Desigualdade social em saúde: revisitando momentos e tendências nos 50 anos de publicação da RSP

Marilisa Berti de Azevedo Barros Sobre o autor

RESUMO

Este estudo descreve a frequência e os tipos de artigos sobre desigualdades sociais em saúde publicados nos 50 anos da Revista de Saúde Pública, tomando por referência alguns marcos que balizaram o desenvolvimento das investigações nessa temática. Checando títulos, palavras-chave e resumos ou textos completos, foram identificados 288 artigos cujo foco central ou secundário era desigualdades sociais em saúde. Correspondendo a apenas 1,8% nos anos iniciais, artigos sobre desigualdades sociais em saúde chegaram a representar 10,1% dos publicados na última década. Os desenhos utilizados foram principalmente transversais (58,0%) e ecológicos espaciais (18,1%). Os temas mais analisados foram: alimentação/nutrição (20,8%), mortalidade (13,5%), doenças infecciosas (10,1%), saúde bucal (9,0%) e serviços de saúde (8,7%). Artigos voltados à análise de desigualdades raciais em saúde somaram 6,9%. Poucos artigos monitoraram as tendências das desigualdades sociais em saúde, empreendimento essencial para avaliar e subsidiar intervenções, e um número ainda menor avaliou o impacto de políticas e programas na redução das desigualdades sociais em saúde.

Desigualdades em Saúde; Publicações, tendências; Saúde Pública; Revisão; Artigo Histórico

INTRODUÇÃO

Observações sobre a influência das condições de vida na saúde das populações são registradas desde a antiguidade, mas é no século XIX que dados sobre o tema ganham consistência e se avolumam com o movimento da medicina social e os trabalhos dos reformadores da época2828. Nunes ED. Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo (SP): Global; 1983.. De abordagens mais globais, que vigoravam em meados desse século e que visavam o entendimento das causas das epidemias e doenças, o surgimento da era bacteriológica conduz o foco das pesquisas essencialmente para a identificação de agentes patogênicos e as possibilidades de prevenção e controle. Investigações com maior abrangência social, incluindo as condições de vida da população, voltam a ganhar relevância após a Segunda Guerra Mundial, quando as doenças cardiovasculares, neoplasias e também acidentes e violências tornam-se prioridades no cenário da morbimortalidade3434. Susser M, Stein Z. Eras in epidemiology. New York: Oxford University Press; 2009.. O entendimento das causas desses problemas exige a consideração das condições e estilo de vida das pessoas, embora essa ampliação de perspectiva não implique necessariamente em identificar as diferenças constatadas como sendo socialmente determinadas1717. Krieger N. Epidemiology and the people’s Health: theory and context. New York. Oxford University Press; 2011..

A questão das desigualdades sociais em saúde (DSS) ganha relevância no decorrer do século XX, pela constatação da profunda desigualdade prevalente nas condições de vida e pelo resultado consistente de pesquisas que mensuram o tamanho das disparidades sociais nos padrões de saúde-doença e no acesso à atenção à saúde3535. Townsend P, Davidson N. Inequalities in health: the black report. London (UK): Penguin Books; 1982.. Os dados também mostraram que essas desigualdades atravessavam o conjunto do tecido social, não se restringindo à discriminação do segmento situado abaixo da linha de pobreza1010. Braveman PA, Cubbin C, Egerter S, Williams DR, Pamuk E. Socioeconomic disparities in health in the United States: what the patterns tell us. Am J Public Health. 2010;100(suppl 1):S186-96. https://doi.org/10.2105/AJPH.2009.166082
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Em termos mundiais, a Declaração de Alma Ata, em 1978, já destacava a importância de intervenções para promoção de maior equidade no acesso à saúde, enfatizando nessa perspectiva o protagonismo das políticas sociais e de saúde. Também constitui um marco, no tema das DSS, a ampla repercussão dos resultados e controvérsias gerados pela publicação do Relatório do Grupo de Trabalho sobre Desigualdades em Saúde coordenado por Sir Douglas Black, em 1980, na Inglaterra3535. Townsend P, Davidson N. Inequalities in health: the black report. London (UK): Penguin Books; 1982.. O relatório trouxe ao debate os limites da atuação dos serviços de saúde públicos na conquista da equidade em saúde, a necessidade do monitoramento das DSS e a importância da mensuração acurada dessas disparidades.

