Federalismo e política de saúde: comissões intergovernamentais no Brasil

Cristiani Vieira Machado Luciana Dias de Lima Ana Luiza d´Ávila Viana Roberta Gondim de Oliveira Fabíola Lana Iozzi Mariana Vercesi de Albuquerque João Henrique Gurtler Scatena Guilherme Arantes Mello Adelyne Maria Mendes Pereira Ana Paula Santana Coelho Sobre os autores

Resumo

OBJETIVO

: Analisar a dinâmica de funcionamento das Comissões Intergestores Bipartites em saúde, nos estados do Brasil.

MÉTODOS

: A pesquisa compreendeu visitas a 24 estados, observação direta, análise documental e realização de entrevistas semiestruturadas com dirigentes estaduais e municipais. A caracterização das comissões de 2007 a 2010 considerou quatro dimensões: (i) institucionalidade, classificada como avançada, intermediária ou incipiente; (ii) conteúdo das negociações intergovernamentais, qualificado como diversificado/restrito, aderente/não aderente à realidade estadual e compartilhado/não compartilhado entre estado e municípios; (iii) processo político, considerando o caráter e a intensidade das relações intergovernamentais; e (iv) capacidade de atuação, avaliada como elevada, moderada ou baixa.

RESULTADOS

: Dez comissões apresentaram institucionalidade avançada. O conteúdo das negociações foi diversificado em todos os estados e na maioria aderente à realidade estadual. Entretanto, um terço das comissões expressaram assimetrias de poder entre esferas de governo. Relações intergovernamentais cooperativas e interativas predominaram em 54,0% dos estados. As dimensões de institucionalidade, conteúdo das negociações e processo político influenciaram a capacidade de atuação das Comissões Intergestores Bipartites na formulação da política e na coordenação federativa em saúde. Predominaram comissões com capacidade de atuação elevada nas regiões Sul e Sudeste e comissões com capacidade de atuação baixa no Norte e Nordeste.

CONCLUSÕES

: A variação regional entre as comissões sugere a influência de condicionantes histórico-estruturais (desenvolvimento socioeconômico, barreiras geográficas, características do sistema de saúde) na sua capacidade de coordenação intergovernamental em saúde. No entanto, em alguns estados, observou-se a possibilidade de superação de parte das dificuldades estruturais por meio de transformações institucionais e políticas. A realização de investimentos federais diferenciados por macrorregiões e estados é fundamental para a superação de desigualdades estruturais que repercutem nas instituições políticas. A atuação das CIB constitui um avanço, mas o fortalecimento de sua capacidade de coordenação federativa em saúde é crucial para a organização regionalizada do sistema de saúde nos estados brasileiros.

Federalismo; Sistema Único de Saúde; Política de Saúde; Gestão em Saúde; Relações intergovernamentais


INTRODUÇÃO

As federações representam formas de organização político-territorial que exigem a combinação de “autogoverno com governo compartilhado”.4 Elazar DJ. Exploring federalism. Tuscaloosa: The University of Alabama Press; 1987. Os países federativos podem ser descritos com base em características institucionais que compreendem arranjos jurídico-legais para definir responsabilidades entre níveis de governo, regras e mecanismos decisórios que incorporem atores e interesses territoriais, arranjos fiscais e transferências intergovernamentais, e arranjos formais e informais entre governos, verticais e horizontais.1010  Obinger H, Leibfried S, Castles F. Federalism and the Welfare State. Cambridge: Cambridge University Press; 2005.,1111  Peterson PE. The Price of Federalism. New York: Brookings; 1995.,1818  Watts R. Comparing Federal Systems in the 1990s. Kingston: Queens University; 1996.

As instituições federativas afetam e são afetadas pelas políticas sociais em uma relação que varia conforme o contexto dos países e o tempo.1010  Obinger H, Leibfried S, Castles F. Federalism and the Welfare State. Cambridge: Cambridge University Press; 2005. Tais influências se expressam na emergência de novos atores, na definição de suas estratégias e na configuração de processos políticos compartilhados.1212  Pierson P. Fragmented Welfare States: Federal Institutions and the Development of Social Policy. Governance. 1995;8(4):448-78. DOI:10.1111/j.1468-0491.1995.tb00223.x

