Prevalência e fatores de risco para anemia no Sul do Brasil*
Prevalence and risk factors for in Southern Brazil
Nelson A Neuman**, Oswaldo Y Tanakaa, Sophia C Szarfarcb, Paula RV Guimarãesc e Cesar G Victorad
aDepartamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). São Paulo, SP, Brasil. bDepartamento de Nutrição da FSP/USP. São Paulo, SP, Brasil. cSecretaria Municipal de Saúde de Criciúma. Criciúma, SC, Brasil. dDepartamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, RS, Brasil
DESCRITORES: Anemia, epidemiologia. Fatores de risco. | RESUMO OBJETIVO: MÉTODOS: RESULTADOS: CONCLUSÕES: |
KEYWORDS: Anemia. Epidemiology. Risk factors.Keywords Anemia. Epidemiology. Risk factors.
| ABSTRACT OBJECTIVE: METHODS: RESULTS: CONCLUSIONS: |
INTRODUÇÃO
A anemia por deficiência de ferro é a desordem nutricional mais comum no mundo11, afetando populações tanto de países desenvolvidos3 como de países em desenvolvimento. Crianças pequenas e mulheres em idade fértil, incluídas as gestantes, são os grupos que têm maior risco.
Estimativa feita pela Organização Panamericana de Saúde,11 com base em estudos locais e/ou estaduais, aponta o Peru como o país com maior prevalência de anemia em toda América Latina e Caribe (57%), seguido do Brasil, onde 35% das crianças de 1 a 4 anos estão anêmicas. Assim sendo, com base nesse estudo seriam quase 5 milhões de crianças com anemia no Brasil, apenas nessa faixa etária.11
No Estado de São Paulo é a deficiência nutricional mais prevalente na população infantil, acometendo mais da metade das crianças entre 6 e 24 meses de idade e a tendência observada nos últimos anos foi de aumento.10 No semi-árido baiano, a prevalência de anemia em crianças de 12 a 23 meses foi de 50%, e, entre os menores de 1 ano, de 29,9%.1
A anemia está associada ao retardo do desenvolvimento neuropsicomotor, comprometimento da imunidade celular e diminuição da capacidade intelectual. Alguns estudos sugerem efeitos de longo prazo no desempenho cognitivo, mesmo que a deficiência de ferro seja revertida9.
Os principais fatores de risco para anemia na criança são: prematuridade, baixo nível socioeconômico, baixo peso ao nascer, sangramento perinatal, baixa hemoglobina ao nascimento, hipoxia crônica, infecções freqüentes, alimentação inadequada com ingestão precoce de leite de vaca e/ou alimentos sólidos, ingestão freqüente e excessiva de chá, baixa ingestão de carne ou de vitamina C, aleitamento materno por mais de 6 meses sem suplementação de ferro, ingestão de formulados infantis não fortificados com ferro por mais de 4 meses sem outras comidas e práticas étnicas.3
Uma revisão realizada pela Organização Panamericana de Saúde (OPS)11 sobre prevalência de anemia em crianças no Brasil apontou 16 trabalhos, publicados ou não, que utilizaram amostras de ao menos 100 indivíduos e métodos e pontos de corte para as estimativas de prevalência aceitos internacionalmente. Desses estudos, a maior parte definiu sua amostra em uma população selecionada (serviços de saúde, escolas, albergues etc). Apenas uma das pesquisas citadasfoi baseada em estudo de base populacional abrangendo com representatividade para a totalidade do município. Estudos não representativos da população também foram os mais freqüentes em revisão bibliográfica realizada na base de dados Lilacs utilizando os mesmos critérios da OPS: apenas quatro estudos1,7,10,15 eram baseados em amostra equiprobabilísticade um total de 36 publicações referentes à prevalência de anemia em crianças.
O objetivo do presente estudo é medir a prevalência e avaliar os fatores de risco para anemia em uma amostra populacional representativa das crianças menores de 3 anos de idade, com vistas a propor intervenções no controle da anemia.
MÉTODOS
O presente estudo foi realizado em 1996, na área urbana de Criciúma, Estado de Santa Catarina, com 159.101 habitantes6, Sul do Brasil, sendo incluída a sede do município e seu único distrito, Rio Maina.