A necessidade de identificar estratos sociais e as dificuldades e limitações inerentes a esta empreitada estão presentes nos primeiros artigos sobre DSS publicados pela Revista de Saúde Pública (RSP). Apenas 1,8% dos artigos da RSP em sua primeira década volta-se à questão das desigualdades sociais em saúde (Tabela 1), e vários deles desenvolvem discussão teórico-conceitual ou apresentam propostas de estratificação22. Alvarenga, AT, Ciari Jr. C, Santos JLF. Índice de status sócio-econômico da família da mulher grávida que freqüenta o Centro de Saúde Geraldo de Paula Souza da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Rev Saude Publica 1973;7(4):351-67. https://doi.org/10.1590/S0034-89101973000400005
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,3838. Witt A. Saúde pública e o problema de classificação social. Rev Saude Publica. 1967;1(2):172-6. https://doi.org/10.1590/S0034-89101967000200004
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Tabela 1
Artigos sobre desigualdades sociais em saúde publicados na Revista de Saúde Pública segundo as décadas de existência da revista.

No Brasil e na América Latina, movimentos no campo da saúde, alinhados a movimentos sociais mais amplos que atuavam pelo fim das ditaduras militares difundidas pela região nas décadas de 1960 e 1970 trouxeram novos balizamentos para a compreensão dos padrões de saúde e da organização e papel dos serviços de saúde. São movimentos que constroem o campo da Saúde Coletiva no Brasil e que, em setembro de 1979, resultam na fundação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)1919. Lima NT, Santana JP, organizadores. Saúde coletiva como compromisso: a trajetória da Abrasco. Rio de Janeiro (RJ): Fiocruz/Abrasco; 2006.,2929. Osmo A, Schraiber LB. O campo da saúde coletiva no Brasil: definições e debates em sua constituição. Saude Soc S Paulo. 2015;24(supl 1):205-18. https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S01018
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. A produção latino-americana no período, alimentada por referenciais do materialismo histórico, privilegia, no âmbito da produção e distribuição da saúde e da doença, a análise das desigualdades da saúde entre classes sociais e as repercussões das condições e relações de trabalho na saúde do trabalhador1111. Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo (SP): Ed. Unesp/Hucitec; 1991.,1818. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo (SP): Hucitec; 1989..

Nessa linha, alguns artigos publicados na RSP apresentam propostas e aplicações de operacionalização, sob perspectiva marxista, do conceito de classe social, com o intuito de analisar DSS entre segmentos significativos na dinâmica das sociedades capitalistas, e não entre estratos arbitrariamente escolhidos66. Barros MB. A utilização do conceito de classe social nos estudos dos perfis epidemiológicos: uma proposta. Rev Saude Publica.1986;20(4):269-73. https://doi.org/10.1590/S0034-89101986000400001
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,2020. Lombardi C, Bronfman M, Facchini LA, Victora CG, Barros FC, Béria JU et al. Operacionalização do conceito de classe social em estudos epidemiológicos. Rev Saude Publica. 1988;22(4):253-65. https://doi.org/10.1590/S0034-89101988000400001
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. Esses estudos alinhavam-se às propostas da Epidemiologia Crítica e da Epidemiologia Social1111. Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo (SP): Ed. Unesp/Hucitec; 1991.,1818. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo (SP): Hucitec; 1989. e vários artigos utilizando classe social encontram-se publicados na RSP.

