Perfil do acesso e da utilização de medicamentos da população brasileira – contribuições e desafios da PNAUM – Inquérito Domiciliar

Jorge Antonio Zepeda Bermudez Marilisa Berti de Azevedo Barros Sobre os autores

Com os avanços científicos e tecnológicos obtidos nas últimas décadas no campo da saúde, em especial os relativos a diagnósticos e tratamentos, tendeu a crescer a relevância e essencialidade do uso de medicamentos para o tratamento, controle e prevenção das doenças. No mundo contemporâneo, em que prepondera a organização capitalista na produção e distribuição de produtos da saúde, e no qual não são as necessidades humanas que fundamentalmente orientam os processos de produção e consumo de bens e serviços, inúmeras são as distorções e irracionalidades que se imprimem nos padrões de acesso a medicamentos, assim como a serviços de saúde em geral.

Não é por acaso que a questão do acesso a medicamentos vem sendo objeto de discussões nos mais variados foros de Saúde Global. Episódios recentes, como o lançamento de novos antivirais para o tratamento de Hepatite C ou novos produtos oncológicos, todos a preços considerados inacessíveis mesmo para os sistemas de saúde de países de renda alta, acirraram ainda mais a problemática da relação dos custos com os preços e do atual sistema de pesquisa e Desenvolvimento tendo a propriedade intelectual como uma barreira ao acesso3. O assunto levantou tal interesse que levou o Secretário-Geral das Nações Unidas a estabelecer um painel de alto nível para discussão do assunto, deixando claro que essa questão não poderia mais se restringir apenas à Organização Mundial da Saúde, mas extrapolava para discussão política no nível mais elevado16. Adicionalmente, a questão do acesso a medicamentos hoje não mais se restringe a um problema de países ou populações pobres, mas se trata de um assunto de importância global.

Nesse contexto, tornam-se fundamentais políticas sociais que sejam definidas pelas necessidades de saúde da população, sobretudo dos segmentos socialmente mais vulneráveis e carentes, e que busquem trazer equidade e racionalidade no acesso à atenção à saúde e a tratamentos. O projeto de realização de uma pesquisa nacional de medicamentos insere-se na perspectiva de avaliação e acompanhamento de desempenho frente às metas que orientaram as políticas de saúde e de assistência farmacêutica que vinham sendo desenvolvidas no Brasil. A Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM) constitui um marco significativo na composição do leque de pesquisas de âmbito nacional que vêm sendo desenvolvidas no Brasil, além de ser um registro histórico que possibilitará acompanhar o efeito de mudanças decorrentes de políticas de austeridade econômica que se colocam no horizonte.

Os trabalhos apresentados e discutidos neste número temático da RSP, tendo como base o inquérito domiciliar da PNAUM, um estudo transversal de base populacional que coletou dados entre setembro de 2013 e fevereiro de 2014, sem lugar a dúvidas, contribui de maneira decisiva no melhor conhecimento das políticas públicas do setor farmacêutico no Brasil, das mudanças promovidas nas demandas públicas e privadas e, sobretudo, das iniciativas que objetivam ampliar o acesso de nossas populações a medicamentos essenciais.

Gadelha et al.8, ao contextualizar o processo de construção da PNAUM, também apresentam elementos das políticas públicas relacionadas com Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde que vinham sendo desenvolvidas e implementadas no Brasil na época em que foi realizada essa pesquisa nacional. Abrindo a coletânea de artigos, gerados no contexto dessa pesquisa, os autores apresentam aspectos conceituais e as perspectivas de elaboração e consolidação de estratégias para políticas farmacêuticas pelo Ministério da Saúde.

Entre os artigos apresentados, e para permitir melhor contextualização metodológica dos demais, Mengue et al.10 descrevem detalhadamente os aspectos metodológicos que orientaram o inquérito domiciliar da PNAUM, incluindo o desenho do estudo, o processo amostral, os instrumentos elaborados para a coleta de dados e a implementação no campo. Produzindo uma amostra que permite inferências para as áreas urbanas e as macrorregiões do País, o inquérito coletou dados de 41.433 indivíduos em mais de 20.000 domicílios. Sendo o primeiro grande inquérito nacional sobre acesso e uso de medicamentos, os autores destacam a relevância de seus resultados como linha de base para futuros estudos de avaliação dos impactos de políticas e ações governamentais nos campos do acesso e utilização de medicamentos, possibilitando monitorar a tendência desses eventos entre regiões e grupos sociais. A utilidade futura desta pesquisa é mais um elemento valioso na sua consideração.

