Resumo
OBJETIVO
Analisar a prevalência e fatores associados com o acesso a medicamentos de uso contínuo e formas de sua obtenção.
MÉTODOS
Foram obtidos dados da Pesquisa Nacional por Amostras em Domicílio de 2008. A amostra foi composta por 27.333 indivíduos com idade acima de 60 anos que reportaram utilizar medicamentos de uso contínuo. Foram utilizados modelos de regressão logística multinomial binário e múltipla para análise dos dados.
RESULTADOS
Tiveram acesso a todos os medicamentos 86,0% dos idosos, dos quais 50,7% os obtiveram por compra. Aqueles que os obtiveram do sistema público de saúde eram mais jovens (60-64 anos), não tinham plano de saúde e pertenciam a grupos com menor renda. Dos idosos que usam medicamentos de uso contínuo, 14,0% não receberam nenhum dos medicamentos; para aqueles com mais de quatro doenças crônicas esse valor chegou a 22,0%; aqueles com maior número de morbidades crônicas tiveram maior risco de não conseguir todos os medicamentos.
CONCLUSÕES
Alguns grupos de idosos apresentam risco aumentado de não obter todos os medicamentos necessários e de comprar todos os medicamentos. Esses resultados podem orientar programas e planos de acesso a medicamentos no Brasil.
Idoso; Uso de Medicamentos, economia; Medicamentos de Uso Contínuo; Preparações Farmacêuticas, provisão & distribuição; Inquéritos Demográficos
INTRODUÇÃO
O envelhecimento populacional é um proeminente fenômeno mundial.22 Anderson GF, Hussey PS. Population aging: a comparison among industrialized countries. Health Aff (Millwood). 2000;19(3):191-203. DOI:10.1377/hlthaff.19.3.191,77 Camarano AA, Kanso S, Melo Jl. Como vive o idoso brasileiro. In: Camarano AA, organizadora. Os novos idosos brasileiros, muito além dos 60? Rio de Janeiro: IPEA; 2004. Capítulo 1; p.25-73. No Brasil, os indivíduos acima de 65 anos em 1991 representavam 4,8% da população, enquanto em 2010, esse grupo representava 7,4%.aa Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Census first final results: Brazil has a population of 190,755,799 residents. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [citado 2013 fev 2]. Disponível em: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/en/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=1866 O aumento da população idosa leva à maior prevalência de doenças crônicas e, consequentemente, ao aumento da demanda por serviços de saúde e medicamentos.1212 Lima-Costa MF, Barreto S, Giatti L, Uchôa E. Desigualdade social e saúde entre idosos brasileiros: um estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Cad Saude Publica. 2003;19(3):745-57. DOI:10.1590/S0102-311X2003000300007,2020 Veras R, Parahyba MI. O anacronismo dos modelos assistenciais para os idosos na área da saúde: desafios para o setor privado. Cad Saude Publica. 2007;23(10):2479-89. DOI:10.1590/S0102-311X2007001000022 Nos Estados Unidos, estima-se que aproximadamente um terço de todos os medicamentos usados são para os indivíduos acima de 60 anos.2121 Williams CM. Using medications appropriately in older adults.Am Fam Physician. 2002;66(10):1917-24. Adicionalmente, estudos mostram que a maior parte dos idosos usa mais de um medicamento.1111 Jorgensen T, Johansson S, Kennerfalk A, Wallander MA, Svärdsudd K. Prescription drug use, diagnoses, and healthcare utilization among the elderly.Ann Pharmacother. 2001;35(9):1004-9. DOI:10.1345/aph.10351,1818 Rozenfeld S. Prevalência, fatores associados e mau uso de medicamentos entre os idosos: uma revisão. Cad Saude Publica. 2003;19(3):717-24. DOI:10.1590/S0102-311X2003000300004
Garantir o acesso a esses medicamentos essenciais para os idosos é prioridade da Política Nacional de Medicamentosbb Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Departamento de Formulação de Políticas de Saúde. Política nacional de medicamentos. Brasília (DF); 2001. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios, 25). e do Estatuto do Idoso,cc Brasil. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diario Oficial Uniao. 3 out 2003. Artigo 15, Seção V,§ 2o. desde 2003. Neste sentido, algumas iniciativas no Sistema Único de Saúde (SUS) têm sido realizadas para esse fim, como a distribuição de medicamentos para Alzheimer e Parkinson,1414 Miyata DF, Vagetti GC, Fanhani JGP, Andrade OG. Políticas e programas na atenção à saúde do idoso: um panorama nacional. Arq Cienc Saude Unipar. 2005;9(2):135-40. o Programa Farmácia Popular e o Programa Saúde Não Tem Preço,dd Ministério da Saúde. Portaria nº 184, de 3 de fevereiro de 2011. Dispõe sobre o Programa Farmácia Popular no Brasil. Brasília (DF); 2011 [citado 2014 out 9]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt0184_03_02_2011.html que oferecem gratuitamente medicamentos para diabetes e hipertensão.