O desenvolvimento de estudos sobre DSS depende, além da motivação dos pesquisadores e do interesse de agências de fomento, da existência de informação adequada, válida e completa de variáveis sociais nas bases de dados disponíveis. A ausência dessas condições limitou em muito o desenvolvimento de estudos nessa temática, o que é coerente com as proporções de artigos sobre DSS publicados nas primeiras décadas da RSP (Tabela 1). Em 1996, a Organização Mundial da Saúde lança uma iniciativa voltada ao enfrentamento das iniquidades em saúde, e apresenta como justificativa para esse movimento a existência de disparidades sociais em saúde inaceitavelmente amplas, crescentes em vários países, e em contextos de restrição de gastos com políticas sociais. Uma questão ressaltada no documento é justamente a ausência de informações essenciais nas bases usuais de dados dos diferentes países que pudessem viabilizar o monitoramento das DSS3939. World Health Organization. Equitity in health and health care: a WHO/SIDA initiative. Geneva: World Health Organization; 1996..

Em âmbito mundial, a produção de estudos sobre DSS cresceu substancialmente a partir dos anos 1990, tendo o número de publicações duplicado a cada quatro anos99. Bouchard L, Albertini M, Batista R, Montigny J. Research on health inequalities: a bibliometric analysis (1966-2014). Soc Sci Med. 2015;141:100-8. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2015.07.022
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. Também na RSP, a proporção de artigos enfocando DSS ascende de 1,8% do início para 10,0% na última década (Tabela 1). Grande parte dos estudos incluídos na categoria de DSS não teve como foco central a análise das disparidades sociais ou da equidade em saúde. Como é quase inevitável utilizar variáveis sociais e econômicas na análise dos mais diferentes temas, e a dimensão econômica e social exerce forte determinação na saúde, muitos artigos que não tinham por objetivo principal a análise de DSS acabaram destacando, entre seus resultados e no resumo, achados desta natureza e encontram-se assim incluídos no conjunto dos artigos analisados. Os procedimentos adotados para a seleção dos artigos encontram-se descritos na Figura.

Figura
Procedimentos para a seleção dos artigos sobre Desigualdades Sociais em Saúde da Revista de Saúde Pública.

Em período mais recente, a iniciativa da Organização Mundial da Saúde de estimular a criação de Comissões sobre Determinantes Sociais em Saúde contribuiu para a revigorada ênfase nas investigações sobre DSS. A proposta tinha por pressupostos que o desenvolvimento de uma sociedade deve ser avaliado pela qualidade de saúde de sua população, pela forma em que a saúde é distribuída entre os estratos sociais e pelo grau de proteção provido aos setores em desvantagem social. A iniciativa, implementada em muitos países, culminou com a realização de uma Conferência Mundial no Rio de Janeiro em 2011. O trabalho das comissões propiciou retomada da discussão sobre teorias, conceitos, métodos e, em especial, sobre a necessidade de a questão da iniquidade em saúde ser efetivamente incorporada nas agendas políticas dos governos1313. Comissão Nacional dos Determinantes Sociais em Saúde. As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil/CNDSS. Rio de Janeiro (RJ): Fiocruz; 2008.,2222. Marmot M. Closing the health gap in a generation: the work of the Commission on Social Determinants of Health and its recommendations. Glob Health Promot. 2009;16(Suppl 1):23-7. https://doi.org/10.1177/1757975909103742
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O aumento do número de artigos publicados e a ampliação dos temas investigados sob a ótica das DSS nos 50 anos da RSP acompanham o avanço progressivo da qualificação dos bancos de dados existentes2424. Mello Jorge MHP, Laurenti R, Gotlieb SLD. Análise da qualidade das estatísticas vitais brasileiras: a experiência de implantação do SIM e do SINASC. Cienc Saude Coletiva. 2007;12(3):643-54. https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000300014
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, o fortalecimento dos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva e consolidação de grupos de pesquisa55. Barreto ML. Crescimento e tendência da produção científica em epidemiologia no Brasil. Rev Saude Publica. 2006;40(n spe):70-85. https://doi.org/10.1590/S0034-89102006000400012
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,1515. Guimarães JA. A pesquisa médica e biomédica no Brasil: comparações com o desempenho científico brasileiro e mundial. Cienc Saude Coletiva. 2004;9(2):303-27. https://doi.org/10.1590/S1413-81232004000200009
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e a realização de inquéritos locais e nacionais77. Barros MBA. Inquéritos domiciliares de saúde: potencialidade e desafios. Rev Bras Epidemiol. 2008;11(supl 1):6-19. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2008000500002
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. Os temas analisados na última década abrangem praticamente todos os objetos da saúde, incluindo mortalidade, doenças transmissíveis e não transmissíveis, limitações e incapacidades, saúde bucal, mental, autoavaliações, comportamentos relacionados à saúde e o acesso e uso de diferentes modalidades de serviços (Tabela 2). Com frequência elevada e persistente em todo o período, encontram-se os estudos de desigualdades sociais em alimentação e nutrição, que somam 20,8% do total. A relevância das carências nutricionais no início do período e da obesidade nas últimas décadas e o reconhecimento da importância do perfil alimentar na incidência de doenças crônicas não transmissíveis explicam a preponderância desse tema entre os demais. Também justificam essa preponderância a existência de grupos consolidados de pesquisa e a disponibilização de dados de pesquisas nacionais, como a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), entre outras.

