Instrumentos em Língua Brasileira de Sinais para avaliação da qualidade de vida da população surda

Instrumentos en Lengua Brasileña de Señales para evaluación de la calidad de vida de la población sorda

Neuma Chaveiro Soraya Bianca Reis Duarte Adriana Ribeiro de Freitas Maria Alves Barbosa Celmo Celeno Porto Marcelo Pio de Almeida Fleck Sobre os autores

Resumos

OBJETIVO:

Construir a versão em Língua Brasileira de Sinais dos instrumentos WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS para avaliar a qualidade de vida da população surda brasileira.

MÉTODOS:

Utilizou-se metodologia proposta pela Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS) para a construção dos instrumentos adaptados para população surda em Língua Brasileira de Sinais (Libras). A pesquisa para execução do instrumento consistiu de 13 etapas: 1) criação do sinal qualidade de vida; 2) desenvolvimento das escalas de respostas em Libras; 3) tradução por um grupo bilíngue; 4) versão reconciliadora; 5) primeira retrotradução; 6) produção da versão em Libras a ser disponibilizada aos grupos focais; 7) realização dos grupos focais; 8) revisão por um grupo monolíngue; 9) revisão pelo grupo bilíngue; 10) análise sintática/semântica e segunda retrotradução; 11) reavaliação da retrotradução pelo grupo bilíngue; 12) filmagem da versão para o software; 13) desenvolvimento do software WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS em Libras.

RESULTADOS:

Características peculiares da cultura da população surda apontaram a necessidade de adaptações na metodologia de aplicação de grupos focais quando compostos por pessoas surdas. As convenções ortográficas da escrita das línguas sinalizadas não estão consolidadas, o que trouxe dificuldades em registrar graficamente as etapas de tradução. As estruturas linguísticas que causaram maiores problemas de tradução foram as que incluíram expressões idiomáticas do português, muitas sem conceitos equivalentes entre o português e a Libras. Foi possível construir um software do WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS em Libras.

CONCLUSÕES:

O WHOQOL-BREF e o WHOQOL-DIS em Libras possibilitarão que os surdos se expressem autonomamente quanto a sua qualidade de vida, o que permitirá investigar com maior precisão essas questões.

Perda Auditiva; Qualidade de Vida; Organização Mundial da Saúde; Questionários; Traduções; Linguagem de Sinais; Validade dos Testes; Reprodutibilidade dos Testes; Saúde da Pessoa com Deficiência


OBJETIVO:

Construir la versión en Lengua Brasileña de Señales de los instrumentos WHOQOL-BREF y WHOQOL-DIS para evaluar la calidad de vida de la población sorda brasileña.

MÉTODOS:

Se utilizó la metodología propuesta por la Organización Mundial de la Salud (WHOQOL-BREF y WHOQOL-DIS) para la construcción de los instrumentos adaptado para la población sorda en Lengua Brasileña de Señales (Libras). La investigación para ejecución del instrumento consistió de 13 etapas: 1) creación de la señal de calidad de vida; 2) desarrollo de las escalas de respuestas en Libras; 3) traducción por un grupo bilingüe; 4) versión reconciliadora; 5) primera retro-traducción; 6) producción de la versión en Libras a ser disponibilizada a los grupos focales; 7) realización de los grupos focales; 8) revisión por un grupo monolingüe; 9) revisión por un grupo bilingüe; 10) análisis sintáctico/semántico y segunda retro-traducción; 11) re-evaluación de la retro-traducción por el grupo bilingüe; 12) grabación de la versión para el software; 139 desarrollo del software WHOQOL-BREF y WHOQOL-DIS en Libras.

RESULTADOS:

Características peculiares de la cultura de la población sorda señalaron la necesidad de adaptaciones en la metodología de aplicación de grupos focales al estar compuestos por personas sordas. Las convenciones ortográficas de la escritura de las lenguas señalizadas no están consolidadas, lo que trajo dificultades para registrar gráficamente las etapas de la traducción. Las estructuras lingüísticas que causaron mayores problemas de traducción fueron las que incluyeron expresiones idiomáticas del portugués, muchas sin conceptos equivalentes entre el portugués y la Libras. Fue posible construir un software del WHOQOL-BREF y WHOQOL-DIS en Libras.

