Desigualdade socioeconômica nos gastos catastróficos em saúde no Brasil

Alexandra Crispim Boing Andréa Dâmaso Bertoldi Aluísio Jardim Dornellas de Barros Leila Garcia Posenato Karen Glazer Peres Sobre os autores

Resumo

OBJETIVO

Analisar a evolução dos gastos catastróficos em saúde e as desigualdades nesses gastos, segundo características socioeconômicas das famílias brasileiras.

MÉTODOS

Foram analisados dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2002-2003 (48.470 domicílios) e 2008-2009 (55.970 domicílios). Gasto catastrófico em saúde foi definido como despesas em excesso, considerando diferentes métodos de cálculo: 10,0% e 20,0% do consumo total e 40,0% da capacidade de pagamento da família. Consideraram-se indicadores socioeconômicos o Indicador Econômico Nacional e a escolaridade. As medidas de desigualdade utilizadas foram a diferença relativa entre taxas, razão das taxas e índice de concentração.

RESULTADOS

Os gastos catastróficos variaram entre 0,7% e 21,0%, a depender do método de cálculo. As menores prevalências foram observadas em relação à capacidade de pagamento, enquanto as maiores, em relação ao total do consumo. Houve aumento na prevalência de gastos catastróficos em saúde de 25,0%, entre 2002-2003 e 2008-2009, quando utilizado o ponto de corte de 20,0% em relação ao total de consumo, e de 100% quando aplicado o ponto de corte de 40,0% da capacidade de pagamento. Houve expressiva e crescente desigualdade socioeconômica na prevalência de gasto catastrófico em saúde no Brasil entre 2002-2003 e 2008-2009, chegando a ser 5,2 vezes maior o gasto catastrófico entre os mais pobres e 4,2 vezes maior nos menos escolarizados.

CONCLUSÕES

Houve crescimento da prevalência do gasto catastrófico entre as famílias brasileiras, principalmente entre aquelas mais pobres e chefiadas por indivíduos menos escolarizados, contribuindo para o aumento das desigualdades socioeconômicas.

Renda; Gastos em Saúde; Desigualdades em Saúde; Iniquidade Social; Economia da Saúde


INTRODUÇÃO

O gasto catastrófico em saúde é definido como o dispêndio em saúde que excede um percentual pré-definido dos gastos totais ou da capacidade de pagamento do domicílio.1919  Wagstaff A, Van Doorslaer E. Catastrophe and impoverishment in paying for health care: with applications to Vietnam 1993-1998. Health Econ. 2003;12(11):921-34. DOI:10.1002/hec.776,2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 A literatura indica diferentes formas de cálculo e pontos de corte para as estimativas dos gastos catastróficos em saúde,1 Barros AJ, Bastos JL, Dâmaso AH. Catastrophic spending on health care in Brazil: private health insurance does not seem to be the solution. Cad Saude Publica. 2011;27Suppl 2:254-62. DOI:10.1590/S0102-311X2011001400012,6 Bos AM, Waters HR. The impact of the public health system and private insurance on catastrophic health expenditures. CEPAL Rev. 2008;95:125-39.,1313  O’Donnell O, van Doorslaer E, Wagstaff A, Lindelow M. Analyzing health equity using household survey data: a guide to techniques and their implementation. Washington (DC): World Bank; 2008.,1919  Wagstaff A, Van Doorslaer E. Catastrophe and impoverishment in paying for health care: with applications to Vietnam 1993-1998. Health Econ. 2003;12(11):921-34. DOI:10.1002/hec.776,2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 não existindo consenso sobre o mais adequado a ser empregado nos estudos sobre o tema.

Contudo, independentemente do método empregado para seu cálculo, o gasto catastrófico em saúde tem grandes repercussões na vida da população, desencorajando-a, em alguns momentos, a utilizar o serviço de saúde e/ou induzindo-a a não aderir às terapêuticas medicamentosas ou a adiar exames, consultas e procedimentos necessários.aa Organização Mundial de Saúde. Relatório Mundial da Saúde: o financiamento da cobertura Universal. Genebra; 2010. Adicionalmente, pode gerar corte no consumo de bens e de serviços essenciais à vida diária das pessoas, expondo as famílias à situação de risco social e muitas vezes à ruína econômica.1818  Van Doorslaer E, O’Donnell O, Rannan-Eliya RP, Somanathan A, Adhikari SR, Garg CC, et al. Effect of payments for health care on poverty estimates in 11 countries in Asia: an analysis of household survey data. Lancet. 2006;368(9544):1357-64. DOI:10.1016/S0140-6736(06)69560-3

O gasto familiar em saúde é particularmente preocupante no Brasil. Entre 1995 e 2010, observou-se acréscimo do gasto público em saúde, porém acompanhado de maior dispêndio das famílias e empresas com planos de saúde e também em gastos diretos.8 Couttolenc B, Dmytraczenko T. Brazil’s primary care strategy. Universal Health Coverage Studies Series (UNICO) vol. 2. Washington (DC): World Bank; 2013.,9 Garcia LP, Sant’ana AC, Magalhães LCG, Aurea AP. Gastos com saúde das famílias brasileiras residentes em regiões metropolitanas: composição e evolução no período 1995-2009. Cienc Saude Coletiva. 2013;18(1):115-28. DOI:10.1590/S1413-81232013000100013 Apesar de o País possuir um sistema de saúde público com pressupostos de universalidade, integralidade e equidade, é um dos poucos do mundo onde o gasto privado em saúde ultrapassa o gasto governamental.aa Organização Mundial de Saúde. Relatório Mundial da Saúde: o financiamento da cobertura Universal. Genebra; 2010.

