Impacto do estresse na saúde de cortadores de cana

Roseana Mara Aredes Priuli Maria Silvia de Moraes Rafael Morais Chiaravalloti Sobre os autores

Resumos

OBJETIVO

Analisar os níveis de estresse e a prevalência de sintomas físicos e psíquicos em trabalhadores do corte de cana antes e depois da safra.

MÉTODOS

Foram estudados 114 cortadores de cana, 109 trabalhadores urbanos na pré-safra, 102 cortadores de cana e 81 trabalhadores urbanos na pós-safra, na cidade de Mendonça, SP, em 2009. A análise dos dados baseou-se na frequência e porcentagem dos avaliados com sintomas de estresse, tendo sido utilizado o Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp-ISSL. Os dados gerais coletados foram analisados segundo estatística descritiva. Utilizou-se o teste Exato de Fisher para comparar a variável categórica representada pelo estresse pré e pós-safra nos grupos cortadores de cana e trabalhadores urbanos. Foram considerados significativos os valores de p menor que 0,05.

RESULTADOS

O estresse aumentou nos cortadores de cana após a safra (34,2% na pré-safra e 46,1% na pós-safra); nos trabalhadores urbanos, o estresse diminuiu de 44,0% na pré-safra para 42,0% na pós-safra. Houve predominância da fase de resistência do estresse para ambos os grupos, com sinais mais evidentes da fase de quase-exaustão e de exaustão para os cortadores de cana. Após a safra, houve tendência a aumentar o número de cortadores de cana com sintomas de quase-exaustão (6,4%) e exaustão (10,6%), bem como aumento na proporção de cortadores de cana com sintomas físicos (de 20,5% para 25,5%) e psicológicos (de 64,1% para 70,2%). Para os dois grupos, os sintomas psicológicos foram elevados nas duas fases (70,2% e 64,7%, respectivamente).

CONCLUSÕES

O processo produtivo de trabalho do cortador de cana pode provocar estresse. Fatores individuais, como a percepção cognitiva da experiência, crenças de autoeficácia e expectativas do trabalhador quanto ao seu desempenho, podem influenciar o entendimento sobre as reações em seu corpo diante do trabalho.

Trabalhadores Rurais; Doenças dos Trabalhadores Agrícolas, epidemiologia; Estresse Fisiológico; Transtornos de Estresse por Calor; Esgotamento Profissional


INTRODUÇÃO

A saúde dos trabalhadores é condicionada por fatores sociais, econômicos, tecnológicos e organizacionais relacionados ao perfil de produção e consumo, além de por fatores de risco físicos, químicos, biológicos, mecânicos e ergonômicos presentes nos processos de trabalho.9. Dias EC. A organização da atenção à saúde do trabalhador. In: Ferreira Filho M, organizador. Saúde no trabalho. São Paulo: Rocca; 2000. p.1-23. No Brasil, as relações entre trabalho e a saúde-doença dos trabalhadores compõem um mosaico no qual coexistem diferentes estágios de incorporação tecnológica e de formas de organização, bem como gestão das atividades produtivas com repercussões sobre o viver, o adoecer e o morrer dos trabalhadores.