Alguns dos artigos deste suplemento voltam-se à caracterização do perfil geral de uso de medicamentos, seja para o conjunto da população como para segmentos demográficos específicos. Bertoldi et al.4 avaliando a prevalência do uso de medicamento na população geral, mostram o elevado percentual de brasileiros (50,7%) que utilizam ao menos um medicamento e constatam que são mais consumidos fármacos para condições agudas (33,7%) do que para doenças crônicas (24,3%). Observam, também, que os padrões de uso diferenciam-se entre grupos etários e regiões do País.

No artigo que enfoca o uso de medicamentos na infância, da Silva Dal Pizzol et al.6 analisando os dados de 7.528 crianças com até 12 anos de idade, observaram que 31% delas faziam uso de algum medicamento, 27,1% para problemas agudos de saúde e 5,6% para doenças crônicas. O estudo permitiu identificar a significativa variabilidade regional e os tipos de fármacos mais frequentemente utilizados pelas crianças brasileiras.

Outro grupo etário que mereceu análise especial neste suplemento foi o dos idosos, que constituem, em um cenário de acelerado envelhecimento populacional e elevada prevalência de doenças crônicas, o segmento com as maiores taxas de consumo de medicamentos. Considerando apenas os medicamentos utilizados para oito doenças crônicas pesquisadas pelo PNAUM, o estudo de Ramos et al.13 sobre polifarmácia identificou que 18% dos idosos faziam uso de pelo menos cinco medicamentos. Os pesquisadores analisaram a diversidade desse percentual entre as regiões brasileiras e segundo a posse de plano privado de saúde e a presença de obesidade.

Dada a relevância das doenças crônicas no perfil da morbimortalidade brasileira, o suplemento inclui três artigos que abordam características do consumo de medicamentos voltado para o conjunto dessas doenças ou especificamente para uma delas, a hipertensão. Oliveira et al.12, avaliando o acesso a medicamentos para o tratamento de doenças crônicas não transmissíveis, observaram que 94,3% dos brasileiros com alguma das doenças crônicas pesquisadas pela PNAUM, e que tiveram prescrição de medicamento para o controle da doença, tiveram acesso e utilizaram o medicamento prescrito. Ressalte-se que esse acesso foi total, ou seja, a todos os medicamentos prescritos. Apenas 2,6% dos indivíduos não haviam tomado os medicamentos que precisariam nos últimos 30 dias. Os autores avaliam que as políticas nacionais de medicamentos e assistência farmacêutica implementadas no Brasil a partir de 1999 parecem estar atingindo o objetivo de ampliação de acesso e redução de inequidades.

Tavares et al.14 analisaram o acesso gratuito a medicamentos para doenças crônicas e reportaram que 47,5% dos brasileiros com essas doenças obtiveram gratuitamente todos os medicamentos que necessitavam. O percentual de acesso gratuito foi maior entre os indivíduos de baixo nível socioeconômico, mas com diferenças em relação a regiões geográficas e classes de medicamentos. Os autores destacam que a disponibilização gratuita de medicamentos estaria propiciando a redução das desigualdades socioeconômicas no acesso a tratamentos farmacológicos.

Estudando o acesso a medicamentos para hipertensão arterial, Mengue et al.11 identificaram que, dos hipertensos que conheciam a sua condição e que haviam recebido prescrição para tratamento, 94,6% estavam fazendo uso de medicação, sendo o acesso total obtido por 97,9% deles. Os autores relacionam o número de medicamentos utilizados pelos hipertensos e os tipos de fármacos mais utilizados por eles. O artigo ainda revela que 72,0% obtiveram os medicamentos no SUS ou Farmácia Popular e que apenas 25,7% dos brasileiros hipertensos pagaram pelo medicamento.

