Ocorrência de cisticercose (Cysticercus cellulosae) encefálica e cardíaca em necropsias*
Occurrence of encephalic and cardiac cysticercosis (Cysticercus cellulosae) in necropsy
Ruy S Lino Jr, Marlene A Reis e Vicente PA Teixeira
Departamento de Ciências Biológicas da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. Uberaba, MG - Brasil
Descritores Cisticercose, epidemiologia. Neurocisticercose, epidemiologia. Coração. | Resumo Objetivo Métodos Resultados Conclusão |
Keywords Cysticercosis, epidemiology. Neurocysticercosis, epidemiology. Heart. | Abstract Objective Methods Results Conclusion |
INTRODUÇÃO
A teníase e a cisticercose são duas entidades mórbidas distintas causadas pelo mesmo gênero de Cestóideos, porém, em fases de ciclo evolutivo distintas. A teníase é uma doença provocada pela presença da forma adulta da Taenia solium ou Taenia saginata, no intestino delgado de seu hospedeiro definitivo, o homem. A cisticercose, por sua vez, é uma entidade causada pela presença da forma larvária das Tenias, nos tecidos de seus hospedeiros intermediários (suíno e bovino). Na cisticercose humana, o homem está na posição de hospedeiro intermediário anômalo. A infestação humana tem sido relacionada aos precários hábitos higiênicos, a condições sanitárias adversas e ao regime de criação extensiva dos suínos12.
A prevalência mundial de teníase por T. solium foi estimada em 2,5 milhões e a de cisticercose causada pelo Cysticercus cellulosae, em 300 mil pessoas12. Em pesquisa realizada próxima à região estudada, encontrou-se um coeficiente de prevalência de neurocisticercose de 67 casos/100.000 habitantes através de notificação compulsória5.
Enquanto a neurocisticercose tem sido objeto de numerosos relatos da literatura, a cisticercose cardíaca, especialmente a miocárdica, admitida como rara, tem sido pouco estudada. Gobbi et al. 8 (1980), em levantamento de 56 casos necropsiados na região do Triângulo Mineiro, encontraram 15 casos de cisticercose cardíaca, tendo inclusive admitido que essa poderia levar a alterações da função miocárdica. Ibarra-Peres et al.10 (1972) descreveram dois casos em necropsias no México, um dos quais com comprometimento valvar mitral e outro com defeito do septo interventricular, cuja presença do parasita não pareceu ter influenciado o curso da doença cardíaca.
O objetivo do presente trabalho foi fazer estudo retrospectivo relativo ao achado de lesões de cisticercose e às localizações mais comumente atingidas em exames usuais de necropsias.
MÉTODOS
Foram examinados retrospectivamente 1.884 protocolos de necropsias completas realizadas num hospital-escola em Uberaba (MG), de 1974 a 1997. Foram excluídos 288 (15,3%), por se tratar de necropsias incompletas ou de crianças menores de um ano de idade. Registraram-se informações relativas à ocorrência segundo a idade, a cor, o sexo, o índice de massa corporal (IMC) ¾ relação entre o peso corporal e o quadrado da altura ¾ e a localização do cisticerco em cada indivíduo. Posteriormente esses dados foram analisados através dos testes estatísticos do c2 e teste "t" de Student.
RESULTADOS
Dos 1.596 protocolos selecionados, encontrou-se relato de cisticercose em 53 (3,3%) casos. A média das idades foi 50 ± 15,4 anos, variando de 15 a 86 anos nos indivíduos afetados, e média de 46,2 ±19,9 anos, variando de 1 a 120 anos nos que não apresentaram cisticercose. Dos casos positivos, 33 (62,3%) eram do sexo masculino, 34 (64,1%) brancos. A faixa etária situada entre 30 e 59 anos foi predominante tanto nos casos negativos como nos casos com cisticercose.
Observou-se cisticercose encefálica (Figura 1) em 2,6% dos casos, cisticercose cardíaca (Figura 2) em 0,8%, cisticercose muscular esquelética em 0,4% e 0,2% de cisticercose em outras localizações (Tabela). Na forma cardíaca encontrou-se cisticercose nos três folhetos e predomínio de não-brancos (c2 = 8,26, p = 0,002).
Ocorreram dois casos de neurocisticercose, com localização no núcleo ventromedial do hipotálamo, associados a obesidade (IMC de 33,3 e 38,5 kg/m2).
DISCUSSÃO
No presente estudo verificou-se uma ocorrência de 3,3% de cisticercose em necropsias. Esses dados estão de acordo com a revisão feita por Agapejev1 (1996), cuja ocorrência variou de 0,12% a 9%; porém, são superiores aos descritos em nossa região, como os 2,4% de Gobbi et al.8 (1980) e 1,4% de Costa-Cruz et al.6 (1995), talvez porque os estudos tenham sido realizados em diferentes épocas e com distintos procedimentos metodológicos.