A formulação e implementação das políticas sociais nas federações exigem, portanto, estratégias de coordenação federativa, entre as quais se situam as instâncias de negociação intergovernamental.1 Abrucio FL. A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Rev Sociol Polit. 2005;24:41-67. DOI:10.1590/S0104-44782005000100005,2 Arretche M. Federalismo e relações intergovernamentais no Brasil: a reforma de programas sociais. Dados. 2002;45(3):431-58. DOI:10.1590/S0011-52582002000300004

O Brasil é uma federação populosa, territorialmente extensa e desigual, que compreende 26 estados, um Distrito Federal e mais de 5.560 municípios. Ainda que a questão federativa tenha sido historicamente relevante na saúde, ela assume maior importância a partir da Constituição de 1988, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, orientado pela diretriz de descentralização político-administrativa, com comando único em cada esfera de governo.

A implementação de uma política nacional de saúde nesse contexto requer estratégias de articulação intergovernamental, visando compatibilizar a descentralização político-administrativa com a organização regionalizada e hierarquizada de serviços de saúde, cuja abrangência pode extrapolar limites municipais e estaduais. A experiência nos 25 primeiros anos de criação do SUS revela a adoção de estratégias inovadoras de coordenação federativa, incluindo a instituição de comissões intergovernamentais em saúde no âmbito nacional e estadual.3 Dourado DA, Elias PEM. Regionalização e dinâmica política do federalismo sanitário brasileiro. Rev Saude Publica. 2011;45(1):204-11. DOI:10.1590/S0034-89102011000100023,9 Miranda A. Processo decisório em Comissões Intergestores do Sistema Único de Saúde: governabilidade resiliente, integração sistêmica (auto) regulada. Rev Polit Planej Gestao Saude. 2010;1(1):117-39.,1717  Viana AL, Machado CV. Descentralização e coordenação federativa: a experiência brasileira na saúde. Cienc Saude Coletiva. 2009;14(3):807-17. DOI:10.1590/S1413-81232009000300016

Em 1991, a Comissão Intergestores Tripartite, composta por representantes das três esferas de governo, começou a atuar no debate sobre a política de saúde no âmbito nacional. Quanto às Comissões Intergestores Bipartites (CIB), foram estruturadas entre 1993 e 1995 nos estados brasileiros, formadas paritariamente por representantes das secretarias de Saúde estaduais e municipais. As atribuições definidas para as CIB foram: elaboração de propostas para a gestão descentralizada do SUS; adaptação das normas nacionais às condições de cada estado; acompanhamento e avaliação da gestão descentralizada do sistema de saúde; decisão sobre os critérios para a alocação dos recursos federais da saúde; e desenvolvimento de propostas para a operacionalização das políticas.8 Lucchese PTR. Descentralização do Financiamento e Gestão da Assistência à Saúde no Brasil: a implementação do Sistema Único de Saúde - Retrospectiva 1990/1995. Planej Polit Publicas. 1996;14:75-156.

Desde então, tais comissões atuam em negociações relativas à descentralização, distribuição de recursos financeiros federais e estaduais, definição de responsabilidades e construção de parcerias entre entes federativos. As CIB foram importantes nos diversos momentos de descentralização da política, norteados pelas normas operacionais do SUS.5 Levcovitz E, Lima LD, Machado CV. Política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Básicas. Cienc Saude Coletiva. 2001;6(2):269-91. DOI:10.1590/S1413-81232001000200002 A partir de 2006, as diretrizes nacionais do Pacto pela Saúdeaa Ministério da Saúde. Portaria GM/MS, nº 399 de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diario Oficial Uniao. 23 Fev 2006 [citado 2013 fev 7];Seção 1:43-51. Disponível em: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-399.htm representaram novo incentivo à intensificação das negociações intergovernamentais, com ênfase na regionalização, trazendo implicações para o funcionamento das CIB.7 Lima LD, Viana ALD, Machado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, et al. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cienc Saude Coletiva. 2012;17(11):2881-92. DOI:10.1590/S1413-81232012001100005

