Enfrentamento de HIV/aids e sífilis em mulheres venezuelanas migrantes na perspectiva de gestores de saúde no Norte do Brasil

Addressing HIV/AIDS and syphilis in Venezuelan migrant women from the perspective of health managers in the North of Brazil

Manejo de la infección por el VIH/sida y la sífilis en mujeres migrantes venezolanas desde la perspectiva de los gestores de salud en el norte de Brasil

Fernanda Luiza Kill Alvim Sonia Vivian de Jezus Adriana Ilha da Silva Ana Carolina Leão Fernanda Zambonin Ethel Leonor Noia Maciel Ricardo Alexandre Arcêncio Sobre os autores

RESUMO

Objetivo.

Identificar a percepção dos gestores de saúde sobre as ações adotadas e os desafios encontrados no enfrentamento de HIV e sífilis em mulheres venezuelanas migrantes no Brasil.

Métodos.

Este estudo descritivo-exploratório, de abordagem qualitativa, foi realizado de janeiro a março de 2021 nos municípios de Boa Vista (estado de Roraima) e Manaus (estado do Amazonas). As entrevistas em áudio realizadas com os participantes foram transcritas na íntegra. A análise foi pautada na técnica de avaliação de conteúdo temática.

Resultados.

Foram entrevistados 10 gestores (cinco em Boa Vista e cinco em Manaus). A análise de conteúdo identificou os seguintes eixos e temas: estrutura disponível para diagnóstico e tratamento de aids e sífilis — acesso, vagas para atendimento/fila de espera, formação das equipes de saúde e suporte psicossocial; desafios enfrentados pelas mulheres venezuelanas — idioma, questões de documentação e frequência de alteração de endereço; e estratégias e ações adotadas e expectativas para o enfrentamento de HIV/aids e sífilis no contexto de migração.

Conclusões.

Apesar das ações de acolhimento das mulheres venezuelanas migrantes — garantido pela universalidade do sistema de saúde brasileiro — aspectos como o idioma e a falta de documentação permanecem como barreiras. Diante da inexistência de planos de ação e planejamento futuro da atenção a mulheres migrantes portadoras de HIV ou sífilis nos municípios, é importante desenvolver políticas públicas com o objetivo de minimizar as dificuldades enfrentadas por essa população.

Palavras-chave
Infecções sexualmente transmissíveis; migrantes; atenção à saúde; saúde da mulher; gestão em saúde

ABSTRACT

Objective.

To identify the perception of health managers regarding the actions taken and the challenges encountered in addressing HIV and syphilis in Venezuelan migrant women in Brazil.

Method.

This descriptive-exploratory study using a qualitative approach was conducted from January to March 2021 in the municipalities of Boa Vista (state of Roraima) and Manaus (state of Amazonas). Audio interviews with the participants were transcribed in full and examined using thematic content analysis.

Results.

Ten managers were interviewed (five in Boa Vista and five in Manaus). Content analysis identified the following domains and themes: available infrastructure for diagnosis and treatment of AIDS and syphilis — access, availability of medical appointments /waiting list, training of health teams, and psychosocial support; challenges faced by Venezuelan women — language, documentation issues, and frequent address changes; and strategies and actions adopted and expectations for addressing HIV/AIDS and syphilis in the context of migration.

Conclusions.

Despite the care provided to Venezuelan women in Brazil — guaranteed by the universal nature of the Brazilian health system — language and lack of documentation remain as barriers. Given the absence of action plans and future planning for the care of migrant women with HIV or syphilis in municipalities, it is important to develop public policies aimed at minimizing the difficulties faced by this population.

Keywords
Sexually transmitted diseases; transients and migrants; delivery of health care; women’s health; health management

RESUMEN

Objetivo.

Determinar la percepción de los gestores de salud sobre las medidas adoptadas y los desafíos encontrados para manejar la infección por el VIH y la sífilis en mujeres migrantes venezolanas en Brasil.

Métodos.

Este estudio descriptivo y exploratorio, con enfoque cualitativo, se realizó de enero a marzo del 2021 en los municipios de Boa Vista (estado de Roraima) y Manaos (estado de Amazonas). La grabación de las entrevistas de los participantes se transcribió en su totalidad. El análisis se basó en la técnica de evaluación temática del contenido.

Resultados.

Se hicieron entrevistas a diez gestores (cinco en Boa Vista y cinco en Manaos). En el análisis del contenido se observaron los siguientes ejes y temas: la estructura disponible para el diagnóstico y tratamiento del sida y de la sífilis, con inclusión de acceso, cupos de atención, filas de espera y formación de equipos de salud y apoyo psicosocial; los desafíos enfrentados por las mujeres venezolanas, como idioma, problemas de documentación y frecuencia de cambio de domicilio; las estrategias y medidas adoptadas y las expectativas para enfrentar la infección por el VIH/sida y la sífilis en el marco de la migración.

Conclusiones.

A pesar de las medidas de acogida a las mujeres migrantes venezolanas, garantizadas por la universalidad del sistema de salud brasileño, todavía existen algunas barreras como el idioma y la falta de documentación. Ante la falta de planes de acción y planificación futura de la atención a las mujeres migrantes portadoras del VIH o con sífilis en los municipios, es importante formular políticas públicas con el fin de reducir las dificultades enfrentadas por este grupo de la población.