As pesquisas epidemiológicas têm encontrado alta prevalência de uso de medicamentos em idosos no Brasil, variando55 Bertoldi AD, Barros AJ, Wagner A, Ross-Degnan D, Hallal PC. Medicine access and utilization in a population covered by primary health care in Brazil.Health Policy. 2009;89(3):295-302. DOI:10.1016/j.healthpol.2008.07.001,88 Carvalho MF, Pascom ARP, Souza-Júnior PRB, Damacena GN, Szwarcwald CL. Utilization of medicines by the Brazilian population, 2003. Cad Saude Publica. 2005;21(Suppl 1):S100-8. DOI:10.1590/S0102-311X2005000700011 segundo características socioeconômicas e de gravidade da enfermidade,55 Bertoldi AD, Barros AJ, Wagner A, Ross-Degnan D, Hallal PC. Medicine access and utilization in a population covered by primary health care in Brazil.Health Policy. 2009;89(3):295-302. DOI:10.1016/j.healthpol.2008.07.001 o que resulta em falta ou dificuldade de acesso para determinados grupos. Esse fato pode contribuir para problemas como alto comprometimento da renda familiar com gastos66 Boing AC, Bertoldi AD, Peres KG. Desigualdades socioeconômicas no gasto e comprometimento da renda com medicamentos no Sul do Brasil. Rev Saude Publica. 2011;45(5):897-905. DOI:10.1590/S0034-89102011005000054 ou subutilização de medicamentos.1313 Luz TCB, Loyola Filho AI, Lima-Costa MF. Estudo de base populacional da subutilização de medicamentos por motivos financeiros entre idosos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica. 2009;25(7):1578-86. DOI:10.1590/S0102-311X2009000700016
Em 2009, as famílias brasileiras gastaram 56,2 bilhões de reais com medicamentos.ee Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conta-satélite de Saúde Brasil - 2007-2009: despesas de consumo intermediário e final da administração pública: uma análise dos dados de medicamentos. Rio de Janeiro: IBGE; 2012. (Contas Nacionais, 37). Estudo de base populacional, conduzido em Florianópolis, SC, mostrou que a diferença de renda comprometida com medicamentos foi quatro vezes maior entre os mais pobres comparado aos mais ricos.66 Boing AC, Bertoldi AD, Peres KG. Desigualdades socioeconômicas no gasto e comprometimento da renda com medicamentos no Sul do Brasil. Rev Saude Publica. 2011;45(5):897-905. DOI:10.1590/S0034-89102011005000054 Por sua vez, a subtilização de medicamentos pode levar a piores desfechos clínicos e pior qualidade de vida dos pacientes, aumentando os gastos com a atenção secundária e terciária e, muitas vezes, levando à necessidade de maiores doses de medicamentos – e, consequentemente, ao maior risco de eventos adversos.1010 Gurwitz JH, Rochon P. Considerations in designing an ideal medication-use system: lessons from caring for the elderly. Am J Health Syst Pharm. 2000;57(6):548-51.,1717 Rochon PA, Gurwitz JH. Prescribing for seniors: neither too much nor too little. JAMA. 1999;282(2):113-5. DOI:10.1001/jama.282.2.113
Dados sobre o acesso a medicamentos são importantes ferramentas para caracterizar o sistema de saúde1515 Paniz VM, Fassa AG, Facchini LA, Bertoldi AD, Piccini RX, Tomasi E, et al. Acesso a medicamentos de uso contínuo em adultos e idosos nas regiões Sul e Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2008;24(2):267-80. DOI:10.1590/S0102-311X2008000200005 e embasar políticas e ações que visem a ampliar o acesso a grupos prioritários. Nesse contexto, o objetivo deste estudo foi analisar a prevalência e fatores associados com o acesso a medicamentos de uso contínuo, de sua obtenção e seus fatores associados.