Estudos sobre as CIB ainda são escassos e, em geral, delimitados a poucos casos. Entretanto, trabalhos prévios identificam, como potencialidades da atuação das CIB, a construção de parcerias intergovernamentais e a consolidação de prática de negociação equilibrada e participativa entre os gestores.6 Lima LD. A Comissão Intergestores Bipartite a CIB do Rio de Janeiro. Physis. 2001;11(1):199-252. DOI:10.1590/S0103-73312001000100005,1313  Ribeiro JM. Conselhos de Saúde, comissões intergestores e grupos de interesse no Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saude Publica. 1997;13(1):81-92. DOI:10.1590/S0102-311X1997000100018,1515  Silva IF, Labra ME. As instâncias colegiadas do SUS no estado do Rio de Janeiro e o processo decisório. Cad Saude Publica. 2001;17(1):22-41. DOI:10.1590/S0102-311X2001000100017 Além disso, estudos de caso sugerem diversidade entre os estados, no funcionamento dessas instâncias.9 Miranda A. Processo decisório em Comissões Intergestores do Sistema Único de Saúde: governabilidade resiliente, integração sistêmica (auto) regulada. Rev Polit Planej Gestao Saude. 2010;1(1):117-39.

O objetivo do presente estudo foi analisar a dinâmica de funcionamento das Comissões Intergestores Bipartites, em estados do Brasil.

MÉTODOS

O estudo enfocou a caracterização da atuação das CIB em 24 estados brasileiros, de 2007 a 2010, momento de dinamismo das relações intergovernamentais em face dos processos de adesão ao Pacto pela Saúde e ênfase na regionalização. Os estados do Maranhão e Tocantins não foram incluídos devido a problemas políticos no momento da pesquisa.

Os métodos compreenderam: visitas aos 24 estados; observação direta do funcionamento das secretarias executivas e de reuniões da CIB (de câmaras técnicas ou plenárias); análise documental (regimento, documentos oficiais e atas de reuniões); e realização de quatro entrevistas semiestruturadas em cada estado com o Secretário de Estado de Saúde, o Presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde (COSEMS), o secretário executivo da CIB e o dirigente estadual da saúde responsável pela regionalização.

A análise da dinâmica das CIB considerou quatro dimensões que orientaram a elaboração dos instrumentos de pesquisa e o trabalho de campo: institucionalidade; conteúdo das negociações intergovernamentais; processo político; e capacidade de atuação.

A dimensão da institucionalidade da CIB teve por interesse aspectos normativos, cognitivos e políticos que lhe conferem densidade e legitimidade como instância de negociação intergovernamental, tais como: existência de estruturas permanentes de processamento dos temas; regularidade das plenárias; representatividade dos membros e legitimidade da comissão. A partir dessas variáveis – aferidas com base na análise do regimento e atas, observação, mapeamento de participantes e entrevistas –, a institucionalidade da CIB foi classificada como avançada, intermediária ou incipiente.

A dimensão conteúdo das negociações intergovernamentais considerou: a diversidade dos temas tratados nas reuniões (perfil diversificado ou restrito); a presença de assuntos próprios do estado e a capacidade de adaptação estadual das políticas nacionais (temática aderente ou não aderente à realidade estadual); e a forma de construção da agenda, no que se refere ao equilíbrio de poder entre governo estadual e municípios (agenda compartilhada ou não compartilhada). A classificação dessa dimensão foi baseada na análise das atas de reuniões, complementada pelas entrevistas.

A terceira dimensão de análise, o processo político, referiu-se ao perfil e intensidade das relações intergovernamentais na CIB. Buscou-se identificar a predominância de convergências ou divergências de visões e interesses (perfil cooperativo, cooperativo/conflitivo ou conflitivo), bem como a frequência e regularidade das relações estabelecidas (interativas, formalistas ou restritas). As entrevistas foram fundamentais para a caracterização dessa dimensão, complementadas por análise documental.

A quarta dimensão, a capacidade de atuação da CIB, concerne à sua habilidade em formular e implementar políticas, bem como em estabelecer parcerias entre governos estaduais e municipais para a solução de problemas regionais. A capacidade de atuação da CIB foi avaliada como elevada, moderada ou baixa, valorizando-se a análise de documentos que expressavam desdobramentos das reuniões (resoluções, normas, planos e projetos), complementada pelas entrevistas.

A Tabela 1 sistematiza as dimensões e variáveis de caracterização da dinâmica das CIB nos estados.

Tabela
1. Dimensões e variáveis de caracterização da dinâmica das Comissões Intergestores Bipartitites nos estados. Brasil, 2007-2010.

O estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo sob o Protocolo 0175/09 em 6/5/2009 e seguiu as normas pertinentes.

RESULTADOS

Em 2010, as CIB apresentavam entre 15 e 17 anos de funcionamento, observando-se diferenças entre os estados no que se refere à sua dinâmica de atuação.