Palabras clave
Enfermedades de transmisión sexual; migrantes; atención a la salud; salud de la mujer; gestión en salud

As infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) estão entre as principais causas de doenças nas populações. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de 1 milhão de pessoas adquirem ISTs diariamente no planeta (11. Silva DF. O fenômeno dos refugiados no mundo e o atual cenário complexo das migrações forçadas. Rev Bras Estud Popul. 2017;34(1). doi: https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0001
https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0001...
). Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (UNAIDS), 38,4 milhões de pessoas viviam com HIV em 2021 no mundo e cerca de 54% dessas pessoas eram mulheres e meninas; esse mesmo grupo representava 49% das pessoas recém-infectadas (22. Joint United Nations Programme on HIV/aids (UNAIDS). Global AIDS Update: In Danger, 2022. Disponível em: https://reliefweb.int/report/world/danger-unaids-global-aids-update-2022-enru?gclid=CjwKCAiA_6yfBhBNEiwAkmXy57QPhT4wTgkAfOBiUKZB6PtXt3x-aM9ikBgRl1Lxf3GBuEEH19Fp9RoC9vcQAvD_BwE Acessado em 15 de setembro de 2022.
https://reliefweb.int/report/world/dange...
).

No Brasil, de 2007 a junho de 2020, o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan) registrou 342 459 casos de infecção por HIV, sendo 30 943 na região Norte (33. Brasil, Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico de HIV e Aids. Brasília (DF): Ministério da Saúde: 2020. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/boletim-epidemiologico-hivaids-2020 Acessado em 4 de abril de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/bo...
). Em relação à sífilis, no ano de 2019 foram notificados 152 915 casos de sífilis adquirida e 61 127 casos de sífilis em gestantes no território nacional. Os casos de sífilis congênita chegaram a 24 130, sendo 9,2% registrados na região Norte (44. Brasil, Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico de Sífilis. Brasília (DF): Ministério da Saúde: 2020. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/tags/publicacoes/boletim-de-sifilis Acessado em 4 abril de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/tags/public...
).

Entre as situações de vulnerabilidade que aumentam o risco de contrair ISTs estão os processos de migração (55. Pan American Health Organization (PAHO). Guidance Document on Migration and Health. Disponível em: https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&view=download&slug=guidance-document-on-migrationandhealth&Itemid=270&lang=en Acessado em 30 de março 2021.
https://www.paho.org/hq/index.php?option...
). Nessas situações, as mulheres podem ficar desamparadas quanto aos seus direitos à saúde sexual e reprodutiva, o que pode resultar em diagnósticos e tratamentos tardios para as ISTs (66. Metusela C, Ussher J, Perz J, et al. “In My Culture, We Don't Know Anything About That”: Sexual and Reproductive Health of Migrant and Refugee Women. Int J Behav Med. 2017;24(6):836-845. doi:10.1007/s12529-017-9662-3.
https://doi.org/10.1007/s12529-017-9662-...
).

Nos últimos anos, diante da grave crise política, econômica e social que a Venezuela atravessa, e em busca de melhores condições de vida, milhares de migrantes venezuelanos entraram no território brasileiro, principalmente pela fronteira com o estado de Roraima (77. Arruda-Barbosa L de, Sales AFG, Souza ILL. Reflexos da imigração venezuelana na assistência em saúde no maior hospital de Roraima: análise qualitativa. Saude Soc. 2020;29(2). doi: 10.1590/S0104-12902020190730
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202019...
, 88. Jezus SV, Silva AI, Arcêncio RA, Terena NFM, Santos JP, Sacramento DS, et al. Local action plan to promote access to the health system by indigenous Venezuelans from the Warao ethnic group in Manaus, Brazil: analysis of the plan’s development, experiences, and impact through a mixed-methods study (2020). PLoS ONE. 2021;16(11):e0259189. doi: 10.1371/journal.pone.0259189
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
). De 2015 a 2019, foram registradas 178 000 solicitações de refúgio e de residência temporária no Brasil. Com o objetivo de acolher essas pessoas, foram criados, nos municípios de Boa Vista e Pacaraima (ambos no estado de Roraima), 11 abrigos oficiais para refugiados, administrados pelas Forças Armadas e pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) (99. Cavalcanti L, Oliveira T, Macedo M. Imigração e Refúgio no Brasil. Relatório Anual 2020. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília (DF): Migra; 2020. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/dados/relatorioanual/2020/OBMigra_RELAT%C3%93RIO_ANUAL_2020.pdf Acessado em 9 de agosto de 2021.
https://portaldeimigracao.mj.gov.br/imag...
, 1010. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Crise migratória venezuelana no Brasil. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/crise-migratoria-venezuelana-no-brasil Acessado em 30 de abril de 2021.
https://www.unicef.org/brazil/crise-migr...
). Em 2019, cerca de 6 500 venezuelanos viviam nesses abrigos; em Boa Vista, a população de venezuelanos era estimada em 32 000 pessoas, das quais 1 500 eram classificadas como população em situação de rua. Como resultado do processo de interiorização (migração para outros municípios ou até mesmo outros estados) promovido pelo governo federal brasileiro, muitos migrantes chegaram a Manaus, capital do estado do Amazonas, onde estima-se que vivam 15 mil venezuelanos (1010. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Crise migratória venezuelana no Brasil. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/crise-migratoria-venezuelana-no-brasil Acessado em 30 de abril de 2021.
https://www.unicef.org/brazil/crise-migr...
, 1111. Agência da ONU para refugiados (ACNUR). Diagnósticos para a promoção da autonomia e integração local de pessoas refugiadas e migrantes venezuelanas em Manaus: pesquisa de perfil socioeconômico e laboral. Brasília: ACNUR; 2022. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2022/05/OS843_Relatorio_de_Pesquisa_V8.pdf Acessado em 10 de fevereiro de 2023.
https://www.acnur.org/portugues/wp-conte...
).