MÉTODOS
Foram utilizados dados obtidos da Pesquisa Nacional por Amostras em Domicílio (PNAD) realizada em 2008,ff Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2008 - Suplemento. Rio de Janeiro: IBGE; 2009 [citado 2013 fev]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/panorama_saude_brasil_2003_2008/ por ter sido a última a conter questões sobre saúde. A PNAD é um estudo seccional com abrangência nacional realizado anualmente com intuito de fornecer informações sobre as características gerais da população, como educação, trabalho, rendimento e outras.ff Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2008 - Suplemento. Rio de Janeiro: IBGE; 2009 [citado 2013 fev]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/panorama_saude_brasil_2003_2008/
O plano amostral da PNAD inclui amostragem complexa, incorporando estratificação das unidades de amostragem, conglomeração (seleção da amostra em vários estágios, com unidades compostas de amostragem), probabilidades desiguais de seleção em um ou mais estágios e ajuste dos pesos amostrais para calibração com totais populacionais conhecidos.
Dos 391.868 indivíduos investigados na PNAD de 2008, foram selecionados para compor a população do presente estudo aqueles com 60 anos de idade ou mais e que referiram utilizar medicamentos de uso contínuo, resultando em amostra de 27.333 indivíduos.
A variável de desfecho foi acesso a medicamentos, mensurado pelas perguntas:
Pergunta 1: “Na última vez que precisou obter o(s) medicamento(s) de uso contínuo, recebeu gratuitamente...”. Categorias de respostas: Todos; Parte; Nenhum.
Pergunta 2: “Do(s) medicamento(s) de uso contínuo que não recebeu gratuitamente, comprou...”. Categorias de respostas: Todos; Parte; Nenhum.
Com base nessas perguntas, os indivíduos foram categorizados, segundo tipo de acesso, em:
Gratuito – indivíduos que referiram ter conseguido todos os medicamentos de forma gratuita, i.e., responderam “todos” à pergunta 1.
Por compra – indivíduos que conseguiram todos os medicamentos por meio de compra, i.e., responderam “nenhum” à pergunta 1 e “todos” à pergunta 2.
Misto – indivíduos que conseguiram uma parte gratuita e compraram o restante, i.e., responderam “parte” na pergunta 1 e “todos” na pergunta 2.
Parcial ou nenhum acesso – indivíduos que conseguiram somente parte dos medicamentos (de forma gratuita, por compra ou ambas) ou não conseguiram nenhum medicamento. Esse grupo engloba aqueles que responderam “parte” na pergunta 1 e “parte” ou “nenhum” na pergunta 2, bem como os que responderam “nenhum” na pergunta 1 e “parte” ou “nenhum” na pergunta 2.
O grupo que referiu os medicamentos de forma gratuita foi analisado neste artigo como aqueles que receberam os medicamentos do SUS. Isso porque, como trata-se de uso regular, embora uma parte possa ter recebido os medicamentos de amigos, parentes, planos de saúde ou outros, é provável que esses representem pequena porcentagem dentre os que recebem medicamentos.
As variáveis independentes foram escolhidas segundo o modelo teórico de Andersen11 Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Soc Behav.1995;36(1):1-10. (1995) e da disponibilidade da PNAD. Esse modelo tem sido usado frequentemente em estudos investigando acesso e uso nos serviços de saúde.1919 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica. 2004;20(Supl 2):S190-8. DOI:10.1590/S0102-311X2004000800014
As variáveis independentes foram as seguintes: região geográfica (Norte; Nordeste; Sudeste; Sul e Centro-Oeste), faixa etária (60-64; 65-69; 70-74; ≥ 75 anos), sexo (feminino; masculino), área de localização do domicílio (urbano e rural), percepção do estado de saúde (bom ou muito bom; regular; ruim ou muito ruim), número de morbidades referidas (0; 1; 2-3; ≥ 4), consulta médica nos últimos doze meses (sim; não), procura sempre o mesmo serviço de saúde (sim; não), renda (grupo 1; grupo 2; grupo 3). Quanto à variável de morbidade referida, consideraram-se apenas as 12 morbidades investigadas na PNAD (doença da coluna ou dor nas costas; artrite ou reumatismo; câncer; diabetes; bronquite ou asma; hipertensão; doença do coração; insuficiência renal crônica; depressão; tuberculose; tendinite ou tenossinovite; cirrose).
