Violência por parceiro íntimo após diagnóstico de doenças sexualmente transmissíveis

Roumayne Fernandes Vieira Andrade Maria Alix Leite Araújo Luiza Jane Eyre de Souza Vieira Cláudia Bastos Silveira Reis Angélica Espinosa Miranda Sobre os autores

Resumo

OBJETIVO

Analisar a prevalência e fatores associados à violência por parceiro íntimo após diagnóstico de doença sexualmente transmissível.

MÉTODOS

Estudo transversal realizado em Fortaleza, CE, em 2012, com 221 pessoas (40,3% do sexo masculino e 59,7% do feminino) atendidas em serviços de referência para tratamento de doenças sexualmente transmissíveis. Os dados foram coletados por meio de questionário aplicado face a face aos participantes. Realizou-se análise multivariada com modelo de regressão logística, utilizando-se a técnica de stepwise. Para análise ajustada, permaneceram as variáveis que tiveram o valor de p < 0,05. Como medida de efeito, usou-se a razão de chances (OR) com intervalo de confiança de 95%.

RESULTADOS

Referiram ter sofrido violência após o diagnóstico de doenças sexualmente transmissíveis 30,3% dos participantes (27,6% psicológica, 5,9% física e 7,2% sexual). Na análise multivariada ajustada para sofrer violência por parceiro íntimo após a revelação do diagnóstico de doença sexualmente transmissível, mantiveram significância estatística: ter tido relações extraconjugais (OR = 3,72; IC95% 1,91;7,26; p = 0,000), parceiro usar álcool (OR = 2,16; IC95% 1,08;4,33; p = 0,026), sofrer violência antes do diagnóstico (OR = 2,87; IC95% 1,44;5,69; p = 0,003) e ter receio de revelar o diagnóstico ao parceiro (OR = 2,66; IC95% 1,32;5,32; p = 0,006).

CONCLUSÕES

Pessoas que tiveram relações extraconjugais, que sofreram violência antes do diagnóstico e que tiveram receio de revelar o diagnóstico ao parceiro, bem como o parceiro fazer uso de álcool, tiveram as chances aumentadas para sofrer violência. A prevalência elevada de violência por parceiro íntimo sugere que pessoas com diagnóstico de doenças sexualmente transmissíveis é uma população crítica para a qual devem ser direcionados esforços de intervenção, e que os serviços de referência para atendimento das doenças sexualmente transmissíveis podem ser locais estratégicos para identificar e prevenir a violência por parceiro íntimo.

Doenças Sexualmente Transmissíveis, diagnóstico; MausTratos Conjugais; Violência; Estudos Transversais


INTRODUÇÃO

A violência é um fenômeno mundial de complexo enfrentamento e que demanda ações intersetoriais. É um dos principais problemas de saúde pública da atualidadeaa Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health. Geneva: World Health Organization; 2002. e tem aumentado nos últimos anos impactando na morbimortalidade da população e repercutindo em custos para a sociedade, para a economia e para a saúde.1010 Miranda MPM, Paula CS, Bordin IA. Violência conjugal física contra a mulher na vida: prevalência e impacto imediato na saúde, trabalho e família.Rev Panam Salud Publica. 2010;27(4):300-8. DOI:10.1590/S1020-49892010000400009,1616 Rodrigues RI, Cerqueira DRC, Lobão WJA, Carvalho AXY. Os custos da violência para o sistema público de saúde no Brasil: informações disponíveis e possibilidades de estimação. Cad Saude Publica.2009;25(1):29-36. DOI:10.1590/S0102-311X2009000100003

