescimento das condições crônicas (11. Lavras C. Atenção primária à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saude Soc. 2011;20(4):867–74. doi: 10.1590/S0104-12902011000400005
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). Tal processo ganhou maior relevância no período pandêmico, devido à interrupção de alguns serviços e ações voltados especialmente aos pacientes crônicos (22. World Health Organization (WHO). Third round of the global pulse survey on continuity of essential health services during the COVID-19 pandemic: November–December 2021. [Acessado em 22 de julho de 2022].Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-EHS_continuity-survey-2022.1
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). O represamento dessa demanda e suas consequências não ocorrem de forma homogênea no Brasil, uma vez que as regiões brasileiras são distintas quanto à oferta de serviços e profissionais, particularmente no caso dos municípios pequenos e distantes de polos regionais (33. Lima LD de, Viana AL d’Ávila, Machado CV, Albuquerque MV de, Oliveira RG de, Iozzi FL, et al. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cienc Saude Coletiva. 2012;17(11):2881–92. doi: 10.1590/S1413-81232012001100005
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).

O sistema de saúde no Brasil mostra-se hoje mais preparado para o manejo clínico das condições agudas do que para as condições crônicas, que envolvem um processo complexo e exigem práticas de autocuidado, abordagens multiprofissionais e a garantia de continuidade assistencial — demandas que só podem ser atendidas através de sistemas integrados em redes de atenção à saúde (RAS) (11. Lavras C. Atenção primária à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saude Soc. 2011;20(4):867–74. doi: 10.1590/S0104-12902011000400005
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). O processo de estruturação das RAS exige intervenções sistêmicas nas unidades funcionais que as compõem e nas práticas profissionais que aí se desenvolvem, bem como um conjunto de iniciativas direcionadas à qualificação, organização e integração de estruturas ou processos com protagonismo da APS (11. Lavras C. Atenção primária à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saude Soc. 2011;20(4):867–74. doi: 10.1590/S0104-12902011000400005
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).

Considerando que, no Brasil, 67,7% dos municípios são de pequeno porte — menos de 20 mil habitantes (44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas da população. [Acessado em 5 março 2021]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
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) — e, consequentemente, tendem a ter baixa capacidade técnica e orçamentária (55. Rocha KPWF. Planejamento e organização da gestão da Atenção Primária à Saúde em municípios de pequeno porte: uma proposição de parâmetros essenciais [dissertação]. Universidade Estadual de Londrina, Programa Mestrado em Saúde Coletiva: Londrina; 2022. [Acessado em junho de 2023]. Disponível em: https://pos.uel.br/saudecoletiva/teses-dissertacoes/planejamento-e-organizacao-da-gestao-da-atencao-primaria-a-saude-em-municipios-de-pequeno-porte-uma-proposicao-de-parametros-essenciais/
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6. Giacometti LCTF. Financiamento da atenção primária à saúde (APS): o desafio da gestão municipal [dissertação]. Universidade Estadual de Londrina, Programa Mestrado em Saúde Coletiva: Londrina; 2022. [Acessado em junho de 2023]. Disponível em: https://pos.uel.br/saudecoletiva/teses-dissertacoes/financiamento-da-aps-o-desafio-da-gestao-municipal/
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-77. Calvo MCM et al. Estratificação de municípios brasileiros para avaliação de desempenho em saúde. Epidemiol Serv Saúde. 2014;25(767-76). doi: 10.5123/S1679-49742016000400010
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), o Consórcio Intermunicipal de Saúde de Ivaiporã, no estado do Paraná, desenvolveu, em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), uma estratégia de governança e desenvolvimento de capacidades denominada “Mais Cuidado, Mais Saúde”. O Projeto tem como objetivo fortalecer a RAS, com ênfase na atenção primária à saúde (APS) e na atenção secundária, em municípios de pequeno porte inseridos em uma mesma região. Considera-se que esse caráter regional é essencial para garantir a integralidade do cuidado nesses municípios pequenos. O presente artigo sistematiza a experiência e identifica os desafios e as lições aprendidas no desenvolvimento do Mais Cuidado Mais Saúde.

MATERIAIS E MÉTODOS

O projeto Mais Cuidado Mais Saúde é uma iniciativa que oferece educação permanente em saúde (EPS) e apoio institucional com ênfase no fortalecimento da governança local estruturada para regiões formadas por municípios de pequeno porte. A iniciativa foi realizada por um conjunto de gestores, técnicos e profissionais em uma região de saúde do estado do Paraná. O valor despendido com o projeto foi de R$ 200 000 (US$ 42 000), a partir de convênio técnico, financiado pelo Ministério da Saúde.