Ainda em 2019, verificou-se que as ISTs foram as doenças mais comumente relatadas por mulheres venezuelanas migrantes. Em um estudo que comparou um grupo de brasileiros com venezuelanos, os migrantes venezuelanos relataram um número significativamente maior de casos de HIV/aids (1212. de Lima Junior MM, Rodrigues GA, Lima MR. Evaluation of emerging infectious disease and the importance of SINAN for epidemiological surveillance of Venezuelans immigrants in Brazil. Braz J Infect Dis. 2019;23(5):307-12. doi: 10.1016/j.bjid.2019.07.006
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). Em outro estudo, realizado apenas com mulheres, as venezuelanas migrantes atendidas em serviços de saúde reprodutiva na cidade de Boa Vista no ano de 2020 referiam problemas de acesso aos serviços públicos de saúde. Também relacionaram a dificuldade de acesso ao fato de não serem fluentes na língua portuguesa, o que comprometia a atenção em saúde recebida por elas (1313. Makuch MY, Osis MJD, Brasil C, de Amorim HSF, Bahamondes L. Reproductive health among Venezuelan migrant women at the north western border of Brazil: A qualitative study. J Migr Health. 2021;4:100060.). Nesse contexto, o presente estudo teve como objetivo identificar a estrutura disponível e a percepção dos gestores de saúde sobre os desafios encontrados para implementar ações de enfrentamento de HIV e sífilis no atendimento a venezuelanas em situação de migração nas cidades de Boa Vista e Manaus.

MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, com abordagem qualitativa, desenvolvido nos municípios de Boa Vista, estado do Roraima, e Manaus, estado do Amazonas. Boa Vista foi selecionada por ser uma das cidades que mais recebem migrantes venezuelanos, por conta de sua proximidade com a fronteira norte no estado de Roraima. Já a cidade de Manaus foi selecionada por ter adotado um plano de atenção para ação humanitária ao fluxo migratório de venezuelanos (1414. Amazonas, Secretaria de Estado de Assistência Social. Plano de estado para ação humanitária ao fluxo migratório de venezuelanos na cidade de Manaus, 2019. Disponível em: http://www.seas.am.gov.br/wp-content/uploads/2019/12/Plano-Seas-2019_fluxo-migrat%C3%B3rio-venezuelano.pdf Acessado em 30 de abril de 2021.
http://www.seas.am.gov.br/wp-content/upl...
).

Coleta de dados

Para o recrutamento dos gestores, foi utilizada a técnica bola de neve. Nessa técnica, os indivíduos inicialmente selecionados para o estudo convidam novos participantes da sua rede de relacionamento, que neste caso foi a rede profissional (1515. Dewes JO. Amostragem em bola de neve e respondent-driven sampling: uma descrição dos métodos [trabalho de conclusão]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); 2013. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/93246 Acessado em 10 de março de 2021.
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/93246...
). Os primeiros gestores selecionados foram identificados por intermédio de profissionais das secretarias de saúde nos municípios em que ocorreu a pesquisa. O critério de inclusão foi estar atuando ou ter atuado como gestor pelo menos até o ano anterior ao da coleta de dados (2020) em serviços de saúde ou setores das secretarias de saúde municipais e estaduais que prestam ou estão diretamente relacionados ao atendimento das mulheres venezuelanas migrantes portadoras de HIV/aids ou sífilis. Foram recrutados 10 gestores que atendiam esse critério; todos os outros gestores foram excluídos da pesquisa.

O conceito utilizado para definição do número de participantes do estudo foi a saturação dos dados. Nesse método, a coleta de dados é interrompida quando se constata redundância ou repetição nos dados obtidos ou se considera que existe saturação empírica (quando o pesquisador estabelece quais dados são suficientes para responder as questões do estudo) (1616. Minayo MCS, Deslandes SF, Neto OC, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2002.).

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas que seguiam um roteiro semiestruturado, com as seguintes questões norteadoras: a) qual a sua percepção acerca dos serviços de saúde para diagnóstico e tratamento de migrantes venezuelanas com HIV/aids e/ou sífilis no município; b) quais as principais ações adotadas para o diagnóstico e tratamento das venezuelanas portadoras de HIV/aids e/ou sífilis; c) de que modo você avalia as estratégias adotadas para o diagnóstico e tratamento dessas mulheres no município; d) quais os desafios encontrados para o diagnóstico e tratamento; e e) qual cenário você visualiza para o futuro no enfrentamento do HIV e sífilis pelas migrantes venezuelanas no município.