CONCLUSIONES:

El WHOQOL-BREF y WHOQOL-DIS en Libras posibilitaron que los sordos se expresen autónomamente con relación a su calidad de vida, lo que permitirá investigar con mayor precisión estos aspectos.

Pérdida Auditiva; Calidad de Vida; Organización Mundial de la Salud; Cuestionarios; Traducciones; Lenguaje de Signos; Validez de las Pruebas; Reproducibilidad de Resultados; Salud de la Persona con Discapacidad


INTRODUÇÃO

Um dos desafios para a sociedade no século XXI é conviver com respeito à diversidade e assegurar o direito à igualdade. Isso inclui a convivência com pessoas com deficiência. No caso dos portadores de deficiência auditiva, implica ainda o reconhecimento da língua de sinais e da cultura da população surda.

Antes de sua oficialização, a língua de sinais era nomeada de diversas maneiras: linguagem dos gestos, linguagem dos surdos, gestos, mímica, pantomima ou de movimentos com as mãos, termos usados para se referir a como os surdos se comunicavam. Essas nomeações eram influenciadas e reforçadas pela concepção oralista que defendia que o surdo devia falar, ser oralizado a qualquer custo e o uso de sinais, proibido.

As relações sociais propiciadas pela comunidade surda possibilitam ao surdo traçar a representação de si próprio e do mundo. Isso justifica o resultado das pesquisas que apresentam índice mais elevado de qualidade de vida nos domínios das relações sociais e emocionais dos surdos que entre participantes de sua comunidade.44. Fellinger J, Holzinger D, Gerich J, Goldberg D. Mental distress and quality of life in the hard of hearing. Acta Psychiatr Scand. 2007;115(3):243-5. DOI: 10.1111/j.1600-0447.2006.00976.x
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, 55. Fellinger J, Holzinger D, Dobner U, Gerich J, Lehner R, Lenz G, et al. An innovative and reliable way of measuring health-related quality of life and mental distress in the deaf community. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2005;40(3):245-50. DOI: 10.1007/s00127-005-0862-9
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Boa convivência entre os surdos implica a vivência na cultura surda, com reconhecimento da língua de sinais e de sua comunidade.33. Chaveiro N, Barbosa MA, Porto CC. Literature revision about the attendance of deaf patient by health professionals. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):578-83. DOI:10.1590/S0080-62342008000300023
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Essa nova concepção faz legitimar os aspectos culturais da população de surdos e a língua de sinais é o que mais se destaca dentre os traços culturais dessa população. Além de ser um sistema linguístico, é um elemento de constituição do sujeito surdo, agregando sua identidade e cultura. O direito de se comunicar na sua língua natural, i.e., na Língua Brasileira de Sinais (Libras), é garantido legalmente no Brasil, sem imposição ao uso da língua majoritária do País.

O não reconhecimento dessa peculiaridade linguística dificulta o acesso da população surda aos serviços de atenção básica oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A ausência de intérpretes e a falta de preparo dos funcionários no atendimento aos surdos são aspectos que fragilizam o vínculo comunicativo na realização de tratamento adequado.33. Chaveiro N, Barbosa MA, Porto CC. Literature revision about the attendance of deaf patient by health professionals. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):578-83. DOI:10.1590/S0080-62342008000300023
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, 1010. Quadros RM. Educação de surdos: A aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artmed; 1997. Torna-se imperativo que profissionais da saúde conheçam as questões que envolvem a identidade e cultura surda, a fim de não comprometer a assistência que lhe é prestada.33. Chaveiro N, Barbosa MA, Porto CC. Literature revision about the attendance of deaf patient by health professionals. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):578-83. DOI:10.1590/S0080-62342008000300023
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Os instrumentos de aferição da Qualidade de Vida Relacionada à Saúde são traduzidos e validados em vários idiomas, com o objetivo de agregar os valores socioculturais e linguísticos de um povo.1111. World Health Organization: WHOQOL: measuring quality of life. Geneva; 1997. (MAS/MNH/PSF/97.4). Por que não considerar esses mesmos critérios em relação à população de surdos? Como fazer uma avaliação fidedigna da qualidade de vida de surdos que usam a língua de sinais, com instrumentos em uma língua que eles não dominam? Seria prudente utilizar a versão de um questionário em português, fazendo apenas uma tradução simultânea para Libras? Considerando que a Libras é reconhecida legalmente como língua, pela Lei Federal nº 10.436/02,aa Brasil. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diario Oficial Uniao. 23 dez 2005:28. não seria necessário traduzir e validar instrumentos de medida de qualidade de vida para esse idioma?