Pesquisa multicêntrica conduzida por Xu et al2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 analisou dados de 59 países e classificou o Brasil como o segundo com maior percentual de população com gasto catastrófico (10,3%). No entanto, outros estudos que analisaram os gastos catastróficos em saúde, exclusivamente no Brasil, utilizaram diferentes formas de cálculo para obtenção do indicador e relataram valores mais baixos em relação ao reportado por Xu et al.2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 A partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1998, foi identificada prevalência de gasto catastrófico igual a 3,7%.6 Bos AM, Waters HR. The impact of the public health system and private insurance on catastrophic health expenditures. CEPAL Rev. 2008;95:125-39. Análises da Pesquisa Orçamentos Familiares (POF) de 2002-2003 também apresentaram diferentes pontos de corte e identificaram prevalências que variaram de 2,0% a 16,0% de famílias com gasto catastrófico em saúde no País.1 Barros AJ, Bastos JL, Dâmaso AH. Catastrophic spending on health care in Brazil: private health insurance does not seem to be the solution. Cad Saude Publica. 2011;27Suppl 2:254-62. DOI:10.1590/S0102-311X2011001400012,bb Diniz BP, Servo LM, Piola SF, Eirado M. Gasto das Famílias com saúde no Brasil: evolução e debate sobre gasto catastrófico. In: Silveira FG, Servo LM, Menezes, Piola SF, organizadores. Gasto e consumo das famílias brasileiras contemporâneas. Brasília (DF): Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2007.

O nível socioeconômico das famílias está intimamente ligado ao risco do gasto catastrófico em saúde e ao empobrecimento familiar. Aquelas pertencentes aos quintis de renda mais pobres apresentam maior risco de sofrer despesas catastróficas em saúde e seu empobrecimento em decorrência desses gastos é mais comum do que em famílias pertencentes ao quintil de renda mais rico.cc Diaz MDM, Sarti FM, Campino ACC, Lunes RF. Catastrophic health expenditure in Brazil: Regional differences, budget constraints and private health insurance. In: Knaul FM, Wong R, Arreola-Ornelas H, organizadores. Financing health in Latin America: household spending and impoverishment. vol. 1. Cambridge: Global Equity Initiative/Harvard University; 2012. Disparidades nas condições sociais, econômicas e ambientais em diferentes regiões podem desempenhar importante papel no risco de incorrer em despesas catastróficas em saúde.2 Barros AJ, Bertoldi AD. Out-of-pocket health expenditure in a population covered by the Family Health Program in Brazil. Int J Epidemiol. 2008;37(4):758-65. DOI:10.1093/ije/dyn063,1717  Su TT, Kouyaté B, Flessa S. Catastrophic household expenditure for health care in a low income society: a study from Nouna district, Burkina Faso. Bull World Health Organ. 2006;84(1):21-7. DOI:10.2471/BLT.05.023739

Analisar os dados sobre gastos catastróficos no País, sua evolução ao longo dos anos e distribuição de acordo com os estratos socioeconômicos da sociedade é de fundamental importância, tanto para o desenvolvimento e a avaliação de políticas de saúde como para a eficiente gestão de programas que busquem reduzir a magnitude e a desigualdade na ocorrência desse fenômeno.

Revisão de literatura realizada em 2012 identificou poucos estudos sobre gastos catastróficos em saúde conduzidos no Brasil,1 Barros AJ, Bastos JL, Dâmaso AH. Catastrophic spending on health care in Brazil: private health insurance does not seem to be the solution. Cad Saude Publica. 2011;27Suppl 2:254-62. DOI:10.1590/S0102-311X2011001400012,2 Barros AJ, Bertoldi AD. Out-of-pocket health expenditure in a population covered by the Family Health Program in Brazil. Int J Epidemiol. 2008;37(4):758-65. DOI:10.1093/ije/dyn063,6 Bos AM, Waters HR. The impact of the public health system and private insurance on catastrophic health expenditures. CEPAL Rev. 2008;95:125-39.,1010  Knaul FM, Wong R, Arreola-Ornelas H, Méndez O, Network on Health Financing and Social Protection in Latin America and the Caribbean (LANET). Household catastrophic health expenditures: a comparative analysis of twelve Latin American and Caribbean Countries. Salud Publica Mex. 2011;53Suppl 2:85-95. DOI:10.1590/S0036-36342011000800005,cc Diaz MDM, Sarti FM, Campino ACC, Lunes RF. Catastrophic health expenditure in Brazil: Regional differences, budget constraints and private health insurance. In: Knaul FM, Wong R, Arreola-Ornelas H, organizadores. Financing health in Latin America: household spending and impoverishment. vol. 1. Cambridge: Global Equity Initiative/Harvard University; 2012. entre os quais nenhum analisou a evolução das desigualdades na ocorrência do desfecho contemplando o período de 2002-2003 a 2008-2009, as duas POF mais recentes e as únicas realizadas a partir de amostra com representatividade nacional.

