Foco e cobertura do Programa Bolsa Família na coorte de nascimentos de Pelotas, 2004

Kelen H Schmidt Jeremy Labrecque Iná S Santos Alicia Matijasevich Fernando C Barros Aluisio J D Barros Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Descrever a focalização e a cobertura do Programa Bolsa Família nas famílias de crianças que fazem parte da coorte de nascimentos de Pelotas, 2004 (coorte de 2004).

MÉTODOS

Os dados utilizados derivam da integração de informações da coorte de 2004 e do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, no período de 2004 a 2010. Estimamos a cobertura do programa (percentual de elegíveis que recebem bolsa) e seu foco (proporção de elegíveis entre os beneficiários). Utilizamos dois critérios para definir elegibilidade: a renda familiar per capita relatada nas avaliações da coorte e pertencer aos 20,0% mais pobres pela classificação do Indicador Econômico Nacional, um índice de bens.

RESULTADOS

Entre 2004 e 2010, a proporção de famílias beneficiárias da coorte passou de 11% para 34%. Houve aumento em todos os quintis de riqueza. Em 2010, por quintis de renda e Indicador Econômico Nacional, 62%-72% das famílias eram beneficiárias entre os 20% mais pobres, 2%-5% entre os 20% mais ricos, e cerca de 30% das famílias do quintil intermediário. Pelo critério de renda familiar, excluindo-se o valor do benefício do programa, 29% das famílias eram elegíveis em 2004 e 16% em 2010. Pelo mesmo critério, a cobertura do programa passou de 43% em 2004 para 71% em 2010. No mesmo período, pelo critério de riqueza (Indicador Econômico Nacional), a cobertura passou de 29% para 63%. A focalização do programa caiu de 78% em 2004 para 32% em 2010 de acordo com a renda e permaneceu constante (37%) de acordo com o Indicador Econômico Nacional.

CONCLUSÕES

Entre as famílias da coorte de 2004, observa-se aumento importante da cobertura do programa, de seu início até 2010, quando ficou perto de 70%. O foco do programa ficou abaixo de 40% em 2010, indicando que mais da metade dos beneficiários não pertencem à população alvo.

Pobreza, economia; Programas Governamentais, provisão & distribuição; Salários e Benefícios; Renda; Indicadores de Desenvolvimento; Desenvolvimento da Comunidade

INTRODUÇÃO

O Brasil passou por um período de crescimento econômico e social entre os anos de 2003 e 2013aaPresidência da República. Objetivos de desenvolvimento do milênio: 4 º Relatório Nacional de Acompanhamento. Brasília (DF): IPEA; 2010. Disponível em: www.abc.gov.br/api/publiccaoarquivo/555 . Houve grande redução da população pobre e extremamente pobre, aumento da renda dos 40,0% mais pobres da população, e redução sistemática da desigualdade de renda99. Hoffmann R. Desigualdade da renda e das despesas per capita no Brasil, em 2002-2003 e 2008-2009, e avaliação do grau de progressividade ou regressividade de parcelas da renda familiar. Econ Soc. 2010;19(3):647-61. https://doi.org/10.1590/S0104-06182010000300010
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,1414. Nóbrega Júnior JMP. A queda da desigualdade de renda no Brasil e os homicídios na Região Nordeste. Rev Espaço Acad. 2009;9(98):72-80.,bbSoares S, Osório RG, Soares FV, Medeiros M, Zepeda E. Programas de transferência condicionada de renda no Brasil, Chile e México: impactos sobre a desigualdade. Brasília (DF): IPEA; 2007 [citado 2015 out 14]. (Texto para Discussão, n.1293). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_1293.pdf , com queda do índice de Gini de 0,59 em 2001 para 0,54 em 201388. Habicht JP, Mason JB, Tabatabai H. Basic concepts for the design of evaluation during programme implementation. In: Sahn DE, Lockwood R, Scrimshaw NS, editors. Methods for the evaluation of the impact of food and nutrition. Tokio: United Nations University Press; 1984. p.1-25.,ccSoares S, Ribas RP, Soares FV. Focalização e cobertura do Programa Bolsa-Família: qual é o significado dos 11 milhões de famílias? Brasília (DF): IPEA; 2009 [citado 2015 out 14]. (Texto para Discussão n.1396). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1396.pdf . O Brasil chegou à posição de sétima maior economia mundial em termos de crescimento do produto interno bruto (PIB), com evolução da renda domiciliar per capita média de 8,1 para 12,1 dólares por dia99. Hoffmann R. Desigualdade da renda e das despesas per capita no Brasil, em 2002-2003 e 2008-2009, e avaliação do grau de progressividade ou regressividade de parcelas da renda familiar. Econ Soc. 2010;19(3):647-61. https://doi.org/10.1590/S0104-06182010000300010
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. Entretanto, nos últimos quatro anos, o cenário vem se modificando, com redução na taxa de crescimento do PIB (de 2,1% entre 2011 e 2014, e 0,1% em 2014), inflação alta (6,4% em 2014), queda das exportações e aumento do desempregoddThe World Bank. Brasil: aspectos gerais. Washington (DC); [citado 2015 out 14]. Disponível em: http://www.worldbank.org/pt/country/brazil/overview . Foram implantadas medidas para reduzir o déficit fiscal, como redução de direitos, corte de despesas e redução de apoio aos bancos públicos e setor energético99. Hoffmann R. Desigualdade da renda e das despesas per capita no Brasil, em 2002-2003 e 2008-2009, e avaliação do grau de progressividade ou regressividade de parcelas da renda familiar. Econ Soc. 2010;19(3):647-61. https://doi.org/10.1590/S0104-06182010000300010
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. Em relação aos indicadores sociais (saúde, mortalidade infantil e nutrição), observam-se grandes diferenças regionais. A desigualdade permanece relativamente alta para um país de renda média, com 8,9% da população vivendo em pobreza e um terço da população em condição de vulnerabilidade econômica, sem capacitação profissional e empregabilidade99. Hoffmann R. Desigualdade da renda e das despesas per capita no Brasil, em 2002-2003 e 2008-2009, e avaliação do grau de progressividade ou regressividade de parcelas da renda familiar. Econ Soc. 2010;19(3):647-61. https://doi.org/10.1590/S0104-06182010000300010
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As políticas brasileiras de desenvolvimento social não são recentes e políticas baseadas na distribuição de alimentos ou subsídios para a compra de insumos de primeira necessidade antecederam os programas de transferência de renda. O primeiro destes foi o Programa Bolsa Escola, criado em 2001. Em nível municipal, outras experiências já haviam sido implementadas, mas somente na segunda metade dos anos 1990 é que esse tipo de política social começou a se expandireeSantana JA. A evolução dos programas de transferência de renda e o Programa Bolsa Família. Trabalho apresentado no Seminário População, Pobreza e Desigualdade; 5-7 nov 2007; Belo Horizonte, Brasil. Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/SeminarioPopulacaoPobrezaDesigualdade2007/docs/SemPopPob07_1019.pdf .