Quanto à institucionalidade das CIB, dez comissões foram classificadas como avançadas, dez como intermediárias e quatro como incipientes. Contudo, a situação dos estados foi diversificada, com variação entre regiões (Figura 1). Todas as comissões dos estados das regiões Sudeste e Sul apresentaram institucionalidade avançada. As outras três CIB, com essa classificação, eram da região Nordeste (duas) e Centro-Oeste. A situação de institucionalidade intermediária predominou entre as CIB das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Dois estados da região Norte e dois da Nordeste compreendiam as CIB com institucionalidade incipiente no momento da pesquisa.

Figura 1
Distribuição das Comissões Intergestores Bipartites em saúde dos estados, segundo tipo de institucionalidade e regiões. Brasil, 2007-2010.

Considerando que as CIB foram criadas na mesma época, o tempo de funcionamento não foi uma variável diferenciadora de sua institucionalidade, mais influenciada por outras características histórico-estruturais e institucionais (perfil dos municípios, arranjo federativo, capacidades institucionais dos governos e trajetória específica das CIB).

A classificação “avançada” se relacionou à maturidade e solidez dessa instância como espaço de negociação e decisão intergovernamental sobre a política de saúde. Isso se expressou na existência de regras claras, no funcionamento regular, no caráter participativo e dinâmico das plenárias, na realização de reuniões prévias entre representantes estaduais e municipais para análise de temas. Nos estados em que existiam grupos técnicos regulares, notou-se maior consistência dos debates e decisões conjuntas.

A representatividade dos membros – estaduais e municipais – também foi relevante para a diferenciação das CIB. Na situação de institucionalidade avançada, os representantes das secretarias estaduais de Saúde eram os atores técnico-políticos que respondiam por áreas estratégicas para o sistema de saúde; já os representantes municipais eram escolhidos em debates promovidos pelo Conselho de Secretários Municipais de Saúde, considerando a diversidade intraestadual. Outra variável que favoreceu a consideração da diversidade do sistema de saúde foi a existência de instâncias de negociação regionais.

A organização adequada e o dinamismo técnico-político da secretaria executiva da comissão estiveram relacionados à institucionalidade da CIB, mas não foram determinantes isolados. A trajetória da comissão, a existência de regras claras, sólidas e pactuadas de funcionamento, o perfil dos representantes e a legitimidade política dessa instância para os gestores foram mais relevantes. Nos estados em que a institucionalidade da CIB foi considerada incipiente, as fragilidades no funcionamento da secretaria executiva pareceram decorrer de limitações nessas variáveis.

A segunda categoria analisada – conteúdo das negociações intergovernamentais na CIB – mostrou um perfil geral positivo para o conjunto dos estados. Observou-se que nos 24 estados estudados o conteúdo das negociações foi diversificado, envolvendo uma variedade de campos e temas da política de saúde. Em que pese a predominância dos temas relativos à organização da assistência à saúde, temas relativos às vigilâncias (principalmente epidemiológica), à educação em saúde, a políticas específicas e à gestão (financiamento, sistemas de informações, avaliação) foram frequentemente debatidos.

Questões relativas à regionalização, enfatizadas no contexto nacional, se destacaram na maioria dos estados. No entanto, esse tema foi mais frequente em estados com tradição de regionalização em saúde, incluindo a existência prévia de instâncias regionais de negociação. Em um terço dos estados estudados, a regionalização esteve pouco presente nas pautas da comissão, o que pode refletir diferenças no estágio e modo de condução desse processo.

Além da diversidade dos temas, em 21 estados o conteúdo dos debates e negociações na CIB mostrou aderência à realidade estadual, ainda que o peso da agenda federal na definição das pautas fosse relevante. Ou seja, na maior parte dos estados, tais comissões propiciaram o debate sobre temas próprios e realizaram esforços para adaptação de normas nacionais do contexto estadual, regional ou local. Isso levou à diversidade de focos dos debates entre comissões, que se diferenciaram segundo regiões. Na região Norte, observou-se maior peso de questões referentes ao controle de doenças endêmicas e à prestação direta de serviços, incluindo transferências de unidades e servidores. Já nos estados com forte presença do setor privado vinculado ao SUS, sobressaíram questões relativas à regulação dos prestadores (credenciamentos, contratos realizados, ajustes de tetos, organização de fluxos e medidas em face do não cumprimento de contratos e convênios). Em somente três estados as CIB apresentaram atuação eminentemente subordinada às pautas nacionais.

