RESUMO
O objetivo deste estudo foi descrever a detecção digital de doenças e vigilância participativa em diferentes países. Os sistemas ou plataformas consolidados no meio científico foram analisados por descrição da estratégia, do tipo de fonte de dados, dos objetivos principais e da forma de interação com os usuários. Foram analisados 11 sistemas ou plataformas, desenvolvidos entre 1996 e 2016. Observou-se maior frequência de mineração de dados na web e crowdsourcing ativo e tendência no uso de aplicativos móveis. É importante provocar o debate nos âmbitos acadêmico e dos serviços de saúde para evolução dos métodos e percepções sobre a vigilância participativa na era digital.
Vigilância em Saúde Pública; Aplicativos Móveis, tendências; Tecnologia da Informação; Ciência, Tecnologia e Sociedade
INTRODUÇÃO
Os estudos epidemiológicos aplicados à vigilância em saúde nas últimas duas décadas iniciaram um recrutamento de novas metodologias para a investigação de surtos ou acompanhamento de tendências em doenças infecciosas, visando a identificação precoce de surtos e doenças infecciosas11. Brabham DC. Crowdsourcing as a model for problem solving: an introduction and cases. Convergence. 2008;14(1):75-90. DOI:10.1177/1354856507084420. Atualmente, diversas plataformas eletrônicas, como HealthMap, Google Flu Trends e Flu Near You, permitem a visualização dos cenários epidemiológicos ao redor do mundo, disponibilizando dados sobre doenças para a população, viajantes e serviços de saúde77. Wójcik OP, Brownstein JS, Chunara R, Johansson MA. Public health for the people: participatory infectious disease surveillance in the digital age. Emerg Themes Epidemiol. 2014;11:7. DOI:10.1186/1742-7622-11-7.eCollection 2014. O Regulamento Sanitário Internacional (RSI), quando foi implementado, já contava com a evolução dos sistemas de transporte que facilitam o deslocamento de indivíduos por todo o planeta. Esses sistemas aceleram a disseminação de doenças infecciosas, demandando maior agilidade na identificação desses riscos22. Chan EH, Brewer TF, Madoff LC, Pollack MP, Sonricker AL, Keller M et al. Global capacity for emerging infectious disease detection. Proc Natl Acad Sci USA. 2010;107(50):21701-6. DOI:10.1073/pnas.1006219107. Além disso, um dos pontos atualizados na última versão do RSI foi a utilização das fontes não oficiais (por exemplo, a mídia em geral) para a detecção de rumores sobre possíveis surtos ou casos de doenças tidas como emergências em saúde pública22. Chan EH, Brewer TF, Madoff LC, Pollack MP, Sonricker AL, Keller M et al. Global capacity for emerging infectious disease detection. Proc Natl Acad Sci USA. 2010;107(50):21701-6. DOI:10.1073/pnas.1006219107. O uso dessas fontes não oficiais se resume em grande parte à informação que está disponível na internet, quer seja produzida e distribuída por websites e portais de notícias, quer seja pela construção coletiva dos usuários nas mídias sociais – movimento conhecido como crowdsourcing33. Christakis NA, Fowler JH. Social network sensors for early detection of contagious outbreaks. PLoS One. 2010;5(9):e12948. DOI:10.1371/journal.pone.0012948. A publicação e circulação de conteúdo produzido por usuários da rede relacionado à epidemiologia de doenças foram caracterizadas por Epidemiologia Participativa66. Signorini A, Segre AM, Polgreen PM. The use of twitter to track levels of disease activity and public concern in the U.S. during the influenza A H1N1 pandemic. PLoS One. 2011;6(5):e19467. DOI:10.1371/journal.pone.0019467 e seu estudo pode ser definido pelos acrônimos Infodemiology e Infoveillance, sendo entendidos respectivamente por Epidemiologia da Informação e Vigilância da Informação44. Eysenbach G. Infodemiology and infoveillance: framework for an emerging set of public health informatics methods to analyze search, communication and publication behavior on the Internet. J Med Internet Res. 2009;11(1):e11. DOI:10.2196/jmir.1157. Técnicas computacionais têm permitido a mineração de dados no ciberespaço amplo, ou seja, análise de semânticas e palavras-chaves dispersas na internet, ligadas a textos com relevância epidemiológica, capturando e contabilizando conjuntos de palavras, apontando tendências44. Eysenbach G. Infodemiology and infoveillance: framework for an emerging set of public health informatics methods to analyze search, communication and publication behavior on the Internet. J Med Internet Res. 2009;11(1):e11. DOI:10.2196/jmir.1157. A busca em nichos mais específicos e, por questões técnicas, não atingidos pelos métodos descritos anteriormente também é apontada como uma fonte de elevada importância para a saúde pública coincidindo com as curvas epidêmicas dos agravos, a exemplo da mineração em redes sociais digitais como o Twitter44. Eysenbach G. Infodemiology and infoveillance: framework for an emerging set of public health informatics methods to analyze search, communication and publication behavior on the Internet. J Med Internet Res. 2009;11(1):e11. DOI:10.2196/jmir.1157,66. Signorini A, Segre AM, Polgreen PM. The use of twitter to track levels of disease activity and public concern in the U.S. during the influenza A H1N1 pandemic. PLoS One. 2011;6(5):e19467. DOI:10.1371/journal.pone.0019467.
