RESUMO
Descreve-se o encontro de criadouro subterrâneo de Aedes aegypti no bairro de Pinheiros, São Paulo, SP, ocorrido durante um programa de levantamento entomológico, realizado em 2016. Mesmo com intensa vigilância e controle vetorial, grande quantidade de mosquitos estava presente nessa área. Investigação minuciosa permitiu a detecção de Ae. aegypti em reservatório subterrâneo para armazenamento de água pluvial. Após a implantação de telas de proteção nos acessos, não foi mais detectada a presença do vetor. O uso frequente desse tipo de estrutura e o seu risco para a produção de mosquitos é discutido.
DESCRITORES
Aedes; crescimento & desenvolvimento; Mosquitos Vetores; Vigilância Epidemiológica; Culicidae
Aedes (Stegomya) aegypti (Linnaeus, 1762) é originário do Continente Africano e tem ampla distribuição em áreas de clima tropical e subtropical. Possui desenvolvimento holometabólico, com as fases de ovo, larva, pupa e adulto. Por ser um mosquito altamente adaptado ao meio urbano, seus criadouros mais comuns são recipientes artificiais que acumulam água, como garrafas, pneus, latas e vasos33. Lima-Camara TN. Arboviroses emergentes e novos desafios para a saúde pública no Brasil. Rev Saude Publica. 2016;50:36. https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2016050006791
https://doi.org/10.1590/S1518-8787.20160... . É considerado o principal vetor dos arbovírus que causam dengue, chikungunya, zika e febre amarela urbana, cuja transmissão ao homem ocorre através da picada da fêmea infectada.
Causada por um vírus com quatro sorotipos antigenicamente distintos (DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4), a dengue é um grave problema de saúde pública no Brasil, apresentando elevado número de casos suspeitos e confirmados anualmente. A recente entrada dos arbovírus chikungunya (CHIKV) e zika (ZIKV) no país também tornaram essas doenças graves problemas de saúde pública: a primeira devido, principalmente, à ocorrência, na fase crônica, de comprometimento articular e perduração dos sintomas por mais de três meses; e a segunda, pela associação com casos de microcefalia e outros quadros severos de comprometimento do sistema nervoso central, como a síndrome de Guillain-Barré33. Lima-Camara TN. Arboviroses emergentes e novos desafios para a saúde pública no Brasil. Rev Saude Publica. 2016;50:36. https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2016050006791
https://doi.org/10.1590/S1518-8787.20160... ,55. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Vigilância em saúde: dengue, esquistossomose, hanseníase, malária, tracoma e tuberculose. Brasília (DF); 2007. (Série A. Cadernos de Atenção Básica, 21).. Adicionalmente, existe uma importante preocupação acerca do risco da reurbanização da febre amarela, especialmente em períodos com ocorrência de epizootias e de aumento do número casos humanos de febre amarela silvestre.
Na ausência de vacinas eficazes contra as febres zika e chikungunya e da existência de uma vacina contra dengue - cuja introdução precisa ser cautelosa, com avaliação prévia da epidemiologia nacional e local99. World Health Organization. Dengue vaccine: WHO position paper, July 2016: recommendations. Vaccine. 2017;35(9):1200-1. https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2016.10.070
https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2016.1... -, a melhor maneira de controlar a população de Ae. aegypti é a eliminação de criadouros, evitando sua proliferação. Destaca-se, nesse contexto, o papel da vigilância entomológica na identificação e quantificação dos principais criadouros desse vetor.
O objetivo deste trabalho é relatar o encontro de um criadouro subterrâneo, em 2016, durante a realização de atividades de vigilância entomológica de Ae. aegypti na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), localizada na região oeste do município de São Paulo, SP, Brasil.
A FSP-USP conta com equipe responsável pelo desenvolvimento de atividades semanais de vigilância entomológica, que incluem buscas de criadouros potenciais e positivos para Ae. aegypti, bem como coletas de mosquitos adultos nas áreas internas e externas dos edifícios da faculdade. Para a identificação de criadouros, são utilizadas lanternas, conchas entomológicas (80 ml para criadouros de pequeno porte e 350 ml para criadouros de grande porte), pipetas Pasteur (10 ml), para coleta de larvas e pupas, e potes plásticos para armazenamento. Na captura de adultos, utiliza-se o aspirador entomológico manual, movido à bateria de 12 volts.
Após serem coletados, tanto as formas imaturas quanto os adultos, são encaminhados para o Laboratório de Entomologia em Saúde Pública da FSP-USP, onde são identificados em microscópio estereoscópico, segundo a chave dicotômica proposta por Consoli e Lourenço-de-Oliveira11. Consoli RAGB, Lourenço-de-Oliveira R. Principais mosquitos de importância sanitária no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1994 [cited 2017 Aug 6]. Available from: http://static.scielo.org/scielobooks/th/pdf/consoli-9788575412909.pdf
http://static.scielo.org/scielobooks/th/... . Quando são identificados possíveis criadouros e, especialmente, focos de criação de mosquitos, são adotadas medidas de caráter temporário ou permanente para sua eliminação, a depender das características dos criadouros.