Observou-se ainda que em dois terços dos estados o conteúdo das negociações foi definido de forma compartilhada entre estados e municípios, mostrando relações de poder equilibradas na definição dos temas de discussão na CIB. Em um terço dos estados, notou-se expressiva assimetria de poder entre a instância estadual e os municípios na construção da pauta e nos debates da comissão, com maior peso do estado.

A combinação das variáveis que compõem a dimensão do conteúdo das negociações intergovernamentais na CIB – diversidade dos temas, aderência dos debates à realidade estadual e compartilhamento da definição de pautas – permitiu identificar quatro grupos de estados (Figura 2).

Figura 2
Distribuição das Comissões Intergestores Bipartites em saúde dos estados, segundo tipo de conteúdo das negociações intergovernamentais. Brasil, 2007-2010.

O primeiro grupo compreende 14 estados (59,0% do total), cujo conteúdo das negociações na CIB é diversificado, aderente à realidade estadual e com definição compartilhada entre estados e municípios. Integram esse grupo os estados das regiões Sul e Sudeste (exceto um), dois da Centro-Oeste, quatro da Nordeste e dois da Norte.

O segundo grupo mais expressivo (29,0% dos casos) é formado por sete estados em que o conteúdo das negociações na CIB é diversificado e aderente à realidade estadual, porém sua definição não é equilibrada entre estado e municípios. Enquadraram-se nesse grupo três estados da região Norte, três da Nordeste e um da Sudeste.

Na região Norte identificou-se uma CIB com situação peculiar: conteúdo das negociações diversificado, com definição compartilhada entre estado e municípios, porém não aderente à realidade estadual, sendo eminentemente vinculado a pautas federais.

Outro grupo é formado por dois estados – um do Nordeste e um do Centro Oeste –, em que o conteúdo das negociações intergovernamentais na CIB é diversificado, porém não aderente à realidade estadual e com definição não compartilhada entre estado e municípios. Tais limitações restringem sua capacidade de atuação como instância de coordenação intergovernamental, ao reiterarem as assimetrias de poder entre as três esferas e heterogeneidades de capacidade institucional presentes no federalismo brasileiro, ao invés de atenuá-las.

A terceira categoria de análise da pesquisa foi o processo político na CIB, considerando a natureza e a intensidade das relações intergovernamentais. Observou-se no conjunto do país predomínio no perfil “cooperativo e interativo”, presente em 13 estados (54,0%). O segundo tipo mais comum foi o “cooperativo e formalista”, registrado em quatro estados. Esses dois grupos somam mais de 2/3 dos estados, localizados nas várias regiões do País. Enquanto o primeiro grupo apresenta situação mais favorável à atuação da CIB na coordenação federativa, no segundo, apesar da predominância da cooperação, o caráter formalista das relações intergovernamentais denota lógica de articulação limitada ao cumprimento das normativas federais, como aprovação de pleitos e adesões a estratégias específicas.

As situações que impõem maiores dificuldades à coordenação federativa da política de saúde – perfis “conflitivo e formalista” e “cooperativo-conflitivo e restrito” – foram registradas em poucos estados das regiões Nordeste e Norte. Na região Norte, as restrições nas relações entre os gestores da saúde são em parte explicadas por condicionantes histórico-estruturais (longas distâncias, dificuldades de deslocamento, forte dependência da União no caso dos estados que eram territórios federais até a década de 1980) e político-institucionais (limitações de capacidade institucional e situações de instabilidade política).

Ressalte-se que a predominância de relações cooperativas não significa ausência de conflitos intergovernamentais. Em muitos estados, tais conflitos se expressam, mas são processados por meio de canais formais e informais (plenárias da comissão, reuniões de câmaras técnicas, contatos entre gestores ou entre técnicos) que favorecem a construção de acordos e a obtenção de consensos mínimos.

Além disso, a natureza das relações intergovernamentais variou entre temas. Por exemplo, o predomínio de cooperação foi identificado em questões relativas à formação de profissionais, enquanto o conflito foi frequente nos debates sobre financiamento. Em alguns estados, observaram-se conflitos intensos envolvendo Secretarias de Estado da Saúde e gestores da capital, que concentrava parte expressiva dos serviços de saúde nos estados.