O objetivo deste estudo foi analisar a evolução dos gastos catastróficos em saúde e as desigualdades nesses gastos segundo características socioeconômicas das famílias brasileiras.

MÉTODOS

Foram analisados os dados oriundos das POF conduzidas no Brasil nos anos de 2002-2003 e 2008-2009. A POF é uma pesquisa de abrangência nacional, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística desde a década de 1970, cujo objetivo principal é obter informações sobre a estrutura orçamentária das famílias e da população brasileira.dd Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009. Antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro; 2010.,ee Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003: primeiros resultados: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro; 2004.

Nas pesquisas conduzidas nos dois citados biênios, adotou-se plano amostral por conglomerados, sendo entrevistados 48.470 domicílios na POF 2002-2003 e 55.970 domicílios na POF 2008-2009. Informações detalhadas sobre o método podem ser encontradas em publicações do IBGE.dd Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009. Antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro; 2010.,ee Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003: primeiros resultados: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro; 2004.

A coleta dos dados referentes às despesas levantou todas as despesas monetárias e não monetárias das famílias, em diferentes períodos recordatórios, variando entre sete dias, 30 dias, 90 dias e 12 meses. As despesas monetárias são aquelas efetuadas por meio de pagamento, à vista ou a prazo, em dinheiro, cheque ou cartão de crédito. As despesas não monetárias não envolvem pagamento monetário, correspondendo a aquisições por meio de doação, retirada do negócio, produção própria, pesca, caça ou coleta. Os dados de rendimento corresponderam ao período de 12 meses. Os gastos com saúde variaram de 30 a 90 dias. Todos os valores foram anualizados e deflacionados. Os indexadores utilizados para deflação, bem como as datas de referência, estão disponíveis em publicações do IBGE.dd Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009. Antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro; 2010.,ee Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003: primeiros resultados: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro; 2004.

O desfecho no presente estudo foi o gasto catastrófico em saúde. Por não haver consenso na literatura nacional e internacional sobre a melhor metodologia para cálculo desse gasto, optou-se por empregar três diferentes formas de cálculo amplamente difundidas na literatura: metodologia proposta por Xu et al2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 (2003), utilizada por Wagstaff & Van Doorslaer1919  Wagstaff A, Van Doorslaer E. Catastrophe and impoverishment in paying for health care: with applications to Vietnam 1993-1998. Health Econ. 2003;12(11):921-34. DOI:10.1002/hec.776 (2003) e variação da metodologia de Wagstaff & Van Doorslaer.7 Bredenkamp C, Mendola M, Gragnolati M. Catastrophic and impoverishing effects of health expenditure: new evidence from the Western Balkans. Health Policy Plan. 2011;26(4):349-56. DOI:10.1093/heapol/czq070,1212  Mataria A, Raad F, Abu-Zaineh M, Donaldson C. Catastrophic healthcare payments and impoverishment in the occupied Palestinian territory. Appl Health Econ Health Policy. 2010;8(6):393-405. DOI:10.2165/11318200-000000000-00000 Dessa maneira, torna-se possível compreensão mais ampla do fenômeno no País e melhor comparação dos resultados com os achados de outros países.

A metodologia utilizada por Xu et al2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 (2003) emprega o conceito de capacidade de pagamento, definido como a subtração dos gastos para subsistência (se) em cada domicílio de seus gastos totais. Quando os valores oriundos dessa operação foram negativos, substituiu-se na fórmula o gasto em subsistência pelo gasto em alimentação. O gasto de subsistência, por sua vez, foi igual à média de gastos com alimentação dos domicílios situados entre os percentis 45 e 55 nos gastos com alimentos (lp) multiplicado pelo número de residentes nos domicílios (tamanho) elevado a beta (β), i.e., se = lp * tamanhoβ.2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 O valor de β foi obtido em cada um dos biênios da POF por meio de regressão de efeitos fixos, onde o desfecho foi o logaritmo do gasto domiciliar em alimentos em função do logaritmo do tamanho dos domicílios. Foi considerado gasto catastrófico em saúde quando o quociente da divisão dos gastos totais em saúde pela capacidade de pagamento foi igual ou superior a 20,0% e 40,0%.

Na metodologia utilizada por Wagstaff & Van Doorslaer1919  Wagstaff A, Van Doorslaer E. Catastrophe and impoverishment in paying for health care: with applications to Vietnam 1993-1998. Health Econ. 2003;12(11):921-34. DOI:10.1002/hec.776 (2003) o gasto catastrófico em saúde foi calculado dividindo-se os gastos globais em saúde pelos gastos totais do domicílio, descontando-se no denominador os valores gastos com alimentação (x 100). Os pontos de corte utilizados para definir gasto catastrófico em saúde foram ≥ 10,0% e ≥ 20,0%.