A variável grupo de renda foi construída a partir da renda familiar mensal per capita disponível no banco de dados da PNAD. Os pontos de corte para cada grupo de renda foram escolhidos de modo a categorizar três grupos de renda, buscando maior homogeneidade dentro das categorias definidas. Os grupos de renda foram definidos como: grupo 1, indivíduos com renda familiar mensal per capita acima do percentil 90, i.e., renda familiar mensal per capita maior que R$1.635,00; grupo 2, entre o percentil 90 e 50, i.e., renda familiar mensal per capita entre R$460,00 e R$1.635,00; e grupo 3, renda mensal per capita abaixo do percentil 50, i.e., aqueles com renda familiar mensal per capita menor que R$460,00.gg Equivalência em dólar americano: Grupo 1: maior que $1.033,44; Grupo 2: $282,31-$1.033,44; Grupo 3: menor que $282,31, segundo o banco central em 1/6/2008. Banco Central do Brasil. Conversão de moedas [Internet]. Brasília (DF); 2008 [citado 2008 jun 1]. Disponível em: http://www4.bcb.gov.br/pec/conversao/conversao.asp
Estimaram-se as prevalências de cada tipo de acesso aos medicamentos de uso contínuo e de cada tipo de acesso por grupo de renda.
A associação estatística entre as variáveis dependente e independente foi verificada utilizando-se o teste Qui-quadrado. As variáveis que mostraram associação com a variável dependente (p < 0,05) na análise bivariada foram incluídas em um modelo de regressão logística multinomial multivariada.
As análises foram realizadas no software SPSS for Windows, versão 17, considerando os pesos amostrais e as informações estruturais do plano amostral (conglomerados e estratificação). Para manter o uso do tamanho de amostra nas inferências realizadas, foram usados nos ajustes pesos amostrais corrigidos (definidos pela razão entre os pesos naturais do desenho e sua média aritmética).
RESULTADOS
A Tabela 1 apresenta a descrição da população de estudo e a prevalência de cada tipo de acesso, segundo variáveis socioeconômicas, demográficas e de saúde. A maior parte dos idosos que referiu utilizar medicamento de uso contínuo estava na região Sudeste, com as seguintes características: era do sexo feminino, residia em área urbana, possuía plano de saúde e tinha pelo menos uma doença crônica.
Prevalência dos tipos de acesso a medicamentos segundo variáveis socioeconômicas, demográficas e de saúde. Brasil, 2008.
A maioria (86,0%) dos idosos teve acesso a todos os medicamentos de uso contínuo na última vez que precisaram. A Figuramostra que a maior parte dos idosos comprou todos os medicamentos de uso contínuo na última vez que precisaram (41,6%) e 14,1% não tiveram acesso total aos medicamentos. Deste último grupo (14,1%), a maioria ganhou parte dos medicamentos e comprou o restante, 5,4% não obtiveram nenhum dos medicamentos, 3,2% não ganharam nenhum, mas compraram parte e 1,4% ganharam parte e não compraram nenhum.
Aqueles que pertenciam ao grupo de renda 3 (menor renda) e os que residiam em área rural apresentaram maior prevalência de acesso total gratuito. Por outro lado, em todos os demais subgrupos analisados o acesso foi principalmente por compra. Os grupos cujos indivíduos com a maior prevalência de falta de acesso total referiram estado de saúde ruim ou muito ruim, pertenciam ao grupo de renda 3 (menor renda) e tinham 4 ou mais doenças crônicas (Tabela 1).