A quarta dimensão de análise da dinâmica das CIB foi a capacidade de atuação na formulação e implantação de políticas, coordenação federativa e geração de inovações na organização do sistema de saúde. Em nove estados as CIB apresentavam elevada capacidade de atuação; em sete, a capacidade de atuação foi considerada moderada; e em oito (1/3) as comissões tiveram baixa capacidade de atuação. Registraram-se diferenças regionais: enquanto as CIB de todos os estados da região Sul e na maioria dos estados da região Sudeste apresentaram elevada capacidade de atuação, os casos de baixa capacidade de atuação se concentraram nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Por fim, constatou-se que a capacidade de atuação da CIB foi dependente das outras dimensões (Tabela 2). Na presença das três primeiras dimensões favoráveis, a CIB apresentou elevada capacidade de atuação em oito estados (com uma exceção). A relação recíproca corrobora o argumento: as comissões com elevada capacidade de atuação expressavam as outras três dimensões favoráveis; a única exceção apresentava duas dimensões favoráveis e uma de classificação intermediária.

Tabela 2
Dinâmica das Comissões Intergestores Bipartites, segundo regiões e estados. Brasil, 2007-2010.

Nos estados em situação mais adversa, a relação também foi registrada: as quatro CIB com institucionalidade incipiente tinham baixa capacidade de atuação. Metade das CIB com baixa capacidade de atuação apresentava institucionalidade incipiente; a outra metade apresentava institucionalidade intermediária, acompanhada por uma ou duas outras dimensões desfavoráveis.

DISCUSSÃO

A pesquisa, que abrangeu as Comissões Intergestores Bipartites de 24 estados, corroborou argumentos presentes na literatura e trouxe novos conhecimentos para a compreensão da dinâmica, dos condicionantes e das possibilidades de atuação dessas comissões. Constatou-se que a atuação das CIB na coordenação federativa da política de saúde é relevante, porém variável entre os estados da federação, com a identificação de diversidade regional.

As variações entre as CIB se expressaram na sua institucionalidade, no conteúdo das negociações intergovernamentais e nos processos políticos de negociação. A configuração dessas três dimensões, por sua vez, influenciou a capacidade de atuação das CIB na formulação da política e na coordenação federativa em saúde.

Sobre a institucionalidade das CIB, a presença de canais técnico-políticos de negociação entre estados e municípios favoreceu o estabelecimento de relações intergovernamentais cooperativas e, consequentemente, a sua capacidade na definição da política. O reconhecimento da relevância e legitimidade dessa comissão pelos altos dirigentes de Secretaria de Estado de Saúde – expresso na sua participação nas reuniões, capacidade de diálogo e respeito aos acordos estabelecidos – e a existência de um Conselho de Secretários Municipais de Saúde forte, política e tecnicamente, também facilitaram a coordenação intergovernamental por meio das CIB. Na ausência dessas condições, o funcionamento da comissão se limitava à realização de plenárias mensais em que estado e municípios conduziam encaminhamentos administrativos, com repercussão limitada sobre a definição de políticas.

Quanto ao conteúdo das negociações intergovernamentais, um achado expressivo foi a diversidade de temas e questões tratadas, em todas as CIB. Por outro lado, houve variações quanto à capacidade de construção de agendas próprias internas ao estado e ao equilíbrio de poder entre estado e municípios na definição das pautas.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, o peso das normas e temas nacionais, apontado por outros autores,9 Miranda A. Processo decisório em Comissões Intergestores do Sistema Único de Saúde: governabilidade resiliente, integração sistêmica (auto) regulada. Rev Polit Planej Gestao Saude. 2010;1(1):117-39. foi confirmado, particularmente no que concerne à adesão a programas e ao recebimento de recursos federais. No entanto, em concordância com estudo prévio,1616  Viana AL, Lima LD, Oliveira RG. Descentralização e federalismo: a política de saúde em novo contexto - lições do caso brasileiro. Cienc Saude Coletiva. 2002;7(3):493-507. DOI:10.1590/S1413-81232002000300008 a pesquisa constatou que na maior parte dos estados a atuação das CIB favoreceu a discussão de desdobramentos das políticas nacionais nos sistemas estaduais de saúde, a definição de agendas próprias e a adequação regional das divisões de responsabilidades dos estados e municípios na gestão do sistema de saúde. Em poucos estados a atuação das CIB foi exclusivamente pautada por questões nacionais. Quanto ao segundo aspecto – o equilíbrio de poder entre entes federativos –, houve razoável número de casos em que a esfera estadual se destacou na construção da agenda vis-à-vis a esfera municipal.