Tabela 2
Artigos sobre desigualdades sociais em saúde publicados pela Revista de Saúde Pública, segundo período da publicação e tema enfocado.

Além de mortalidade (13,5% dos artigos), tema em que o primeiro artigo é publicado em 19802626. Monteiro CA, Benício MHA, Baldijão M. Mortality within the first year of life in relationship to the distribution of income and of public facilities, S. Paulo (Brasil). Rev Saude Publica. 1980;14(4):515-39. https://doi.org/10.1590/S0034-89101980000400009
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, e doenças infecciosas (10,1%), para os quais existem bases de dados disponíveis, outro tema com forte presença no conjunto dos estudos é o relativo à saúde bucal, no qual incluíram-se os artigos sobre acesso e uso de serviços de saúde bucal (Tabela 2). Entre os fatores que contribuíram para o avanço das análises nesta temática, estão a intensa desigualdade social no acesso a esses serviços que ainda prevalece no País, a realização de inquéritos nacionais sobre o tema, como a Pesquisa Nacional de Saúde Bucal 2010 e a realizada em 2002/2003, e a existência de grupos de pesquisa consolidados. Registre-se que o primeiro número da revista traz um artigo sobre o tema analisando diferenciais da prevalência de cárie dental entre escolares brancos e não brancos3333. Souza MLR, Tanaka ACA, Siqueira AAF, Santana, Renato M. Estudo sobre nascidos vivos em maternidades: 1. Peso ao nascer, sexo, tipo de nascimento e filiação previdenciária das mães. Rev Saude Publica. 1988;22(6):562-7. https://doi.org/10.1590/S0034-89101988000600004
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Quanto aos desenhos utilizados, a grande maioria (58,0%) é constituída por estudos transversais e oriundos principalmente de pesquisas domiciliares. Porém, há forte presença de uma vertente com desenvolvimento importante no campo da DSS, formada pelas pesquisas de condições de saúde de populações territorialmente referenciadas, compreendendo 18,1% dos artigos sobre DSS (Tabela 3). Nessas abordagens, os autores assumem o espaço não apenas em sua dimensão ecológico-natural ou administrativa, mas como social e historicamente constituído2525. Monken M, Barcellos C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad Saude Publica. 2005;21(3):898-906. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000300024
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. As unidades espaciais de análise adotadas foram as mais diversas, mas principalmente municípios (21,1%) e áreas intramunicipais (57,7%). Os temas mais analisados foram mortalidade (44,2%) e doenças infecciosas (32,7%) e, entre estas, HIV e dengue. Além de escolaridade e renda, vários índices compostos foram utilizados nesses artigos, incluindo: índice de desenvolvimento humano (IDH), condição de vida, índices paulistas de vulnerabilidade e de responsabilidade social, necessidades básicas insatisfeitas, índice de Gini, desigualdade de Theil, qualidade urbana, entre outros.

Tabela 3
Artigos ecológicos espaciais sobre desigualdades socioespaciais em saúde segundo período de publicação da Revista de Saúde Pública.