A Tabela 2 mostra os resultados das análises multinomial bivariadas e multivariadas, pelas quais o grupo de indivíduos que conseguiu todos os medicamentos de forma gratuita foi comparado aos outros três grupos, i.e., aos que tiveram acesso total por compra; aos que tiveram acesso misto; e aos que não tiveram acesso total. Como apresentaram significância estatística na análise bivariada, todas as variáveis de controle foram incluídas na análise multivariada. As medidas de associação ajustadas (Tabela 2) mostraram que a chance de obter os medicamentos por compra, comparada àqueles que obtiveram todos de forma gratuita, foi maior para os idosos que tinham plano de saúde (OR = 7,4), pertenciam a grupos etários mais velhos, consultaram menos o médico nos últimos 12 meses (OR = 0,9) e não buscaram sempre o mesmo serviço de saúde para atendimento (OR = 0,7).
Já a chance de ter acesso misto foi maior para idosos que tinham pior estado de saúde, maior número de visitas médicas nos últimos 12 meses, possuíam plano de saúde e pertenciam a grupos etários de idade mais avançada, quando comparados àqueles que tiveram acesso gratuito.
A chance de não ter acesso total, comparada aos que obtiveram todos os medicamentos de forma gratuita, foi maior naqueles que: apresentavam pior estado de saúde e maior número de morbidades, procuravam menos o mesmo serviço de saúde, tinham maiores faixa etárias e residiam nas regiões Sul ou Sudeste.
Dentre as interações testadas, somente a variável de interação entre grupo socioeconômico e área de localização de domicílio foi estatisticamente significativa. As medidas de razão de chance para essas variáveis são apresentadas na Tabela 3.
Na análise de interação (Tabela 3), a chance de comprar todos os medicamentos comparada à de conseguir todos de forma gratuita foi maior na área urbana, nos grupos de renda 1 e 2, e no grupo de renda 1, independente da área. No grupo de renda 3 (menor renda), não houve diferença entre urbano e rural. Por outro lado, a chance de ter acesso misto comparada à de ter acesso gratuito apresentou pouca diferença entre as regiões para todos os grupos. A chance de não ter acesso total comparada à de adquirir de forma gratuita foi menor para o grupo de renda 1 na área urbana (OR = 0,4).
DISCUSSÃO
Os resultados desse estudo mostraram uma proporção expressiva dos idosos que utilizam medicamento regularmente e tiveram acesso a todos os medicamentos da última vez que precisaram. Essa prevalência foi, entretanto, diferente entre os subgrupos de variáveis socioeconômicas, demográficas e de saúde. Além disso, mais de 50,0% dos idosos que tiveram acesso a todos os medicamentos compraram todos os medicamentos. A proporção expressiva dos idosos (86,0%) que teve acesso a todos os medicamentos de uso contínuo na última vez que precisou foi próxima ao encontrado em outras pesquisas, apesar das diferenças metodológicas.88 Carvalho MF, Pascom ARP, Souza-Júnior PRB, Damacena GN, Szwarcwald CL. Utilization of medicines by the Brazilian population, 2003. Cad Saude Publica. 2005;21(Suppl 1):S100-8. DOI:10.1590/S0102-311X2005000700011,1515 Paniz VM, Fassa AG, Facchini LA, Bertoldi AD, Piccini RX, Tomasi E, et al. Acesso a medicamentos de uso contínuo em adultos e idosos nas regiões Sul e Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2008;24(2):267-80. DOI:10.1590/S0102-311X2008000200005 Como já apontado, essa prevalência foi diferente entre os subgrupos. A falta de acesso a todos os medicamentos, que foi de 14,0% dos idosos, chegou a 22,0% nos que tinham quatro ou mais doenças crônicas.
Garantir o acesso a medicamentos é considerado um dos objetivos do milênio e tem sido frequentemente discutido na literatura.1616 Ritz LS, Adam T, Laing R. A bibliometric study of publication patterns in access to medicines research in developing countries. South Med Rev. 2010;3(1):2-6. Sendo assim, entender a população idosa, principal consumidora de medicamentos, quanto ao acesso e utilização destes torna-se importante para atingir esse objetivo. Nesse sentido, os resultados desse estudo indicam que os idosos do grupo que não conseguiram a totalidade dos medicamentos tinham pior estado de saúde – maior número de morbidades crônicas, pior percepção do estado de saúde – e tinham idade mais avançada que aqueles que tiveram acesso gratuito. Esse fato pode ser devido ao sistema público de saúde oferecer medicamentos para tratamento de apenas alguns grupos de doença, levando esses pacientes a não terem chance de conseguirem medicamento para ao menos uma doença.