O presente estudo faz parte de um trabalho mais amplo12,13 que visou a avaliar o impacto de um programa de atenção materno-infantil desenvolvido pala Pastoral da Criança.
Para esse objetivo, os setores censitários utilizados pelo IBGE para o município foram divididos em dois estratos. O primeiro, com forte presença da Pastoral, abrangia 37 setores. Em todos esses setores foram visitados domicílios contíguos a partir de um ponto inicial selecionado aleatoriamente, até se completar 54% dos domicílios do setor. No segundo estrato, havia 76 setores, dos quais 15 (20%) foram selecionados através de amostragem proporcional ao tamanho, sendo visitado um número fixo de 155 domicílios em cada setor. A estratificação amostral resultou em diferentes probabilidades de seleção em cada estrato. Para reproduzir uma amostra eqüiprobabilística, utilizou-se um fator de ponderação para os cálculos da prevalência da anemia a nível municipal. Nas análises de fatores de risco, os resultados foram ajustados para a variável de estratificação.
Para obter a amostra, foi sorteada uma quadra em cada setor escolhido. Nessa quadra, uma esquina foi sorteada e, no sentido horário, foram visitados consecutivamente todos os domicílios inicialmente previstos para cada setor, sendo aplicado um questionário para cada uma das crianças menores de 3 anos residentes. Caso o domicílio estivesse fechado, perguntava-se a pelo menos dois vizinhos se nele havia alguma criança. Caso houvesse, retornava-se em outro dia e horário a fim de entrevistar o responsável pela criança. Se após quatro visitas em dias e horas diferentes o mesmo não fosse encontrado, considerava-se essa criança como perda.
Durante a coleta de dados, conduzida nos meses de março a junho de 1996, um questionário pré-codificado foi aplicado à mãe ou pessoa responsável pela criança. Investigou-se a associação entre a anemia e os seguintes fatores de risco: demográficos ¾ sexo, idade em meses e cor da pele (observação do entrevistador); socioeconômicos ¾ quartis de renda familiar atual, total no último mês, em reais, escolaridade do pai e da mãe em anos de estudo completos com aprovação, trabalho materno nos últimos 12 meses e presença do pai; ambientais ¾ tipo de moradia (1 = maloca, casa de madeira irregular ou tijolo sem reboco, e 2 = casa de tijolos com reboco, madeira regular ou apartamento), tempo de moradia no bairro em anos completos, aglomeração (número de pessoas por peça utilizada para dormir), tipo de sanitário utilizado pela família; antecedentes de saúde reprodutiva: idade da mãe em anos completos, ordem de nascimento; utilização dos serviços de saúde: número de consultas de pré-natal; peso ao nascer: em gramas; dieta: amamentação exclusiva ou predominante (permitindo ainda chá ou água) ao 4º mês de vida; antropometria e morbidade: escore Z do NCHS para Peso/Idade e Altura/Idade; internações nos últimos 12 meses e pneumonia (ocorrida alguma vez, segundo informe da mãe).
Utilizaram-se, no contexto do presente artigo, os termos "pai" ou "mãe" para designar os pais sociais que moram com a criança, biológicos ou não.
A amostragem para a colheita de sangue para dosagem da concentração de hemoglobina (Hb) foi feita sorteando-se uma criança dentre as 4 primeiras crianças entrevistadas de cada setor e seqüencialmente cada quarta criança. A dosagem de hemoglobina foi feita com sangue periférico e a leitura em hemoglobinômetro da marca BMS, da Omron Healthcare Inc.(de Illinois, EUA), modelo 10-101D. A colheita de sangue iniciou-se em abril, após todos os domicílios dos primeiros setores terem sido visitados, sendo encerrada em julho.
Considerou-se como anêmica a criança de 6 meses ou mais com concentração de hemoglobina abaixo de 11g/dL (OMS, 197214 e utilizaram-se ainda os valores de referência de Brault-Dubuc et al2 (BD) que identificam anemia em crianças de 0 a 36 meses e que, por sua construção, leva em consideração diferenciais de sexo e idade e, assim, mantém constante a especificidade do valor crítico17.
A análise estatística incluiu o teste do qui-quadrado para as tabelas de contingência. Nas tabelas 2x2 foi utilizada a correção de continuidade de Pearson16.