A violência por parceiro íntimo (VPI) é de difícil rompimento, uma vez que, entre outras questões, envolve afetividade e dependência econômica.1Barros C, Schraiber LB, França-Junior I. Associação entre violência por parceiro íntimo contra a mulher e infecção por HIV. Rev Saude Publica. 2011;45(2):365-72. DOI:10.1590/S0034-89102011005000008,1010 Miranda MPM, Paula CS, Bordin IA. Violência conjugal física contra a mulher na vida: prevalência e impacto imediato na saúde, trabalho e família.Rev Panam Salud Publica. 2010;27(4):300-8. DOI:10.1590/S1020-49892010000400009 Grande parte dessa violência ocorre em mulheres. Entretanto, por vezes, esses atos de violência física são recíprocos entre os sexos.2424 Whitaker DJ, Haileyesus T, Swahn M, Saltzman, LS. Differences in frequency of violence and reported injury between relationships with reciprocal and nonreciprocal intimate partner violence. Am J Public Health. 2007;97:941-7. DOI:10.2105/AJPH.2005.079020.Em São Paulo, Schraiber et al1919 Schraiber LB, Barros CRS, Castilho EA. Violência contra as mulheres por parceiros íntimos: usos de serviços de saúde. Rev Bras Epidemiol. 2010;13(2):237-45. DOI:10.1590/S1415-790X2010000200006 encontraram prevalência de 59,0% de VPI, sendo que as mulheres que sofreram VPI repetidas vezes, procuraram mais os serviços de saúde.1919 Schraiber LB, Barros CRS, Castilho EA. Violência contra as mulheres por parceiros íntimos: usos de serviços de saúde. Rev Bras Epidemiol. 2010;13(2):237-45. DOI:10.1590/S1415-790X2010000200006

Estudos mostram associação entre ter sofrido VPI e estar mais vulnerável a contrair doenças sexualmente transmissíveis (DST).1Barros C, Schraiber LB, França-Junior I. Associação entre violência por parceiro íntimo contra a mulher e infecção por HIV. Rev Saude Publica. 2011;45(2):365-72. DOI:10.1590/S0034-89102011005000008,1111 Mittal M, Senn TE, Carey MP. Mediators of the relation between partner violence and sexual risk behavior among women attending a sexually transmitted disease clinic. Sex Transm Dis. 2011;38(6):510-15. DOI:10.1097/OLQ.0b013e318207f59b,1717 Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, França Jr I. Grupo de Estudos em População, Sexualidade e Aids. Violência sexual por parceiro íntimo entre homens e mulheres no Brasil urbano, 2005. Rev Saude Publica.2008;42(1):127-37. DOI:10.1590/S0034-89102008000800015 No entanto, são escassos os estudos que analisaram reações violentas por parte do parceiro íntimo após a revelação do diagnóstico de DST. Estudo realizado com adolescentes atendidas em clínicas de saúde reprodutiva em Boston, nos Estados Unidos, encontrou prevalência de 32,0% e 21,0% para violência física e sexual, pelo parceiro íntimo, respectivamente.9Miller E, Decker MR, Raj A, Reed E, Marable D, Silverman JG. Intimate partner violence and health care-seeking patterns among female users of urban adolescent clinics. Matern Child Health J.2010;14(6):910-7. DOI:10.1007/s10995-009-0520-z

Atos violentos entre casais que vivem com HIV/aids1Barros C, Schraiber LB, França-Junior I. Associação entre violência por parceiro íntimo contra a mulher e infecção por HIV. Rev Saude Publica. 2011;45(2):365-72. DOI:10.1590/S0034-89102011005000008,1717 Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, França Jr I. Grupo de Estudos em População, Sexualidade e Aids. Violência sexual por parceiro íntimo entre homens e mulheres no Brasil urbano, 2005. Rev Saude Publica.2008;42(1):127-37. DOI:10.1590/S0034-89102008000800015 podem provocar danos à saúde física e emocional das pessoas. É possível que a revelação do diagnóstico das outras DST ao parceiro sexual provoque atos violentos, o que pode ser responsável pela dificuldade de tratamento dos parceiros sexuais de portadores dessas doenças.2Campos ALA, Araújo MAL, Melo SP, Gonçalves MLC. Epidemiologia da sífilis gestacional em Fortaleza, Ceará, Brasil: um agravo sem controle.Cad Saude Publica. 2010;26(9):1747-55. DOI:10.1590/S0102-311X2010000900008,3Decker MR, Miller E, McCauley HL, Tancredi DJ, Levenson RR, Waldman J. Intimate partner violence and partner notification of sexually transmitted infections among adolescent and young adult family planning clinic patients.Int J STD AIDS. 2011;22(6):345-47. DOI:10.1258/ijsa.2011.010425

O objetivo deste estudo foi analisar prevalência e fatores associados à violência por parceiro íntimo após diagnóstico de DST.

MÉTODOS

Trata-se de estudo transversal realizado em Fortaleza, CE, em 2012. Atualmente, o município dispõe de uma rede de serviços de saúde com três ambulatórios de referência para atendimento de pessoas com DST. Essas unidades realizaram 8.966 atendimentos no ano de 2011 a pessoas com diagnóstico de DST.