Os trabalhadores do corte de cana convivem com métodos modernos de trabalho, mas em condições semelhantes à escravidão, que podem interferir nas condições de sua saúde.2. Alves F. Por que morrem os cortadores de cana? Saude Soc. 2006;15(3):90-8. DOI:10.1590/S0104-12902006000300008
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. Arbex MA, Cançado JED, Pereira LAA, Braga ALF, Saldiva PHN. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J Bras Pneumol. 2004;30(2):158-75. DOI:10.1590/S1806-37132004000200015
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- 4. Arbex MA, Martins LC, Oliveira RC, Pereira LAA, Arbex FF, Cançado JED, et al. Air pollution form biomass burning and asthma hospital admissions in a sugar cane plantation area in Brazil. J Epidemiol Community Health. 2007;61(5):395-400. DOI:10.1136/jech.2005.044743 , 1818 . Ribeiro H, Ficarelli TRA. Queimadas nos canaviais e perspectivas dos cortadores de cana-de-açúcar em Macatuba, São Paulo. Saude Soc. 2010;19(1):48-63. DOI:10.1590/S0104-12902010000100005.
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A ocorrência de uma série de mortes súbitas em trabalhadores do corte de cana foi atribuída ao excesso de trabalho.2. Alves F. Por que morrem os cortadores de cana? Saude Soc. 2006;15(3):90-8. DOI:10.1590/S0104-12902006000300008
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, 1717 . Ribeiro H. Queimadas de cana-de-açúcar no Brasil: efeitos à saúde respiratória. Rev Saude Publica. 2008;42(2):370-6. DOI:10.1590/S0034-89102008005000009
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, 2222 . Silva MAM. Trabalho e trabalhadores na região do “Mar de Cana e do Rio de Álcool”. Agraria. 2005;(2):2-39. DOI:10.11606/agr.v0i2.103
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O processo de reestruturação produtiva do País a partir da década de 1990, decorrente da globalização econômica, repercutiu sobre a atividade rural, agravando situações de exploração e desigualdade historicamente construídas. Assim, a inovação tecnológica facilitou a intensificação do trabalho, que se expressou em doenças fisiológicas e psico-cognitivas nos trabalhadores. Essa transformação no mundo do trabalho provocou a exclusão social e a deterioração das condições de saúde.1. Alessi NP, Navarro VL. Saúde e trabalho rural: o caso dos trabalhadores da cultura canavieira na região de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 1997;13(Supl 2):S111-21. DOI:10.1590/S0102-311X1997000600010
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, 2. Alves F. Por que morrem os cortadores de cana? Saude Soc. 2006;15(3):90-8. DOI:10.1590/S0104-12902006000300008
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, 2020 . Rodrigues N, Myers HF, Mira CB, Flores T, Hernandez LG. Development of the Multidimensional Acculturative Stress Inventory for adults of Mexican origin. Psychol Assess. 2003;14(4):451-61. DOI:10.1037//1040-3590.14.4.451
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Há que se considerar ainda, como fator de risco à saúde, o processo de migração por que passam os trabalhadores do corte de cana. Estudos revelam que o fenômeno da migração pode desencadear doenças, uma vez que requer do organismo um processo de adaptação diante de mudanças do ambiente,1010 . Hovey JD, Magaña CG. Exploring the mental health of Mexican migrant farm workers in the Midwest: psychosocial predictors of psychological distress and suggestions for prevention and treatment. J Psychol. 2002;136(5):493-513. DOI:10.1080/00223980209605546
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, 1212 . Kim-Godwin YS, Bechtel GA. Stress among migrant and seasonal farmworkers in rural southeast North Carolina. J Rural Health. 2004;20(3):271-8. DOI:10.1111/j.1748-0361.2004.tb00039.x
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, 2020 . Rodrigues N, Myers HF, Mira CB, Flores T, Hernandez LG. Development of the Multidimensional Acculturative Stress Inventory for adults of Mexican origin. Psychol Assess. 2003;14(4):451-61. DOI:10.1037//1040-3590.14.4.451
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,23, aa Silva MAM. Migração e adoecimento: a cultura e o espaço de simbolização da doença [tese de doutorado]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas; 2004. exigindo do organismo o uso de suas reservas de energia adaptativa, o que em certas circunstâncias pode enfraquecer a resistência física e mental, acarretando inúmeras doenças psicofisiológicas que se originam no estresse excessivo.8. Borges H, Martins A. Migração e sofrimento psíquico do trabalhador da construção civil: uma leitura psicanalítica. Physis Rev Saude Coletiva. 2004;14(1):129-46. DOI:10.1590/S0103-73312004000100008
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, 1010 . Hovey JD, Magaña CG. Exploring the mental health of Mexican migrant farm workers in the Midwest: psychosocial predictors of psychological distress and suggestions for prevention and treatment. J Psychol. 2002;136(5):493-513. DOI:10.1080/00223980209605546
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, 1212 . Kim-Godwin YS, Bechtel GA. Stress among migrant and seasonal farmworkers in rural southeast North Carolina. J Rural Health. 2004;20(3):271-8. DOI:10.1111/j.1748-0361.2004.tb00039.x
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, 2020 . Rodrigues N, Myers HF, Mira CB, Flores T, Hernandez LG. Development of the Multidimensional Acculturative Stress Inventory for adults of Mexican origin. Psychol Assess. 2003;14(4):451-61. DOI:10.1037//1040-3590.14.4.451
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, 2323 . Silva MAM, Queiroz MS. Somatização em migrantes de baixa renda no Brasil. Psicol Soc. 2006;18(1):31-9. DOI:10.1590/S0102-71822006000100005
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, aa Silva MAM. Migração e adoecimento: a cultura e o espaço de simbolização da doença [tese de doutorado]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas; 2004.