Para descrever esse modelo de fortalecimento da governança regional e da RAS em municípios de pequeno porte, realizou-se uma pesquisa-ação (88. Thiollent M. Metodologia da pesquisa-ação. 16ª ed. São Paulo: Cortez; 2008.) que utilizou observação participante e análise de dados documentados ao longo de seu desenvolvimento. A pesquisa-ação é concebida e realizada em estreita associação com uma iniciativa ou com a resolução de um problema coletivo, envolvendo pesquisadores e participantes de modo cooperativo ou participativo (88. Thiollent M. Metodologia da pesquisa-ação. 16ª ed. São Paulo: Cortez; 2008.). A opção por esse desenho foi fruto da relação horizontal e democrática entre os pesquisadores e os participantes da pesquisa.

A operacionalização do projeto foi sistematizada, descrita e analisada em articulação com os referenciais da organização da RAS e da governança regional. A experiência de formação ocorreu ao longo de 18 meses em uma região de saúde com 16 municípios de pequeno porte do estado do Paraná e envolveu cerca de 700 dos 985 profissionais registrados de 50 unidades básicas de saúde (UBS), o que corresponde a 71% dos profissionais de saúde da APS dessa região (99. Brasil. Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Primária (SISAB). [Acessado em 23 de julho de 2022]. Disponível em: http://www.resbr.net.br
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). Todos os participantes realizaram inscrição nas oficinas, o que dispensou o preenchimento do termo de consentimento livre e esclarecido. As perdas totais de participantes corresponderam a cerca de 10% dos inscritos.

OBJETIVOS DO MAIS CUIDADO MAIS SAÚDE

O projeto Mais Cuidado Mais Saúde teve sete objetivos específicos: 1) fortalecer e qualificar os espaços de governança regional; 2) desenvolver capacidades institucionais da equipe de APS ampliada (equipes assistenciais e profissionais de apoio, logístico e administrativo) acerca do modelo de atenção às condições crônicas (MACC), seus componentes e as mudanças necessárias nos processos de trabalho para a qualificação da saúde; 3) capacitar as equipes de APS para a territorialização, por meio de oficinas que acompanharam a implementação do processo de reconhecimento do território e identificação de risco; 4) organizar os processos de trabalho para a implementação de planos de cuidado construídos de forma compartilhada entre APS e atenção secundária; 5) capacitar as equipes municipais quanto aos critérios de estratificação de risco das linhas de cuidado prioritárias para a região e fatores para encaminhamento à atenção secundária; 6) construir um painel de indicadores da evolução do projeto que permitisse o acompanhamento do projeto e dos resultados produzidos pelo mesmo); e 7) modelar indicadores de processo e resultado.

CONTEXTO DO PROJETO

A 22ª Região de Saúde do Paraná (tabela 1) é composta por 16 municípios de pequeno porte que têm em Ivaiporã a sede da microrregião denominada Vale do Ivaí (figura 1). Segundo estimativa, a região conta com 137 169 habitantes. Seis municípios com população em torno de 10 000 habitantes abrangem 71% da população, sendo os demais (29%) divididos entre 10 municípios com populações que variam de 2 mil a 5 mil habitantes (44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas da população. [Acessado em 5 março 2021]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
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). A região inclui dois municípios com território não contíguo, o que implica em diferenças culturais e de redes de transporte.

Os municípios da região se caracterizam por baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), baixa renda per capita, baixo desenvolvimento socioeconômico (1010. Região e Redes. Caminhos para a Universalização da Saúde no Brasil. Banco de Indicadores Regionais e Tipologias, 2016. [Acessado em 23 de julho de 2022]. Disponível em: http://www.resbr.net.br
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), baixa oferta de empregos, elevada proporção de população rural, inexistência de indústrias e rodovias com pouca estrutura para garantia de segurança viária. A oferta de serviços de saúde também é baixa na região, que cobre uma extensa área geográfica (6 307,679 km2). Apesar da cobertura de APS de 94% (99. Brasil. Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Primária (SISAB). [Acessado em 23 de julho de 2022]. Disponível em: http://www.resbr.net.br
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), as equipes enfrentam problemas quanto a composição e carga horária, principalmente de profissionais médicos.