Os instrumentos de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (OMS), World Health Organization Quality of Life (WHOQOL), estão disponíveis em mais de 20 idiomas,22. Chachamovich E, Fleck MPA. Desenvolvimento do WHOQOL-100. In: Fleck MPA, organizador. A avaliação de qualidade de vida: guia para profissionais da saúde. Porto Alegre: Artmed; 2008. p.29-39. , 66. Fleck MPA, Lousada S, Xavier M, Chachamovich E, Vieira G, Santos L, et al. Aplicação da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100). Rev Saude Publica. 1999;33(2):198-205. DOI: 10.1590/S0034-89101999000200012
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mas não há estudos com a tradução e validação desses instrumentos para a Libras. Poucas pesquisas investigaram a qualidade de vida do povo surdo que se comunica pela língua de sinais. A maior parte desses estudos teve como objetivo investigar a qualidade de vida relacionada ao uso de aparelho auditivo e de implante coclear, numa perspectiva de valorização da língua oral.

O Grupo WHOQOL propõe que seus instrumentos de aferição da qualidade de vida sejam traduzidos para diversas línguas e que apresentem bons níveis de equivalência para que os resultados reflitam com fidedignidade a real qualidade de vida de uma determinada comunidade em seu uso transcultural.22. Chachamovich E, Fleck MPA. Desenvolvimento do WHOQOL-100. In: Fleck MPA, organizador. A avaliação de qualidade de vida: guia para profissionais da saúde. Porto Alegre: Artmed; 2008. p.29-39. , 77. Fleck MPA, Lousada S, Xavier M, Chachamovich E, Vieira G, Santos L, et al. Aplicação da versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida "WHOQOL-BREF". Rev Saude Publica. 2000;34(2):178-83. DOI: 10.1590/S0034-89102000000200012
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Assim, é imprescindível que a tradução do World Health Organization Quality of Life - Bref (WHOQOL-BREF) e do World Health Organization Quality of Life - Disability (WHOQOL-DIS) sejam feitas para as línguas de sinais, nesse caso específico, para Libras.

O presente estudo teve como objetivo construir a versão em Língua Brasileira de Sinais dos instrumentos WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS para avaliar a qualidade de vida da população surda brasileira.

MÉTODOS E RESULTADOS

Desenvolvimento da versão em Libras do WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS

O desenvolvimento da versão em Libras dos instrumentos de avaliação de qualidade de vida da OMS, WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS, fez parte do Projeto WHOQOL-Libras.

Etapas

A metodologia adotada foi de acordo com os critérios estabelecidos pela OMS e consistiu de 13 etapas:

1) Criação do Sinal "Qualidade de Vida"

Na Libras não existia um sinal para o termo qualidade de vida. Por isso, fez-se necessário um estudo do conceito na comunidade surda. Depois de muita discussão e de diferentes propostas de sinais apresentadas, um grupo de surdos escolheu em votação um sinal para qualidade de vida.

O sinal qualidade de vida é produzido no lado esquerdo do tórax, na região do coração. A classificação morfológica do sinal se dá pela adjunção de dois sinais simples em forma composta, exemplificando: maravilhoso + vida = qualidade de vida.

Na criação pelos surdos do sinal qualidade de vida, foi feita uma mudança no ponto de articulação do sinal maravilhoso para contemplar esse aspecto subjetivo do termo qualidade de vida: esse sinal é normalmente realizado no espaço neutro, i.e., à frente do tórax, sem contato com o corpo. Em seu novo contexto de uso, para compor o sinal qualidade de vida, deslocou-se seu ponto de articulação para o lado esquerdo do tórax, na região do coração, em contato com o corpo. Essa alteração fonológica caracteriza o aspecto subjetivo do construto qualidade de vida.

2) Escalas de Respostas em Libras

Essa etapa foi realizada com base na metodologia do desenvolvimento das escalas de respostas em português, com as adaptações pertinentes à Libras. Participaram 21 surdos.

As respostas para as questões do WHOQOL são dadas em uma escala tipo Likert. Cada escala apresenta cinco possibilidades de respostas. As palavras (respostas) que se localizam nos extremos de cada escala foram traduzidas com facilidade, para as diferentes línguas orais.2 No entanto, quando as respostas foram traduzidas para Libras, foram encontrados vários termos com a mesma equivalência semântica, inclusive para os extremos de cada escala.