O modelo quadrifásico concebe o estresse como uma reação do organismo com componentes psicológicos, físicos, mentais e hormonais, que ocorre quando surge a necessidade de uma adaptação grande a um evento ou situação de importância. Esse evento pode ter um sentido negativo ou positivo. O estresse positivo é o da fase inicial de alerta, quando o organismo produz adrenalina, a qual dá energia e faz a pessoa produzir mais e ser mais criativa. O estresse negativo é gerado pelo excesso, ocorrendo quando a pessoa ultrapassa seus limites e esgota a sua capacidade de adaptação. Nessa fase, a de resistência, o organismo busca resistir aos estressores e ao desgaste total das energias. Há a produção de cortisol e a produtividade cai muito. Quando a tensão excede o limite do gerenciável, é a fase de quase-exaustão; a resistência física e emocional começa a se quebrar; há muita ansiedade nessa etapa porque a pessoa experimenta momentos de desconforto intercalados com momentos de lucidez e de tomada de decisões. Por último, na quarta fase, a de exaustão, a mais negativa do estresse, a patológica, ocorre um desequilíbrio interior muito grande, podendo surgir doenças graves.1616 . Moraes MS, Priuli RMA. Migração e saúde: os trabalhadores do corte da cana de açúcar. Rev Inter Mob Hum. 2011;19(37):231-45.

Para além dessa concepção psicofísica do estresse, Rodrigues & Gasparini1919 . Rodrigues AL, Gasparini ACLF. Uma perspectiva psicossocial em psicossomática: via estresse e trabalho. In: Mello Filho J, organizador. Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992. p.111-134. afirmam que o estresse está relacionado com a interpretação que o sujeito faz da sua experiência de viver e cujo controle está intimamente relacionado com a capacitação individual do sujeito para a percepção de seu corpo e de suas reações emocionais. Assim, dependendo do nível de autopercepção que possui, a pessoa será capaz de identificar, com mais ou menos acuidade, suas reações físicas e emocionais provocadas por uma situação de estresse.

O objetivo deste estudo foi analisar os níveis de estresse e a prevalência de sintomas físicos e psíquicos em trabalhadores do corte de cana antes e depois da safra.

MÉTODOS

Estima-se que no ano de 2009 havia em torno de 400 indivíduos nordestinos oriundos dos estados da Paraíba e de Pernambuco trabalhando em usinas de açúcar e álcool na zona rural do município de Novo Horizonte, SP, dos quais 183 migravam anualmente para a cidade de Mendonça, SP, para trabalhar no corte da cana. No período pré-safra, participaram do estudo 114 trabalhadores rurais do corte de cana-de-açúcar da cidade de Mendonça, SP, e 102 trabalhadores urbanos residentes na mesma cidade. No período pós-safra, participaram 109 cortadores de cana e 81 trabalhadores urbanos.

Foram selecionados cortadores de cana que atendiam aos seguintes critérios de inclusão: homens de 20 a 40 anos, não fumantes e sem doenças cardiorrespiratórias referidas.

Os trabalhadores urbanos, moradores da cidade, foram selecionados de acordo com os mesmos critérios estabelecidos para os cortadores de cana, desde que não trabalhassem nessa lavoura.

Para avaliação do nível de estresse foi utilizado o Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp (ISSL),1414 . Lipp MEN. Manual do inventário de sintomas de estresse para adultos de LIPP. São Paulo; Casa do Psicólogo; 2005. aplicado tanto no grupo de cortadores de cana como no grupo de trabalhadores urbanos, nas duas fases (1 e 2).

O Lipp-ISSL tem o objetivo de responder a três questões fundamentais: se a pessoa está estressada; caso positivo, em qual fase (alerta, resistência, quase-exaustão ou exaustão); e se há prevalência de sintomas físicos ou psicológicos. Esse instrumento é composto por três sessões, sendo a primeira referente aos sintomas experimentados pelo indivíduo nas últimas 24 horas, a segunda, aos sintomas da última semana, e a terceira, aos sintomas do último mês.