Dados demográficos demonstram um processo de envelhecimento, com crescimento da proporção de idosos em relação ao número de jovens (44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas da população. [Acessado em 5 março 2021]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
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). O aumento da expectativa de vida ainda não se traduz em qualidade de vida, com grande número de idosos que chegam à velhice com importante carga de doenças crônicas, evidenciando a necessidade do incentivo de medidas para promoção da saúde. O perfil da mortalidade na 22ª Região aponta que 31,6% dos óbitos se devem a doenças do aparelho circulatório; 15,9% a neoplasias; 12,5% a doenças do aparelho respiratório; 9,9% a causas externas, sendo as causas mais frequentes o suicídio por enforcamento nos homens e as quedas em mulheres; e 6,9% dos óbitos se devem a doenças endócrinas e metabólicas (1111. Paraná. Planejamento Regional Integrado (PRI). 2018. [Acessado em junho de 2023]. Disponível em: https://www.saude.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2021-12/04A%20PRIORIDADES%20MACRORREGIONAIS%202021%20-%20CIB%20-%20Modo%20de%20Compatibilidade.pdf
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).

Mesmo com dificuldades territoriais e vulnerabilidades, a região possui um processo de governança estabelecido. O Conselho Regional de Secretarias Municipais de Saúde (CRESEMS) é composto pelos 16 gestores de saúde da região, possui regimento e estatuto próprios, com construção de pautas coletivas que visam a articulação e o fortalecimento da gestão em saúde municipal e regional. Além do CRESEMS, a região possui em seu território um consórcio intermunicipal de saúde (CIS Ivaiporã) regido pelos prefeitos dos 16 municípios. O CIS se apresenta, no contexto do projeto Mais Cuidado Mais Saúde, como ferramenta para concretização da ação coletiva entre os gestores e para o alcance de objetivos comuns. Entende-se que, na ausência do CIS, o projeto Mais Cuidado Mais Saúde pode se desenvolver por meio de outra instância de governança regional.

TABELA 1.
Municípios da 22ª Região de Saúde do Paraná, Brasil

REGIONALIZAÇÃO

Sabe-se que a regionalização é um processo construído por instituições e pessoas, portanto permeado por relações de poder, com dimensões técnicas, políticas, econômicas e ideológicas. Assim, é resultado dos acordos políticos firmados por meio da gestão compartilhada e pelo respeito à diversidade e à autonomia dos entes federados (1212. Lima LD de. Condicionantes da regionalização da saúde no brasil: desafios e recomendações para o planejamento e a gestão territorial do sus no horizonte dos próximos 20 anos. Textos para discussão. Fiocruz, 2015. [Acessado em 23 de julho de 2022]. Disponível em: https://saudeamanha.fiocruz.br/wp-content/uploads/2016/07/15-PJSSaudeAmanha_Texto0015_A4_21-12-2015.pdf
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). Nesse contexto foi desenvolvida a governança regional da RAS; e, na perspectiva do fortalecimento da integralidade da atenção, por meio da otimização de recursos e qualificação dos serviços, tendo os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) como base para sua construção (1313. Conasems. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Regionalização da saúde, posicionamentos e orientações. Brasília: Conasems; 2019. [Acessado em 10 junho de 2022].Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Documento-T%C3%A9cnico-regionaliza%C3%A7%C3%A3o-DIAGRAMADO-FINAL-1.pdf
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), se idealizou o projeto Mais Cuidado Mais Saúde.

Com a implantação do projeto, formou-se um grupo condutor, formado por cinco gestores, dois técnicos municipais e quatro representantes das instituições parceiras. Esse grupo teve a função de acompanhar o desenvolvimento da estratégia nos diversos pontos de atenção da rede, monitorar objetivos e metas que deveriam ser cumpridos a curto, médio e longo prazos, monitorar os indicadores estabelecidos em painéis de processo formativo e de metas terapêuticas, recomendar novos arranjos, fluxos e organização e realizar processos de EPS para as equipes do território.

Para o fortalecimento da governança regional, CRESEMS e CIS Ivaiporã trabalharam conjuntamente, por meio da escuta dos gestores de saúde, definição do plano de trabalho e implantação de serviços, considerando as necessidades de saúde apontadas pela própria região de saúde. O movimento do projeto proporciona aos prefeitos e gestores de saúde um exemplo de cooperação, fortalecendo o processo de regionalização. Nos espaços de governança do CRESEMS, o monitoramento do processo de trabalho do projeto tornou-se pauta permanente.