Outro achado importante diz respeito ao fortalecimento recente da temática da regionalização nos debates das CIB, o que sugere a relevância dessas comissões nos processos de regionalização em andamento nos estados, que são muito diversificados.7 Lima LD, Viana ALD, Machado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, et al. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cienc Saude Coletiva. 2012;17(11):2881-92. DOI:10.1590/S1413-81232012001100005 A pesquisa, realizada no período de implementação do Pacto pela Saúde,aa Ministério da Saúde. Portaria GM/MS, nº 399 de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diario Oficial Uniao. 23 Fev 2006 [citado 2013 fev 7];Seção 1:43-51. Disponível em: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-399.htm mostrou que as CIB foram importantes nas decisões relativas à conformação ou fortalecimento de instâncias regionais de negociação intergovernamental, ao planejamento regional e à conformação de redes. Em 2011, após o término da pesquisa, um decreto presidencialbb Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diario Oficial Uniao 29 Jun 2011 [citado 2013 fev 20]:1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/D7508.htm agregou responsabilidades às CIB, definiu a Comissão Intergestores Regional (CIR) como espaço de estabelecimentos de pactos para a conformação de redes de atenção e propôs o “contrato organizativo” entre governos como instrumento de reforço à regionalização.1414  Santos L, Andrade LOM. Redes interfederativas de saúde: um desafio para o SUS nos seus vinte anos. Cienc Saude Coletiva. 2011;16(3):1671-80. DOI:10.1590/S1413-81232011000300002

No que concerne ao processo político, predominou o caráter cooperativo e interativo das relações intergovernamentais nas CIB, o que reiterou o potencial dessa instância em processar conflitos inerentes ao sistema federativo e promover parcerias entre estados e municípios. Em contrapartida, nos casos de relações muito conflitivas ou restritas, a capacidade de atuação das CIB na política de saúde foi limitada.

A atuação das CIB mostrou variação regional, com o predomínio de comissões com institucionalidade avançada e capacidade de atuação elevada no Sul e Sudeste; e de comissões com institucionalidade incipiente ou intermediária e capacidade de atuação baixa ou moderada nas regiões Norte e Nordeste. Nas comissões da Centro-Oeste prevaleceu uma situação intermediária. Esse resultado sugere a influência dos condicionantes histórico-estruturais (desenvolvimento socioeconômico, barreiras geográficas, características do sistema de saúde) na capacidade de coordenação federativa da política de saúde. Porém, há estados que fogem ao perfil predominante nessas regiões, sinalizando a possibilidade de superação das dificuldades estruturais por meio de transformações institucionais e políticas.

A constatação de assimetrias no funcionamento das CIB indica que o apoio para fortalecer a capacidade institucional dessas comissões deve ocorrer de maneira diferenciada no País, considerando os condicionantes das dificuldades observadas. O fortalecimento das CIB pode exigir estratégias, como: expansão de novas tecnologias de comunicação em estados com barreiras geográficas; apoio para constituição de instâncias técnicas permanentes de negociação intergovernamental; mudanças na representatividade das CIB, visando contemplar áreas estratégicas da secretaria estadual de Saúde e a diversidade de municípios; e apoio para o fortalecimento de instâncias regionais de articulação intergovernamental.

O principal limite do estudo foi a escassez de informações sobre o funcionamento dos colegiados ou comissões intergovernamentais regionais que passavam por mudanças no momento da pesquisa, em virtude dos processos de adesão ao Pacto pela Saúde, com implicações para as CIB e os processos de regionalização.7 Lima LD, Viana ALD, Machado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, et al. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cienc Saude Coletiva. 2012;17(11):2881-92. DOI:10.1590/S1413-81232012001100005

Por fim, a formulação de políticas nacionais e a realização de investimentos federais diferenciados por macrorregiões ou estados são fundamentais para a superação das desigualdades estruturais persistentes no Brasil, que repercutem nas instituições políticas e no funcionamento das comissões intergovernamentais. A atuação dessas instâncias constitui avanço, mas o fortalecimento de sua capacidade de coordenação federativa em saúde é crucial para a organização regionalizada do sistema de saúde nos estados brasileiros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2013
  • Aceito
    7 Abr 2014
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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