Por fim, utilizando-se variação da metodologia de Wagstaff & Van Doorslaer,1919  Wagstaff A, Van Doorslaer E. Catastrophe and impoverishment in paying for health care: with applications to Vietnam 1993-1998. Health Econ. 2003;12(11):921-34. DOI:10.1002/hec.776 calculou-se o gasto catastrófico em saúde que considera o total de gastos em saúde no numerador e o total de despesas do domicílio no denominador (x 100), com os pontos de corte de ≥ 10,0% e ≥ 20,0% para definir o desfecho.7 Bredenkamp C, Mendola M, Gragnolati M. Catastrophic and impoverishing effects of health expenditure: new evidence from the Western Balkans. Health Policy Plan. 2011;26(4):349-56. DOI:10.1093/heapol/czq070,1212  Mataria A, Raad F, Abu-Zaineh M, Donaldson C. Catastrophic healthcare payments and impoverishment in the occupied Palestinian territory. Appl Health Econ Health Policy. 2010;8(6):393-405. DOI:10.2165/11318200-000000000-00000

As variáveis socioeconômicas utilizadas foram a escolaridade do chefe da família e o Indicador Econômico Nacional (IEN).3 Barros AJD, Victora CG. Indicador econômico para o Brasil baseado no censo demográfico de 2000. Rev Saude Publica. 2005;39(4):523-9. DOI:10.1590/S0034-89102005000400002 A escolaridade foi obtida em anos de estudo completos e categorizada em zero a quatro, cinco a oito, nove a 11 e 12 anos ou mais. O IEN foi calculado conforme proposta de Barros & Victora3 Barros AJD, Victora CG. Indicador econômico para o Brasil baseado no censo demográfico de 2000. Rev Saude Publica. 2005;39(4):523-9. DOI:10.1590/S0034-89102005000400002 (2005), considerando na análise 12 bens disponíveis nos domicílios e a escolaridade do chefe da família. Posteriormente, a variável foi categorizada em quintis, sendo Q1 o quintil com pior situação socioeconômica e Q5 o com a melhor situação socioeconômica.

As prevalências dos desfechos segundo cada metodologia empregada foram descritas para todas as categorias das variáveis socioeconômicas do estudo. As estimativas foram geradas para os dois biênios da POF, para fins de comparação. Foi utilizado o teste de tendência linear para testar a diferença entre as prevalências do gasto catastrófico em saúde entre categorias das variáveis socioeconômicas.

Para a análise das desigualdades socioeconômicas nas prevalências do gasto catastrófico, foram utilizadas as seguintes medidas de desigualdade: (i) diferença relativa entre as taxas, calculada como a diferença das proporções dos desfechos entre os grupos socioeconômicos extremos; (ii) razão das taxas, divisão entre as proporções dos desfechos do pior nível socioeconômico pela proporção do melhor nível; e (iii) índice de concentração, calculado para o IEN por meio da frequência relativa e acumulada do gasto catastrófico na população aplicando a fórmula de Brown (G = 1- ∑k-1 1- (Yi+1+ Yi) (Xi+1- Xi)), onde Y é a frequência acumulada da população e X é a frequência acumulada na população do gasto catastrófico em saúde, ordenada pela variável socioeconômica.1515  Schneider MC, Castillo-Salgado C, Bacallao J, Loyola E, Mujica OJ, Vidaurre M, et al. Métodos de mensuração das desigualdades em saúde. Rev Panan Salud Publica. 2002;12(6):1-17. DOI:10.1590/S1020-49892002001200006 Também foi realizada a representação gráfica da distribuição dos desfechos segundo suas curvas de concentração. Elas representam a distribuição cumulativa de cada desfecho de acordo com a proporção cumulativa da população.2020  Wagstaff A, Bilger M, Sajaia Z, Lokshin M. Health equity and financial protection. Washington (DC): World Bank; 2011.

Os dados foram analisados com auxílio do programa estatístico Stata 9, considerando o efeito de delineamento do estudo e os pesos amostrais.

RESULTADOS

Em 2002-2003, 78,0% dos domicílios pesquisados concentravam-se na área urbana, 26,1% tinham mulheres como chefe da família, 40,2% possuíam crianças, 24,0% idosos e 60,2% dos chefes das famílias tinham mais de 40 anos de idade. Em 2008-2009 observou-se acréscimo nos domicílios chefiados por mulheres (30,5%) e por pessoas acima de 40 anos de idade (64,1%). Ao mesmo tempo, houve aumento da proporção de domicílios com a presença de idosos (27,1%) e pequena variação daqueles com crianças (40,7%) e localizados em área urbana (76,7%).

Em relação aos gastos catastróficos em saúde, observou-se aumento entre 2002-2003 e 2008-2009. A prevalência do gasto catastrófico em saúde, segundo os diferentes métodos de cálculo, variou de 0,7% a 21,1% em 2002-2003 e de 1,4% a 25,0% em 2008-2009. As menores prevalências foram observadas em relação à capacidade de pagamento, enquanto as maiores, em relação à despesa total menos alimentação. Quando empregado o cálculo do gasto catastrófico em saúde em relação ao total de consumo, o aumento foi de 25,0% no ponto de corte de 10,0%, atingindo 62,0% quando considerado o ponto de corte de 20,0%. Quando calculado o gasto catastrófico em saúde subtraindo-se a alimentação do total de gastos, essa variação foi de 18,5% e 37,0% nos pontos de corte de 10,0% e 20,0%, respectivamente. Por fim, quando empregada a capacidade de pagamento no cálculo, o aumento na proporção de domicílios que incorreram em gasto catastrófico em saúde foi igual a 42,0%, utilizando o ponto de corte de 20,0%, e a 100%, quando o ponto de corte de 40,0% foi empregado (Tabela 1).