O Brasil, apesar de ser reconhecido como polo de desenvolvimento computacional em saúde, apresenta resultados tímidos na produção científica relacionada à detecção digital de doenças. O País possui experiências exitosas na utilização de mineração de dados em redes sociais e vigilância participativa ligadas ao estudo da epidemiologia da dengue como os projetos Observatório da Dengue e Dengue na Web44. Eysenbach G. Infodemiology and infoveillance: framework for an emerging set of public health informatics methods to analyze search, communication and publication behavior on the Internet. J Med Internet Res. 2009;11(1):e11. DOI:10.2196/jmir.1157,77. Wójcik OP, Brownstein JS, Chunara R, Johansson MA. Public health for the people: participatory infectious disease surveillance in the digital age. Emerg Themes Epidemiol. 2014;11:7. DOI:10.1186/1742-7622-11-7.eCollection 2014. Entretanto, outras doenças com características clínicas agudas e que necessitam de uma rápida detecção não eram cobertas por estratégias desse tipo, apontando a carência dos estudos voltados para as doenças de notificação compulsória imediata. Diante disso e do desenvolvimento turístico, comercial e industrial do País, a necessidade de estratégias como estas tiveram prioridade na implementação, haja vista a ocorrência de grandes eventos como a Copa do Mundo de Futebol que demandaram uma preparação antecipada e otimizada do setor saúde para a mitigação de riscos infecciosos que por ventura viessem a ocorrer, resultando no projeto Saúde na Copa77. Wójcik OP, Brownstein JS, Chunara R, Johansson MA. Public health for the people: participatory infectious disease surveillance in the digital age. Emerg Themes Epidemiol. 2014;11:7. DOI:10.1186/1742-7622-11-7.eCollection 2014. A partir desta experiência exitosa, o Brasil continuou investindo esforços e colaborações para dar prosseguimento à vigilância participativa, culminando no lançamento da plataforma Guardiões da Saúde, em 2016.
O objetivo deste estudo foi descrever a detecção digital de doenças e vigilância participativa, desenvolvidas entre 1996 a 2016, em diferentes países.
MÉTODO
No período de outubro de 2013 a março de 2016, foi realizada análise descritiva a partir da construção de categorias baseadas nos objetos de estudo, sendo estes divididos em: (1) Detecção digital de doenças na web; (2) Vigilância participativa (crowdsourcing ativo); e (3) Twitter (crowdsourcing passivo). Dentro da primeira categoria estão descritas experiências que utilizam a busca ativa de dados com importância epidemiológica na internet. Na segunda, as experiências em que indivíduos participam do processo como fonte primária de informação para a construção dos cenários epidemiológicos. Por último, estão apresentadas as pesquisas relacionadas a coleta de dados com relevância epidemiológica no Twitter. Com a finalidade de delimitar o objeto de estudo, só foram abordadas as experiências que possuem reconhecimento consolidado no meio científico medido por repetição de suas citações em artigos desta temática.
Para a caracterização da análise das plataformas, foi utilizada a descrição da estratégia, o tipo de fonte de dados (primários para dados coletados diretamente de usuários e secundários para dados coletados no ciberespaço), objetivos principais de cada sistema e plataforma de interação com os usuários (website para coleta, registro e consulta de informações apenas em sítios eletrônicos e aplicativo móvel para coleta, registro e consulta de informações por dispositivos móveis como tablets e smartphones).