Participaram do estudo homens e mulheres atendidos com diagnóstico sindrômico e/ou etiológico de DST. A amostra foi calculada com base na população de 8.966 pessoas atendidas no ano de 2011, frequência de 18,0% esperada de VPI em pessoas atendidas em clínicas de DST,1111 Mittal M, Senn TE, Carey MP. Mediators of the relation between partner violence and sexual risk behavior among women attending a sexually transmitted disease clinic. Sex Transm Dis. 2011;38(6):510-15. DOI:10.1097/OLQ.0b013e318207f59b erro amostral de 5% e intervalo de confiança de 95%, totalizando 221 pessoas.

Foram incluídos no estudo pessoas diagnosticadas com DST, com acompanhamento ambulatorial nas referidas clínicas, com pelos menos duas consultas, tempo máximo de até três meses de diagnóstico e que tinham revelado o diagnóstico ao parceiro sexual. No Brasil, é rotina dos serviços de saúde orientar os pacientes com DST a retornar para avaliação do tratamento.bb Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Manual de controle das doenças sexualmente transmissíveis. 4a ed. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2006. A necessidade de incluir pessoas que tivessem recebido pelo menos duas consultas ocorreu para que houvesse tempo hábil de revelar o diagnóstico ao parceiro sexual.

Foram excluídas pessoas diagnosticadas com HIV/aids que apresentavam distúrbios mentais ou que não tinham parceiro sexual na ocasião do diagnóstico. A exclusão de pessoas com HIV/aids justifica-se porque a hipótese deste estudo foi a de que a VPI pode comprometer o tratamento de pessoas com diagnóstico de DST. As DST são patologias que devem ser identificadas e tratadas na atenção primária e os esforços para o controle são negligenciados quando comparados com o HIV/aids.1414 Ramos Jr AN, Matida LH, Saraceni V, Veras MASM, Pontes RJS. Control of mother-to-child transmission of infectious diseases in Brazil: progress in HIV/AIDS and failure in congenital syphilis. Cad Saude Publica.2007;23(Suppl 3):370-8. DOI:10.1590/S0102-311X2007001500005 As medidas para impedir a transmissão do HIV/aids são largamente difundidas, financiadas, implementadas e avaliadas de forma independente das outras DST.

Considerou-se como violência entre parceiros íntimos qualquer ato intencional em uma relação íntima que cause dano físico, psíquico ou sexual aos membros da relação, i.e., agressões físicas, violência psicológica, relações sexuais forçadas e outras formas de coação sexual, além de diversos comportamentos dominantes, como isolar uma pessoa da família ou amigos, vigiar seus movimentos ou restringir seu direito à informação ou à assistência.aa Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health. Geneva: World Health Organization; 2002. Foi considerado como parceiro(a) íntimo(a), esposo(a), namorado(a), noivo(a) ou qualquer outra pessoa com que se desenvolva relação íntimo-afetiva.

Os dados foram coletados entre março e setembro de 2012, utilizando questionário aplicado em entrevista presencial em sala privativa. Todos os pacientes da sala de espera dos ambulatórios de DST eram questionados se tinham comparecido para consulta de retorno; aqueles que responderam afirmativamente e se enquadraram nos critérios de inclusão foram convidados a participar da pesquisa.

Os questionários foram aplicados por uma enfermeira devidamente capacitada, com experiência na abordagem a pessoas com DST e habilidade no trato das questões relacionadas ao tema da violência. Considerou-se, assim, que apesar de não ter havido paridade entre o sexo da pesquisadora e dos participantes masculinos, não houve prejuízo na qualidade dos dados coletados.

No questionário constavam variáveis: sociodemográficas (sexo, idade, escolaridade, renda pessoal e familiar); comportamentais (número de parceiros sexuais, orientação sexual, relação extraconjugal, uso de álcool, drogas e uso de preservativo); institucionais e clínicas (tipo de DST e abordagem da violência pelo serviço de saúde) e referentes à violência sofrida antes e após o diagnóstico da DST (natureza da violência, intensidade da sua ocorrência). A variável dependente foi sofrer VPI após a revelação do diagnóstico de DST ao parceiro sexual.

A VPI foi categorizada pelas formas psicológica, física ou sexual, tendo sido considerada presente quando o entrevistado respondeu afirmativamente a pelo menos uma das perguntas sobre violência.