A avaliação do efeito da magnitude das desigualdades de distribuição da renda sobre a saúde, independentemente da renda per capita, passou a constituir uma linha com forte desenvolvimento na Europa e Estados Unidos3737. Wilkinson R, Pickett K. O nível: por que uma sociedade mais igualitária é melhor para todos. Rio de Janeiro (RJ): Civilização Brasileira; 2015., mas com pouca expressão na produção publicada na RSP. Entretanto, vários artigos de publicação mais recente, ecológicos ou com análises multinível, incorporaram variáveis ou índices de desigualdades de distribuição de renda1212. Chiavegatto Filho ADP, Gotlieb SLD, Kawachi I. Cause-specific mortality and income inequality in São Paulo, Brazil. Rev Saude Publica. 2012;46(4):712-18. https://doi.org/10.1590/S0034-89102012000400016
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,1616. Idrovo AJ, Ruiz-Rodríguez M, Manzano-Patiño AP. Beyond the income inequality hypothesis and human health: a worldwide exploration. Rev Saude Publica. 2010;44(4):695-702. https://doi.org/10.1590/S0034-89102010005000020
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Nos estudos de base individual, as variáveis socioeconômicas utilizadas para definição de estratos ou categorias de comparação foram fundamentalmente renda e escolaridade. Alguns artigos agregam também condições da moradia, número de equipamentos, e muito poucos utilizaram categorias ou grupos ocupacionais. A maioria utilizou estratificação social para suas análises de desigualdade e não abordagens de classe social33. Antunes JLF. Condições socioeconômicas em saúde: discussão de dois paradigmas. Rev Saude Publica. 2008;42(3):562-7. https://doi.org/10.1590/S0034-89102008000300025
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,44. Barata RCB, Barreto M, Almeida Filho N, Veras RP, organizadores. Equidade e saúde: contribuições da epidemiologia. Rio de Janeiro (RJ): Fiocruz/Abrasco; 1997..

Além das iniquidades em saúde relacionadas aos estratos socioeconômicos, a literatura tem destacado o foco crescente nas desigualdades referentes a raça, etnia e gênero, entre outras88. Borrel C. Métodos utilizados no estudo das desigualdades sociais em Saúde. In: Barata R, organizador. Condições de vida e saúde. Rio de Janeiro (RJ): Abrasco; 1997. p. 167-95.,1717. Krieger N. Epidemiology and the people’s Health: theory and context. New York. Oxford University Press; 2011.. Dos artigos sobre DSS publicados na RSP, 14,9% (43) analisaram variáveis de cor/raça/etnia e 6,9% (20) teve essa desigualdade como foco central (Tabela 4). Sobre este tema, um artigo conceitual mais recente encontra-se publicado na RSP2727. Moubarac JC. Persisting problems related to race and ethnicity in public health and epidemiology research. Rev Saude Publica. 2013;47(1):104-15. https://doi.org/10.1590/S0034-89102013000100014
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. A escassa produção de estudos sobre desigualdades raciais, étnicas e de gênero em saúde, constatada na RSP, também foi detectada em análise bibliométrica feita sobre a produção em DSS na América Latina e Caribe11. Almeida-Filho N, Kawachi I, Pellegrini Filho A, Dachs JN. Research on health inequalities in Latin America and the Caribbean: bibliometric analysis (1971-2000) and descriptive content analysis (1971-1995). Am J Public Health. 2003;93(12):2037-43. https://doi.org/10.2105/AJPH.93.12.2037
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Tabela 4
Artigos sobre desigualdades raciais em saúde segundo período de publicação da Revista de Saúde Pública.

