Estudo da radiosensibilidade ao 60CO do Vibrio cholerae O1 incorporado em ostras*
Radiosensibility of Vibrio cholerae o1 incorporated in oysters, to 60CO
Ivany R de Moraesa**, Nélida L Del Mastroa, Miyoko Jakabib e Dilma S Gellib
aInstituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares. São Paulo, SP, Brasil. bSeção de Microbiologia Alimentar do Instituto Adolfo Lutz. São Paulo, SP, Brasil
DESCRITORES: Ostras, microbiologia. Vibrio cholerae, efeitos adversos. Tolerância à radiação. | RESUMO OBJETIVO: MÉTODO: RESULTADOS: CONCLUSÃO: |
KEYWORDS: Oysters, microbiology. Vibrio cholerae, radiation effects. Radiation tolerance. | ABSTRACT OBJECTIVE: METHODS: RESULTS: CONCLUSION: |
INTRODUÇÃO
Os moluscos bivalves, entre os quais as ostras, são organismos "sentinelas" do ambiente aquático. Fixos em substratos, vivem em estuários de rios e costa marítima onde filtram a água para captar alimentos e, dessa forma, concentram e representam a contaminação das mesmas, tanto no aspecto microbiológico como no químico.4,5,7,10,12 Devido ao hábito de consumir ostras cruas e ainda vivas, é compreensível a descrição constante de surtos de enfermidades transmitidas por alimentos por esse produto alimentício. Os agentes que podem ser veiculados são de natureza biológica (bactérias, vírus, parasitos e toxinas de moluscos) e química (metais pesados, resíduos de pesticidas e, mais raramente, de antibióticos, quando se trata de cultivo/criação).4,7,17
Em termos de saúde pública, considerando as doenças e surtos de doenças relacionadas com o consumo desse alimento, é importante e necessária a adoção de medidas preventivas para o controle de veiculação de agentes. Essas medidas incluem: a seleção de área de captura desses organismos (área selecionada de águas livres de contaminação); a depuração após captura; o controle de água e algas que as ostras usam como alimento, seguida de depuração. Uma outra medida preventiva possível para controlar contaminação é o processo de irradiação ionizante, com 60Co.3,6,8,12-14,17 Esse processo de intervenção e controle dos agravos à saúde do consumidor tem despertado interesse e se revelado como efetivo na diminuição de riscos microbianos representados pelos perigos como as Salmonella sp, Shigella sp, Escherichia coli O157:H7 e Vibrio cholerae toxigênico, entre outros.16
Durante a expansão da sétima pandemia de cólera na América Latina e Caribe, o consumo de ostras e pescados crus foi considerado como de alto risco de transmitir essa doença. Produtos crus que entram em contato com águas contaminadas por fezes humanas podem ser veiculadores dessa doença e de outros agentes patogênicos fecais, além da recontaminação de produtos cozidos e da própria água de consumo não tratada.10,12,13 Considerando os riscos decorrentes desses agentes, foi estabelecido um grupo de estudos para avaliar medidas de controle e desenvolvido um projeto de pesquisa sobre o "Uso de Irradiação como Medida de Controle de Enfermidades Transmitidas por Alimentos na América Latina e Caribe", pela FAO, (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), IAEA (Agência Internacional de Energia Atômica) e OPAS (Organização Pan-americana da Saúde). Diferentes estudos têm mostrado que os pescados são produtos alimentícios que podem ser efetivamente descontaminados pelo tratamento de irradiação.12,13
O Vibrio cholerae é uma bactéria que pode apresentar toxigenicidade. Mesmo se tratando de cepa epidêmica, a concentração ou número de células viáveis necessário para causar a doença é alta para o consumidor adulto e são (maior ou igual a 106/g ou mL do produto consumido). Em indivíduos sensíveis, que apresentam a barreira da acidez estomacal ausente ou menor, esse número pode ser mais baixo (mínimo de 103/g ou mL).9,16
A sétima pandemia tem como agente o Vibrio cholerae O1, biotipo El-Tor, sorotipos Inaba e Ogawa. As cepas toxigênicas e não-toxigênicas apresentam padrão de resistência e sensibilidade semelhante quanto aos fatores físicos e químicos, como temperatura e ação de desinfetantes.16,17
Os dados constantes da literatura especializada indicam a dose de 1,0 kGy como suficiente para eliminar o V. cholerae em ostras.3,8,12 O presente trabalho tem por objetivo estabelecer a sensibilidade à irradiação com 60Co de Vibrio cholerae O1, não-toxigênico, biotipo El Tor, incorporados laboratorialmente em ostras Crassostrea brasiliana.