As questões relacionadas à VPI foram elaboradas utilizando como referência o questionário do estudo multipaíses sobre a saúde da mulher e violência doméstica, da Organização Mundial da Saúde, validado no Brasil.1818 Schraiber LB, Latorre MRD, França Jr I, Segri NJ, D’Oliveira AFPL. Validade do instrumento WHO VAW STUDY para estimar violência de gênero contra a mulher. Rev Saude Publica. 2010;44(4):658-66. DOI:10.1590/S0034-89102010000400009,aa Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health. Geneva: World Health Organization; 2002.

Foram consideradas 234 pessoas elegíveis, das quais 5,5% se recusaram a participar do estudo. Das 221 pessoas portadoras de DST incluídas, 40,3% eram homens e 132, 59,7%, mulheres. A maioria das pessoas (68,3%) estava em tratamento para verruga genital, 18,6% para sífilis, 8,1% para herpes genital, 3,2% para gonorreia, 0,9% para tricomoníase, 0,5% para doença inflamatória pélvica e donovanose.

A Tabela 1 apresenta os dados sociodemográficos dos participantes. A média de idade foi 30,3 anos (52,5% tinham até 29 anos), 59,7% pessoas tinham mais de nove anos de estudo e 80,5% se declararam não brancos. Pouco mais da metade (69,2%) era casada ou vivia em união consensual. A média da renda pessoal mensal foi R$540,69 e a maioria (63,8%) ganhava até um salário mínimo.

Tabela 1
Variáveis sociodemográficas de pessoas atendidas em serviços de referência para doenças sexualmente transmissíveis. Fortaleza, CE, 2012.

Foi realizada análise descritiva utilizando a distribuição de frequências para as variáveis categóricas e cálculo de média e desvio padrão para as variáveis numéricas. Na análise bivariada foram aplicados teste Qui-quadrado de Pearson e teste exato de Fisher para verificar associações estatísticas entre as variáveis categóricas, estabelecendo um nível de significância de 5% e intervalo de confiança de 95%. Os dados foram digitados e armazenados utilizando-se o pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 19.0.

Realizou-se análise multivariada por meio de modelo de regressão logística, utilizando-se a técnica stepwise. Para a análise ajustada, permaneceram as variáveis que tiveram o valor de p < 0,05. Como medida de efeito, usou-se a razão de chances (OR) com intervalo de confiança de 95%. Utilizou-se o pacote estatístico Stata versão 11.0.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza (Parecer 437/2011) e do Hospital Universitário Walter Cantídio (Parecer 043.06.12) e atendeu às recomendações da OMS para pesquisas sobre violência domestica.cc Word Health Organization. Putting Woman First: Ethical and Safety Recommendations for Research on Domestic Violence Against Women. Geneva; 2001. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Considerando que estavam recebendo tratamento para DST, situação em que é ofertado o teste anti-HIV, e que nessas circunstâncias o adolescente tem autonomia para tomada de decisão,dd Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e AIDS. Implicações Éticas do Diagnóstico e da Triagem Sorológica do HIV. Brasília (DF); 2004. foi dispensada a assinatura desse termo, por parte dos pais, para os menores de 18 anos.

RESULTADOS

Referiram ter sofrido algum tipo de violência, após o diagnóstico de DST, 30,3% pessoas, 28,8% mulheres e 32,6% homens, sem apresentar significância estatística. Os tipos de violência relatados foram: 27,6% psicológica, 5,9% física e 7,2% sexual. Apenas uma pessoa (0,5%) relatou ter denunciado o parceiro pela violência. Os entrevistados referiram que o tema violência foi abordado por 5,4% profissionais de saúde durante o atendimento (dados não apresentados em tabela).

Sofrer violência mostrou-se associado à presença de: mais de um parceiro sexual nos últimos três meses (p = 0,001), relação extraconjugal (p = 0,000), prática de violência antes da DST (p = 0,011), receio de revelar o diagnóstico ao parceiro (p = 0,008) e de relações extraconjugais (p = 0,001) e uso de álcool (p = 0,026) por parte do parceiro (Tabela 2).

Tabela 2
Variáveis comportamentais associadas à violência por parceiro íntimo em pessoas com diagnóstico de doença sexualmente transmissível. Fortaleza, CE, 2012. (N = 221)

A Tabela 3 mostra a análise por sexo de pessoas com diagnóstico de DST que sofreram VPI e as variáveis comportamentais do parceiro sexual. O parceiro ter se relacionado com outra pessoa durante o relacionamento atual (p = 0,001) e fazer uso de bebidas alcoólicas (p = 0,001) foram as variáveis significantes para sofrer violência homens e mulheres.