A maior parte dos idosos comprou todos ou parte dos medicamentos de uso contínuo necessários, o que também já havia sido identificado na literatura.55 Bertoldi AD, Barros AJ, Wagner A, Ross-Degnan D, Hallal PC. Medicine access and utilization in a population covered by primary health care in Brazil.Health Policy. 2009;89(3):295-302. DOI:10.1016/j.healthpol.2008.07.001 Neste estudo, cerca de 29,0% dos idosos pertencentes ao grupo com menor renda (Grupo 3) compraram todos os medicamentos de uso contínuo na última vez que deles precisaram, o que pode comprometer as rendas familiares, inclusive para necessidades básicas.
A chance de comprar todos os medicamentos foi maior para aqueles que estavam na área urbana e pertenciam aos grupos de maior renda (Grupos 1 e 2). Isso pode ser resultado de a área urbana possuir maior número de farmácias privadas que a área rural. Além disso, diferentes fatores podem levar os indivíduos a adquirem medicamentos por compra, pois a falta de medicamentos disponíveis na rede pública de saúde parece ser uma das principais causas desse problema.55 Bertoldi AD, Barros AJ, Wagner A, Ross-Degnan D, Hallal PC. Medicine access and utilization in a population covered by primary health care in Brazil.Health Policy. 2009;89(3):295-302. DOI:10.1016/j.healthpol.2008.07.001 Ademais, a disponibilidade de medicamentos genéricos e similares no sistema público de saúde é mais baixa que o esperado e, consequentemente, os pacientes tendem a comprar os medicamentos nas farmácias privadas.55 Bertoldi AD, Barros AJ, Wagner A, Ross-Degnan D, Hallal PC. Medicine access and utilization in a population covered by primary health care in Brazil.Health Policy. 2009;89(3):295-302. DOI:10.1016/j.healthpol.2008.07.001Entretanto, parte dos indivíduos que referiu comprar os medicamentos pode estar adquirindo-os a preço baixo, pelo Programa Farmácia Popular. A impossibilidade de diferenciar esse grupo na análise representa uma limitação deste artigo.
O acesso a medicamentos se mostrou associado a variáveis de saúde e sociodemográficas. De forma geral, quando comparado com os demais grupos, os indivíduos que tiveram acesso gratuito eram idosos mais jovens, procuravam mais frequentemente os mesmos locais para atendimento de saúde, tinham consultado o médico nos últimos 12 meses e não possuíam plano de saúde. Esses resultados são semelhantes ao que foi encontrado em outros estudos caracterizando a população que recebia medicamentos de forma gratuita pelo SUS.33 Aziz MM, Calvo MC, Schneider IJC, Xavier AJ, d´Orsi E. Prevalência e fatores associados ao acesso a medicamentos pela população idosa em uma capital do sul do Brasil: um estudo de base populacional. Cad Saude Publica. 2011;27(10):1939-50. DOI:10.1590/S0102-311X2011001000007,44 Bertoldi AD, Barros AJD, Wagner A, Ross-Degman D, Hallal PC. A descriptive review of the methodologies used in household surveys on medicine utilization. BMC Health Serv Res. 2008;8:222-30. DOI:10.1186/1472-6963-8-222
A ausência de período recordatório representa limitação deste estudo, pois dificulta a comparabilidade com outras pesquisas e pode não estar captando a dimensão do problema, uma vez que não define há quanto tempo o paciente pode estar sem os medicamentos. Outra limitação é quanto ao grupo que referiu conseguir todos os medicamentos de forma gratuita, pois, embora esse tenha sido analisado como aqueles que os adquiriram no SUS, pode haver também, nesse grupo, idosos que conseguiram os medicamentos gratuitamente por outros meios.