MÉTODOS
Cepa: Vibrio cholerae O1, biotipo El Tor, sorotipo Ogawa, não-toxigênico, isolada de água do litoral de São Paulo em 1974 e mantida liofilizada pela Seção de Coleção de Culturas do Instituto Adolfo Lutz.
Ostras: Crassostrea brasiliana, proveniente de Cananéia, litoral sul de São Paulo, depuradas, vivas, mantidas sob resfriamento e acondicionadas em caixas de madeira, cobertas com folhas de samambaia, como são normalmente comercializadas.
Água do mar: recebida em galões plásticos de 20 ml, já tratada por filtração em areia para retirada das sujidades maiores, e diminuição dos contaminantes biológicos.
Irradiador: 60Co, modelo Gammacell 220, Atomic Energy of Canada Limited, do Instituto de Pesquisas Enérgicas e Nucleares (IPEN/CNEN) de São Paulo.
A cepa selecionada foi cultivada em água peptonada alcalina (APA) a 35°C por 18-20 horas.
Em um aquário com capacidade para 60 l foram colocados 40 l de água do mar e 20 ostras. Procedeu-se ao borbulhamento de ozônio por 30 min para movimentar a água e assim oxigená-la e diminuir o número de prováveis contaminantes bacterianos presentes. Após esse procedimento, as ostras se apresentavam visivelmente abertas. Foram retiradas amostras de ostras (5 unidades) e de água (20 ml) para verificar se o Vibrio cholerae estava naturalmente presente nas amostras.
A água foi contaminada com a cultura da bactéria teste para a incorporação pelas ostras. Após 24 h, procedeu-se a nova amostragem de água e de ostras, as quais foram separadas em 3 porções de 5 unidades cada, acondicionadas em sacos plásticos transparentes e transportadas ao IPEN/CNEN, para que uma porção fosse usada como controle e as outras irradiadas. As doses de irradiação usadas foram de 0,5 kGy e 1,0 kGy. Para avaliação dos resultados, todos os testes foram realizados em triplicata.
As amostras de ostras foram abertas com assepsia e seu interior foi esvaziado e homogeneizado em copo estéril. Do homogeneizado, foram retirados 25 g e acrescentados 225 ml de APA. A partir dessa diluição inicial foram realizadas diluições seriadas em caldo APA, retirando-se 1 ml da diluição precedente e acrescentando 9 ml de APA. A amostra de água foi diluída da mesma forma. As diluições foram incubadas a 35°C por 18-20 h. As semeaduras do material incubado foi em ágar tiosulfato citrato sais biliares sacarose (TCBS). A incubação, o isolamento de colônias características e a identificação foram realizadas conforme a American Public Health Association (APHA) e o Manual do FDA (Food and Drug Administration dos EUA)2,9,11,16 observando-se que para o isolamento das colônias foi usado o meio Instituto Adolfo Lutz (IAL) com 1% de NaCl. Os controles (água e ostra, sem contaminação, e ostra contaminada não irradiada) foram analisadas conforme descrito para as amostras-teste.
Para análise estatística dos resultados, foi aplicado o teste "t" de Student, no cálculo das médias de concentração do Vibrio cholerae, tendo sido fixado o valor de 0,05 para o nível de rejeição da hipótese de nulidade. Foi calculado o valor D10 relativo aos resultados da concentração da bactéria após a irradiação, aplicando-se a fórmula em que D10 corresponde ao valor da Dose, dividido pela diferença entre os valores de LogNo e LogN (No = número inicial da bactéria e N = número da bactéria após irradiação).8
RESULTADOS
Os resultados das análises de água e ostras recebidas revelaram ausência de V. cholerae antes da contaminação. As amostras de ostra controle contaminadas, que foram levadas ao IPEN/CNEN, porém não irradiadas, revelaram células viáveis demonstrando que não houve perda de viabilidade da cepa usada durante transporte e período de tempo correspondente ao de exposição à irradiação ionizante.
Os dados apresentados na Tabela 1, segundo o teste "t" de Student, indicam que a contaminação inicial é compatível com a concentração necessária de células viáveis para causar doença em adulto são. Os resultados obtidos após o processo de irradiação revelaram uma diminuição significativa do número de células viáveis e crescentes frente ao aumento da dose de irradiação. O teste "t" de Student, aplicado entre as médias de concentração, foi significante ao nível de rejeição adotado.