Tabela 3
Variáveis comportamentais dos parceiros sexuais de pessoas com diagnóstico de doença sexualmente transmissível que sofreram violência por parceiro íntimo, segundo sexo. Fortaleza, CE, 2012.

As variáveis que mantiveram significância estatística para sofrer violência após revelação do diagnóstico de DST, nas análises bruta e ajustada, foram: portador da DST ter tido relações extraconjugais (OR = 3,72; IC95% 1,91;7,26; p = 0,001), sofrer violência antes do diagnóstico de DST (OR = 2,87; IC95% 1,44;5,69; p = 0,003) e ter receio de revelar o diagnóstico ao parceiro (OR = 2,66; IC95% 1,32;5,32; p = 0,006); e o parceiro usar álcool (OR = 2,16; IC95% 1,08;4,33; p = 0,026) (Tabela 4).

Tabela 4
Análise de regressão logística multivariada, ajustada e não ajustada entre variáveis comportamentais e sofrer violência por parceiro íntimo após revelação do diagnóstico de doença sexualmente transmissível. Fortaleza, CE, 2012.

DISCUSSÃO

A prevalência de VPI após a revelação do diagnóstico de DST foi 30,3%. Apenas uma pessoa denunciou a violência na delegacia e, entre as pessoas que sofreram agressões físicas, três julgaram necessitar de cuidados médicos, mas nenhuma procurou atendimento de saúde. Vítimas de VPI alegam vergonha de expor o problema e medo da reação do companheiro como os principais motivos para não procurar ajuda em serviços de saúde.1010 Miranda MPM, Paula CS, Bordin IA. Violência conjugal física contra a mulher na vida: prevalência e impacto imediato na saúde, trabalho e família.Rev Panam Salud Publica. 2010;27(4):300-8. DOI:10.1590/S1020-49892010000400009

Observou-se que a revelação do diagnóstico de DST desencadeia atos violentos nos relacionamentos, condição que deve ser considerada durante o aconselhamento, especialmente diante da necessidade de convocação dos parceiros sexuais. O medo da reação do parceiro é um dos principais motivos relacionados à dificuldade em tratar os parceiros sexuais de portadores de DST. Pesquisa realizada com mulheres de clínicas de planejamento familiar mostrou que os parceiros das mulheres que sofriam VPI eram menos testados e tratados para as DST.3Decker MR, Miller E, McCauley HL, Tancredi DJ, Levenson RR, Waldman J. Intimate partner violence and partner notification of sexually transmitted infections among adolescent and young adult family planning clinic patients.Int J STD AIDS. 2011;22(6):345-47. DOI:10.1258/ijsa.2011.010425

As questões de gênero podem estar relacionadas ao problema da transmissão das DST, interferindo no tratamento de parceiros sexuais. Estudo realizado com homens em Bangladesh mostrou que 36,8% referiram praticar violência física e/ou sexual com suas esposas e que os que as praticavam tinham mais relação extraconjugal e sintomas de DST.2020 Silverman JG, Decker, MR, Kapur NA, Gupta J, Raj A. Violence against wives, sexual risk and sexually transmitted infection among Bangladeshi men.Sex Transm Infect. 2007;83(3):211-5. DOI:10.1136/sti.2006.023366 A possibilidade das relações extraconjugais como um dos motivos do surgimento da DST pode ser uma das principais causas da VPI, considerando que as chances de sofrer VPI foram três vezes maiores quando o entrevistado havia mantido relações sexuais concomitantes.

No presente estudo, a infecção pelo papiloma vírus humano (HPV) atingiu 68,3% dos entrevistados, com predominância entre as mulheres (60,3%), superior à taxa global de 41,2% de infecção pelo HPV entre pessoas que procuram serviços de DST no Brasil.ee Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e AIDS. Prevalências e frequências relativas de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) em populações selecionadas de seis capitais brasileiras, 2005. Brasília (DF); 2008. É importante que os profissionais considerem junto com o paciente o longo período de incubação de algumas infecções, situação que pode minimizar o problema da VPI. Existe a possibilidade de a infecção ter sido contraída em um relacionamento anterior, o que pode atenuar os conflitos gerados pela revelação do diagnóstico ao parceiro.