AÇÕES DESENVOLVIDAS

O Mais Cuidado Mais Saúde foi operacionalizado por meio de oficinas e ações educativas descentralizadas, realizadas nos municípios e por microrregião de saúde. O público-alvo foram os profissionais lotados nas secretarias municipais e na APS (equipes da APS ampliada) e representantes do ambulatório de especialidades da região de saúde de Ivaiporã.

Inicialmente, foi realizada uma ação político-estratégica de fortalecimento da governança por meio do lançamento do projeto, no dia 5 de agosto de 2021, para sensibilizar prefeitos, secretários municipais de saúde, representantes do controle social e profissionais-chave das equipes. Foram apresentados os objetivos e as ações que seriam desenvolvidas dentro dos três eixos prioritários: integração da RAS, formação de capacidades institucionais e humanas e gestão da informação. A ação contou com a participação de referências nacionais do Ministério da Saúde e OPAS/OMS. Os presentes receberam qualificação de especialistas nacionais sobre os temas regionalização, RAS e APS. Com o apoio dos prefeitos e secretários municipais de saúde, houve adesão e engajamento dos líderes locais, o que gerou credibilidade para a proposta e garantiu o compromisso coletivo com o projeto e o andamento da iniciativa.

Em seguida, foram realizadas oficinas introdutórias presenciais nos 16 municípios da região, que serviram para apresentar as fases do projeto e abordar conceitos básicos do modelo de atenção às condições crônicas. Após essa etapa, foram trabalhados o processo de territorialização, com foco no conhecimento do território, da população e dos riscos — a partir da perspectiva de que esse conhecimento é etapa fundamental e ponto inicial da estratégia para as ações organizativas de planejamento que foram desencadeadas na sequência (1414. Santos AL, Rigotto RM. Território e territorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na atenção básica à saúde. Trab Educ Saude. 2010;8(3):387–406. doi /10.1590/S1981-77462010000300003
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).

FIGURA 1.
Estado do Paraná e 22ª Região de Saúde do estado do Paraná, Brasil

Com o diagnóstico do território em mãos, realizaram-se oficinas para ações consideradas estratégicas para garantir resolubilidade à assistência. As oficinas englobaram ações para desenvolvimento das linhas de cuidado e estratificação de risco, organização dos processos de trabalho, territorialização e planejamento do cuidado, desenvolvimento de grupos de trabalho para apoio aos usuários na implementação dos planos de cuidado e desenvolvimento de ações de promoção à saúde.

Concomitantemente, para qualificação da RAS, os prefeitos e gestores municipais de saúde deram início a um processo de reestruturação do Ambulatório Multiprofissional Especializado (AME). Em ação consorciada, alugou-se sede própria para o AME e investiu-se na contratação de profissional dedicada à coordenação técnica do serviço, o que permaneceu como um dos legados do projeto. Para melhoria dos fluxos assistenciais e fortalecimento do vínculo entre os profissionais da APS e atenção secundária, a gestão do AME implantou um núcleo de logística e o ciclo periódico de atendimento (CPA), modelagens estas que organizaram os processos de trabalho e ampliaram as modalidades de resposta às demandas da APS. Esses serviços permanecem em execução e foram pensados como processos importantes para a manutenção das atividades desencadeadas pelo projeto. O núcleo de logística é um instrumento que garante a regulação do acesso e o CPA permite a materialização do atendimento multiprofissional. A partir da reestruturação dos processos de trabalho, foram previstas novas formas de atendimento nas seguintes modalidades: discussão de caso, matriciamento, ação educativa e elaboração de plano de cuidado. Tais atendimentos são remunerados através da nomenclatura “interconsultas ampliadas”.

O projeto ainda previu uma mostra regional de experiências exitosas, na qual as equipes puderam inscrever trabalhos relacionados à implementação de ações de promoção da saúde e dos processos de trabalho, com valorização dos profissionais e premiação aos trabalhos com melhor avaliação. As três etapas (Oficinas 1, 2 e 3) foram desenvolvidas em 12 meses. O encerramento se deu com a mostra de experiência após 6 meses do final da etapa 3.

Oficina 1 – construção do Modelo de Atenção às Condições Crônicas

A primeira oficina realizada teve o propósito de sensibilizar os profissionais para a reflexão sobre o MACC, o processo de trabalho na APS e sua relação com a atenção ambulatorial especializada (AAE). Essa oficina foi realizada em todos os municípios da região com os integrantes da APS ampliada. A carga horária total da oficina foi de 8 horas e a mesma foi modelada a partir de estratégias de aprendizagem para adultos por meio de metodologias ativas e crítico-reflexivas, teóricas e práticas (tabela 2).