O ISSL lista sintomas físicos (e.g., boca seca, tensão muscular, formigamento das extremidades) e psicológicos (e.g., dúvida quanto a si mesmo, aumento súbito de motivação, perda do senso de humor) divididos em três quadros. Baseia-se no modelo trifásico de Selye,2121 . Selye H. A syndrome produced by diverse nocuous agents. Nature. 1936;138(3479):32. DOI:10.1038/138032a0
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em que cada quadro corresponde a uma fase de estresse. Primeiro, o respondente indica quais os sintomas do primeiro quadro que experienciou nas últimas 24 horas. A seguir, assinala os sintomas na última semana dentre os apresentados no segundo quadro e, então, assinala quais experimentou no último mês dentre os sintomas físicos e psicológicos apresentados no terceiro quadro. O ISSL permite diagnosticar se a pessoa tem estresse, em que fase do processo se encontra (alerta, resistência, exaustão e quase-exaustão) e se há prevalência de sintomas físicos ou psicológicos. Já o Lipp-ISSL é um modelo quadrifásico do estresse que introduz um novo estágio identificado entre as fases de resistência e exaustão, nomeado de “fase de quase-exaustão”.1313 . Lipp MEN. O modelo quadrifásico do estresse. In:Lipp MEN, organizador. Mecanismos neuropsicofisiológicos do estresse: teoria e aplicações clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003. p.17-22.

A análise dos resultados foi efetuada segundo critérios de participação dos candidatos cortadores de cana e trabalhadores urbanos em qualquer um dos períodos, i.e., no período da pré-safra ou no da pós-safra, ou em ambos. Como não foi realizado pareamento dos participantes, nenhum indivíduo foi eliminado, não havendo perdas. Foram avaliados 114 cortadores de cana no período da pré-safra e 102 no período da pós-safra; e 109 trabalhadores urbanos no período da pré-safra e 81 no período da pós-safra.

Para a análise geral dos resultados, os dados coletados foram avaliados segundo estatística descritiva. Utilizou-se o teste Exato de Fisher (software GraphPad Prisma 4.0) para comparar a variável categórica representada pelo estresse pré e pós-safra nos grupos cortadores de cana e de trabalhadores urbanos (Tabela 1). Para tanto, foram considerados significativos os valores de p menor que 0,05.

Tabela 1
Distribuição dos trabalhadores urbanos e cortadores de cana nos períodos pré-safra e pós-safra quanto à presença do estresse.aa Silva MAM. Migração e adoecimento: a cultura e o espaço de simbolização da doença [tese de doutorado]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas; 2004.

Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo sob o protocolo 0282/09. Todos os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra que os sintomas de estresse foram manifestados tanto pela população dos cortadores de cana (período pré-safra = 34,2%; período pós-safra = 46,1%) quanto pelos trabalhadores urbanos (período pré-safra = 44,0%; período pós-safra = 41,1%). Entretanto, nos cortadores de cana, o estresse teve maior prevalência no período pós-safra, ao passo que, nos trabalhadores urbanos, se manteve constante, independente do período (p de Fisher de 0,25 e 1,00, respectivamente).

Os dados mostram (Tabela 2) que a população de cortadores de cana com estresse apresentou predominância da fase de resistência tanto antes (84,6%) como depois do período da safra (83,0%). Entretanto, após o período da safra, houve tendência de aumento de indivíduos com sintomas de quase-exaustão (6,4%) e exaustão (10,7%). Por outro lado, o grupo dos trabalhadores urbanos, embora também revelasse predominância da fase de resistência tanto no período pré (93,8%) como no período pós-safra (97,1%), apresentou menos exaustão (4,2% no período pré-safra contra 0,0% no pós-safra) (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição dos trabalhadores urbanos e cortadores de cana nos períodos pré- e pós-safra quanto às fases do estresse.