A dose de 1,0 kGy, segundo OPS-OMS/IAEA-FAO-ONU,12 deve inativar 99,99% das Vibrionaceae patogênicas presentes em moluscos bivalves. Porém, o cálculo em percentagens pode dar uma falsa idéia de segurança, a diminuição deve considerar a base logarítmica e/ou o valor D107. A redução expressa na Tabela 1, em termos de log na base 10, é de 5, 3 e 2 para 0,5 kGy e de 8, 4 e 3 para 1,0 kGy, respectivamente para os experimentos 1, 2 e 3. Considerando os valores de D10 da Tabela 2 e estabelecendo o valor 6 vezes maior ao correspondente a 0,5 kGy de irradiação ionizante com 60C, como fator de segurança para a inativação completa do V. cholerae em ostras, a irradiação necessária é de 1,038 kGy; enquanto o valor obtido em 1,0 kGy, para o mesmo nível de segurança, requer a dose necessária de 1,41 kGy.
DISCUSSÃO
Dados da literatura indicam a aplicação de 1,0 kGy, para a eliminação de Vibrionaceae patogênica em ostras, incluindo o V. cholerae, porém sem considerar o número inicial das mesmas.3 Os resultados obtidos no presente trabalho, com níveis de contaminação mais altos (108/g, experimento 1) e os demais resultados da Tabela 1, indicam que a dose de 1,0 kGy não foi eficiente para eliminar completamente o microrganismo teste, embora seja eficiente para a eliminação do risco de contrair doença, mesmo em consumidores sensíveis: o número de células viáveis do V.cholerae diminuiu até níveis iguais ou menores que 102/g. Entretanto, é possível a multiplicação dessa bactéria em ostras vivas, antes do consumo.1 Por isso, deve ser aplicado um fator de segurança; o fator 6, adotado no presente trabalho, que indica a dose de 1,41 kGy, próxima de 1,5 kGy, pode ser suficiente para a eliminação. Considerando a possibilidade de presença de V. cholerae quando da aplicação de 1,0 kGy, os cuidados de transporte e conservação desse produto devem ser realizados de forma a prevenir a multiplicação dessa bactéria nas ostras.1,15
Após a irradiação, as ostras analisadas apresentaram-se como as não irradiadas, ou seja, com as conchas firmemente fechadas e, portanto, viáveis. Essa observação, associada aos demais resultados obtidos, é de interesse na aplicação prática da irradiação como medida de intervenção aos riscos de saúde pública.
Os resultados obtidos permitem concluir que:
- a irradiação com 60Co, doses de 0,5 e 1,0 kGy, não é letal para ostras da espécie Crassostrea brasiliana;
- a cepa utilizada de V. cholerae O1 não-toxigênico revelou-se sensível à radiação ionizante com 60C, em ostras contaminadas em laboratório;
- a dose de irradiação por 60Co necessária para diminuir o número de células viáveis e eliminar o risco de consumidores sensíveis, com relação ao V. cholerae e com base no valor D10 obtido nas condições da realização do presente experimento, é de, no mínimo, 1,038, e de, no máximo, 1,41 kGy; entretanto, para o estabelecimento da dose recomendada, para fins práticos, é necessário conhecer os níveis possíveis de contaminação de ostras em regiões afetadas endêmica e epidemicamente pela cólera; e
- a irradiação por 60C é processo tecnológico possível e eficiente na redução/eliminação de riscos à saúde do consumidor em ostras contaminadas por bactérias patogênicas.
REFERÊNCIAS
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Correspondência para/Correspondence to:
Dilma S Gelli
Av. Dr. Arnaldo, 355
01246-902 São Paulo, SP, Brasil
e-mail: dilgelli@ial.sp.gov.br
Edição subvencionada pela Fapesp (Processo nº 100/01601-8).
Recebido em 25/8/1998. Reapresentado em 9/6/1999. Aprovado em 8/7/1999.
*Trabalho realizado na Seção de Microbiologia Alimentar do Instituto Adolfo Lutz e no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares/Comissão Nacional de Energia Nuclear (IPEN/CNEN). Resumo da dissertação de mestrado apresentada ao IPEN/CNEN, 1996. Parte do Contrato de Pesquisa 302D6-BRA-8029 entre a Agência Internacional de Energia Atômica, IPEN-CNEN e Instituto Adolfo Lutz. Apresentado no Congresso de Higienistas de Alimentos, Recife, 1997.
a** Aluna de pós-graduação