Uma vez que muitos fatores em estudo poderiam estar confundindo as associações, utilizou-se a hierarquização5 das variáveis em níveis para selecionar as variáveis de confusão mais relevantes. A hierarquia de entrada das variáveis foi definida em modelo conceitual previamente estabelecido: primeiro nível ¾ demográficas e socioeconômicas; segundo nível ¾ ambientais; terceiro nível ¾ antecedentes de saúde reprodutiva; quarto nível ¾ utilização dos serviços de saúde; quinto nível ¾ peso ao nascer; sexto nível¾ dieta; sétimo nível ¾ antropometria e de morbidade. Para tanto, utilizou-se a regressão logística condicional, com o processo retrógrado de seleção, pelo módulo de passos.
Consideraram-se como potenciais fatores de confusão as variáveis selecionadas segundo um p de 0,10 dentro de cada nível. Para as análises subseqüentes, foram mantidas aquelas variáveis que permaneceram associadas à anemia após controladas para as variáveis de confusão do mesmo nível e para aquelas hierarquicamente superiores5. Esses testes foram realizados usando o programa SPSS16.
RESULTADOS
Foram visitados no total 9.152 domicílios, sendo 6.827 (74,6%) no primeiro estrato e 2.325 (25,4%) no segundo. Nesses domicílios foram entrevistadas, respectivamente, 1.791 (81,1%) e 417 (18,9%) crianças menores de 3 anos, totalizando 2.208 crianças. O índice global de perdas foi de 2,8% cuja principal causa foi a ausência do morador (37 das 63 perdas ¾ 59%).
Das 551 crianças sorteadas, foi efetivamente medida a hemoglobina em 476 (86,4%). Os 13,6% de perdas foram decorrentes da mudança de endereço, da ausência da criança em casa, da não localização do domicílio ou da recusa em realizar o exame. Foi dosada a hemoglobina em 21,8% das crianças do primeiro estrato e em 20,6% no segundo. Essa perda maior no segundo estrato não foi significativa (p=0,7). Após a ponderação para reproduzir amostra equiprobabilística, as 476 medidas de hemoglobina passam a representar 467 dosagens em crianças.
Não houve associação estatisticamente significativa entre as perdas e a renda familiar total, escolaridade do pai e escolaridade da mãe.
Na amostra total de 2.208 crianças observa-se uma pequena predominância de crianças do sexo masculino (51%), sendo a idade homogeneamente distribuída. A maioria era primeiro ou segundo filho, havendo predominância da cor de pele branca (88,6%).
A escolaridade média das mães foi de 6,7 anos de estudo com desvio-padrão (d.p.) de 3,4 anos e para os pais de 7,3 anos (d.p. 3,5 anos). Mais da metade das famílias apresentava renda per capita inferior a um salário-mínimo, sendo a renda familiar mensal total, em média, de R$ 700,00 (d.p. R$ 850,00)***.
A idade média materna foi de 27,7 anos (d.p. 6,8 anos). As mães tiveram em média 2,3 gestações. Nasceram com baixo peso (<2.500 g) 7,8% das crianças.
Não eram casados 23,1% dos pais e 9,9% das mulheres não tinham companheiro. Em 57,9% dos domicílios, 3 ou mais pessoas dividiam a mesma peça utilizada para dormir. Metade das famílias moravam no mesmo bairro havia 6 anos ou mais e havia pelo menos 19 anos em Criciúma. Tiveram pneumonia 24% das crianças.
A prevalência de anemia encontrada na amostra foi de 60,4% para as crianças de 0 a 35,9 meses pelo critério BD e de 54% para as crianças de 6 a 35,9 meses pelo critério da OMS. Ambos os critérios foram coincidentes quanto à classificação de crianças não anêmicas. No entanto, 45 (25,5%) delas consideradas não anêmicas pelo critério OMS o foram pelo critério de BD.
Considerando a margem de erro do aparelho de mensuração da hemoglobina, reestimou-se a prevalência geral, acrescentando-se 0,5 g/dl aos valores obtidos como forma de neutralizar um possível erro sistemático do aparelho. Com essa correção, dentro do limite máximo de erro do aparelho, a prevalência seria: 42,1% com o ponto de corte de -2dp Brault-Dubuc e 30,8% utilizando o ponto de corte da OMS.