No Brasil, a existência do Sistema Único de Saúde (SUS) e a possibilidade de comparar o uso dos serviços de saúde segundo a fonte de financiamento, ou segundo a natureza pública ou privada do estabelecimento de saúde, representaram estratégias utilizadas pelos autores para dimensionar o grau de disparidade nos padrões de morbidade e de acesso a serviços entre os segmentos analisados. Essas análises permitiram inferir sobre o potencial e a efetividade da atuação do SUS na redução da iniquidade em saúde. Dezenove artigos de DSS utilizaram essa estratégia de análise e alguns pioneiros o fizeram mesmo antes da implantação do SUS, comparando pacientes segundo fonte de financiamento3636. Yazlle Rocha JS, Jorge AO, Simões BJG, Vichi FL. Inequalities among patients hospitalized for cardiac and cerebral-vascular diseases in the City of the State of S. Paulo, Brazil, 1986. Rev Saude Publica. 1989;23(5):374-81. https://doi.org/10.1590/S0034-89101989000500003
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e levando a relembrar a existência da categoria “indigente” que era utilizada naquele período3232. Souza JMP, Arrillaga NA, Ochoa FV, Rocha O. Prevalência da cárie dental em brancos e não brancos. Rev Saude Publica. 1967;1(1):38-43. https://doi.org/10.1590/S0034-89101967000100006
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Considera-se que nos países desenvolvidos houve produção suficiente de informação sobre a magnitude das desigualdades sociais em saúde, e autores e agências sinalizam que as pesquisas na área moveram-se da descrição para a busca de explicação e, agora, caminham para a avaliação da efetividade de intervenções e políticas voltadas à redução das iniquidades em saúde2121. Mackenbach JP. Health Inequalities: learning how to “mind the gap”. Eurohealth (Lond). 2015;21(1):3-7.,3030. Östlin P, Scherecker T, Sadana R, Bonnefoy J, Gilson L, Hertzman C et al. Priorities for research on equity and health: towards an equity-focused health research agenda. PLoS Med. 2011;8(11): e1001115. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001115
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. Entretanto, apesar da grande quantidade de artigos publicados sobre DSS e da ampla temática abrangida, não se dispõe ainda de um quadro claro e consistente sobre a magnitude das DSS em diferentes indicadores e contextos na realidade brasileira, carência que algumas iniciativas buscaram suprir1313. Comissão Nacional dos Determinantes Sociais em Saúde. As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil/CNDSS. Rio de Janeiro (RJ): Fiocruz; 2008.,1414. Duarte EC, Schneider MC, Paes-Sousa R, Ramalho WM, Sardinha LMV, Silva Júnior JB, Castillo-Salgado C. Epidemiologia das desigualdades em saúde no Brasil: um estudo exploratório. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002.. E, mais importante, tendências das DSS foram analisadas em apenas 19 dos artigos publicados que apontaram estabilidade, aumento ou declínio, a depender do indicador analisado3131. Peres KG, Peres MA, Boing AF; Bertoldi AD, Bastos JL, Barros AJD. Reduction of social inequalities in utilization of dental care in Brazil from 1998 to 2008. Rev Saude Publica. 2012;46(2):250-8. https://doi.org/10.1590/S0034-89102012000200007
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. O monitoramento das DSS é essencial para a detecção de momentos e circunstâncias de mudanças da magnitude das desigualdades podendo viabilizar a identificação de possíveis determinantes. Também foram poucos os artigos que avaliaram o impacto de programas e políticas nas DSS2323. Martins APB, Canella DS, Baraldi LG; Monteiro CA. Transferência de renda no Brasil e desfechos nutricionais: revisão sistemática. Rev Saude Publica. 2013;47(6):1159-71. https://doi.org/10.1590/S0034-89102013000901159
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Em síntese, no decorrer dos 50 anos de publicações da RSP, constatou-se aumento do número de artigos publicados sobre DSS, avanço e maior complexidade dos métodos e técnicas de análise utilizados e ampliação dos temas abordados. Depreende-se, entretanto, a necessidade de produções que gerem um conhecimento mais sistematizado e abrangente sobre as iniquidades em saúde que prevalecem no Brasil. Destaca-se a carência de estudos conceituais e teóricos, de análises de tendências e monitoramento das DSS e de investigações efeito de políticas e intervenções nas inequidades em saúde, pesquisas que são fundamentais e que ainda estão pouco representadas no panorama publicado.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    2 Ago 2016
  • Aceito
    9 Ago 2016
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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