Em 2003, o Programa Bolsa Família (PBF) foi lançado, unificando os programas existentes (Auxílio Gás, Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação) e simplificando essa estrutura. Seu objetivo principal era erradicar a miséria e a fome2222. Tavares PA, Pazello E, Fernandes R, Camelo RS. Uma avaliação do Programa Bolsa Família: focalização e impacto na distribuição de renda e pobreza. Pesq Plan Econ. 2009;39(1):25-58.,ffSousa MF, Ximenes DA, Jaime PC, organizadores. Resultados, avanços e desafios das condicionalidades de saúde do Bolsa Família. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação; 2014. (Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, n.17).. Atualmente, para ser elegível para o programa, a família deve ter renda per capita mensal abaixo de 154 reais (BRL), sendo classificada como em extrema pobreza se a renda per capita for inferior a 77 reais (BRL)66. Falcão T, Costa PV. A linha de extrema pobreza e o público alvo do Plano Brasil Sem Miséria. In: Campello T, Falcão T, Costa PV, organizadores. O Brasil sem miséria. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p.67-94..

O PBF faz transferência incondicional de renda para as famílias extremamente pobres e transferências condicionais para famílias pobres ou extremamente pobres que tenham em sua composição crianças, jovens de até 18 anos de idade, gestantes ou nutrizes. As principais condicionalidades do PBF são a adoção de hábitos preventivos de saúde, como consultas médicas regulares, vacinação e acompanhamento antropométrico, e a manutenção de um nível mínimo de frequência à escola de 85% do ano letivo, para as crianças no ensino fundamental, e de 75% para jovens no ensino médio66. Falcão T, Costa PV. A linha de extrema pobreza e o público alvo do Plano Brasil Sem Miséria. In: Campello T, Falcão T, Costa PV, organizadores. O Brasil sem miséria. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p.67-94..

Para receber a bolsa, que normalmente é outorgada em nome da mãe da família, é necessário fazer a inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), que é gerenciado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). A inscrição é feita em postos de atendimento do município de residência, mas a participação no programa é decidida em nível federal, de acordo com critérios específicos e disponibilidade do sistema. Tendo o pedido aprovado, a titular do benefício recebe um cartão bancário com o qual consegue retirar o benefício mensalmente, em caixas eletrônicos. O benefício é composto de um valor fixo e de outro que é variável conforme a composição familiar (crianças, adolescentes, gestante ou nutriz)2222. Tavares PA, Pazello E, Fernandes R, Camelo RS. Uma avaliação do Programa Bolsa Família: focalização e impacto na distribuição de renda e pobreza. Pesq Plan Econ. 2009;39(1):25-58..