O sexo da criança não esteve associado a anemia, sendo a prevalência nos meninos 49,8% e 57,7% e nas meninas 58% e 63%, respectivamente pelos critérios OMS e BD. As crianças de cor branca tiveram significativamente menos anemia (51,6% e 58,2%) que as demais (71,3% e 77,9%).
Conforme pode ser observado na Figura, a prevalência de anemia aumenta com a idade até os 18 meses, diminuindo progressivamente após essa idade.
Na Tabela 1, percebe-se que a anemia é menos prevalente com o aumento da renda familiar total e escolaridade do pai. A anemia não se mostrou significativamente associada à escolaridade ou trabalho da mãe e à presença do pai em casa. Há maior prevalência de anemia em crianças de moradias de acabamento irregular, em domicílios com alta aglomeração e com sanitário sem descarga.Na Tabela 2, pode-se observar maiores prevalências de anemia entre mães adolescentes (<20 anos) e mães com 35 anos ou mais (apenas pelo critério de BD) e com dois ou mais irmãos mais velhos. Por outro lado, se durante a gestação houve de 5 a 9 consultas pré-natais, apresentam menor prevalência de anemia. O baixo peso ao nascer esteve associado à anemia e a pneumonia esteve associada à mesma apenas pelo critério de BD. O estado nutricional esteve associado a anemia apenas pelo critério peso/idade. Internamentos nos últimos 12 meses não estiveram associados à anemia e à pneumonia; somente estiveram associados ao critério BD.
Os resultados finais da análise multivariada por regressão logística estão mostrados na Tabela 3, a qual mostra as variáveis que permaneceram no modelo após o ajuste realizado conforme o modelo conceitual hierarquizado. Para desfechos freqüentes como a anemia, o valor da razão de produtos cruzados (razão de odds) obtida por meio da regressão logística pode ser marcadamente diferente do valor da razão de prevalências.13
No nível de características demográficas e socioeconômicas, permaneceram significativas as variáveis de idade da criança (com o pico de prevalência na faixa de 12 a18 meses) e renda familiar (inversamente associada à prevalência de anemia). No segundo nível hierárquico ¾ variáveis ambientais ¾, após o controle para renda e idade da criança permaneceu significativa a variável referente à aglomeração (maior risco onde havia um número elevado de moradores por peça). A variável "sanitário com descarga" esteve no limiar da significância estatística (p=0,06), com risco aumentado em domicílios onde não havia sanitário.
Nos demais níveis ¾ variáveis antecedentes de saúde reprodutiva, utilização dos serviços de saúde, peso ao nascer, dieta (aleitamento materno), antropometria e de morbidade ¾ após controladas para os fatores acima, nenhuma variável mostrou-se como fator de risco para a anemia.
DISCUSSÃO
O presente estudo pode ser considerado representativo da população urbana do município de Criciúma devido à sua amostragem probabilística e ao fato de as perdas na colheita de sangue para diagnóstico de anemia (13,6%) não estarem associadas significativamente a variáveis socioeconômicas. Essas perdas não devem, portanto, afetar os resultados apresentados.
Ao se observar que 25,5% das crianças diagnosticadas como não-anêmicas pelo padrão OMS foram consideradas falso-negativas quando cotejadas com a referência BD, sugerimos que a utilização da referência BD pelos serviços de saúde provavelmente será mais efetiva para o diagnóstico precoce e pronto tratamento da anemia.