As chances de sofrer VPI após a revelação do diagnóstico foram duas vezes maiores (OR = 2,17) quando o parceiro fazia uso de álcool. O álcool reduz o autocontrole, afeta o funcionamento cognitivo e físico,1515 Ray LA, Mackillop J, Leventhal A, Hutchison KE Catching the alcohol buzz: an examination of the latent factor structure of subjective intoxication.Alcohol Clin Exp Res. 2009;33(12):2154-61. DOI:10.1111/j.1530-0277.2009.01053.x o que pode comprometer a capacidade do indivíduo para resolução dos conflitos do relacionamento sem uso da violência. O consumo de álcool aumenta a ocorrência e gravidade da violência doméstica5Fonseca AM, Fernandes Galduróz JC, Tondowski CS, Noto AR. Padrões de violência domiciliar associada ao uso de álcool no Brasil. Rev Saude Publica. 2009;43(5):743-9. DOI:10.1590/S0034-89102009005000049 e é um forte determinante da VPI.2222 Tumwesigye NM, Kyomuhendo, GB, Greenfield TK, Wanyenze RK. Problem drinking and physical intimate partner violence against women: evidence from a national survey in Uganda. BMC Public Health. 2012;12:399. DOI:10.1186/1471-2458-12-399

No presente estudo a proporção de violência sexual foi maior que a violência física. No ambiente privado, a VPI pode ocorrer de forma mais sutil, sob a forma de violência psicológica e/ou sexual, não sendo identificada inclusive pela vítima como um tipo de violência. Quando associada ao diagnóstico de DST, a situação tende a se agravar, pois dificulta a inserção do uso do preservativo.8Lary H, Maman S, Katebalila M, Mbwambo J. Exploring the association between HIV and violence: young people’s experiences with infidelity, violence and forced sex in Dar es Salaam, Tanzania. Int Fam Plan Perspect. 2004;30(4):200-6. DOI:10.1363/3020004,2121 Silverman JG, McCauley HL, Decker MR, Miller E, Reed E, Raj A. Coercive Forms of Sexual Risk and Associated Violence Perpetrated by Male Partners of Female Adolescents. Perspect Sex Reprod Health.2011;43(1):60-65. DOI:10.1363/4306011 As mulheres frequentam mais o serviço de saúde e tem mais oportunidades de ser diagnosticadas com DST. Já os homens tradicionalmente evitam procurar os serviços que apresentam um acolhimento pouco atrativo.7Gomes R, Moreira MCN, Nascimento EF, Rebello LEFS, Couto MT, Schraiber LB. Os homens não vêm! Ausência e/ou invisibilidade masculina na atenção primária. Cienc Saude Coletiva. 2012;16 Suppl1:983-92. DOI:10.1590/S1413-81232011000700030 Apenas recentemente, estão sendo implementados programas voltados para a saúde masculina.ff Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde do homem: princípios e diretrizes. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2009. Mulheres que convivem com VPI repetitiva expressam maior frequência de uso de serviços e de agravos à saúde; o maior uso relaciona-se à gravidade da situação de violência, bem como à sua repetição.1919 Schraiber LB, Barros CRS, Castilho EA. Violência contra as mulheres por parceiros íntimos: usos de serviços de saúde. Rev Bras Epidemiol. 2010;13(2):237-45. DOI:10.1590/S1415-790X2010000200006Identificar se o usuário dos serviços de referência para DST vivencia situação de violência é uma importante questão que deve ser trabalhada pelos profissionais de saúde. Pessoas que já viviam situação de violência antes do diagnóstico apresentaram duas vezes mais chances de sofrer violência após o diagnóstico da DST. Estudo realizado em Nova Iorque, EUA, com mulheres economicamente desfavorecidas, encontrou que aquelas que sofrem VPI uma vez na vida estão em risco de ocorrência repetida da violência.1212 O’Donnell L, Agronick G, Duran R, Myint-U A, Stueve A. Intimate partner violence among economically disadvantaged young adult women: associations with adolescent risk-taking and pregnancy experiences.Perspect Sex Reprod Health. 2009;41(2):84-91. DOI:10.1363/4108409