O PBF é um programa focalizado, visto que a elegibilidade é definida segundo a renda per capita da família. A manutenção do foco do programa, isto é, garantir que a maior parte do recurso destinado seja recebido pelas famílias elegíveis, é parte importante do gerenciamento e garante que o benefício não “vaze” para grupos, a priori, não incluídos como prioridade para o programa. O uso de mecanismos de focalização em programas sociais geralmente é justificado por uma questão de “eficiência na alocação de recursos”, ou seja, em concentrar um orçamento limitado nos mais necessitados55. Coady D, Grosh M, Hoddinott J. Targeting of transfers in developing countries. Washington (DC): The World Bank; 2004. https://doi.org/10.1596/0-8213-5769-7
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. Dessa forma, conforme Souza et al.ggSouza AP, Duarte J, Neves JAS, Oliveira PP, Gadelha SRB. Uma investigação sobre a focalização do Programa Bolsa Família e seus determinantes imediatos. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas; 2013. Disponível em: http://cmicro.fgv.br/sites/cmicro.fgv.br/files/arquivos/WP_13_2013.pdf , a focalização pode ser entendida como um instrumento para aumentar a capacidade de cobertura do programa (percentual de elegíveis que recebem o benefício), dada uma mesma quantidade de recursos.

A metodologia utilizada pelo MDS para a definição da linha de pobreza se baseou em um critério absoluto. Para tanto, foram consideradas as linhas regionalizadas de pobreza com base no consumo calórico1919. Rocha S. Pobreza no Brasil: a evolução de longo prazo (1970-2011). Rio de Janeiro; Instituto Nacional de Altos Estudos; 2013. (Estudos e Pesquisas, n. 491)., os valores do Banco Mundial adotados pelas Nações Unidas e a linha proposta e utilizada nos estudos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). No final, para fins de estimativas e de delimitação do público prioritário para o PBF no ano de 2010, estipulou-se como linhas de pobreza uma renda per capita de R$140,00 e, de extrema pobreza, de R$70,0066. Falcão T, Costa PV. A linha de extrema pobreza e o público alvo do Plano Brasil Sem Miséria. In: Campello T, Falcão T, Costa PV, organizadores. O Brasil sem miséria. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p.67-94.. Dados do IBGE (Censo Demográfico de 2010), utilizados para dimensionar a população em extrema pobreza, indicaram que essa população era de 16,3 milhões, cerca de 8,5% do total, concentrada na zona rural e nas regiões Norte e Nordeste66. Falcão T, Costa PV. A linha de extrema pobreza e o público alvo do Plano Brasil Sem Miséria. In: Campello T, Falcão T, Costa PV, organizadores. O Brasil sem miséria. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p.67-94..

Alguns estudos já avaliaram o foco e a cobertura do PBF, em nível nacional ou local, sendo a maioria deles realizados com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em diferentes edições. A partir de dados da PNAD de 2004, relatou-se foco de 52% e 62% para os grupos em extrema pobreza e pobreza, respectivamente, assim como uma cobertura expressivamente baixa, de aproximadamente 14% para os dois gruposhhMelo SRS, Sampaio YS. Focalização do Programa Bolsa Família: uma análise de erros de cobertura e vazamentos [palestra]. Vitória/ES, 2012 [citado 2015 out 13]. Disponível em: http://www.sober.org.br/palestra/15/1264.pdf . Utilizando os microdados do suplemento da PNAD 2004 e 2006, foram relatados resultados de cobertura próximos a 70%1414. Nóbrega Júnior JMP. A queda da desigualdade de renda no Brasil e os homicídios na Região Nordeste. Rev Espaço Acad. 2009;9(98):72-80.,ccSoares S, Ribas RP, Soares FV. Focalização e cobertura do Programa Bolsa-Família: qual é o significado dos 11 milhões de famílias? Brasília (DF): IPEA; 2009 [citado 2015 out 14]. (Texto para Discussão n.1396). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1396.pdf . O foco ficou entre 51% e 58%1414. Nóbrega Júnior JMP. A queda da desigualdade de renda no Brasil e os homicídios na Região Nordeste. Rev Espaço Acad. 2009;9(98):72-80.. Um terceiro estudo utilizando dados da PNAD 2004 relatou foco de 53% e cobertura de 42%2222. Tavares PA, Pazello E, Fernandes R, Camelo RS. Uma avaliação do Programa Bolsa Família: focalização e impacto na distribuição de renda e pobreza. Pesq Plan Econ. 2009;39(1):25-58.. Com dados do Censo Demográfico de 2010, obteve-se uma estimativa de foco de 48% e de cobertura de 59%ggSouza AP, Duarte J, Neves JAS, Oliveira PP, Gadelha SRB. Uma investigação sobre a focalização do Programa Bolsa Família e seus determinantes imediatos. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas; 2013. Disponível em: http://cmicro.fgv.br/sites/cmicro.fgv.br/files/arquivos/WP_13_2013.pdf . A diversidade de resultados expõe a dificuldade em estabelecer de forma robusta quem são as famílias que fazem parte do grupo alvo do programa. Entretanto, os resultados são consistentes no sentido de que tanto o foco como a cobertura parecem estar aquém do desejável.

Um dos desafios da avaliação de foco de um programa nacional como o PBF refere-se aos dados de renda, dificilmente coletados com precisão, mesmo pelo próprio programa. Por outro lado, inquéritos que coletam dados de renda e consumo domiciliar com maior precisão não coletam dados sobre a participação no PBF, ou têm apenas informação muito limitada. De posse de dados detalhados de participação no PBF das famílias de crianças que fazem parte da Coorte de Nascimentos de 2004 em Pelotas, RS, e de informação sobre bens e escolaridade que permitem avaliar o nível econômico das famílias, realizamos um estudo cujo objetivo foi descrever a focalização e a cobertura do PBF nas famílias de crianças que fazem parte dessa coorte.