As entrevistas, gravadas em áudio, foram realizadas de janeiro a março de 2021, nos locais de trabalho dos entrevistados ou por meio de chamadas de vídeo (metodologia implementada a partir do agravamento da pandemia de covid-19). Todos os protocolos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para a não disseminação do SARS-CoV-2 foram respeitados. Todos os participantes aderiram voluntariamente ao estudo e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) (1717. Agência Nacional de Vigilância Epidemiológica (ANVISA). Nota técnica 7/ 2020: Orientações para prevenção e vigilância epidemiológica das infecções por SARS-CoV-2 (COVID-19) dentro dos serviços de saúde. ANVISA; 2020. Disponível em: http://covid19.cff.org.br/wp-content/uploads/2022/03/NT-07-2020_COVID-em-servicos-saude_atualizada-em_09.03.2022.pdf Acessado em 2 de abril de 2021.
http://covid19.cff.org.br/wp-content/upl...
). O anonimato dos participantes foi protegido por meio da substituição das informações pessoais pelas iniciais AMG para os gestores de Manaus e RRG para os de Boa Vista (siglas dos estados seguidas pela letra G de gestor), sendo acrescentados dois dígitos para cada participante, iniciando em 01.

Análise dos dados

Os dados de áudio foram transcritos na íntegra no programa Microsoft Word e organizados em planilha de acordo com as questões norteadoras. Foi adotada a técnica de análise de conteúdo temática, que consiste na categorização, inferência, descrição e interpretação dos dados. A categorização consiste no processo de redução do texto a palavras e expressões significativas; a inferência envolve a dedução lógica do conteúdo analisado conforme as características presentes no texto; a descrição envolve o resumo das características do texto após a avaliação analítica; e a interpretação envolve a atribuição de significado a essas características (1616. Minayo MCS, Deslandes SF, Neto OC, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2002.).

Após a análise, os eixos temáticos foram agrupados em quatro categorias: acesso aos serviços de saúde, com quatro subcategorias (serviços disponíveis para diagnóstico e tratamento, oferta de vagas, formação das equipes de saúde, suporte psicossocial); desafios, com três subcategorias (idioma, documentação necessária para o atendimento, alterações de endereço); estratégias e ações adotadas; e cenário futuro do enfrentamento de HIV/aids ou sífilis para as mulheres venezuelanas migrantes.

Aprovação ética

O estudo foi iniciado após aprovação pela Comissão Nacional de Ética e Pesquisa e pelo Comitê de Revisão de Ética (PAHOERC) da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

RESULTADOS

Foram entrevistados 10 gestores (cinco em Boa Vista e cinco em Manaus), sendo oito mulheres e dois homens. A média de idade foi de 44,5 anos. O grupo incluiu três enfermeiros, dois assistentes sociais, um fisioterapeuta, um nutricionista, um psicólogo, um teólogo e um gestor com formação de nível médio; nove eram funcionários de carreira das secretarias e um ocupava cargo de livre nomeação pelo gestor de saúde. A média de tempo de atuação como gestor foi de 3,6 anos. Sobre a estrutura disponível para diagnóstico e tratamento de aids e sífilis, os gestores discorreram sobre acesso, vagas para atendimento/fila de espera, formação das equipes de saúde e suporte psicossocial.

Acesso aos serviços de saúde

Os gestores de Manaus apontaram como serviços para o diagnóstico de HIV disponíveis às venezuelanas as unidades básicas de saúde (UBS), policlínicas, unidades de estratégia de saúde da família (UESF), serviços de atenção especializada (SAEs), Fundação de Medicina Tropical e Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA). Em relação ao tratamento do HIV/aids, os gestores apontaram os SAEs (quatro de competência municipal e dois de competência estadual). O diagnóstico e o tratamento da sífilis são ofertados em todas as UBS do município de Manaus, segundo relato dos cinco entrevistados.

Manaus conta com 143 unidades que oferecem teste rápido, espalhadas em todos os distritos de saúde, no meio rural 100% das unidades oferecem teste rápido. Aquelas unidades que não oferecem o teste rápido, oferecem a sorologia. No caso da sífilis todas as unidades estão disponíveis para o diagnóstico e para o tratamento, no caso do HIV a gente tem quatro serviços especializados do município e dois do estado, mas a gente sempre encaminha para o do município. (AMG04)

Os entrevistados de Boa Vista citaram como serviços disponíveis para diagnóstico de HIV as UBS, SAE, CTA e Centro de Referência da Mulher, além de 14 unidades de saúde do município que se caracterizam como descentralizadas (unidades que oferecerem diagnóstico e tratamento). O tratamento é disponibilizado pelas 14 unidades descentralizadas e pelo SAE. Os entrevistados afirmaram que todas as UBS do município de Boa Vista ofertam os serviços de diagnóstico e tratamento da sífilis.