A renda tem sido apontada como um dos melhores indicadores únicos de padrões de vida em investigações epidemiológicas.99 Galobardes B, Shaw M, Lawlor DA, Lynch JW, Davey Smith G. Indicators of socioeconomic position (part 1). J Epidemiol Community Health. 2006;60(1):7-12. DOI:10.1136/jech.2004.023531 Entretanto, por não haver definição clara sobre o melhor ponto de corte para a divisão dos grupos de renda no Brasil, o ponto de corte adotado foi escolhido de maneira a categorizar os três grupos de renda que sejam distintos com proporções estabelecidas. Porém, é possível que esse corte não reflita completamente os grupos econômicos brasileiros.
Outra limitação é que os indivíduos tendem a subestimar suas necessidades de medicamentos;44 Bertoldi AD, Barros AJD, Wagner A, Ross-Degman D, Hallal PC. A descriptive review of the methodologies used in household surveys on medicine utilization. BMC Health Serv Res. 2008;8:222-30. DOI:10.1186/1472-6963-8-222 logo, os resultados sobre medicamentos necessários não adquiridos devem ser interpretados com cautela.44 Bertoldi AD, Barros AJD, Wagner A, Ross-Degman D, Hallal PC. A descriptive review of the methodologies used in household surveys on medicine utilization. BMC Health Serv Res. 2008;8:222-30. DOI:10.1186/1472-6963-8-222
Este artigo fornece dados com representatividade nacional sobre a prevalência de tipos de acesso e investiga possíveis fatores associados a cada tipo de acesso e indica que ainda há idosos sem acesso total aos medicamentos de uso contínuo na última vez que deles precisaram e, também, que parcela expressiva, mesmo nos grupos de menor renda, continua comprando o medicamento. Além disso, este estudo poderá guiar ações que visem a obter maior disponibilidade e qualidade da assistência farmacêutica no sistema público de saúde no Brasil.
Referências bibliográficas
- 1Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Soc Behav.1995;36(1):1-10.
- 2Anderson GF, Hussey PS. Population aging: a comparison among industrialized countries. Health Aff (Millwood) 2000;19(3):191-203. DOI:10.1377/hlthaff.19.3.191
- 3Aziz MM, Calvo MC, Schneider IJC, Xavier AJ, d´Orsi E. Prevalência e fatores associados ao acesso a medicamentos pela população idosa em uma capital do sul do Brasil: um estudo de base populacional. Cad Saude Publica 2011;27(10):1939-50. DOI:10.1590/S0102-311X2011001000007
- 4Bertoldi AD, Barros AJD, Wagner A, Ross-Degman D, Hallal PC. A descriptive review of the methodologies used in household surveys on medicine utilization. BMC Health Serv Res 2008;8:222-30. DOI:10.1186/1472-6963-8-222
- 5Bertoldi AD, Barros AJ, Wagner A, Ross-Degnan D, Hallal PC. Medicine access and utilization in a population covered by primary health care in Brazil.Health Policy 2009;89(3):295-302. DOI:10.1016/j.healthpol.2008.07.001
- 6Boing AC, Bertoldi AD, Peres KG. Desigualdades socioeconômicas no gasto e comprometimento da renda com medicamentos no Sul do Brasil. Rev Saude Publica 2011;45(5):897-905. DOI:10.1590/S0034-89102011005000054
- 7Camarano AA, Kanso S, Melo Jl. Como vive o idoso brasileiro. In: Camarano AA, organizadora. Os novos idosos brasileiros, muito além dos 60? Rio de Janeiro: IPEA; 2004. Capítulo 1; p.25-73.
- 8Carvalho MF, Pascom ARP, Souza-Júnior PRB, Damacena GN, Szwarcwald CL. Utilization of medicines by the Brazilian population, 2003. Cad Saude Publica 2005;21(Suppl 1):S100-8. DOI:10.1590/S0102-311X2005000700011
- 9Galobardes B, Shaw M, Lawlor DA, Lynch JW, Davey Smith G. Indicators of socioeconomic position (part 1). J Epidemiol Community Health 2006;60(1):7-12. DOI:10.1136/jech.2004.023531
- 10Gurwitz JH, Rochon P. Considerations in designing an ideal medication-use system: lessons from caring for the elderly. Am J Health Syst Pharm 2000;57(6):548-51.