MÉTODOS

Este estudo utilizou dados da Coorte de Nascimentos de 2004, Pelotas (referida doravante como coorte de 2004), com informações socioeconômicas e de composição familiar. A coorte de 2004 incluiu 99% dos nascidos vivos de mães residentes na área urbana do município de Pelotas, RS, durante o ano de 2004, e os residentes do Jardim América, atual município de Capão do Leão (com o intuito de manter a mesma área de captação de coorte similar iniciada em 1982). Essas crianças foram avaliadas ao nascer, com três, 12 e 24 meses e aos quatro e seis anos de idade, tendo-se registrado informações relacionadas à sua saúde e feitas avaliações antropométricas em cada oportunidade. No acompanhamento realizado entre outubro de 2010 e agosto de 2011, no qual as crianças tinham entre seis e sete anos, conseguiu-se encontrar e estudar 90% da coorte original (n = 3.721). Os dados utilizados neste estudo combinam informações coletadas nos vários acompanhamentos da coorte 2004. Detalhes da metodologia da coorte estão descritos em outras publicações22. Barros AJD, Santos IS, Victora CG, Albernaz EP, Domingues MR, Timm IK, et al. Coorte de nascimentos de Pelotas, 2004: metodologia e descrição. Rev Saude Publica. 2006;40(3):402-13. https://doi.org/10.1590/S0034-89102006000300007
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,2020. Santos IS, Barros AJD, Matijasevich A, Zanini R, Cesar MAC, Camargo-Figueira FA, et al. Cohort profile update: 2004 Pelotas (Brazil) Birth Cohort Study. Body composition, mental health and genetic assessment at the 6 years follow-up. Int J Epidemiol. 2014;43(5):1437-7f. https://doi.org/10.1093/ije/dyu144.
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Utilizamos também dados do CadÚnico e do Portal da TransparênciaiiGoverno Federal. Portal da Transparência. Disponível em: www.portaldatransparencia.gov.br . Os dados do CadÚnico foram obtidos por meio de processo administrativo encaminhado à Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (MDS-SAGI). Incluem informações do período de 2004 a 2010 sobre identificação dos beneficiários, valores pagos mensalmente, assim como algumas características do domicílio e da família. Adicionalmente, foram coletadas informações sobre participação no PBF e valores mensais recebidos no período de 2004 a 2010, extraídos do sítio do Portal da Transparência em 20 de dezembro de 2013.

Após recebimento e coleta, os dados dos três bancos foram integrados em um banco único por meio de um processo de pareamento determinístico e, posteriormente, probabilístico66. Falcão T, Costa PV. A linha de extrema pobreza e o público alvo do Plano Brasil Sem Miséria. In: Campello T, Falcão T, Costa PV, organizadores. O Brasil sem miséria. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p.67-94.. Foram geradas chaves para a ligação dos bancos com base no nome da criança, data de nascimento, nome e idade da mãe e também o nome do pai e da avó da criança, pois estes eram os beneficiários do programa, em alguns casos. O pareamento foi realizado com o software R (23R Core Team, 2014). Inicialmente, 4.231 crianças foram avaliadas na coorte. A integração das bases de dados permitiu identificar 1.796 destas como beneficiárias do PBF no período de 2004 a 2010; dessas, 1.494 (83,2%) tinham informações exatamente iguais nos bancos.

A partir dessa integração e da organização de um banco único com as informações completas de cada criança, avaliamos quais crianças da coorte de 2004 foram beneficiárias do PBF ano a ano (de 2004 a 2010), assim como em quais meses receberam o benefício e os valores recebidos. Utilizamos também a informação sobre a participação no PBF relatada pela mãe da criança no acompanhamento da coorte aos seis anos.

De acordo com a proposta de Habitch et al.88. Habicht JP, Mason JB, Tabatabai H. Basic concepts for the design of evaluation during programme implementation. In: Sahn DE, Lockwood R, Scrimshaw NS, editors. Methods for the evaluation of the impact of food and nutrition. Tokio: United Nations University Press; 1984. p.1-25., definimos como cobertura do programa o percentual de famílias elegíveis que são beneficiárias do programa. O foco do programa foi definido como o percentual de famílias elegíveis entre o total de beneficiárias. De forma simétrica, definimos o vazamento do programa como a proporção de não elegíveis que são beneficiários. É importante não confundir a cobertura do programa com a proporção da população beneficiária do programa, que é o percentual de famílias cobertas em relação à população total, indicador que não leva em conta se a família é elegível ou não.