Pesquisas sobre gastos catastróficos com saúde vêm sendo desenvolvidas no mundo todo e o estudo deste suplemento que se voltou a essa temática, realizado por Luiza et al.9, revelou que em 5,3% dos domicílios brasileiros ocorreram gastos catastróficos com saúde, sendo que em 3,2%, os medicamentos eram um dos itens mencionados. O gasto catastrófico foi considerado presente quando o indivíduo deixou de comprar algo para arcar com despesas de saúde. O percentual de domicílios brasileiros com gastos catastróficos mostrou-se inferior aos constatados em outros países17, como já sinalizado em estudo prévio2. Os autores9 concluem que as políticas brasileiras parecem estar protegendo as famílias desses gastos.

A disponibilização de medicamentos genéricos foi uma das políticas desenvolvidas no País para aumentar o acesso da população aos fármacos. Bertoldi et al.5, em seu estudo, detectaram que são genéricos 45,5% dos medicamentos utilizados pela população brasileira e que também o são 37,3% dos disponibilizados pelo SUS. Os autores analisam a prevalência de uso de genéricos, estratificando pelas classes econômicas e outras variáveis incluindo sexo, idade, escolaridade e regiões do País.

Na perspectiva de avaliação do uso racional de medicamentos, foram também comtempladas neste suplemento as práticas da automedicação e da adesão dos pacientes às prescrições. A automedicação foi objeto de estudo de Arrais et al.1, que encontraram a maior prevalência dessa prática na região Nordeste e na população feminina, sendo os analgésicos e relaxantes musculares as categorias predominantes. Os achados confirmam que a automedicação é prática corrente no Brasil e os autores alertam para os possíveis riscos que a ela se associam.

Tavares et al.15, avaliando os fatores associados à adesão ao tratamento de doenças crônicas, constataram 30,8% de baixa adesão e verificaram que o problema é mais prevalente nas regiões Nordeste e Centro-Oeste do País. Os autores sinalizam as ações requeridas para a melhora dos índices de adesão.

O acesso a contraceptivos foi outro tema contemplado neste suplemento considerando a elevada frequência de seu consumo e a sua relevância nas políticas de saúde sexual e reprodutiva. Farias et al.7, abordando a utilização e acesso a contraceptivos orais e injetáveis, reportaram que 28,2% das mulheres brasileiras entre 15 a 49 anos utilizam anticonceptivos orais e 4,5% usam os injetáveis. Os autores relatam que a maioria delas pagou pelo contraceptivo, comprando-os nas farmácias comerciais.

O conjunto dos artigos publicados neste suplemento proporciona uma visão abrangente de múltiplos aspectos significativos do cenário de acesso e uso de medicamentos no contexto vivido pela população brasileira. Os resultados apontam a relevância da manutenção e ampliação de políticas de saúde e farmacêuticas direcionadas para a promoção da equidade na atenção à saúde e no acesso ao uso racional de medicamentos.

Referências bibliográficas

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  • 7
    Farias MR, Leite SN, Tavares NUL, Oliveira MA, Arrais PSD, Bertoldi AD, et al. Utilização e acesso a contraceptivos orais e injetáveis no Brasil. Rev Saude Publica 2016;50(supl 2):14s.
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    Ramos LR, Tavares NUL, Bertoldi AD, Farias MR, Oliveira MA, Luiza VL, et al. Polifarmácia e polimorbidade em idosos no Brasil: um desafio em saúde pública. Rev Saude Publica 2016;50(supl 2):9s.
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    Tavares NUL, Luiza VL, Oliveira MA, Costa KS, Mengue SS, Arrais PSD, et al. Acesso gratuito a medicamentos para tratamento de doenças crônicas no Brasil. Rev Saude Publica 2016;50(supl 2):7s.
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    Tavares NUL, Bertoldi AD, Mengue SS, Arrais PSD, Luiza VL, Oliveira MA, et al. Fatores associados à baixa adesão ao tratamento farmacológico de doenças crônicas no Brasil. Rev Saude Publica 2016;50(supl 2):10s.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2016
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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