Para realizar o levantamento dos sinais capazes de contemplar os valores da escala em "Frequência, Intensidade, Capacidade, Avaliação", foi realizada uma pesquisa na comunidade surda, em obras lexicográficas, em apostilas de diferentes cursos de Libras e nos sinais utilizados pelo grupo bilíngue. Foram selecionados 46 sinais.

Elaborou-se uma escala análogo-visual de 100 mm para cada sinal, na qual os surdos deveriam marcar na extensão da régua o valor atribuído àquele sinal.

3) Tradução pelo Grupo Bilíngue

O grupo bilíngue que fez a primeira tradução dos questionários WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS do português para Libras foi composto por quatro pessoas ouvintes, filhas de pais surdos, fluentes na Libras. Estudos linguísticos afirmam que a primeira língua (L1) dos filhos ouvintes de pais surdos, normalmente, é a língua de sinais.10 Por isso, optou-se por formar esse grupo com pessoas ouvintes, filhas de pais surdos. Além disso, deveriam atuar ou ter trabalhado como intérpretes.

4) Versão Reconciliadora

As traduções dos questionários feitas pelo grupo bilíngue foram analisadas pela coordenação do Projeto WHOQOL-Libras que é fluente em Libras.

O procedimento foi o seguinte:

a) assistia-se à produção da mesma questão feita por todos os integrantes do grupo, em computadores diferentes, o que facilitava o processo de análise;

b) promovia-se a discussão de como cada um produziu (sinalizou) a questão para elaborar uma versão que melhor representasse a tradução do grupo bilíngue;

c) filmava-se a versão reconciliadora de cada questão.

Não foram detectadas diferenças significativas entre as traduções realizadas pelos membros do grupo bilíngue durante a análise das questões. Obteve-se uma versão reconciliadora em Libras dos questionários WHOQOL-BREF e do WHOQOL-DIS, gravada em Digital Versatile Disk (DVD).

5) Primeira Retrotradução

O objetivo dessa etapa foi retrotraduzir a versão em Libras do WHOQOL-BREF e do WHOQOL-DIS para o Português e analisar a equivalência semântica entre os idiomas. A intérprete assistia em um computador à filmagem das questões em Libras e registrava a sua tradução em Português. Esse trabalho foi realizado por uma intérprete que não fazia parte da equipe do Projeto WHOQOL-Libras, conforme propõe a metodologia da OMS.

6) Conversão em Libras

Produziu-se uma versão em Libras, com base na primeira retrotradução, para ser analisada pelos grupos focais.

7) Grupos Focais

Os objetivos dos grupos focais foram: analisar a versão em Libras; revisar a estrutura linguística da Libras nas questões produzidas pelo grupo bilíngue; avaliar a compreensão das questões; identificar outras facetas que não tenham sido propostas e que tenham relevância para a comunidade surda brasileira; discutir a importância de cada faceta.

A seleção da amostra foi por conveniência devido à característica da investigação em grupos focais. Foram constituídos três grupos focais: grupo de surdos (nove pessoas), grupo de familiares de surdos (seis pessoas) e grupo de intérpretes da Libras (seis pessoas).

Foram realizadas duas reuniões com os grupos focais. A primeira teve como proposta explicar o projeto "Qualidade de Vida da OMS" e apresentar o projeto WHOQOL-Libras. O objetivo da segunda reunião foi a coleta de dados nos grupo focais.

Foram respeitadas as regras de objetividade, falar uma pessoa de cada vez, evitar conversas paralelas e respeitar a opinião dos outros no grupo de familiares e intérpretes. Todas as questões foram consideradas importantes. Foram sugeridas alterações de alguns sinais e da ordem sintática de algumas frases. Quando indagados se sentiram falta de algum item para avaliar a qualidade de vida dos surdos, as sugestões foram: comunicação familiar, convívio (relacionamento) familiar, esportes, tecnologias, implante coclear, acessibilidade às informações e notícias.

Houve dificuldade em respeitar a regra de objetividade no grupo de surdos. Todas as perguntas foram consideradas importantes. Foram feitas sugestões referentes aos aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos das versões em Libras. Sugeriram também outros temas: aquisição da língua de sinais, esporte, relação familiar e implante coclear. Foi produzida uma versão em DVD para fazer a devolutiva aos grupos focais para apresentar o resultado.