Para definir as famílias elegíveis, utilizamos dois indicadores de classificação econômica nas análises: a renda familiar per capita (excluindo o valor do benefício recebido) e o Indicador Econômico Nacional (IEN). Usamos esses dois critérios como forma de análise de sensibilidade, e de modo a produzir uma faixa plausível de resultados, uma vez que a qualidade da renda como classificador econômico isolado em inquéritos tem sido criticada, por estar fortemente sujeita a erros de informação e de variabilidade temporal1111. Howe LD, Hargreaves JR, Gabrysch S, Huttly SRA. Is the wealth index a proxy for consumption expenditure? A systematic review. J Epidemiol Community Health. 2009;63(11):871-7. https://doi.org/10.1136/jech.2009.088021
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. Assim, assumimos que esses problemas são reais, mas que não havia o interesse das famílias mais pobres de ocultar renda, visto que não está em questão o recebimento do benefício. De forma complementar, utilizamos na coorte de 2004 um indicador econômico baseado em bens domésticos e na escolaridade do chefe da família, o IEN11. Barros AJD, Victora CG. Indicador econômico para o Brasil baseado no censo demográfico de 2000. Rev Saude Publica. 2005;39(4):523-9. https://doi.org/10.1590/S0034-89102005000400002
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, que é menos sujeito à variabilidade temporal visto utilizar informações que não mudam em curto período de tempo. O IEN é considerado um indicador de renda permanente, mas também pode estar sujeito a erros de classificação.

Dessa forma, para o critério de renda per capita, utilizamos a renda familiar declarada no acompanhamento da coorte de 2004 no ano de 2010 e, a partir dela e do número de moradores do domicílio, estimamos a renda per capita mensal média. Nessa análise, utilizamos como ponto de corte os valores definidos pelo MDS considerando a renda per capita (R$100,00 em 2004 e R$140,00 em 2010)1616. Osório RG, Soares SSD. O Brasil sem miséria e as mudanças no desenho da Bolsa Família. In: Campello T, Falcão T, Costa PV, organizadores. O Brasil sem miséria. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p.747-61., excluindo-se o valor do benefício recebido (calculado com base na média mensal de cada ano, a partir dos dados do CadÚnico). Em 2004, havia 15% de valores de renda domiciliar total com falta de informação total, parcial (para pelo menos um dos moradores) ou com valor zero. Foi realizado um processo de imputação simples para esses valores, a partir de um modelo de regressão utilizando as variáveis IEN, mãe mora com marido ou companheiro, escolaridade da mãe, número de exames de ultrassom durante a gravidez e número de moradores no domicilio. Esse modelo apresentou um R2 de 67%.

Para a classificação pelo IEN, usamos como critério de elegibilidade pertencer aos 20% mais pobres das famílias, conforme dados de 2004 e de 2010. Essa é uma definição um pouco mais flexível, visto que o indicador não se baseia em renda, mas produz uma ordenação de posição socioeconômica a partir da posse de bens domésticos. A escolha de 20% como ponto de corte foi baseada na estimativa, no início do programa, de que cerca de 18% da população brasileira era classificada como pobre e, portanto, potenciais beneficiários do programa2121. Souza PHGF, Osório RG. O perfil da pobreza no Brasil e suas mudanças entre 2003 e 2011. In: Campello T, Neri MC, organizadores. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília (DF): IPEA; 2013. p.140-55.. Além disso, o PBF atende atualmente cerca de 13,8 milhões de famílias em todo o País, o que corresponde a aproximadamente 20%-25% da população brasileira44. Camargo CF, Curralero CRB, Licio EC, Mostafa J. Perfil socioeconômico dos beneficiários do Programa Bolsa Família: o que o Cadastro Único revela? In: Campelo T, Neri MC, organizadores. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília (DF): IPEA; 2013. p.157-77.. Finalmente, uma série de estudos de pobreza e desigualdades usa o ponto de corte de 20% mais pobres para definir pobreza relativa11. Barros AJD, Victora CG. Indicador econômico para o Brasil baseado no censo demográfico de 2000. Rev Saude Publica. 2005;39(4):523-9. https://doi.org/10.1590/S0034-89102005000400002
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,1212. Januzzi PM, Sousa MF, Vaz ACN, Fonseca JCG, Barbosa MVS. Dimensionamento da extrema pobreza no Brasil: aprimoramentos metodológicos e novas estimativas. In: Campello T, Falcão T, Costa P, organizadores. O Brasil sem miséria. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p.763-91.,1313. Melo SRS. Desigualdade, pobreza e políticas de transferência de renda no Brasil. Rev OIDLES. 2013;7(15):1-12.,1818. Rocha S. O programa Bolsa Família: evolução e efeitos sobre a pobreza. Econ Soc. 2011;20(1):113-39. https://doi.org/10.1590/S0104-06182011000100005
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,1919. Rocha S. Pobreza no Brasil: a evolução de longo prazo (1970-2011). Rio de Janeiro; Instituto Nacional de Altos Estudos; 2013. (Estudos e Pesquisas, n. 491).,jjOsório RG, Souza PHGF, Soares SSD, Oliveira LFB. Perfil da pobreza no Brasil e sua evolução no período 2004-2009. Brasília (DF): IPEA; 2011. (Texto para Discussão, n. 1647). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1647.pdf .