Como trabalho de dispersão (atividades executadas pelos participantes após as oficinas), a oficina previu a construção de um plano para operacionalização do MACC por unidade de saúde. O plano teve como objetivo orientar as equipes para o planejamento, a partir de parâmetros oficiais e dimensionando a demanda para cada linha de cuidado definida como prioritária no estado do Paraná (gestantes, crianças menores de 2 anos, hipertensos, diabéticos, idosos e saúde mental) por estrato de risco. Além disso, na construção do plano foi orientada uma reunião da equipe ampliada para criação de ações, programas e grupos operativos para promoção da saúde, com a participação da gestão municipal, no intuito de viabilizar o projeto.

Oficina 2 – Construção do diagnóstico territorial e definição das prioridades de saúde

A segunda oficina teve o intuito de realizar um levantamento das condições de saúde e doença da população considerando as vulnerabilidades sociais, econômicas, culturais e patológicas dos indivíduos. A partir disso, buscou-se estratificar as informações em riscos familiares; e, a partir desses, definir o risco de cada parte da área de abrangência do município.

TABELA 2.
Atividades, metodologia e objetivos da primeira oficina do projeto Mais Cuidado Mais Saúde, Ivaiporã (PR), Brasil, 2021a

A oficina 2 foi realizada em todos os municípios da região, com os coordenadores de equipe e agentes de saúde. Teve carga horária total de 8 horas, distribuídas em duas etapas: apresentação da proposta de atividade e das ferramentas a serem utilizadas (classificação de risco familiar e mapas dinâmicos de área) e diagnóstico situacional. Em sequência, a atividade de dispersão da equipe consistiu em estratificar as famílias e construir os mapas de risco territorial. Essa etapa teve duração de cerca de 60 dias.

Para classificar o risco familiar, foram consideradas a densidade de moradores por família, distância dos pacientes até a unidade de saúde, familiares acamados, familiares portadores de necessidades especiais (físicas e intelectuais), condições de saneamento das famílias, presença de drogadição dos membros, presença de analfabetismo dos integrantes, renda familiar, familiares crianças ou idosos, hipertensão, diabetes, gestantes, populações vulneráveis, familiares com doenças respiratórias crônicas e familiares em tratamento oncológico. Esses indicadores sentinelas de risco foram aplicados em uma ferramenta (planilha Google) para quantificar o risco de cada uma das famílias, revertendo o valor final em uma classificação descrita por cores. Uma vez levantados os riscos familiares (Sem risco, Baixo risco, Médio risco, Alto risco), os mesmos foram georreferenciados utili-zando o método de Torre de Risco, que consiste em uma representação visual das vulnerabilidades individuais e dos riscos familiares no mesmo dispositivo. A representação utiliza cores legendadas para cada agravo e formas para diferenciar as questões individuais e familiares (figura 2). Com a localização das famílias conforme a georreferência, foi possível mensurar a densidade de risco de cada território e redimensionar os recursos humanos para melhor atender cada tipo de população, priorizando o princípio da equidade, concluindo assim o processo de territorialização.

Oficina 3 – Pactuação das linhas e dos planos compartilhados de cuidado

A oficina 3 foi realizada de forma microrregional, tendo como instrutores os profissionais do AME. Contou com três edições presenciais em cada linha de cuidado vista como prioritária. As três edições da oficina 3 foram agrupadas, totalizando 8 horas diárias e 72 horas de formação.

Quanto ao conteúdo, a oficina 3 previu um primeiro momento para aproximação e vínculo entre as equipes da APS e AAE, seguido de exposição dialogada abordando os critérios de estratificação de risco. Após esse momento, foram discutidos estudos de caso em cada uma das linhas prioritárias, em pequenos grupos, sendo as equipes orientadas a identificarem fatores de risco e realizarem a estratificação e, se necessário, encaminhamento à atenção secundária. Abordou-se a qualificação do encaminhamento, com discussão acerca das informações necessárias e recomendáveis, sendo preenchido o formulário de encaminhamento, como exercício. Participaram dessa etapa cerca de 290 profissionais. Para o fechamento, os profissionais promoveram discussões quanto à implementação do plano de cuidado e organização do cuidado compartilhado.

FIGURA 2.
Exemplo de dados georreferenciados em área da região de Ivaiporã (PR), Brasil, 2022aaCírculos coloridos indicam famílias classificadas como sem risco (cinza), baixo risco (verde), médio risco (amarelo) e alto risco (vermelho) de saúde.