Nos levantamentos entomológicos realizados em março de 2016, destacou-se o refeitório dos funcionários da empresa de limpeza, localizado no subsolo do prédio principal da FSP-USP, com a aspiração de 64 machos e 38 fêmeas de Ae. aegypti, bem como a identificação de criadouro subterrâneo, denominado “reservatório de água de reúso”, onde foram capturados 158 adultos (66 fêmeas e 92 machos) e um imaturo de Ae. aegypti.
Esse reservatório constitui-se de um sistema subterrâneo de armazenamento de água de chuva e está ilustrado na Figura, na qual estão indicadas: duas câmaras laterais de acesso ao reservatório (1 e 3), acesso central ao reservatório (2); dreno para captação de água de chuva (4) e respiro (6). A entrada do dreno e o respiro estão localizados próximos à janela do refeitório acima citado (5). Essa ilustração foi realizada a partir de registros fotográficos e por meio de elaboração de desenho 3D, com vista isométrica, no software SolidWorks® 2016.
[A] Vista superior do sistema subterrâneo, reservatório de água de reúso da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), criadouro de Aedes aegypti onde foram encontrados 158 adultos em março/2016; (1 e 3) câmaras laterais de acesso ao reservatório, (2) acesso central ao reservatório, (4) dreno para captação de água de chuva, (5) janela do refeitório do subsolo da FSP-USP e (6) respiro do reservatório. [B] Detalhe do acesso central ao reservatório (2) e das atividades entomológicas, coleta com concha entomológica e aspirador, realizadas nesse local. [C] Vista isométrica do sistema subterrâneo. São Paulo, SP, 2016.
A primeira medida adotada para eliminar o criadouro subterrâneo e vedar a entrada de mosquitos no reservatório foi a substituição das tampas de madeira (sem vedação para mosquitos) por tampas de ferro na câmara de acesso lateral e no acesso central (Figura, itens 1 e 2). No entanto, o problema persistiu e, na primeira coleta realizada em abril de 2016, foram capturados 78 adultos (23 fêmeas e 55 machos) no reservatório, indicando a necessidade de nova intervenção. Como segunda medida, foram colocadas telas de proteção sob as tampas da câmara lateral 1 e do acesso central do reservatório, resultando na diminuição temporária de mosquitos adultos coletados (cinco fêmeas e dois machos) no primeiro levantamento entomológico de maio de 2016. A tampa da câmara 3 (Figura) não precisou de intervenção, pois garantia vedação total à entrada de mosquitos.
Em um novo levantamento, também em maio de 2016, foram encontradas 28 formas imaturas de Ae. aegypti no reservatório e sete fêmeas e quatro machos adultos no refeitório do subsolo. Diante da persistência do problema, realizou-se investigação minuciosa no local, constatando-se a existência do sistema de drenagem para a coleta de água de chuva destinada ao abastecimento do reservatório e do respiro. Dado que todos os outros possíveis acessos ao reservatório estavam vedados, deduziu-se, então, que os mosquitos estavam utilizando a entrada do sistema de drenagem e o respiro (Figura, itens 4 e 6) para acessar e sair do reservatório.
Assim, adotou-se a terceira e última intervenção para eliminação desse criadouro, que foi a implantação de um sistema de telas de proteção nas entradas do sistema de drenagem e do respiro do reservatório (Figura, itens 4 e 6), localizadas próximas à janela do refeitório do subsolo da FSP-USP (Figura, item 5). Nos levantamentos entomológicos subsequentes, realizados em 2016, não foram mais encontradas formas imaturas do vetor no reservatório subterrâneo e nem suas formas adultas no refeitório, indicando resolução do problema detectado no levantamento de março. Entretanto, levantamentos posteriores continuaram a detectar a presença de formas imaturas de Ae. aegypti em outros tipos de recipientes artificiais e naturais, bem como de adultos em outros locais que não o subsolo da FSP-USP, mostrando que a vigilância e controle desse mosquito vetor deve ser de caráter permanente.
Na ausência de criadouros artificiais próximos, a fêmea de Ae. aegypti pode voar grandes distâncias em busca de locais para depositar seus ovos55. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Vigilância em saúde: dengue, esquistossomose, hanseníase, malária, tracoma e tuberculose. Brasília (DF); 2007. (Série A. Cadernos de Atenção Básica, 21). ou ainda ovipor em locais menos usuais, como oco de árvore44. Lima-Camara TN, Urbinatti PR, Chiaravalloti-Neto F. Encontro de Aedes aegypti em criadouro natural de área urbana, São Paulo, SP, Brasil. Rev Saude Publica. 2016;50:3. https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2016050006791
https://doi.org/10.1590/S1518-8787.20160... . Adicionalmente, em estudos realizados na Austrália, foi identificado que, em períodos de escassez de criadouros ou em condições desfavoráveis, a fêmea de Ae. aegypti busca locais subterrâneos, como poços, fossas sépticas e bueiros, para depositar seus ovos e se abrigar22. Kay BH, Ryan PA, Russell BM, Holt JS, Lyons SA, Foley PN. The importance of subterranean mosquito habitat to arbovirus vector control strategies in north Queensland, Australia. J Med Entomol. 2000;37(6):846-53. https://doi.org/10.1603/0022-2585-37.6.846
https://doi.org/10.1603/0022-2585-37.6.8... ,77. Russell BM, Kay BH, Shipton W. Survival of Aedes aegypti (Díptera: Culicidae) eggs in surface and subterranean breeding sites during the northern Queensland dry season. J Med Entomol. 2001;38(3):441-5. https://doi.org/10.1603/0022-2585-38.3.441
https://doi.org/10.1603/0022-2585-38.3.4... .