Comparando-se os períodos pré e pós-safra, houve tendência a aumento da proporção de cortadores de cana (Tabela 3) com sintomas físicos (de 20,5% para 25,5%) e psicológicos (de 64,1% para 70,2%), enquanto no grupo de trabalhadores urbanos (Tabela 3) a tendência foi de diminuição dos sintomas físicos (de 29,2% para 23,5%) e de aumento dos sintomas psicológicos no período pós-safra (de 62,5% para 64,7%). Em ambos os grupos, os sintomas psicológicos foram os mais frequentes nos dois períodos, sendo mais evidente nos cortadores de cana.

Tabela 3
Distribuição dos trabalhadores urbanos e cortadores de cana nos períodos pré-safra e pós-safra conforme a predominância dos sintomas.

Quanto aos sintomas de estresse específicos (Tabela 4), no período pós-safra, verificou-se nos cortadores de cana: aumento de problemas dermatológicos (de 10,1% para 25,3%), cansaço constante (de 20,3% para 30,3%), irritabilidade excessiva (nervosismo) (de 11,3% para 29,3%), problemas dermatológicos prolongados (de 11,3% para 23,6%) e cansaço excessivo (de 19,2% para 37,3%).

Tabela 4
Distribuição dos trabalhadores urbanos e cortadores de cana nos períodos pré-safra e pós-safra quanto à presença dos sintomas de estresse (p de Fisher).

No grupo dos trabalhadores urbanos, a frequência dos sintomas de estresse diminuiu no período pós-safra, exceto para o sintoma “mudança de apetite” (Tabela 4).

DISCUSSÃO

Este estudo revela a manifestação do estresse em quase metade dos trabalhadores do corte de cana avaliados no ano de 2009 no município de Mendonça, SP, após o período da safra. O estresse está presente tanto nos trabalhadores do corte de cana como em trabalhadores urbanos residentes, o que estudos anteriores confirmam.bb Fontes AP. O enfrentamento do estresse no trabalho na idade adulta [dissertação de mestrado]. Campinas (SP): Faculdade de Educação da Universidade de Campinas; 2006. , cc Guimarães LAM, Mac Fadden MAJ. Validação para o Brasil do SWS Survey: questionário sobre estresse, saúde mental e trabalho. In: Guimarães LAM, Grubits S, organizadores. Série Saúde mental e trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999. v.1, p.153-169. Esses resultados nos levam a refletir sobre o impacto da organização e dos processos de trabalho na saúde desses trabalhadores. Em se tratando de trabalhadores do corte de cana, os dados mostram que o grupo é mais vulnerável à manifestação do estresse após intenso e contínuo trabalho de corte da cana ao longo de um período de oito meses. Com relação à intensidade do estresse, ocorreu aumento após o período da safra (Tabela 2). Isso significa que em ambos os grupos, nos participantes que apresentaram sintomas de estresse, o organismo apresentou um desgaste generalizado com dificuldades de memória e vulnerabilidade a infecções por microorganismos, com produção de cortisol e queda na produtividade numa tentativa de restabelecer o equilíbrio interno.2020 . Rodrigues N, Myers HF, Mira CB, Flores T, Hernandez LG. Development of the Multidimensional Acculturative Stress Inventory for adults of Mexican origin. Psychol Assess. 2003;14(4):451-61. DOI:10.1037//1040-3590.14.4.451
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Porém, diferentemente para ambos os grupos, constata-se maior proporção de participantes cortadores de cana que apresentaram a fase de quase-exaustão e exaustão após o período da safra, indicando que o trabalho do corte pode provocar aumento de desgaste físico e mental, o que não ocorreu nos trabalhadores urbanos que exercem atividades que exigem habilidades cognitivas mais do que esforço físico. As consequências do estresse excessivo podem ser desde a gastrite (fator de risco para desenvolvimento de úlcera gástrica), problemas dermatológicos (herpes, dermatites, urticária, psoríase e vitiligo), hipertensão arterial, envelhecimento precoce, depressão, ansiedade e, em casos raros, até a morte súbita.2. Alves F. Por que morrem os cortadores de cana? Saude Soc. 2006;15(3):90-8. DOI:10.1590/S0104-12902006000300008
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, 4. Arbex MA, Martins LC, Oliveira RC, Pereira LAA, Arbex FF, Cançado JED, et al. Air pollution form biomass burning and asthma hospital admissions in a sugar cane plantation area in Brazil. J Epidemiol Community Health. 2007;61(5):395-400. DOI:10.1136/jech.2005.044743 , 1717 . Ribeiro H. Queimadas de cana-de-açúcar no Brasil: efeitos à saúde respiratória. Rev Saude Publica. 2008;42(2):370-6. DOI:10.1590/S0034-89102008005000009
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Nesse sentido, esses resultados apontam para a relação entre estresse e os casos de morte súbita em cortadores de cana.2. Alves F. Por que morrem os cortadores de cana? Saude Soc. 2006;15(3):90-8. DOI:10.1590/S0104-12902006000300008
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, 2020 . Rodrigues N, Myers HF, Mira CB, Flores T, Hernandez LG. Development of the Multidimensional Acculturative Stress Inventory for adults of Mexican origin. Psychol Assess. 2003;14(4):451-61. DOI:10.1037//1040-3590.14.4.451
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Embora a fase de resistência tenha aparecido na maioria dos trabalhadores com estresse antes e após a safra, verificou-se mais casos de trabalhadores com níveis intoleráveis de estresse (quase-exaustão e exaustão) após a safra. Esses resultados mostram potencial associação com o relato de óbitos não esclarecidos nesse grupo de trabalhadores.2. Alves F. Por que morrem os cortadores de cana? Saude Soc. 2006;15(3):90-8. DOI:10.1590/S0104-12902006000300008
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, 1818 . Ribeiro H, Ficarelli TRA. Queimadas nos canaviais e perspectivas dos cortadores de cana-de-açúcar em Macatuba, São Paulo. Saude Soc. 2010;19(1):48-63. DOI:10.1590/S0104-12902010000100005.
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Os resultados revelaram também a predominância dos sintomas psicológicos sobre os sintomas físicos nos grupos de trabalhadores do corte de cana e de trabalhadores urbanos (Tabela 3). Isso caracteriza reações emocionais como irritabilidade excessiva (nervosismo), pensamento fixo e dúvidas quanto a si próprio. Eles também evidenciam os prejuízos que o processo produtivo do setor causa na saúde dos trabalhadores do corte de cana, como sintomas de cansaço excessivo, irritabilidade excessiva (nervosismo), problemas dermatológicos prolongados, entre outros (Tabela 4). O monitoramento da saúde dos trabalhadores do corte de cana e a prevenção de agravos deverão levar em conta fatores biopsicológicos implicados nos processos produtivos de trabalho.