… nós fizemos outras capacitações e descentralizamos quatorze UBS’s, tá? Nós trouxemos a equipe do Ministério da Saúde, Departamento DST/AIDS e aí fizemos uma programação de capacitação de dois dias né?… Aí saiu quatorze UBS para a gente trabalhar a descentralização. (RRG01)

Oferta de vagas

Os gestores das duas cidades consideram o atendimento rápido, não existindo filas de espera. Houve unanimidade quanto à inserção das pacientes nos serviços seguindo os fluxos já existentes.

É ofertado pra elas: teste rápido… tudo, tudo que a clínica oferece, é ofertado pra elas, não tem restrição. Então tudo o que é oferecido pro brasileiro, é oferecido pro estrangeiro. (AMG02)

Ficou evidente que a pandemia causada pelo SARS-CoV-2 prejudicou a oferta de vagas, mas os relatos foram de não ter havido negativas de atendimento.

Essa questão da covid, ela veio, é… trazer pra gente a reflexão de tá avaliando os casos… E prolongando o retorno dessas pessoas que estão estáveis, né? É… pra mais… pra frente… não deixando de ser atendida na medicação. (AMG01)

Formação das equipes de saúde

Na cidade de Manaus, as equipes de saúde são constituídas por infectologistas, alguns dos quais cedidos por organizações não governamentais (ONGs), clínicos gerais, enfermeiros (alguns também cedidos por ONGs ou fundações), técnicos de enfermagem, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas e farmacêuticos.

Então, nós temos três médicos infectologistas, sendo que dois são da SEMSA. É. E um é da ONG, né? Nós temos duas enfermeiras… [pausa] Uma da manhã que é a [nome da enfermeira], e outra da tarde que é a [nome da enfermeira], tá? Nível médio, nós temos… [pausa] duas… [pausa] Três técnicas de manhã agora… e três técnicos a tarde, tá? (AMG01)

Em Boa Vista, as equipes são compostas por médicos, enfermeiros, nutricionista e equipes de ESF. Um gestor descreveu a equipe do SAE de forma ampliada, conforme a fala a seguir:

Nas nossas referências, por exemplo nós temos essa referência completa com pediatra, infectologista, clínico geral, assistente social, farmacêutico, enfermeiro, psicólogo. Nós temos esse serviço completo no serviço de referência que é o SAE. (RRG05)

Suporte psicossocial

Foi possível identificar na fala dos gestores das duas cidades pesquisadas que este serviço se estrutura a partir do atendimento de assistentes sociais ou psicólogos. Em Boa Vista, o serviço não é disponibilizado em todas as unidades descentralizadas.

[…] se houver necessidade pelo impacto após o diagnóstico desse paciente, é claro que ele vai ser encaminhado para uma equipe psicossocial. Nós temos atendimento, ainda são poucos, acho que nós só temos quatro unidades hoje com atendimento psicológico no município de Boa Vista. Mas nós temos também o apoio do SAE, onde são disponibilizados psicólogos. (RRG01)

Em relação aos desafios enfrentados pelas mulheres venezuelanas, os gestores mencionaram o idioma, questões de documentação e frequência de alteração de endereço.

Idioma

O idioma foi citado como desafio que pode comprometer tanto a procura pelos serviços de saúde como a adesão ao tratamento.

Os profissionais de saúde do serviço têm dificuldade, tem essa barreira linguística, de explicar o que é preciso fazer, e das pessoas, das mulheres venezuelanas entenderem o que é preciso fazer. Então há realmente esse desafio. (AMG04)

Documentação necessária para atendimento

A documentação das migrantes foi citada como um desafio apenas nas entrevistas de Manaus. Embora não tenha havido relatos de negativa de atendimento às venezuelanas por falta de documentos, foi apontada a dificuldade em realizar exames laboratoriais para avaliar a função do sistema imunológico em pessoas com diagnóstico de infecção pelo HIV (CD4) e determinar a carga viral (para avaliar a progressão da doença e a eficácia dos antirretrovirais). Esses exames foram apontados pelos gestores como indispensáveis para o início da terapia antirretroviral. Em alguns casos, é necessária uma intervenção junto ao laboratório para liberação do exame sem o cadastro de pessoa física (CPF).

Ela tem que providenciar toda a documentação. Se não ela vai se… se deparar de um entrave lá na frente, na coleta de CD4 e carga viral, que quando vai a documentação pro Tropical [Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado]. Porque o Tropical só aceita mediante todos os documentos. (AMG03)

Alterações de endereço

As constantes alterações de endereço foram citadas como desafio pelos gestores de Boa Vista:

[…] a busca ativa às vezes é complicada, porque às vezes não tem telefone, não entende a língua, o endereço às vezes também, é, muda. (AMG04)

Estratégias e ações adotadas e expectativas para o enfrentamento de HIV/aids e sífilis no contexto de migração

Por fim, os entrevistados falaram sobre planos de ação e sobre o que esperam no futuro em relação ao enfrentamento de HIV/aids e sífilis no contexto da migração. Nenhum dos gestores reconheceu o desenvolvimento ou implementação de qualquer plano de ação dos municípios voltado ao atendimento às mulheres venezuelanas migrantes portadoras de HIV e/ou sífilis:

Não. Eu desconheço. Em relação à rede oficial de saúde não conheço nenhuma ação específica para mulheres venezuelanas. (AMG03)

As ONGs fizeram alguns planos específicos para os migrantes. Mas o município de Boa Vista, ele colocou no mesmo bojo, como o atendimento para brasileiros. (RRG01)

[…] se esse paciente chegar lá em Pacaraima, já fizesse uma testagem rápida lá, nós já íamos pegar na porta de entrada… Ele não ia chegar até aqui no município, procurar, chegar aqui na unidade básica de saúde… Então é isso que nós esperamos para o futuro. Ter uma fronteira mais preparada […]. (RRG03)

DISCUSSÃO

Os migrantes enfrentam muitos desafios durante o processo de deslocamento e de adaptação no país anfitrião, como idioma e divergências culturais, econômicas e sociais (55. Pan American Health Organization (PAHO). Guidance Document on Migration and Health. Disponível em: https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&view=download&slug=guidance-document-on-migrationandhealth&Itemid=270&lang=en Acessado em 30 de março 2021.
https://www.paho.org/hq/index.php?option...
, 88. Jezus SV, Silva AI, Arcêncio RA, Terena NFM, Santos JP, Sacramento DS, et al. Local action plan to promote access to the health system by indigenous Venezuelans from the Warao ethnic group in Manaus, Brazil: analysis of the plan’s development, experiences, and impact through a mixed-methods study (2020). PLoS ONE. 2021;16(11):e0259189. doi: 10.1371/journal.pone.0259189
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
). Entre os desafios apontados pelos gestores em nosso estudo, a questão do idioma é citada como uma importante limitação, podendo comprometer a assistência em saúde. Outros estudos internacionais e nacionais também apontam o idioma como uma barreira no acesso aos serviços de saúde e educacionais e ao sistema de justiça. Nesse contexto, a capacitação dos profissionais pode garantir que a comunicação seja eficiente (88. Jezus SV, Silva AI, Arcêncio RA, Terena NFM, Santos JP, Sacramento DS, et al. Local action plan to promote access to the health system by indigenous Venezuelans from the Warao ethnic group in Manaus, Brazil: analysis of the plan’s development, experiences, and impact through a mixed-methods study (2020). PLoS ONE. 2021;16(11):e0259189. doi: 10.1371/journal.pone.0259189
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
, 1313. Makuch MY, Osis MJD, Brasil C, de Amorim HSF, Bahamondes L. Reproductive health among Venezuelan migrant women at the north western border of Brazil: A qualitative study. J Migr Health. 2021;4:100060., 1818. SEVENTY-SECOND WORLD HEALTH ASSEMBLY A72/25 Provisional agenda item 12.4. 25 Apr 2019. Promoting the health of refugees and migrants Draft global action plan, 2019–2023. Report by the Director-General. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/WHA72-2019-REC-1 Acessado em 2 de abril de 2022.
https://www.who.int/publications/i/item/...
).

A falta de documentação das mulheres migrantes aparece como mais um desafio que pode comprometer o atendimento. Embora não tenham sido relatadas recusas de atendimento, as falas dos entrevistados indicam uma dificuldade na realização de exames laboratoriais como CD4 e carga viral, o que pode comprometer o início imediato do tratamento com antirretrovirais, retardando os benefícios clínicos e a redução da transmissibilidade do HIV (1919. Brasil, Ministério da Saúde. Protocolo Clinico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos. Brasília (DF): Ministério da Saúde: 2018. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-em-adultos Acessado em 2 de abril de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/pr...
). A legislação ampara e garante os direitos do migrante, inclusive para facilitar o acesso aos cuidados de saúde mesmo sem documentos (2020. Brasil. Lei 13 455/2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13445.htm Acessado em 20 de outubro de 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
). Entretanto, esse mesmo desafio também foi relatado na Espanha, onde mulheres em situação documental irregular — em sua maioria latino-americanas — não tiveram acesso aos serviços de saúde para diagnóstico e tratamento de HIV/aids (2121. Ndumbi P, del Romero J, Pulido F, Velasco Arribas M, Dronda F, Blanco Ramos JR, et al. Barriers to health care services for migrants living with HIV in Spain. Eur J Public Health. 2018;28(3):451-7. doi: 10.1093/eurpub/ckx225
https://doi.org/10.1093/eurpub/ckx225...
).

Ainda, as constantes alterações de endereço entre as mulheres venezuelanas migrantes também se configuraram para os gestores entrevistados como um desafio no enfrentamento de HIV/aids e sífilis. Isso se dá, provavelmente, pela dificuldade dos migrantes de se estabelecerem nas cidades anfitriãs; a falta de emprego aumenta a vulnerabilidade econômica desse grupo e contribui para as constantes mudanças, comprometendo a busca ativa e o acompanhamento dessas mulheres (77. Arruda-Barbosa L de, Sales AFG, Souza ILL. Reflexos da imigração venezuelana na assistência em saúde no maior hospital de Roraima: análise qualitativa. Saude Soc. 2020;29(2). doi: 10.1590/S0104-12902020190730
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202019...
, 2222. Agência da ONU para refugiados (ACNUR). Protegendo Refugiados no Brasil e no Mundo. ACNUR. Brasília: 2018. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Protegendo-Refugiados-no-Brasil-e-no-Mundo_ACNUR-2018.pdf Acessado em 20 de outubro de 2021.
https://www.acnur.org/portugues/wp-conte...
).