Na presente pesquisa, pessoas que relataram receio de revelar o diagnóstico da DST ao parceiro apresentaram duas vezes mais chance de sofrer VPI após a revelação (OR = 2,66), situação encontrada também na Califórnia, EUA, onde mulheres que sofriam VPI relataram medo de revelar o diagnóstico de DST ao parceiro.3Decker MR, Miller E, McCauley HL, Tancredi DJ, Levenson RR, Waldman J. Intimate partner violence and partner notification of sexually transmitted infections among adolescent and young adult family planning clinic patients.Int J STD AIDS. 2011;22(6):345-47. DOI:10.1258/ijsa.2011.010425

A dificuldade de tratar os parceiros sexuais das pessoas com DST é uma realidade que tem baixa resolução pelos métodos tradicionais de convocação pelos serviços de saúde.6Golden MR, Whittington WL, Handsfield HH, Hughes JP, Stamm WE, Hogben M, et al. Effect of expedited treatment of sex partners on recurrent or persistent gonorrhea or chlamydial infection. New Engl J Med.2005;352(7):676-85. DOI:10.1056/NEJMoa041681 Definir uma estratégia eficaz de convocação ainda é um desafio para os gestores e profissionais de saúde. Parece não existir uma única forma efetiva que minimize esse problema.4Ferreira A, Young T, Mathews C, Zunga M, Low N. Strategies for partner notification for sexually transmitted infections, including HIV.Cochrane Database Syst Rev. 2013 Oct 3;10:CD002843. DOI:10.1002/14651858.CD002843.pub2 Entretanto, a convocação do parceiro é uma medida extremamente importante, uma vez que proporciona a oportunidade de avaliação e tratamento médico, limitando a propagação da infecção.

A pouca denúncia da violência e da procura por cuidados médicos por parte das vítimas reforça achados de estudo realizado com mulheres de uma cidade da região metropolitana de São Paulo, SP, o qual mostrou que a vergonha de expor o problema e o medo da reação do companheiro foram os principais motivos referidos para as pessoas não procurarem ajuda.1010 Miranda MPM, Paula CS, Bordin IA. Violência conjugal física contra a mulher na vida: prevalência e impacto imediato na saúde, trabalho e família.Rev Panam Salud Publica. 2010;27(4):300-8. DOI:10.1590/S1020-49892010000400009

O presente estudo revela dados importantes para os serviços que atendem pessoas com DST, entretanto apresenta algumas limitações. Medidas foram utilizadas para minimizar ao máximo a omissão de informações, contudo, como se trata de dois temas de difícil abordagem e de natureza íntima (DST e violência), os entrevistados podem ter sentido desconforto e ocultado algumas informações. Entretanto, seus resultados são relevantes e enfatizam a importância de considerar o problema da violência como um dos aspectos que pode dificultar o tratamento dos parceiros sexuais de portadores de DST.

A maioria (94,1%) dos usuários dos serviços de referência para DST referiu que o tema violência não havia sido abordado pelos profissionais de saúde durante o atendimento, indicando a falta de oportunidade para lidar com temas delicados. Essa dificuldade se deve, em parte, à falta de contato com o tema durante a formação acadêmica1313 Pedrosa CM, Spink MJP. A violência contra mulher no cotidiano dos serviços de saúde: desafios para a formação médica. Saude Soc.2011;20(1):124-35. DOI:10.1590/S0104-12902011000100015 e mesmo em um programa de educação permanente bem como ao não reconhecimento da violência como um problema de saúde pública.2323 Vieira EM, Perdona GCS, Almeida AM, Nakano MAS, Santos MA, Daltoso D, et al. Conhecimento e atitude dos profissionais de saúde em relação à violência de gênero. Rev Bras Epidemiol. 2009;12(4):566-77. DOI:10.1590/S1415-790X2009000400007

Os resultados do presente estudo mostram a necessidade de esforços intersetoriais e de comprometimento de profissionais de saúde e gestores com o aconselhamento a fim de identificar e prevenir a VPI em pessoas com DST.

As orientações de prevenção e promoção da saúde devem abordar os medos relacionados à comunicação do diagnóstico de DST ao parceiro, particularmente entre aqueles que sofreram VPI. A ameaça potencial de dano psicológico, físico e sexual em resposta à revelação também deve ser considerada. Todos os portadores de DST devem ser abordados acerca da possibilidade de VPI após a comunicação do diagnóstico ao parceiro sexual, de forma que possam ser ajudados pelos serviços de saúde, minimizando as suas possíveis consequências.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2015

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2014
  • Aceito
    13 Jul 2014
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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