Este estudo provoca questionamento importante que vai além da questão da percepção de sintomas de estresse que os trabalhadores do corte de cana apresentam no seu dia a dia de trabalho intenso. Para pessoas que optam por esse tipo de vida, é importante direcionar nossa análise quanto à percepção que esse trabalhador possui para sua maior ou menor capacidade de lidar com os eventos que excedem seu limite, que são os estressores do seu cotidiano de trabalho. Isso remete ao que no campo da psicologia é chamado de crenças de autoeficácia.

Segundo Bandura,6. Bandura A. Self- efficacy: the exercise of control. New York: Worth Publishers; 1997. essas crenças têm diversos efeitos sobre o funcionamento humano: regulam aspirações, influenciam o curso de ação para escolher, o esforço a ser colocado em suas tentativas, os padrões de pensamento (autoajuda ou autoimpedimento), quanto estresse ou depressão as pessoas podem experimentar ao enfrentarem demandas acima de sua capacidade. Perceber-se capaz ou não de lidar com a situação estressante parece ser um aspecto crítico para o enfrentamento. As crenças de autoeficácia afetam o impacto dos estressores organizacionais sobre a saúde e a vida emocional dos empregados. O que será experienciado como estressor depende em parte do nível de autoeficácia. Trabalhadores com baixo senso de autoeficácia são estressados pela sobrecarga de trabalho e pelas responsabilidades inerentes a seu papel. Aqueles com alto senso de autoeficácia são frustrados e estressados pelas limitadas oportunidades de aproveitamento de seus talentos.

Este estudo evidencia não apenas a importância de interpretar as condições de trabalho de corte da cana como sendo ameaçadora ou não, mas da autopercepção da capacidade de controlá-la efetivamente, sobretudo em trabalhos de natureza periculosa, como o corte da cana. Essa autopercepção constitui o fator crítico para a prevenção do estresse. Sugerimos, em pesquisas futuras, que a avaliação cognitiva do estresse inclua questões que avaliem o grau de controle que o trabalhador julga ter sobre o evento, pois isso determinará a sua capacidade de lidar ou não com o estresse.