No presente estudo, a partir do relato dos gestores, identificamos que todas as UBS dos municípios pesquisados oferecem diagnóstico e tratamento para sífilis. A descentralização da testagem rápida para serviços de atenção primária à saúde e maternidades pode agilizar o diagnóstico e auxiliar na escolha do tratamento adequado. O Ministério da Saúde preconiza ações preventivas e de intervenção terapêutica imediata para os casos de sífilis (2323. Brasil, Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-atencao-integral-pessoas-com-infeccoes Acessado em 2 de abril de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/pr...
, 2424. Gaspar PC, Bigolin Á, Alonso Neto JB, Pereira ED S, Bazzo ML. Protocolo Brasileiro para Infecções Sexualmente Transmissíveis 2020: testes diagnósticos para sífilis. Epidemiol Serv Saude. 2021; 30(spe1): e2020630.).

Em relação ao diagnóstico para HIV/aids, observamos que é possível realizar a testagem nas UBS, em policlínicas, UESF, SAE, Fundação de Medicina Tropical e CTA. Em relação especificamente ao tratamento e acompanhamento dos casos positivos, identificamos que o município de Boa Vista avançou no processo de descentralização do cuidado das pessoas vivendo com HIV/aids. Nesse município, 14 UBS realizam o acompanhamento longitudinal das pessoas com HIV/aids, o que não foi verificado na cidade de Manaus.

No modelo descentralizado de atenção, as ações são estruturadas e baseadas na realidade local, passando a envolver diferentes níveis. Os SAE continuam sendo fundamentais, mas a linha de cuidado envolve outros serviços, em especial a atenção primária. O acesso à testagem é ampliado e o vínculo com o sistema de saúde é fortalecido, contribuindo para a melhora do acompanhamento integral desses pacientes (1919. Brasil, Ministério da Saúde. Protocolo Clinico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos. Brasília (DF): Ministério da Saúde: 2018. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-em-adultos Acessado em 2 de abril de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/pr...
, 2525. Brasil, Ministério da Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Cuidado integral às pessoas que vivem com HIV pela Atenção Básica: manual para a equipe multiprofissional. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2016. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/cuidado-integral-pessoas-que-vivem-com-hiv-pela-atencao-basica Acessado em 6 de maio de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/cu...
). É preciso considerar os desafios para a implementação do tratamento na população migrante: problemas estruturais da rede pública de saúde para o manejo dos casos positivos; garantia de direitos humanos dos migrantes; contexto de desigualdades sociais no qual estão inseridos; e desigualdades de gênero enfrentadas pelas mulheres migrantes (1818. SEVENTY-SECOND WORLD HEALTH ASSEMBLY A72/25 Provisional agenda item 12.4. 25 Apr 2019. Promoting the health of refugees and migrants Draft global action plan, 2019–2023. Report by the Director-General. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/WHA72-2019-REC-1 Acessado em 2 de abril de 2022.
https://www.who.int/publications/i/item/...
, 2121. Ndumbi P, del Romero J, Pulido F, Velasco Arribas M, Dronda F, Blanco Ramos JR, et al. Barriers to health care services for migrants living with HIV in Spain. Eur J Public Health. 2018;28(3):451-7. doi: 10.1093/eurpub/ckx225
https://doi.org/10.1093/eurpub/ckx225...
, 2626. Abubakar I, Aldridge RW, Devakumar D, Orcutt M, Burns R, Barreto ML, et al. The UCL-Lancet Commission on Migration and Health: the health of a world on the move. Lancet. 2018;392(10164):2606-54. doi: 10.1016/S0140-6736(18)32114-7
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)32...

27. International Organization for Migration (IOM) - World Migration Report 2020. Disponível em: https://publications.iom.int/system/files/pdf/wmr_2020.pdf Acessado em 08 de maio de 2021.
https://publications.iom.int/system/file...
-2828. Monteiro SS, Brigeiro M, Vilella WV, Mora C, Parker R. Desafios do tratamento como prevenção do HIV no Brasil: uma análise a partir da literatura sobre testagem. Cienc Saude Coletiva. 2019;24(5):1793-1807. doi: 10.1590/1413-81232018245.16512017
https://doi.org/10.1590/1413-81232018245...
).