Utilizamos técnicas clássicas de análise descritiva, apresentando os resultados em termos de medidas de tendência central e dispersão. Inicialmente, realizamos a descrição socioeconômica das famílias, em média e desvio padrão, de forma geral e estratificada pelo recebimento do benefício. Posteriormente foi identificada a proporção de elegíveis ao programa e a proporção de beneficiários conforme o relato na coorte no ano de 2010 e conforme o pareamento dos bancos, pelos critérios de elegibilidade (renda per capita e IEN). Na sequência, também utilizando os dois critérios de elegibilidade, foram estimadas a cobertura e a focalização do programa em 2004 e em 2010. Apresentamos nas tabelas os percentuais com seus respectivos intervalos de confiança de 95%, de forma a possibilitar uma avaliação da precisão dessas estimativas, assim como da diferença de proporções entre subgrupos. As análises foram realizadas com o aplicativo Stata (StataCorp. 2013. Stata Statistical Software: Release 13. College Station, TX: StataCorp LP). Todos os acompanhamentos de avaliação da coorte de 2004 foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. A utilização dos dados identificados no CadÚnico foi aprovada e autorizada por processo interno do MDS. Em todos os casos, garantimos a confidencialidade e anonimato aos indivíduos envolvidos.

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra características sociodemográficas das famílias da coorte de 2004, de modo geral e por situação no PBF, para o ano de 2010. As famílias beneficiárias do PBF apresentaram menor valor de renda e de escore de bens (IEN); mostram-se um pouco maiores e incluem mães com menor escolaridade do que as famílias não beneficiárias. Nota-se também que praticamente não há diferença em relação à idade das mães no nascimento das crianças.

Tabela 1
Caracterização das famílias da Coorte de Nascimentos de Pelotas, 2004, por situação de beneficiário do Programa Bolsa Família de acordo com dados do Cadastro Único e Portal da Transparência, para o ano de 2010.

As famílias beneficiárias receberam um valor mensal médio de R$107,00 em 2010, equivalente a um valor mensal per capita de R$32,00.

A proporção de famílias beneficiárias do PBF entre os participantes da coorte de 2004 triplicou entre 2004 e 2010, passando de 11% para 34% (Figura 1). Observa-se crescimento entre 2004 e 2006, com estabilização até 2008, e novo aumento em 2009.

Figura 1
Proporção e intervalo de confiança de beneficiários do Programa Bolsa Família entre as famílias das crianças da Coorte de Nascimentos de Pelotas, 2004, de acordo com dados do Cadastro Único e Portal da Transparência, para os anos de 2004 a 2010.

A Figura 2 mostra a proporção de famílias beneficiárias para 2004 e 2010, por quintis do IEN. Ao invés de uma queda abrupta no percentual de famílias cobertas pelo programa com o aumento da riqueza, observa-se uma queda gradual, com redução praticamente linear do primeiro quintil (os 20% mais pobres) até o quinto quintil (os 20% mais ricos). Entre 2004 e 2010, o padrão não se altera, mudando apenas a proporção de beneficiários, que apresenta um aumento em todos os níveis de riqueza.

Figura 2
Proporção e intervalo de confiança de beneficiários do Programa Bolsa Família entre as famílias das crianças da Coorte de Nascimentos de Pelotas, 2004, de acordo com dados do Cadastro Único e Portal da Transparência, por quintil de riqueza (IEN = Indicador Econômico Nacional, Q1 = 20% mais pobres até Q5 = 20% mais ricos) para os anos de 2004 e 2010.

Na avaliação da coorte de 2004, no ano de 2010, quando as crianças tinham seis anos, perguntamos se a família recebia o benefício do Bolsa Família. As proporções de famílias beneficiárias por relato são apresentadas na Tabela 2, juntamente com a proporção de beneficiários identificados pelos dados do CadÚnico, no geral, e por quintis de renda familiar per capita e do IEN. Os resultados mostram-se consistentes, independentemente do critério utilizado. Indicam cerca de um terço das famílias recebendo o benefício, com proporções, por quintil de renda ou riqueza, variando entre 62%-72% entre os mais pobres e 2%-5% entre os mais ricos. Novamente, vemos uma redução gradual na proporção de famílias beneficiárias do quintil mais pobre até o mais rico, com cerca de 30% das famílias do quintil intermediário recebendo o benefício. A inspeção dos intervalos de confiança, que não se sobrepõe em nenhum caso, mostra que as diferenças entre os quintis são todas estatisticamente significantes.

Tabela 2
Percentual de beneficiários do Programa Bolsa Família na Coorte de Nascimentos de Pelotas, 2004, no ano de 2010 (com base em informações do Cadastro Único e de relato em questionário da coorte) por quintis de renda familiar per capita (RFPC) e por quintis do Indicador Econômico Nacional (IEN).

A avaliação de cobertura e foco do PBF foi realizada em dois momentos – 2004, início da coorte e do programa e, em 2010, quando as crianças estavam com seis anos. Os resultados são apresentados na Tabela 3, usando dois critérios de elegibilidade – um baseado na renda per capita (menor ou igual a R$100,00 em 2004 e menor ou igual a R$140,00 em 2010, excluído o valor do benefício) e outro no IEN (pertencer aos 20% mais pobres). Pelo critério de renda per capita, havia 29% de famílias elegíveis em 2004 e 16% em 2010. O critério do IEN fixa em 20% a proporção de elegíveis.