8) Revisão por grupo monolíngue

Os surdos selecionados nessa etapa tinham a Libras como primeira língua (L1) e o português com segunda língua (L2). Eles não dominavam fluentemente o português e, como para a maioria dos surdos, apresentavam dificuldades com línguas de modalidade oral-auditiva.

Casos de pessoas que não são exclusivamente monolíngues, como os surdos que participaram dessa etapa, estão previstos pela OMS na sua metodologia de tradução. Em algumas regiões, é improvável que se encontrem pessoas sem nenhum conhecimento da língua de origem do questionário. Nessas situações, o grupo monolíngue deve atuar observando os aspectos de tradução não compreensíveis ou com estruturas linguísticas ambíguas de acordo com a língua alvo.

Os dois surdos que colaboraram nessa etapa não tiveram acesso à versão em português do WHOQOL-BREF e do WHOQOL-DIS. Eles foram instruídos para analisar a estrutura linguística das questões e observar se a sinalização em Libras estava clara e compreensível. Eles consideraram os questionários importantes para avaliar a qualidade de vida dos surdos. Sugeriram a reorganização de algumas estruturas sintáticas e substituição de sinais que não estavam de acordo com o sentido da frase.

9) Revisão pelo Grupo Bilíngue

Essa etapa objetivou avaliar os resultados produzidos pelos grupos focais e pelo grupo monolíngue.

O grupo bilíngue assistia à versão em Libras e fazia a discussão sobre a compreensão e adequação da estrutura linguística. Posteriormente, comparava com a versão em português para verificar a equivalência entre as línguas envolvidas no processo de tradução.

A coordenação do Projeto WHOQOL-Libras analisou e discutiu as propostas de alterações feitas pelo grupo bilíngue, ponderando as sugestões de cada questão. Algumas foram incorporadas à versão em Libras, outras foram incluídas no glossário do software e outras, descartadas. Ao final da análise, tinha-se o resultado de cada questão. O próximo passo foi a filmagem a ser disponibilizada no trabalho da segunda retrotradução.

10) Análise Sintática-Semântica e Segunda Retrotradução

Os objetivos dessa etapa foram: avaliar a estrutura sintática e semântica das questões; retrotraduzir pela segunda vez os questionários da Libras para o português.

O processo de análise sintática e semântica e da segunda retrotradução pode ser assim descrito (Tabela 1):

  • foi solicitado ao intérprete que assistisse ao vídeo em Libras e traduzisse para o português;

  • fazia-se a leitura da tradução e da respectiva questão na versão em português;

  • discutia-se o valor semântico da pergunta na versão em português para verificar se o sentido da questão fora contemplado na versão em Libras;

  • quando não havia equivalência semântica entre as versões, discutia-se como expressar esse conceito em Libras, fazendo a gravação da alteração proposta.

Tabela 1
Segunda retrotradução e avaliação semântica do WHOQOL-BRIEF e WHOQOL-DIS.

A discussão sobre cada questão nos níveis linguísticos sintáticos e semânticos, incluindo as sugestões de alteração de alguns sinais, está exemplificada abaixo:

Questão 1:

Trocar o sinal INVESTIGAR (com sentido de investigar/estudar) por AVALIAR.

Questão 36: Faltou o sinal EXEMPLO e o sentido de "ouvem você"

Acrescentar os sinais EXEMPLO e a sentença PERCEBE OUTRAS PESSOAS ATENÇÃO (duas mãos no rosto e tórax).

Mesmo com boa equivalência semântica entre as questões na retrotradução, foram constatados itens agramaticais da Libras, visto que a estrutura gramatical da língua está vinculada diretamente a sua modalidade de produção viso-espacial. Os itens agramaticais encontrados foram: direção do olhar, expressão facial inadequada (exagerada ou inexpressiva) fugindo do contexto e não fluência da Libras na execução dos sinais.

11) Reavaliação da Segunda Retrotradução pelo Grupo Bilíngue

O objetivo foi reavaliar a segunda retrotradução e fazer as últimas alterações para a produção da versão final dos instrumentos WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS.

O grupo bilíngue assistiu à versão produzida com base na segunda retrotradução e fez considerações após a apresentação de cada questão.