Tabela 1
Proporção de domicílios que gastaram 10,0% e 20,0% ou mais do total de consumo com gastos catastróficos em saúde e 40,0% ou mais em relação à capacidade de pagamento. Brasil, 2002-2003 e 2008-2009.

Ao analisar o gasto catastrófico em saúde segundo as condições socioeconômicas, verificou-se que o gasto foi maior entre os mais pobres, exceto no ponto de corte de 10,0% nos dois desfechos em que foi empregado, e entre os menos escolarizados, exceto no ponto de corte de 10,0% para o ano de 2002-2003 (Tabelas 2 e 3). A análise do IEN indicou claro gradiente socioeconômico, variando de menor prevalência no quintil mais favorecido (Q5) a maior prevalência nos mais pobres (Q1) (Tabela 2). Além disso, a variação positiva nos desfechos entre os biênios investigados foi maior nos estratos mais pobres.

Tabela 2
Proporção de domicílios com gastos catastróficos em saúde de 10,0% e 20,0% ou mais do total de consumo em saúde e 40,0% ou mais em relação à capacidade de pagamento, segundo índice socioeconômico. Brasil, 2002-2003 e 2008-2009.
Tabela 3
Proporção de domicílios com gastos catastróficos em saúde de 10,0% e 20,0% ou mais do total de consumo em saúde e 40,0% ou mais em relação à capacidade de pagamento, segundo escolaridade. Brasil, 2002-2003 e 2008-2009.

Fenômeno semelhante foi observado quando se empregou a escolaridade como indicador socioeconômico. Aproximadamente um em cada três domicílios no qual o chefe da família tinha até quatro anos de estudo incorreu em gasto catastrófico em saúde em 2008-2009, quando se empregou o ponto de corte de 10,0% no cálculo em que o denominador foi o total de gastos menos alimentação. Esse valor foi 35,0% maior que o observado no biênio anterior no mesmo grupo socioeconômico e 43,0% maior que o identificado no mesmo período entre os mais escolarizados (Tabela 3).

A Tabela 4 apresenta a diferença absoluta e relativa entre os grupos extremos de escolaridade e IEN, em 2002-2003 e 2008-2009. Em 2008-2009, a prevalência de gasto catastrófico em saúde considerando-se a capacidade de pagamento foi cinco vezes superior no primeiro quintil do IEN e quatro vezes maior no grupo de menor escolaridade, em comparação com os estratos mais ricos e escolarizados, respectivamente. Por outro lado, quando se empregou o ponto de corte de 20,0% no desfecho que incorporou no denominador o total de consumo menos os gastos em alimentação, as diferenças chegaram a 118,0% e 114,0% em 2002-2003 e 2008-2009, respectivamente, sempre com pior condição para as famílias com situação socioeconômica mais desfavorável.

Tabela 4
Medidas de desigualdade no gasto catastrófico em saúde, segundo escolaridade e índice socioeconômico. Brasil, 2002-2003 e 2008-2009.

Isso também foi verificado nas curvas de concentração dos diferentes desfechos (Figura). Em todos os casos, a curva de distribuição de 2008-2009 apresentou maior afastamento da linha de igualdade perfeita. O maior índice de concentração foi observado em 2008-2009 ao analisar o IEN e o gasto catastrófico em saúde em relação à capacidade de pagamento ≥ 40,0% (Figura A). Por outro lado, a menor concentração foi identificada ao se empregar como desfecho o gasto catastrófico em saúde em relação ao total de consumo ≥ 20,0% (Figura C).

Figura 1
Curva de concentração do gasto catastrófico em saúde com o índice econômico nacional: Brasil, 2002-2003 e 2008-2009.

DISCUSSÃO

O presente estudo revelou aumento na prevalência do gasto catastrófico em saúde das famílias brasileiras entre 2002-2003 e 2008-2009. Além disso, foi identificada expressiva e crescente desigualdade socioeconômica nessa prevalência, que foi mais elevada entre os domicílios mais pobres e chefiados por indivíduos menos escolarizados.