Tabela 3
Cobertura e focalização do Programa Bolsa Família na Coorte de Nascimentos de Pelotas, 2004, nos anos de 2004 e de 2010, usando dois critérios de elegibilidade.

Os resultados dos dois critérios são menos consistentes que na avaliação de cobertura populacional. Pela renda familiar per capita informada pela família, 42,8% dos elegíveis estavam cobertos pelo programa em 2004, e 70,9% em 2010. Pelo critério do IEN, a cobertura foi mais baixa, 29,2% e 63%, respectivamente. Inversamente ao aumento da cobertura, observamos uma queda considerável do foco do programa entre 2004 e 2010, pelo critério da renda familiar. O percentual de elegíveis entre os beneficiários caiu de 77,9% para 32,4%. Pelo critério do IEN, no entanto, não observamos alteração no foco, que foi sempre baixo, de 36,8% em 2004 e de 36,9% em 2010.

DISCUSSÃO

A Coorte de Nascimentos de Pelotas, 2004, se constitui em um estudo ideal para avaliações relacionadas ao PBF. Essa coorte acompanha crianças nascidas em 2004, coincidentemente o período inicial do PBF, e conta com dados detalhados das famílias e das crianças, incluindo informações socioeconômicas, demográficas e de saúde. O município de Pelotas é alvo de um grande número de estudos populacionais em função de seus vários grupos de pesquisa, sendo também bastante semelhante a outros municípios de porte médio do País em relação a indicadores de saúde, apesar de se situar no extremo sul1515. Nunes BP, Thumé E, Tomasi E, Duro SMS, Facchini LA. Socioeconomic inequalities in the access to and quality of health care services. Rev Saude Publica. 2014;48(6):968-76. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2014048005388
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.

Encontramos cerca de 32% das famílias das crianças da coorte como beneficiarias do PBF, equivalente a duas vezes e meia a proporção total de beneficiários no município, que é de 13% (cerca de 15 mil famílias beneficiárias em um universo de 114 mil famílias). Essa desproporção é facilmente explicada pelo fato de que todas as famílias da coorte de 2004 necessariamente incluem crianças em idade escolar ou pré-escolar.

A análise de tendência de aumento da proporção de famílias beneficiárias do PBF não é novidade, mas é interessante observar como esse aumento se dá em um grupo fechado de famílias como a coorte de 2004, a partir do início do programa. Há um crescimento linear até 2006, um período de estabilização até 2008 e novo crescimento em 2009. É neste momento que a cobertura chega a mais de 30% das famílias da coorte. Mais interessante é a avaliação da proporção de beneficiários por quintis do IEN (ou, de forma bastante similar, por quintis de renda familiar per capita). Em vez de uma queda abrupta no percentual de beneficiários com o aumento da riqueza, padrão esperado no caso de um programa focalizado que usa a renda como critério de elegibilidade, encontramos uma redução suave e linear, tanto em 2004 como em 2010 (Figura 2). A ampliação do programa, com aumento expressivo da proporção de beneficiários que ocorreu entre 2004 e 2010, quando vimos o aumento de 11% para 34%, deveria ter ocorrido principalmente entre os mais pobres. Nosso resultado sugere, no entanto, aumento proporcional em todos os grupos de riqueza. Assim, em 2010, 33% do quintil intermediário do IEN, ou 28% do quintil intermediário de renda per capita, recebiam auxílio do programa.

Com esse tipo de distribuição, não era de esperar que o programa apresentasse um indicador de foco elevado. Utilizamos dois critérios diferentes, em vista da dificuldade de se definir exatamente quem é elegível ou não para o programa. O critério de renda familiar per capita é mais próximo daquele utilizado na prática, embora mais sujeito a erro de informação. A renda familiar informada nas visitas da coorte de 2004 sofre dos problemas habituais de registro de renda (esquecimento, desinformação por parte do respondente ou mesmo sub-relato intencional), dificuldades já relatadas na literatura33. Barros AJD, Victora CG. Measuring coverage in MNCH: determining and interpreting inequalities in coverage of maternal, newborn, and child health interventions. PLoS Med. 2013;10(5):e1001390. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001390
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,1010. Howe LD, Hargreaves JR, Huttly SRA. Issues in the construction of wealth indices for the measurement of socio-economic position in low-income countries. Emerg Themes Epidemiol. 2008;5:3. https://doi.org/10.1186/1742-7622-5-3.
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. No caso do PBF, visto que a renda é um critério, o problema é mais crítico. Embora não creiamos que haja um sub-relato intencional relevante nos questionários da coorte de 2004, é importante ter em mente que os beneficiários podem ter receio de relatar sua renda verdadeira, em vista da possibilidade de que essa informação acabe sendo repassada aos gestores do programa (apesar de o estudo fazer uma promessa explícita de confidencialidade). Já o IEN, indicador econômico baseado na posse de bens e na escolaridade do chefe da família11. Barros AJD, Victora CG. Indicador econômico para o Brasil baseado no censo demográfico de 2000. Rev Saude Publica. 2005;39(4):523-9. https://doi.org/10.1590/S0034-89102005000400002
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, independe de relato direto de renda ou gasto, e tem se mostrado um bom classificador econômico em estudos de equidade em saúde77. Filmer D, Pritchett LH. Estimating wealth effects without expenditure data–or tears: an application to educational enrollments in states of India. Demography. 2001;38(1):115-32.. Menos sujeito a vieses de informação, o IEN, por outro lado, não oferece uma medida absoluta de riqueza e só pode ser utilizado para ordenar as famílias. Também não é uma medida de renda atual, sendo visto mais como uma medida de renda permanente e evidentemente também sujeita a erros de classificação. Sua vantagem nessa análise é exatamente não depender do relato direto da renda.