Criciúma está entre os 30 melhores municípios de Santa Catarina e entre os 50 melhores do Brasil de acordo com o índice de sobrevivência de crianças elaborado pelo IBGE e UNICEF8. Mesmo assim, a maior parte de suas crianças se encontra anêmica. Esse índice seria ainda maior que o esperado para o Brasil como um todo, segundo as estimativas da OPS (35%).11 Monteiro e Szarfarc10 também relataram altas prevalências: 46% das crianças entre 6 e 36 meses do Município de São Paulo estavam anêmicas em 1984-1985 (utilizando o critério OMS). Estudo realizado por Victora et al.8 aponta prevalência de 33,8% entre crianças do Estado do Piauí de 2 a 4 anos em 1991. Cabe ressaltar que mesmo reestimando-se a prevalência geral com o acréscimo de 0,5 g/dl aos valores obtidos no presente estudo como forma de neutralizar um possível erro sistemático do aparelho, a prevalência permanece bastante alta (42,1% para BD e 30,8% para OMS). O estudo de São Paulo apontou para uma substancial elevação da anemia (ao redor de 50%) entre 1973/74 e 1984-85.10
O aumento da anemia, com pico entre 12 e 24 meses, e sua posterior diminuição também foram apontados em outros estudos4,10. As crianças dessa faixa etária devem, portanto, receber especial atenção dos serviços de saúde por apresentarem maior risco.
Chama a atenção que mesmo entre os 25% com maior renda no município tenha sido constatado que mais de 40% das crianças estão anêmicas, cabendo observar que as famílias com menor renda tenham prevalência de anemia ainda maior (Tabela 1).
A análise dos fatores de risco aponta para a força de associação entre um fator e a doença. Na análise hierarquizada, permaneceram como fatores de risco a idade da criança, a renda total familiar, a aglomeração de moradores e o tipo de privada utilizada. Na literatura, a maioria dos trabalhos se concentra nos fatores de risco biológicos, mas é importante salientar os fatores sociais. Estes foram mostrados no presente estudo e no estudo de Monteiro & Szarfarc,10 particularmente para anemia severa. O estudo do Piauí mostrou prevalências menores, embora as condições socioeconômicas sejam muito baixas: na capital a prevalência foi de 13% e, no interior, de 40%7.
O fator de risco representado pela aglomeração de moradores poderia estar relacionado com uma confusão residual da renda, mas, ao se controlar também para a renda familiar per capita no modelo, a aglomeração permanece como fator de risco. A possibilidade de algum fator relacionado com o aumento de infecções (mais freqüentes nessas condições) também deve ser lembrada, embora as variáveis sobre infecções severas, pneumonia e internamentos hospitalares não tenham sido significativas.
O fator de risco representado pela ausência de sanitário com descarga também poderia estar relacionado com uma confusão residual da renda, mas também este permaneceu no modelo após controlado para renda familiar per capita. Assim, possivelmente, o tipo de sanitário utilizado esteja relacionado com infecções gastrointestinais mais freqüentes e parasitoses intestinais (ancilostomídeos). No entanto, estudo realizado nos anos 70 no Município de São Paulo (SP) não encontrou associação entre parasitoses intestinais e anemia, tendo concluído que a causa principal da anemia é alimentar, não cabendo atribuir papel importante à parasitose intestinal.15
Os fatores de risco relacionados (idade, renda, aglomeração e tipo de sanitário) são de fácil identificação pelos serviços de saúde e podem colaborar na seleção das crianças que seriam mais intensamente beneficiadas por uma intervenção. Essas variáveis evidenciam a força da desigualdade social na anemia, talvez com menor magnitude que em relação às diarréias e à desnutrição, mas ainda assim os fatores socioeconômicos são os maiores fatores de risco.
Ainda que determinada basicamente por fatores socioeconômicos, o risco que a anemia representa para a saúde e desenvolvimento intelectual dessas crianças exige ações também de curto prazo. Há inúmeras evidências de que os fatores responsáveis pelos níveis endêmicos da anemia ferropriva nos primeiros anos de vida sejam essencialmente a herança deficiente de ferro recebido da mãe pela criança ao nascer17 e o baixo teor de ferro da alimentação10 (ingestão/absorção de ferro insuficientes). A ênfase deve ser dada portanto às gestantes, pois há uma associação positiva entre as reservas maternas e neonatais de ferro e ao aleitamento materno, que por sua alta biodisponibilidade de nutrientes, pode proteger os recém-nascidos a termo de apresentarem anemia até os 4-6 meses de idade.9,11
Além da melhoria de qualidade no pré-natal, minimizando riscos de baixo peso ao nascer, melhorando os estoques de ferro da gestante e ampliando os conhecimentos maternos no que se refere a cuidados com a criança, poder-se-ia ainda implementar medidas profiláticas relativamente simples, tais como: educação alimentar, fortificação compulsória de alimentos utilizados amplamente na dieta infantil, e suplementação medicamentosa do nutriente.10 Essas recomendações deveriam ter como alvo toda a população de crianças, uma vez que a população com melhores condições socioeconômicas também apresentam elevados níveis de anemia.