Reorganização da rede de atenção conforme condições crônicas na região de Ivaiporã

O projeto também focalizou esforços no sentido de fortalecer o vínculo entre os profissionais dos dois níveis de atenção, fomentando a construção coletiva de fluxos e processos assistenciais. Para tanto, o AME implantou o núcleo de logística, ferramenta que utiliza um aplicativo aberto de mensagens instantâneas para facilitar a comunicação entre os profissionais da RAS. Depois do encaminhamento dos pacientes ao AME, os casos são regulados por prioridade, sendo emitidas e compartilhadas com as equipes de regulação as listas dos pacientes que serão atendidos e acompanhados. O núcleo de logística reduziu o absenteísmo (ausências de pacientes nos atendimentos agendados para a equipe multiprofissional no AME) em cerca de 40% e fortaleceu a comunicação entre os profissionais dos dois níveis de atenção por meio dos processos de regulação, interconsultas, matriciamentos e elaboração de planos de cuidado; e também entre a APS e o paciente, como ordenadora da rede.

O CPA define todos os processos internos ocorridos no AME a cada meio período diário, iniciando com o acolhimento do paciente, ação educativa coletiva, primeiro atendimento, regulação e desenho do ciclo de atenção. Após as consultas, o CPA prevê reuniões diárias para fechamento do plano de cuidado e diálogo com a APS através de matriciamentos e discussões de caso.

As discussões de casos oportunizam a reflexão sobre o cuidado e sua correlação com os protocolos vigentes, sendo uma estratégia eficaz para aperfeiçoamento das práticas assistenciais. Além disso, os profissionais trocam percepções sobre cada paciente e avaliam os equipamentos disponíveis para o cuidado, traçando juntos estratégias para a implementação de um plano terapêutico. O caso discutido com os especialistas se transforma em importante ferramenta formativa, aprimorando o entendimento dos profissionais para o manejo de outros pacientes.

Avaliação do Mais Cuidado Mais Saúde

A avaliação do projeto foi realizada através de relatórios para cada um dos produtos. Os relatórios foram estruturados de forma descritiva, com avaliação quantitativa ou qualitativa dos resultados, conforme o produto enfocado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo descreve um modelo de fortalecimento da governança regional e da organização da RAS em uma região do Brasil composta por municípios de pequeno porte. Nessa perspectiva, o projeto prevê uma proposta de reorganização do processo de trabalho da APS e, por consequência, dos fluxos com a AAE, tornando-a mais resolutiva. Tal realidade é encontrada na maior parte dos municípios de pequeno porte do Brasil (44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas da população. [Acessado em 5 março 2021]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
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), tornando o projeto um modelo de grande utilidade e facilmente replicável. Durante todo o planejamento, houve preocupação em não engessar a estruturação do projeto, possibilitando que se adapte à realidade e possibilidades de outras regiões. Essas adaptações estão relacionadas à organização da oferta e ao acesso aos serviços de saúde de cada região, para que os exemplos da existência ou ausência da rede sejam compreendidos pelos participantes.

O desenvolvimento do Mais Cuidado Mais Saúde possibilitou reconhecer que é possível materializar o planejamento, a organização e o papel da APS como ordenadora da rede e coordenadora do cuidado a partir da base territorial. Entre os desafios, destacam-se a manutenção do projeto juntos aos gestores, dada a rotatividade, e a necessidade de estímulos contínuos aos gestores e equipes. Compreende-se que o projeto tem alto poder de replicação e customização para regiões com características similares dentro e fora do Brasil.

Declaração.

As opiniões expressas no manuscrito são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem necessariamente a opinião ou política da RPSP/PAJPH ou da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

Agradecimentos.

Ao Ministério da Saúde e à Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde pelo financiamento e suporte na realização dos projetos que subsidiaram este trabalho.

  • Contribuições dos autores.
    JFMS, CMP, CFS, FAGL, KPWPR, LTG, SHT, SGG, VACN planejaram a ideia original, escreveram, revisaram e aprovaram a versão final do artigo.
  • Financiamento.
    O projeto Mais Cuidado Mais Saúde teve apoio da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS/MS) por meio de projeto de cooperação técnica com a OPAS/OMS.
  • Conflitos de interesse.
    Nada declarado pelos autores.

REFERÊNCIAS

  • a
    Círculos coloridos indicam famílias classificadas como sem risco (cinza), baixo risco (verde), médio risco (amarelo) e alto risco (vermelho) de saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2023
  • Aceito
    16 Maio 2023
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