Os gestores não relataram filas de espera para diagnóstico e tratamento do HIV e da sífilis e apontaram não haver direcionamento de vagas para a população migrante, o que é garantido pela universalidade do sistema de saúde brasileiro. Esse princípio é preconizado pela lei 8 080 de 1990 que, em seu artigo 2, afirma que o direito à saúde transcende os cidadãos brasileiros, natos ou naturalizados, pois a referência é para todos (2929. Brasil. Lei 8080/1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm Acessado em 8 de agosto de 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Porém, embora o Sistema Único de Saúde ampare os migrantes, mesmo em situações sem impedimentos legais estabelecidos, foi possível observar na fala dos gestores que o acesso à saúde pode ser dificultado por questões culturais, de gênero, de raça/etnia, classe social e religiosos, o que também foi observado em estudos realizados com outras populações migrantes no Brasil (77. Arruda-Barbosa L de, Sales AFG, Souza ILL. Reflexos da imigração venezuelana na assistência em saúde no maior hospital de Roraima: análise qualitativa. Saude Soc. 2020;29(2). doi: 10.1590/S0104-12902020190730
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202019...
, 88. Jezus SV, Silva AI, Arcêncio RA, Terena NFM, Santos JP, Sacramento DS, et al. Local action plan to promote access to the health system by indigenous Venezuelans from the Warao ethnic group in Manaus, Brazil: analysis of the plan’s development, experiences, and impact through a mixed-methods study (2020). PLoS ONE. 2021;16(11):e0259189. doi: 10.1371/journal.pone.0259189
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
, 1313. Makuch MY, Osis MJD, Brasil C, de Amorim HSF, Bahamondes L. Reproductive health among Venezuelan migrant women at the north western border of Brazil: A qualitative study. J Migr Health. 2021;4:100060.).

Quanto à composição das equipes, na cidade de Manaus foi possível observar um modelo de equipe mais ampliado atuando junto aos pacientes portadores de sífilis ou HIV. Já em Boa Vista, os relatos são de equipes menores. Em se tratando de uma doença crônica, essas equipes precisam desenvolver uma atuação multidisciplinar como forma de garantir um atendimento integral (1919. Brasil, Ministério da Saúde. Protocolo Clinico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos. Brasília (DF): Ministério da Saúde: 2018. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-em-adultos Acessado em 2 de abril de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/pr...
, 2525. Brasil, Ministério da Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Cuidado integral às pessoas que vivem com HIV pela Atenção Básica: manual para a equipe multiprofissional. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2016. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/cuidado-integral-pessoas-que-vivem-com-hiv-pela-atencao-basica Acessado em 6 de maio de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/cu...
).

O suporte psicossocial parece estar bem estruturado nos SAE, mas não se configura como realidade nas unidades descentralizadas, visto que algumas delas não possuem psicólogos em seu quadro de profissionais. Nesses casos, o atendimento fica centrado no assistente social. É de extrema importância a ampliação do atendimento psicossocial, na medida em que a descoberta da sífilis ou do HIV pode vir acompanhada de outros riscos: doenças crônicas, inclusive tuberculose; trauma ou violência, inclusive violência sexual e outras formas de violência de gênero; uso de tabaco e álcool; má nutrição, condições de vida e de trabalho precárias; e dificuldade de acesso a serviços de saúde essenciais, à vacinação e a medicamentos. Todas essas questões requerem serviços de saúde integrados e que comtemplem apoio psicossocial (1919. Brasil, Ministério da Saúde. Protocolo Clinico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos. Brasília (DF): Ministério da Saúde: 2018. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-em-adultos Acessado em 2 de abril de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2013/pr...
, 2525. Brasil, Ministério da Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Cuidado integral às pessoas que vivem com HIV pela Atenção Básica: manual para a equipe multiprofissional. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2016. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/cuidado-integral-pessoas-que-vivem-com-hiv-pela-atencao-basica Acessado em 6 de maio de 2021.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/cu...
).

O presente estudo apresenta limitações, entre elas o fato de não ter ouvido mulheres venezuelanas para avaliar se elas de fato conseguem acessar os serviços de saúde citados, e a dificuldade de recrutar gestores de saúde durante o agravamento da pandemia causada pelo SARS-CoV-2 nas cidades onde o estudo foi realizado. Por outro lado, nosso estudo é o primeiro a ouvir gestores que atuam no atendimento às mulheres venezuelanas portadoras de HIV/aids ou sífilis residentes no Brasil, e possibilitou, a partir da percepção desses profissionais, uma caracterização dos serviços de saúde disponíveis, da composição das equipes de saúde, do modo de oferta de vagas, da disponibilidade de suporte psicossocial e dos principais desafios enfrentados no acesso aos serviços de saúde.

Finalmente, o estudo aponta para a necessidade de formalizar políticas públicas capazes de minimizar as dificuldades enfrentadas por mulheres migrantes nos serviços de saúde. São necessárias novas pesquisas nessa temática, com o objetivo de avaliar a percepção das mulheres migrantes sobre o acesso aos serviços, o que poderá contribuir para uma melhora na qualidade dos serviços ofertados a toda a população, seja ela migrante ou não.

Declaração.

As opiniões expressas no manuscrito são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem necessariamente a opinião ou política da RPSP/PAJPH ou da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

Agradecimentos.

Os autores agradecem às secretarias de saúde municipais das cidades de Boa Vista e Manaus.

  • Contribuição dos autores.
    ELNM, AIS e SVJ conceberam o projeto. FLKA e AIS projetaram, interpretaram os dados e redigiram o artigo, SVJ, ACL, FZ, ELNM e RAA realizaram a revisão crítica, todos os autores aprovaram a versão final. Todos os coautores leram e aprovaram a presente versão do manuscrito após revisão.
  • Conflitos de interesse.
    Nada declarado pelos autores.

REFERENCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2022
  • Aceito
    17 Fev 2023
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