A crença de ser capaz de realizar o trabalho durante todo o período da safra, receber o salário, adquirir o poder de compra e garantir novo contrato na safra seguinte possibilita ao trabalhador acreditar que conseguirá gerenciar os estímulos perturbadores no trabalho e diminuir sua ansiedade e estresse.1515 . Medeiros Neto CF, Almeida GA, Ramos BC, Costa SKP, Silva HPA, Sousa MBC. Análise da percepção da fadiga, estresse e ansiedade em trabalhadores de uma indústria de calçados. J Bras Psiquiatr. 2012;61(3):133-8. DOI:10.1590/S0047-20852012000300003
https://doi.org/10.1590/S0047-2085201200...
Segundo Bandura,5. Bandura A. Perceived self-efficacy in cognitive development and functioning. Educ Psychol. 1993;28(2):117-48. , 7. Bandura A. Social cognitive theory: an agentic perspective. Ann Rev Psychol. 2001;52:1-26. DOI:10.1146/annurev.psych.52.1.1
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as crenças de autoeficácia têm valor adaptativo tanto para o bem-estar emocional como para a ação e a motivação. Com isso, a teoria social cognitiva vem atribuir valor crucial para a determinação do comportamento humano, deduzindo-se disso que o sucesso ou insucesso de um desempenho depende muito mais do que se acredita a respeito dele do que de seu efetivo resultado. Quanto aos trabalhadores cortadores de cana, a autopercepção da capacidade de suportar a carga de trabalho no período da safra é mais importante para conseguir atender a demanda do que o resultado final. Isso porque, segundo Bandura,6. Bandura A. Self- efficacy: the exercise of control. New York: Worth Publishers; 1997. as pessoas se automotivam e guiam seu desempenho através do pensamento antecipatório, i.e., da sua capacidade de prever cenários positivos para os esforços que serão despendidos. Conclui-se que o monitoramento da saúde do trabalhador do corte de cana perpassa por questões tanto de ordem subjetiva, referente à percepção cognitiva que ele tem sobre o seu estado de saúde, quanto por amplo espectro de fatores sociais, ambientais, econômicos, políticos e culturais. Iglesias & Araújo1111 . Iglesias A, Dalbello-Araújo M. As concepções de promoção da saúde e suas implicações. Cad Saude Coletiva. 2011;19(3):291-8. afirmam que a saúde não é mais tomada como um conceito exato, padronizado para todas as pessoas, mas se vincula a muitos outros fatores, como os mencionados. É o que Medeiros Neto et al1414 . Lipp MEN. Manual do inventário de sintomas de estresse para adultos de LIPP. São Paulo; Casa do Psicólogo; 2005. mostram em análise da percepção da fadiga, estresse e ansiedade em trabalhadores de uma indústria de calçados. Esses autores afirmam que a carga de trabalho físico, a ausência de controle e a grande demanda de trabalho a que os profissionais do setor de produção estão expostos não acarretaram escores superiores de ansiedade, fadiga e estresse comparados aos dos trabalhadores administrativos. Entretanto, no estudo foi observada forte correlação positiva entre o traço de ansiedade e percepção da fadiga e estresse laboral, sugerindo que o impacto dessas variáveis pode ser modulado por características individuais, sociais e culturais.

Não é apenas o trabalho pesado realizado pelo cortador de cana que pode causar estresse, como esperavam os pesquisadores deste estudo. Há uma teia de implicações no nível individual, subjetivo, envolvendo a percepção cognitiva da experiência, a história de vida do trabalhador com suas crenças de autoeficácia e suas expectativas a respeito do seu desempenho, os quais irão compor o tecido que irá permear seu entendimento sobre as reações provocadas em seu corpo diante dos desafios do trabalho.1616 . Moraes MS, Priuli RMA. Migração e saúde: os trabalhadores do corte da cana de açúcar. Rev Inter Mob Hum. 2011;19(37):231-45.

AGRADECIMENTOS

À Pastoral de Migrantes de Mendonça, SP, pela colaboração na seleção dos cortadores de cana.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2014

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2013
  • Aceito
    11 Nov 2013
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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