Essas medidas, ainda que não resolvam definitivamente o problema da anemia em virtude de seus determinantes socioeconômicos, colaboram com a melhoria da saúde e o posterior desempenho escolar das crianças. Dessa forma, espera-se que elas tenham melhores condições de diminuir a desigualdade social vivida por seus pais.
REFERÊNCIAS
1. Assis AMO, Santos LMP, Martins MC, Araújo MPN, Amorim DQ, Morris SS et al. Distribuição da anemia em préescolares do semiárido da Bahia. Cad Saúde Pública 1997;13:23743.
2. Brault-Dubuc M, Nadeau M, Dickie J. Iron status of French-Canadian children: a three year follow-up study. Hum Nutr Appl Nutr 1983;37A:210-21.
3. Canadian Paediatric Society. Nutrition Committee. Meeting the iron needs of infants and young children: an update. Can Med Assoc J 1991;144:1451-4.
4. Centers for Disease Control and Prevention. Recommendations to prevent and control iron deficiency in the United States. Morb Mortal Wkly Rep 1998;47(RR-3):1-29.
5. Fuchs SC, Victora CG, Fachel J. Modelo hierarquizado: uma proposta de modelagem aplicada à investigação de fatores de risco para diarréia grave. Rev Saúde Pública 1996;30:168-78.
6. Fundação IBGE. Contagem da população 1996. Rio de Janeiro; 1997.
7. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Crianças e adolescentes no Piauí: saúde, educação e trabalho. Brasília: UNICEF; 1992.
8. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Municípios brasileiros: crianças e suas condições de sobrevivência - censo demográfico, 1991. Brasília: UNICEF/ IBGE; 1994.
9. Giugliani ERJ, Victora CG. Normas alimentares para crianças brasileiras menores de dois anos: bases científicas. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde;1997.
10. Monteiro CA, Szarfarc SC. Estudo das condições de saúde das crianças no Município de São Paulo, SP (Brasil), 1984-1985. V - Anemia. Rev Saúde Pública 1987;21:255-60.
11. Mora JO, Mora LM. Deficiencias de micronutrientes en América Latina Y el Caribe: anemia ferropriva. Washington (DC): Organización Panamericana de La Salud; 1997.
12. Neumann NA, Victora CG, Halpern R, Guimarães PRV, Cesar JA. A Pastoral da Criança em Criciúma, SC: cobertura e características sócio-demográficas das famílias participantes. Cad Saúde Pública 1999;15:543-52.
13. Neumann NA, Victora CG, Halpern R, Guimarães PRV, Cesar JA. Desempenho da Pastoral da Criança na promoção de ações de sobrevivência infantil e na educação em saúde em Criciúma, uma cidade do sul do Brasil. Rev Panam Salud Publica 1999;5:400-10.
14. Organización Panamericana de La Salud. Anemias nutricionais: informe de un grupo de expertos de la OMS. Ginebra; 1972. (OMS - Serie de Informes Tecnicos, 503).
15. Sigulem DM, Tudisco ES, Paiva ER, Guerra CCC. Anemia nutricional e parasitose intestinal em menores de 5 anos. Rev Paul Med 1985;103:30812.
16. [SPSS] Statistical Package for the Social Sciences. [computer program]. Release 6.1, standard version. Chicago: SPSS Inc; 1994.
17. Szarfarc SC. Diagnóstico de deficiência de ferro na infância. Rev Saúde Pública 1985;19:278-84.
Correspondência para/Correspondence to:
Nelson Arns Neumann
Pastoral da Criança
Rua Jacarezinho, 1691
80810-900 Curitiba, PR, Brasil
E-mail: nneumann@rebidia.org.br
Edição subvencionada pela Fapesp (Processo nº 100/01601-8).
Recebido em 4/3/1999. Reapresentado em 19/7/1999. Aprovado em 18/8/1999.
*Trabalho realizado no Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública /USP.
**Aluno de pós-graduação, nível de doutorado
***No momento da pesquisa, um real valia US$1.00