As prevalências do gasto catastrófico em saúde encontradas no presente estudo foram semelhantes às verificadas no País por Barros et al,1 Barros AJ, Bastos JL, Dâmaso AH. Catastrophic spending on health care in Brazil: private health insurance does not seem to be the solution. Cad Saude Publica. 2011;27Suppl 2:254-62. DOI:10.1590/S0102-311X2011001400012 Diniz et albb Diniz BP, Servo LM, Piola SF, Eirado M. Gasto das Famílias com saúde no Brasil: evolução e debate sobre gasto catastrófico. In: Silveira FG, Servo LM, Menezes, Piola SF, organizadores. Gasto e consumo das famílias brasileiras contemporâneas. Brasília (DF): Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2007. e Knaul et al1010  Knaul FM, Wong R, Arreola-Ornelas H, Méndez O, Network on Health Financing and Social Protection in Latin America and the Caribbean (LANET). Household catastrophic health expenditures: a comparative analysis of twelve Latin American and Caribbean Countries. Salud Publica Mex. 2011;53Suppl 2:85-95. DOI:10.1590/S0036-36342011000800005 e diferiram dos estudos de Xu et al2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 e Bos & Waters.6 Bos AM, Waters HR. The impact of the public health system and private insurance on catastrophic health expenditures. CEPAL Rev. 2008;95:125-39. As diferenças ocorreram, sobretudo, pelo uso de diferentes bases de dados nas estimativas nacionais de gastos. Xu et al,2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 que reportaram gasto catastrófico em saúde igual a 10,3%, empregaram a Pesquisa sobre Padrões de Vida, realizada em 1996-1997, incluindo 4.800 domicílios, sem representatividade nacional. Por outro lado, Bos & Waters6 Bos AM, Waters HR. The impact of the public health system and private insurance on catastrophic health expenditures. CEPAL Rev. 2008;95:125-39. utilizaram dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), sem considerar os gastos não monetários e relataram prevalência de gasto catastrófico em saúde entre 3,7% e 20,0%, a depender da definição e ponto de corte do desfecho. A POF, além de coletar despesas não monetárias, emprega um nível de detalhamento na captação das despesas e rendimentos sem correlato em qualquer outra pesquisa nacional, sendo a base mais indicada para estudos sobre despesas e rendimentos das famílias brasileiras.dd Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009. Antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro; 2010.,ee Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003: primeiros resultados: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro; 2004.

Como esperado, as diferentes formas de mensuração de gasto catastrófico em saúde implicaram diretamente nas estimativas do desfecho. Diniz et albb Diniz BP, Servo LM, Piola SF, Eirado M. Gasto das Famílias com saúde no Brasil: evolução e debate sobre gasto catastrófico. In: Silveira FG, Servo LM, Menezes, Piola SF, organizadores. Gasto e consumo das famílias brasileiras contemporâneas. Brasília (DF): Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2007. também relataram expressiva variação na prevalência de gasto catastrófico a depender da fórmula e ponto de corte empregados. As menores estimativas de gasto catastrófico em saúde foram observadas, logicamente, quanto maiores os pontos de corte. Além disso, fórmulas que utilizaram os gastos totais em saúde no numerador e/ou capacidade de pagamento no denominador foram as que apresentaram os maiores percentuais de gastos catastróficos em saúde. Cada forma de cálculo expressa diferentes formas de se observar o fenômeno, não havendo consenso sobre a mais adequada ou que estima o desfecho com maior precisão. Entretanto, é fundamental a clareza da definição do conceito, da forma do cálculo e do instrumento de coleta dos dados para viabilizar o uso dessa medida por estudos de monitoramento dos gastos em saúde, subsidiar e avaliar políticas públicas.

No período analisado, os gastos médios mensais em saúde aumentaram cerca de 5,0% no País, sendo os medicamentos e os planos de saúde os principais itens, correspondendo juntos a 76,0% dos gastos privados em saúde em 2008-2009.9 Garcia LP, Sant’ana AC, Magalhães LCG, Aurea AP. Gastos com saúde das famílias brasileiras residentes em regiões metropolitanas: composição e evolução no período 1995-2009. Cienc Saude Coletiva. 2013;18(1):115-28. DOI:10.1590/S1413-81232013000100013 Além disso, ambos apresentaram aumento de gastos nas famílias brasileiras entre os biênios analisados (de 9,0% no caso dos medicamentos e de 25,0% dos planos de saúde),9 Garcia LP, Sant’ana AC, Magalhães LCG, Aurea AP. Gastos com saúde das famílias brasileiras residentes em regiões metropolitanas: composição e evolução no período 1995-2009. Cienc Saude Coletiva. 2013;18(1):115-28. DOI:10.1590/S1413-81232013000100013 constituindo itens que comprometem substancialmente a renda.5 Boing AC, Bertoldi AD, Peres KG. Desigualdades socioeconômicas nos gastos e comprometimento da renda com medicamentos no Sul do Brasil. Rev Saude Publica. 2011;45(5):897-905. DOI:10.1590/S0034-89102011005000054,1616  Silveira FG, Osório RG, Piola SF. Os gastos das famílias com saúde. Cienc Saude Coletiva. 2002;7(4):719-31. DOI:10.1590/S1413-81232002000400009

Em relação aos medicamentos, a variação pode ser explicada pelo envelhecimento da população, aumento da prevalência de doenças crônicas, dificuldades no acesso aos produtos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo aumento do seu uso em razão da incorporação de novos produtos terapêuticos. Análise realizada com dados da PNAD de 2008 verificou que apenas 45,3% dos usuários do SUS, que receberam prescrição medicamentosa no sistema, obtiveram todos os medicamentos gratuitamente. Entre os que não os receberam pelo SUS, 78,1% tiveram de adquiri-los no setor privado.4 Boing AC, Bertoldi AD, Boing AF, Bastos JL, Peres KG. Acesso a medicamentos no setor público: análise de usuários do Sistema Único de Saúde no Brasil. Cad Saude Publica. 2013;29(4):691-701. DOI:10.1590/S0102-311X2013000800007 Com o objetivo de ampliar o acesso da população aos medicamentos básicos e essenciais e, assim, diminuir o impacto desses itens de despesa sobre o orçamento familiar, foi criado em 2004 o Programa Farmácia Popular.ff Brasil. Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Cria o Programa Bolsa Família e dá outras providências. Diario Oficial. 12 Jan. 2004:1. Esse programa foi estruturado em parceria com estados e municípios e em 2006 foi ampliado por meio de convênios com estabelecimentos privados.