A versão dos questionários apresentou estrutura linguística e sinalização mais precisas e compreensíveis do que as versões anteriores. Foram necessárias pequenas alterações relacionadas à execução dos sinais, como configuração da mão, movimento, uso do espaço e expressão facial, para se obter produção adequada de acordo com a estrutura linguística da Libras.

12) Filmagem da Versão Final em Estúdio de Gravação

A produção das questões foi feita por tradutores/atores surdos com boa fluência na Libras, sinalizando de modo claro e com boa expressão facial. Pode-se compará-los com pessoas ouvintes com bela voz.

13) Desenvolvimento do Software na Versão em Libras dos Instrumentos WHOQOL-BREF E WHOQOL-DIS

Foi desenvolvido um software em Libras para avaliação da qualidade de vida da população surda brasileira e investigada a usabilidade do software na comunidade surda.

Apresentação do software WHOQOL-Libras

O software apresenta as seguintes opções de acesso:

A. WHOQOL/Libras - Qualidade de vida

Contém a apresentação do conceito de qualidade de vida proposto pela OMS, a criação do sinal de QUALIDADE DE VIDA e a explicação que a tradução foi realizada com base na versão em português. Abaixo de cada texto em português, há a versão em Libras.

B. Instruções

Contêm explicações sobre como responder aos questionários.

C. Aplicação de questionários

O pesquisador deverá solicitar um cadastro à coordenação do WHOQOL-Libras quando for utilizar os questionários WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS. Depois que digitar e enviar seus dados no "Entrevistador cadastrado", será aberta uma tela em que poderá escolher os questionários.

Em seguida, terá acesso aos questionários WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS. O WHOQOL-Libras apresenta as questões em Libras, em português, em inglês e na Escrita das Línguas de Sinais (ELiS). A Libras (idioma principal do software), a escrita em português, em inglês e na língua de sinais foram inseridas para auxiliar na compreensão das perguntas.

O sujeito investigado terá a possibilidade de assistir à mesma questão quantas vezes desejar, retornar à questão anterior, escolher entre as escritas dos idiomas (português, inglês e língua de sinais) e caso julgue necessário recorrer ao glossário em Libras.

A apresentação das respostas seguiu a mesma proposta das perguntas, estando em Libras e na escrita em português, inglês e língua de sinais.

Também estão disponíveis no software os campos: "Emitir relatórios", "Demonstração", "Entre em contato" e o "Glossário em Libras".

O Projeto WHOQOL-Libras foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Médica Humana e Animal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (Parecer nº 003/2008). Os sujeitos assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.

Usabilidade do software WHOQOL-Libras

A usabilidade do software foi avaliada por 21 surdos, alunos do curso de graduação em Letras/Libras da UFG e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no polo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG-GO). Os critérios para selecionar a amostra de surdos foram: ser surdo usuário da Libras e saber manusear um computador.

Foi elaborado um questionário para avaliar a usabilidade do software com os itens: Dados pessoais; A interface com o software; O design do software; Os aspectos linguísticos da Libras (Tabela 2).

Tabela 2
Avaliação do software WHOQOL-Libras.

O software WHOQOL/Libras desenvolvido neste estudo é de propriedade da OMS e estará disponível no site http://www.medicina.ufg.br/qualidadedevida/ e no site http://www.ufrgs.br/psiq/whoqol.html do Grupo WHOQOL no Brasil. Será de livre acesso para a comunidade científica.

DISCUSSÃO

A busca por garantir o acesso universal aos serviços marcou os primeiros 20 anos do SUS, que procurou assegurar assistência em saúde, reconhecendo-a como um direito de cidadania e dever do Estado. A construção de conceitos e práxis voltados à qualidade do cuidado integral deu-se em ritmo menos acelerado.1 Porém, a experiência vivenciada por seus gestores mostrou a necessidade de compreender as determinantes sociais para priorizar as necessidades de saúde das comunidades.88. Morais Neto OL, Castro AM. Promoção da saúde na Atenção Básica. Rev Bras Saude Fam. 2008;9(17):6-12.

Esse fato fortaleceu o entendimento de que é necessário oferecer a equidade do acesso e ampliar o grau de autonomia de sujeitos e comunidades para reduzir a vulnerabilidade da Saúde Pública e oferecer um cuidado integral.88. Morais Neto OL, Castro AM. Promoção da saúde na Atenção Básica. Rev Bras Saude Fam. 2008;9(17):6-12.