Destaca-se que a identificação do reservatório e de seu sistema de conexão subterrâneo como foco de criação de mosquitos só foi possível pela realização sistemática de levantamentos entomológicos no local, associando a busca de criadouros e a captura de adultos. A elevada quantidade de adultos observados, especialmente machos, indicou presença de criadouro próximo, já que, em geral, a dispersão de machos é limitada88. Valerio L, Facchinelli L, Ramsey JM, Bond JG, Scott TW. Dispersal of male Aedes aegypti in a coastal village in southern Mexico. Am J Trop Med Hyg. 2012;86(4):665-76. https://doi.org/10.4269/ajtmh.2012.11-0513
https://doi.org/10.4269/ajtmh.2012.11-05... . Adicionalmente, esse encontro reforça outros achados sobre a plasticidade de Ae. aegypti em se desenvolver em diferentes tipos de criadouros, o que dificulta o controle desse vetor no país.
O resultado desse trabalho alerta para o potencial surgimento de criadouros não usuais de Ae. aegypti decorrente de soluções para aproveitamento da água de chuva. Essas estratégias têm sido adotadas em várias cidades brasileiras e especialmente no estado de São Paulo, devido à crise hídrica enfrentada desde 2014. Uma das formas que se têm buscado para contornar a escassez de água é a captação e o armazenamento de água da chuva em cisternas subterrâneas ou barris66. Oliveira MHC. Aproveitamento da água de chuva. Medianeira: Universidade Tecnológica Federal do Paraná; 2014. Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização.. Conforme mostrado neste estudo, esse tipo de solução pode gerar focos de Ae. aegypti e resultar em aumento do risco de ocorrência de arboviroses transmitidas por esse mosquito.
Referências bibliográficas
- 1Consoli RAGB, Lourenço-de-Oliveira R. Principais mosquitos de importância sanitária no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1994 [cited 2017 Aug 6]. Available from: http://static.scielo.org/scielobooks/th/pdf/consoli-9788575412909.pdf
» http://static.scielo.org/scielobooks/th/pdf/consoli-9788575412909.pdf - 2Kay BH, Ryan PA, Russell BM, Holt JS, Lyons SA, Foley PN. The importance of subterranean mosquito habitat to arbovirus vector control strategies in north Queensland, Australia. J Med Entomol. 2000;37(6):846-53. https://doi.org/10.1603/0022-2585-37.6.846
» https://doi.org/10.1603/0022-2585-37.6.846 - 3Lima-Camara TN. Arboviroses emergentes e novos desafios para a saúde pública no Brasil. Rev Saude Publica. 2016;50:36. https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2016050006791
» https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2016050006791 - 4Lima-Camara TN, Urbinatti PR, Chiaravalloti-Neto F. Encontro de Aedes aegypti em criadouro natural de área urbana, São Paulo, SP, Brasil. Rev Saude Publica. 2016;50:3. https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2016050006791
» https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2016050006791 - 5Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Vigilância em saúde: dengue, esquistossomose, hanseníase, malária, tracoma e tuberculose. Brasília (DF); 2007. (Série A. Cadernos de Atenção Básica, 21).
- 6Oliveira MHC. Aproveitamento da água de chuva. Medianeira: Universidade Tecnológica Federal do Paraná; 2014. Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização.
- 7Russell BM, Kay BH, Shipton W. Survival of Aedes aegypti (Díptera: Culicidae) eggs in surface and subterranean breeding sites during the northern Queensland dry season. J Med Entomol. 2001;38(3):441-5. https://doi.org/10.1603/0022-2585-38.3.441
» https://doi.org/10.1603/0022-2585-38.3.441 - 8Valerio L, Facchinelli L, Ramsey JM, Bond JG, Scott TW. Dispersal of male Aedes aegypti in a coastal village in southern Mexico. Am J Trop Med Hyg. 2012;86(4):665-76. https://doi.org/10.4269/ajtmh.2012.11-0513
» https://doi.org/10.4269/ajtmh.2012.11-0513 - 9World Health Organization. Dengue vaccine: WHO position paper, July 2016: recommendations. Vaccine. 2017;35(9):1200-1. https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2016.10.070
» https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2016.10.070
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Dez 2017
Histórico
- Recebido
22 Fev 2017 - Aceito
06 Maio 2017