Apesar de o programa ter como público-alvo a parcela da população que utiliza o setor privado com dificuldades financeiras para a aquisição dos medicamentos, ele se tornou uma opção tanto para usuários da rede privada como para os usuários da rede pública que não obtêm seus medicamentos de forma gratuita.1414  Santos-Pinto CB, Costa NR, Osorio-de-Castro CGS. Quem acessa o Programa Farmácia Popular do Brasil? Aspectos do fornecimento público de medicamentos. Cienc Saude Coletiva. 2011;16(6):2963-73. DOI:10.1590/S1413-81232011000600034 Em alguns estados e regiões do País cerca de 70,0% dos atendimentos no Programa Farmácia Popular são provenientes da população da rede pública de saúde, a qual deveria ter obtido o medicamento gratuitamente na unidade de saúde na qual foi atendida.1414  Santos-Pinto CB, Costa NR, Osorio-de-Castro CGS. Quem acessa o Programa Farmácia Popular do Brasil? Aspectos do fornecimento público de medicamentos. Cienc Saude Coletiva. 2011;16(6):2963-73. DOI:10.1590/S1413-81232011000600034

Dessa forma, em que pese ter o objetivo de mitigar os gastos privados com medicamentos, a política pode estar direcionando usuários do serviço público ao privado, com potencial impacto na prevalência de gasto catastrófico em saúde, sendo necessários estudos adicionais para avaliar essa possibilidade. De qualquer maneira, é preciso melhorar a capacidade de financiamento público do setor, fazer uso eficiente dos recursos e estruturar um adequado sistema de suprimento dos insumos.2323  World Health Organization. WHO Global Health Expenditure Atlas. Geneva; 2012.

Quanto aos planos de saúde, também se observou, entre 2000 e 2012, substancial aumento de população com cobertura, variando de 18,1% para 25,1%.gg Agência Nacional de Saúde. FOCO: Saúde Suplementar. Brasília (DF); 2012 [citado 2013 jan 15]. Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/Foco/20130124_foco_dezembro_web_2012.pdf No Brasil, o mercado privado de planos de saúde tem se configurado como um sistema paralelo e concorrente ao SUS, enquanto deveria ser apenas complementar. Apesar de a mensalidade dos planos ser uma despesa prevista no orçamento domiciliar, o sistema de copagamento é cada vez mais comum no Brasil e, em alguns casos, pode levar a custos superiores à capacidade de pagamento das pessoas. Estudo conduzido com dados da POF 2002-2003 indicou que a cobertura por plano de saúde não é suficiente para proteger as famílias contra o gasto catastrófico em saúde.1 Barros AJ, Bastos JL, Dâmaso AH. Catastrophic spending on health care in Brazil: private health insurance does not seem to be the solution. Cad Saude Publica. 2011;27Suppl 2:254-62. DOI:10.1590/S0102-311X2011001400012

Por fim, observamos a crescente prevalência de doenças crônicas e a incorporação de novas tecnologias terapêuticas de elevado custo. Doenças que exigem longo tempo de tratamento e demandam recursos de alta densidade tecnológica têm se tornado predominantes, comprometendo decisivamente os orçamentos familiares. Em que pese o SUS prever atendimento universal e integral, é notório que o Brasil possui um subfinanciamento público do setor saúde quando comparado a outros países,2323  World Health Organization. WHO Global Health Expenditure Atlas. Geneva; 2012. comprometendo a capacidade do sistema público de cumprir, com qualidade, os seus princípios. Consequentemente, parcela da população volta ao setor privado de cuidado em saúde em busca de resposta às suas demandas, elevando os gastos privados, o que, proporcionalmente em relação ao seu rendimento, pode penalizar os mais pobres. Enquanto a França investiu em saúde 11,9% do seu PIB em 2009, o Reino Unido aplicou 9,8%, a Nova Zelândia 10,0% e o Canadá 11,4%, o Brasil investiu apenas 8,8%,2323  World Health Organization. WHO Global Health Expenditure Atlas. Geneva; 2012. sendo menos da metade oriundo do setor público. No Brasil a proporção do gasto público em relação ao gasto total em saúde (público mais privado) foi apenas 43,6%, no Canadá, 70,6%, 77,9% na França, 83,0% na Nova Zelândia e 84,1% na Inglaterra.2323  World Health Organization. WHO Global Health Expenditure Atlas. Geneva; 2012. Conforme estudo conduzido por Xu et al,2222  Xu K, Evans DB, Carrin G, Aguilar-Rivera AM, Musgrove P, Evans T. Protecting households from catastrophic health spending. Health Aff (Millwood). 2007;26(4):972-83. DOI:10.1377/hlthaff.26.4.972 a incidência da catástrofe financeira está negativamente correlacionada na medida em que os países financiam seus sistemas de saúde, sendo o maior financiamento público uma importante medida de combate ao gasto catastrófico em saúde.