A distribuição da localização topográfica da cisticercose é variável nos diferentes trabalhos. Contudo, há uma uniformidade relativa à maior freqüência das formas encefálica e muscular esquelética. Também são relatados casos de cisticercose cardíaca, ocular, hepática, oral, entre outras2,7,10,11,14. O presente estudo difere da literatura por apresentar a localização cardíaca como a segunda mais freqüente. Acredita-se que talvez seja uma peculiaridade geográfica do acometimento cardíaco pelo cisticerco. Outra possibilidade seria responsabilizar, pelo menos em parte, os vários estudos sistematizados do coração realizados na região, em que a doença de Chagas é endêmica.
A literatura sobre cisticercose1 refere-se à faixa etária predominante de 21 a 40 anos, variando de 11 a 60 anos, sendo a cor branca mais freqüente e o sexo masculino o mais acometido, variando de 51% a 80%, dados compatíveis com os encontrados no presente trabalho.
Foram constatados dois casos de neurocisticercose no núcleo ventro-medial do hipotálamo. Segundo alguns trabalhos, este local corresponde ao "centro da fome" que, quando lesado, pode desencadear hiperfagia, obesidade, hiperinsulinemia, e, eventualmente, agressividade3,4,13,15. Esses dados são compatíveis com o observado no presente levantamento, pois os casos relatados apresentaram IMC acima de 33kg/m2. Valores superiores a 30kg/m2 vêm sendo considerados como um dos critérios para o diagnóstico de obesidade9.
Em conclusão, verificou-se que a freqüência de ocorrência de cisticercose encontrada está dentro da faixa descrita na literatura. Entretanto, a localização cardíaca, mais freqüente nos pacientes não-brancos, foi mais observada do que o relatado por outros autores. Destaca-se ainda a possível relação entre a obesidade e a localização hipotalâmica da cisticercose.
AGRADECIMENTOS
À Sandra J. Olson e a Helenice Gobbi pelo auxílio na revisão do manuscrito.
REFERÊNCIAS
1. Agapejev S. Epidemiology of neurocysticercosis in Brazil. Rev Inst Med Trop São Paulo 1996;38:207-16.
2. Almeida AA, Oliveira JEB. Cisticercose ocular. Rev Inst Med Trop São Paulo 1971;13:1-8.
3. Anand BK, Brobeck JR. Localization of a "Feeding Center" in the hypothalamus of the rat. Proc Soc Exp Biol Med 1951;77:323-4.
4. Berne RM, Levy MN. O sistema nervoso autonômico e seu controle central. In: Berne RM, Levy MN. Fisiologia. 2a. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1988. p. 222-34.
5. Chimelli L, Lovalho AF, Takayanagui OM. Contribuição da necropsia na consolidação da notificação compulsória em Ribeirão Preto-SP. Arq Neuropsiquiatr 1998; 56: 577-84.
6. Costa-Cruz JM et al. Ocorrência de cisticercose em necropsias realizadas em Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. Arq Neuropsiquiatr 1995;53:227-32.
7. De Leon ER, Aguirre A. Oral cysticercosis. Oral Surg Oral Med Oral Pathol 1995;79:572-7.
8. Gobbi H, Adad SJ, Neves RR, Almeida HO. Ocorrência de cisticercose (Cysticercus cellulosae) em pacientes necropsiados em Uberaba, MG. Rev Patol Trop 1980;9:51-9.
9. Heymsfield SB, Tighe A, Wang Z. Nutritional assessment by anthropometric and biomedical methods. In: Shils ME, Olson JA, Shike M. Modern nutrition in health and disease. 8th ed. Philadelphia: Lea & Febiger; 1994. p. 812-41.
10. Ibarra-Perez C, Fernández-Diez J, Rodrigues-Trujillo F. Myocardial cysticercosis: Report of two cases with coexisting heart disease. South Med J 1972;65:484-6.
11. McGrill RJ. Cysticercosis resembling myopathy. Lancet 1948;6:728-30.
12. Nascimento E. Teníase e cisticercose. In: Neves DP. Parasitologia humana. 8a. ed. São Paulo: Atheneu; 1991. p. 230-42.
13. Netter FH. Hypothalamic control of appetite. The CIBA Collection of Medical Illustrations. New York: Ciba Pharmaceutical Company; 1968. p.161-6.
14. Sickel JZ, Fults PJ, Penwarden B, Laczin J. Hepatic cysticercosis. J Clin Gastroenterol 1995;20:160-3.
15. Sims JS, Lorden JF. Effect of paraventricular nucleus lesions on body weight, food intake and insulin levels. Behav Brain Res 1986;22:265-81.
Correspondência para /Correspondence to:
Vicente de Paula Antunes Teixeira
Rua Frei Paulino, 30 38025-180 Uberaba, MG - Brasil
E-mail: vicpat@mednet.com.br
Recebido em 3.11.1998. Reapresentado em 18.3.1999. Aprovado em 20.4.1999.
* Subvencionado pela Fundação de Ensino e Pesquisa de Uberaba (Funepu), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (Pibic/CNPq). Apresentado no 500 Congresso Brasileiro de Enfermagem realizado em Salvador, Bahia, em setembro de 1998.