Para mensurar a qualidade de vida dos surdos, é imprescindível considerar as características do povo surdo, incluindo aspectos culturais e linguísticos. Para os que se comunicam pela língua de sinais, a qualidade de vida só pode ser efetivamente avaliada por instrumentos traduzidos e adaptados a essa população.

A assistência à saúde das pessoas com deficiência era limitada à prevenção de doenças infectocontagiosas e sua reabilitação assumida por instituições beneficentes e filantrópicas.9 A criação do SUS em 1988 permitiu a elaboração de estratégias importantes de atenção primária e o desenvolvimento de práticas de interação social e de transformação do lugar da deficiência. É necessário investir na capacitação técnica e humana para promover a comunicação entre a rede de saúde e a pessoa surda.33. Chaveiro N, Barbosa MA, Porto CC. Literature revision about the attendance of deaf patient by health professionals. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):578-83. DOI:10.1590/S0080-62342008000300023
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, 1010. Quadros RM. Educação de surdos: A aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artmed; 1997.

A Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência foi instituída pela Portaria MS/GM nº 1.060, de 5 de junho de 2002.bb Ministério da Saúde. Portaria nº 1.060, de junho de 2002. Aprova a Política Nacional de Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência. Diario Oficial Uniao. 10 jun 2002. Essa política compreende a promoção da qualidade de vida como responsabilidade social compartilhada e a melhoria dos mecanismos de informação como estímulo às pesquisas em saúde e deficiência, qualificação dos registros e coletas de dados e a viabilização de produção e distribuição de material educativo e informativo na área da saúde em formatos acessíveis em Braille e Libras.88. Morais Neto OL, Castro AM. Promoção da saúde na Atenção Básica. Rev Bras Saude Fam. 2008;9(17):6-12.

Para promover um cuidado de qualidade a essa população, faz-se necessária, além da qualificação dos recursos humanos, a criação de instrumentos que sejam capazes de aferir a qualidade de vida relativa à saúde da pessoa surda.

A metodologia proposta pela OMS na construção e validação de instrumentos de avaliação de qualidade de vida é eficiente. Contudo, para garantir a acessibilidade e autonomia dos surdos ao se expressarem quanto à qualidade de vida, foram necessárias adaptações. Isso confirma a importância do teor da Lei nº 10.436/2002,aa Brasil. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diario Oficial Uniao. 23 dez 2005:28. que reconhece a Libras como meio oficial de comunicação e expressão da comunidade surda.

Para traduzir e adaptar instrumentos em língua de sinais é necessário que sejam observados os seguintes itens:

1. participação imprescindível de pessoas fluentes em Libras na equipe que coordenará o projeto de tradução de línguas orais para línguas sinalizadas;

2. a formação do grupo bilíngue que fará a primeira tradução de uma língua oral para uma língua sinalizada deve ser criteriosa, assegurando que os componentes, além de bilíngues, tenham a vivência cultural da comunidade surda, resguardando uma tradução que contemple os valores culturais e linguísticos dessa população;

3. antes de fazer a retrotradução, produzir uma versão reconciliadora, com base na tradução do grupo bilíngue;

4. durante a retrotradução, não se deve apenas fazer a transcrição para o idioma original, mas também realizar análise linguística dos níveis sintáticos e semânticos de cada item;

5. pessoas surdas que farão as sinalizações devem ter boa fluência na Libras, produzindo os sinais de modo claro, com uso adequado do espaço de sinalização e com boa expressão facial;

6. todo o registro do desenvolvimento de um instrumento em língua sinalizada deve ser filmado, para garantir notação fiel dos dados.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Campos RO. A promoção à saúde e a clínica: o dilema "promocionista." In: Castro AM, Malo M. SUS: ressignificando a promoção da saúde. São Paulo: Hucitec; 2006. p.62-74.
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  • Pesquisa subvencionada pelo Ministério da Saúde/SCTIE/DECIT, por intermédio do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) (Processo DECIT/SCTIE/MS, por intermédio do CNPq, e apoio da FAPEG, processo nº 200910267000540).
  • Artigo baseado na tese de doutorado de Neuma Chaveiro, intitulada: Qualidade de vida das pessoas surdas que se comunicam pela língua de sinais: construção da versão em LIBRAS dos instrumentos WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Saúde da Universidade Federal de Goiás (UFG), em 2011.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2012
  • Aceito
    12 Nov 2012
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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