- 11Jorgensen T, Johansson S, Kennerfalk A, Wallander MA, Svärdsudd K. Prescription drug use, diagnoses, and healthcare utilization among the elderly.Ann Pharmacother 2001;35(9):1004-9. DOI:10.1345/aph.10351
- 12Lima-Costa MF, Barreto S, Giatti L, Uchôa E. Desigualdade social e saúde entre idosos brasileiros: um estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Cad Saude Publica 2003;19(3):745-57. DOI:10.1590/S0102-311X2003000300007
- 13Luz TCB, Loyola Filho AI, Lima-Costa MF. Estudo de base populacional da subutilização de medicamentos por motivos financeiros entre idosos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2009;25(7):1578-86. DOI:10.1590/S0102-311X2009000700016
- 14Miyata DF, Vagetti GC, Fanhani JGP, Andrade OG. Políticas e programas na atenção à saúde do idoso: um panorama nacional. Arq Cienc Saude Unipar 2005;9(2):135-40.
- 15Paniz VM, Fassa AG, Facchini LA, Bertoldi AD, Piccini RX, Tomasi E, et al. Acesso a medicamentos de uso contínuo em adultos e idosos nas regiões Sul e Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica 2008;24(2):267-80. DOI:10.1590/S0102-311X2008000200005
- 16Ritz LS, Adam T, Laing R. A bibliometric study of publication patterns in access to medicines research in developing countries. South Med Rev 2010;3(1):2-6.
- 17Rochon PA, Gurwitz JH. Prescribing for seniors: neither too much nor too little. JAMA 1999;282(2):113-5. DOI:10.1001/jama.282.2.113
- 18Rozenfeld S. Prevalência, fatores associados e mau uso de medicamentos entre os idosos: uma revisão. Cad Saude Publica 2003;19(3):717-24. DOI:10.1590/S0102-311X2003000300004
- 19Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004;20(Supl 2):S190-8. DOI:10.1590/S0102-311X2004000800014
- 20Veras R, Parahyba MI. O anacronismo dos modelos assistenciais para os idosos na área da saúde: desafios para o setor privado. Cad Saude Publica 2007;23(10):2479-89. DOI:10.1590/S0102-311X2007001000022
- 21Williams CM. Using medications appropriately in older adults.Am Fam Physician 2002;66(10):1917-24.
- Pesquisa parcialmente financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ – Processo E-26/102.357/2013).
- aInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Census first final results: Brazil has a population of 190,755,799 residents. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [citado 2013 fev 2]. Disponível em: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/en/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=1866
- bMinistério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Departamento de Formulação de Políticas de Saúde. Política nacional de medicamentos. Brasília (DF); 2001. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios, 25).
- cBrasil. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diario Oficial Uniao. 3 out 2003. Artigo 15, Seção V,§ 2o.
- dMinistério da Saúde. Portaria nº 184, de 3 de fevereiro de 2011. Dispõe sobre o Programa Farmácia Popular no Brasil. Brasília (DF); 2011 [citado 2014 out 9]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt0184_03_02_2011.html
- eInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conta-satélite de Saúde Brasil - 2007-2009: despesas de consumo intermediário e final da administração pública: uma análise dos dados de medicamentos. Rio de Janeiro: IBGE; 2012. (Contas Nacionais, 37).
- fInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2008 - Suplemento. Rio de Janeiro: IBGE; 2009 [citado 2013 fev]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/panorama_saude_brasil_2003_2008/
- gEquivalência em dólar americano: Grupo 1: maior que $1.033,44; Grupo 2: $282,31-$1.033,44; Grupo 3: menor que $282,31, segundo o banco central em 1/6/2008. Banco Central do Brasil. Conversão de moedas [Internet]. Brasília (DF); 2008 [citado 2008 jun 1]. Disponível em: http://www4.bcb.gov.br/pec/conversao/conversao.asp
- Baseado na dissertação de mestrado de Viana KP, intitulada: “Utilização e acesso a medicamentos de uso contínuo em idosos no Brasil segundo os dados da PNAD 2008”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2013.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Fev 2015
Histórico
- Recebido
30 Jan 2014 - Aceito
11 Set 2014