RESULTADOS
A Tabela descreve a estratégia de 11 sistemas ou plataformas de detecção digital de doenças. Em relação à caracterização dos sistemas, observa-se predominância de países na América do Norte, maior frequência de mineração de dados com relevância epidemiológica na web e crowdsourcing ativo, utilização de fontes de dados primárias e secundárias e tendência no uso de aplicativos móveis para coleta, registro e consulta de informações. Todas as plataformas demandam cadastro para o usuário enviar e ter acesso às informações, porém são gratuitas para participação.
Das plataformas apresentadas, sete apresentaram potencial utilização no Brasil, onde algumas delas já fazem parte das rotinas dos Centros de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde (CIEVS) das secretarias municipais de saúde de capitais, secretarias estaduais de saúde e Ministério da Saúde.
DISCUSSÃO
No atual processo do fluxo de informações considerando a vigilância epidemiológica, o indivíduo doente só será conhecido pela vigilância ao adentrar algum serviço, onde, após o diagnóstico da suspeita, ele poderá ser notificado como possível caso. Porém, o intervalo entre o adoecimento e a notificação poderá gerar impacto na saúde pública se o caso, por exemplo, se expor a diversos contactantes suscetíveis àquela doença33. Christakis NA, Fowler JH. Social network sensors for early detection of contagious outbreaks. PLoS One. 2010;5(9):e12948. DOI:10.1371/journal.pone.0012948
4. Eysenbach G. Infodemiology and infoveillance: framework for an emerging set of public health informatics methods to analyze search, communication and publication behavior on the Internet. J Med Internet Res. 2009;11(1):e11. DOI:10.2196/jmir.1157
5. Salathé M, Bengtsson L, Bodnar TJ, Brewer DD, Brownstein JS, Buckee C. Digital epidemiology. PLoS One. 2012;8(7):e1002616. DOI:10.1371/journal.pcbi.1002616
6. Signorini A, Segre AM, Polgreen PM. The use of twitter to track levels of disease activity and public concern in the U.S. during the influenza A H1N1 pandemic. PLoS One. 2011;6(5):e19467. DOI:10.1371/journal.pone.0019467-77. Wójcik OP, Brownstein JS, Chunara R, Johansson MA. Public health for the people: participatory infectious disease surveillance in the digital age. Emerg Themes Epidemiol. 2014;11:7. DOI:10.1186/1742-7622-11-7.eCollection 2014. Por outro lado, o preenchimento dessa lacuna pode ser feito tanto pela investigação das fontes não oficiais, como redes sociais, em que os usuários postam com frequência suas situações rotineiras, tendo participação passiva, ou ainda, no preenchimento de instrumentos específicos para a coleta de dados sindrômicos, assim apresentando participação ativa. Nos dois casos, o intervalo incógnito tido anteriormente é suprido pela captura de informações relevantes33. Christakis NA, Fowler JH. Social network sensors for early detection of contagious outbreaks. PLoS One. 2010;5(9):e12948. DOI:10.1371/journal.pone.0012948
4. Eysenbach G. Infodemiology and infoveillance: framework for an emerging set of public health informatics methods to analyze search, communication and publication behavior on the Internet. J Med Internet Res. 2009;11(1):e11. DOI:10.2196/jmir.1157
5. Salathé M, Bengtsson L, Bodnar TJ, Brewer DD, Brownstein JS, Buckee C. Digital epidemiology. PLoS One. 2012;8(7):e1002616. DOI:10.1371/journal.pcbi.1002616
6. Signorini A, Segre AM, Polgreen PM. The use of twitter to track levels of disease activity and public concern in the U.S. during the influenza A H1N1 pandemic. PLoS One. 2011;6(5):e19467. DOI:10.1371/journal.pone.0019467-77. Wójcik OP, Brownstein JS, Chunara R, Johansson MA. Public health for the people: participatory infectious disease surveillance in the digital age. Emerg Themes Epidemiol. 2014;11:7. DOI:10.1186/1742-7622-11-7.eCollection 2014.
No tocante à mineração de informações nas redes sociais, com característica de participação passiva55. Salathé M, Bengtsson L, Bodnar TJ, Brewer DD, Brownstein JS, Buckee C. Digital epidemiology. PLoS One. 2012;8(7):e1002616. DOI:10.1371/journal.pcbi.1002616,66. Signorini A, Segre AM, Polgreen PM. The use of twitter to track levels of disease activity and public concern in the U.S. during the influenza A H1N1 pandemic. PLoS One. 2011;6(5):e19467. DOI:10.1371/journal.pone.0019467, uma questão que deve ser considerada é: até onde vai a liberdade dos serviços de inteligência epidemiológica na busca de informações nesses ambientes, uma vez que os usuários não sabem que o que estão postando está sendo considerado suspeito?