Além do aumento do gasto catastrófico em saúde, identificamos desigualdade na sua distribuição. Apesar de o quintil mais rico gastar cerca de dez vezes mais em saúde que os mais pobres,9 Garcia LP, Sant’ana AC, Magalhães LCG, Aurea AP. Gastos com saúde das famílias brasileiras residentes em regiões metropolitanas: composição e evolução no período 1995-2009. Cienc Saude Coletiva. 2013;18(1):115-28. DOI:10.1590/S1413-81232013000100013 a prevalência do gasto catastrófico em saúde foi superior entre os quintis mais pobres. Esse resultado é concordante com a literatura, conforme observado na China,1111  Li Y, Wu Q, Xu L, Legge D, Hao Y, Gao L, et al. Factors affecting catastrophic health expenditure and impoverishment from medical expenses in China: policy implications of universal health insurance. Bull World Health Organ. 2012;90(9):664-71. DOI:10.2471/BLT.12.102178 Argentina,2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 México2121  Xu K, Evans DB, Kawabata K, Zeramdini R, Klavus J, Murray CJL. Household catastrophic health expenditure: a multicountry analysis. Lancet. 2003;362(9378):111-7. DOI:10.1016/S0140-6736(03)13861-5 e Burkina Faso.1717  Su TT, Kouyaté B, Flessa S. Catastrophic household expenditure for health care in a low income society: a study from Nouna district, Burkina Faso. Bull World Health Organ. 2006;84(1):21-7. DOI:10.2471/BLT.05.023739 Os gastos catastróficos em saúde foram inversamente associados com o nível socioeconômico nesses países, com aumento das despesas entre os mais ricos, sendo o ônus econômico suportado por esse grupo proporcionalmente menor.1111  Li Y, Wu Q, Xu L, Legge D, Hao Y, Gao L, et al. Factors affecting catastrophic health expenditure and impoverishment from medical expenses in China: policy implications of universal health insurance. Bull World Health Organ. 2012;90(9):664-71. DOI:10.2471/BLT.12.102178 Já entre os mais pobres, a necessidade do uso e consumo de bens e serviços de saúde associada a um sistema de saúde insuficiente para suas necessidades faz com que incorram em mais gastos e acessem serviços privados.

Tal perspectiva de alto gasto privado tem grande impacto na vida da população, fazendo com que muitos não utilizem os serviços de saúde mesmo quando necessário e até mesmo cortem despesas importantes para sua subsistência a fim de conseguir acessar o serviço ou aderir a tratamentos.1818  Van Doorslaer E, O’Donnell O, Rannan-Eliya RP, Somanathan A, Adhikari SR, Garg CC, et al. Effect of payments for health care on poverty estimates in 11 countries in Asia: an analysis of household survey data. Lancet. 2006;368(9544):1357-64. DOI:10.1016/S0140-6736(06)69560-3,aa Organização Mundial de Saúde. Relatório Mundial da Saúde: o financiamento da cobertura Universal. Genebra; 2010.

Como limitação do presente estudo está o restrito período recordatório de coleta dos gastos em saúde. Ao considerar apenas os últimos 30 dias para medicamentos e 90 dias para os demais gastos com saúde e o valor anual observado, pode-se subestimar ou superestimar as estimativas de gastos. Ainda, as despesas e os rendimentos foram autorreferidos e podem ter sido relatados valores diferentes dos verdadeiros.

Apesar da relevância do SUS como política social no Brasil e da melhoria de sua gestão e da qualidade dos serviços prestados desde 1988, ele ainda não é suficiente para proteger as famílias do gasto catastrófico em saúde. Para inversão da estrutura regressiva dos gastos de saúde das famílias com piores condições socioeconômicas, deve-se garantir acesso aos serviços e bens de saúde, sobretudo medicamentos, que representam grande peso de gasto nesses grupos,bb Diniz BP, Servo LM, Piola SF, Eirado M. Gasto das Famílias com saúde no Brasil: evolução e debate sobre gasto catastrófico. In: Silveira FG, Servo LM, Menezes, Piola SF, organizadores. Gasto e consumo das famílias brasileiras contemporâneas. Brasília (DF): Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2007. por meio do financiamento e gestão eficiente dos serviços farmacêuticos. O usuário do SUS deve ter garantido dentro do próprio sistema o acesso aos profissionais, tecnologias e insumos necessários à promoção e recuperação da sua saúde, além da prevenção de doenças. Todas as ações que promovam maior acesso e garantam a integralidade e a resolutividade dentro do SUS têm o forte potencial de minimizar os gastos catastróficos em saúde, pois limitam a necessidade de as pessoas recorrerem ao setor privado. O acesso ao SUS vem sendo relatado como fator de proteção ao gasto catastrófico, o que não é observado em relação aos planos de saúde.1 Barros AJ, Bastos JL, Dâmaso AH. Catastrophic spending on health care in Brazil: private health insurance does not seem to be the solution. Cad Saude Publica. 2011;27Suppl 2:254-62. DOI:10.1590/S0102-311X2011001400012,6 Bos AM, Waters HR. The impact of the public health system and private insurance on catastrophic health expenditures. CEPAL Rev. 2008;95:125-39.

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  • Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2013
  • Aceito
    26 Fev 2014
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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