Obviamente a constituição não previa tal evolução das tecnologias, mas tenta se adaptar com o movimento do Marco Civil da Internet, que está pautando os princípios, garantias, direitos e deveres dos usuários66. Signorini A, Segre AM, Polgreen PM. The use of twitter to track levels of disease activity and public concern in the U.S. during the influenza A H1N1 pandemic. PLoS One. 2011;6(5):e19467. DOI:10.1371/journal.pone.0019467,77. Wójcik OP, Brownstein JS, Chunara R, Johansson MA. Public health for the people: participatory infectious disease surveillance in the digital age. Emerg Themes Epidemiol. 2014;11:7. DOI:10.1186/1742-7622-11-7.eCollection 2014. Em um cenário em que é importante a detecção precoce de casos suspeitos e rumores, as questões devem se sobrepor à minimização de riscos de disseminação de uma eventual doença infecciosa? Os comitês de ética em pesquisa necessitam se empoderar dos temas, conhecer os diversos instrumentos e enxergar o horizonte de possibilidades que o campo permite para, então, apresentar bom julgamento das pesquisas que produzirão os futuros instrumentos das ações de saúde nesta área.
Outro aspecto importante a ser destacado são as limitações atuais para validação das informações apresentadas, possuindo aspectos de mudanças culturais no pensamento colaborativo da sociedade a fim de construir fontes de informação com participação popular e controle social. De fato, ao capturar ameaças, suspeitas ou rumores por esses tipos de fontes de informação, a mitigação dos riscos só poderá ser feita com equipes locais de investigação epidemiológica. Entretanto, pode ser questionável o investimento nestas forças tarefas se estratégias como esta não forem reconhecidas como sistemas complementares às fontes tradicionais, fazendo parte do fluxo de rotina da vigilância epidemiológica.
São diversos os pontos a serem discutidos e o papel desta comunicação não é esgotar o assunto, e sim instigar o debate nos âmbitos acadêmico e dos serviços de saúde para que conheçam e se aproximem dos novos métodos e das oportunidades criadas pela vigilância participativa na era digital. Essa abordagem é ainda nova no Brasil, mas internacionalmente já se somam dezenas de experiências bem-sucedidas, apontando tendência que se fortalecerá nos próximos anos.
Referências bibliográficas
- 1Brabham DC. Crowdsourcing as a model for problem solving: an introduction and cases. Convergence 2008;14(1):75-90. DOI:10.1177/1354856507084420
- 2Chan EH, Brewer TF, Madoff LC, Pollack MP, Sonricker AL, Keller M et al. Global capacity for emerging infectious disease detection. Proc Natl Acad Sci USA 2010;107(50):21701-6. DOI:10.1073/pnas.1006219107
- 3Christakis NA, Fowler JH. Social network sensors for early detection of contagious outbreaks. PLoS One 2010;5(9):e12948. DOI:10.1371/journal.pone.0012948
- 4Eysenbach G. Infodemiology and infoveillance: framework for an emerging set of public health informatics methods to analyze search, communication and publication behavior on the Internet. J Med Internet Res 2009;11(1):e11. DOI:10.2196/jmir.1157
- 5Salathé M, Bengtsson L, Bodnar TJ, Brewer DD, Brownstein JS, Buckee C. Digital epidemiology. PLoS One 2012;8(7):e1002616. DOI:10.1371/journal.pcbi.1002616
- 6Signorini A, Segre AM, Polgreen PM. The use of twitter to track levels of disease activity and public concern in the U.S. during the influenza A H1N1 pandemic. PLoS One 2011;6(5):e19467. DOI:10.1371/journal.pone.0019467
- 7Wójcik OP, Brownstein JS, Chunara R, Johansson MA. Public health for the people: participatory infectious disease surveillance in the digital age. Emerg Themes Epidemiol 2014;11:7. DOI:10.1186/1742-7622-11-7.eCollection 2014
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Maio 2016
Histórico
- Recebido
18 Fev 2015 - Aceito
5 Jul 2015