Em vista do exposto acima, a estimativa de cobertura e foco baseada em cada um dos critérios (renda ou IEN) permite uma avaliação mais abrangente do desempenho do programa nesse aspecto específico. Do ponto de vista de cobertura, ambos os critérios mostram um aumento importante da proporção de elegíveis apoiados pelo programa – de 43% para 71% usando renda familiar per capita e de 29% para 63% usando o IEN. Os critérios divergem na avaliação do foco. Pelo critério de renda familiar, pelo qual 29% e 16% das famílias eram elegíveis em 2004 e 2010, respectivamente, o foco diminuiu de 78% para 32% (percentual de elegíveis entre os beneficiários). Essa redução no foco sugere que a ampliação do programa acabou por gerar vazamento do benefício para famílias teoricamente não elegíveis. Pelo IEN, temos um quadro diferente, em que o foco do programa já era baixo de início e se manteve em 37% de 2004 a 2010. A razão para isso é que o percentual de elegíveis pelo IEN é fixo em 20%. Sendo menor a “fatia” de elegíveis em 2004, em relação ao critério de renda familiar, o foco acaba sendo mais baixo. Além disso, pode não haver uma correlação exata entre IEN e renda, uma vez que os critérios para medir pobreza são diferentes ou, ainda, pelo fato de que o IEN não é tão afetado com a subdeclaração de bens, se comparado à renda.

Outros estudos utilizando dados das PNAD e do Censo estudaram o foco e a cobertura do PBF, encontrando resultados que, embora discrepantes do ponto de vista numérico, sugerem que, em nível nacional, tanto o foco (variando entre 51% e 62%) como a cobertura (variando entre 14% e 78%) são baixos2222. Tavares PA, Pazello E, Fernandes R, Camelo RS. Uma avaliação do Programa Bolsa Família: focalização e impacto na distribuição de renda e pobreza. Pesq Plan Econ. 2009;39(1):25-58.,hhMelo SRS, Sampaio YS. Focalização do Programa Bolsa Família: uma análise de erros de cobertura e vazamentos [palestra]. Vitória/ES, 2012 [citado 2015 out 13]. Disponível em: http://www.sober.org.br/palestra/15/1264.pdf . Os erros de focalização são atribuídos principalmente à subdeclaração de renda, erros de preenchimento e volatilidade da renda da família. Quando o PBF é comparado com outros programas, como o Chile Solidário ou Oportunidades do México, o foco é praticamente o mesmo1414. Nóbrega Júnior JMP. A queda da desigualdade de renda no Brasil e os homicídios na Região Nordeste. Rev Espaço Acad. 2009;9(98):72-80., o que sugere que a dificuldade para evitar a oferta do benefício a famílias não elegíveis é grande em qualquer cenário.

Nesse sentido, considerando a análise pelo IEN, que indica que em 2004 foram inseridas no programa famílias que não eram foco em termos de análise de bens, mas que eram pobres por questão de renda, e considerando que obtivemos a mesma taxa de focalização nos dois períodos, este estudo corrobora com a literatura ao mostrar que, em uma análise diferenciada (com variáveis além e diferentes da renda), o foco está inadequado desde o início do programa1818. Rocha S. O programa Bolsa Família: evolução e efeitos sobre a pobreza. Econ Soc. 2011;20(1):113-39. https://doi.org/10.1590/S0104-06182011000100005
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,hhMelo SRS, Sampaio YS. Focalização do Programa Bolsa Família: uma análise de erros de cobertura e vazamentos [palestra]. Vitória/ES, 2012 [citado 2015 out 13]. Disponível em: http://www.sober.org.br/palestra/15/1264.pdf . Os problemas de focalização do PBF encontrados nesta e em outras pesquisas poderiam explicar em parte a falta de consistência dos resultados dos diversos estudos realizados e a própria falta de efeito do programa. Ou seja, ao beneficiar famílias que não seriam elegíveis pelo critério de renda do programa, estaria se diluindo um possível efeito do programa que se esperava maior entre as famílias beneficiárias.

Nesse processo, a participação do município é importante, pois a gestão das condicionalidades e a atualização do CadÚnico e do programa é realizada nessa instância. O grau de organização do município para tornar o cadastro mais fácil ou mais difícil e o processo de atualização e verificação das informações pode resultar em melhor focalização do programa. Porém, a decisão da elegibilidade dos beneficiários é da esfera federal (MDS/SENARC/Caixa Econômica Federal).

Em vista do valor considerável que tem sido investido anualmente no PBF (mais de R$20 bilhões em 2014, de acordo com dados do MDS1717. Paiva LH, Bartholo L, Mostafa J, Agatte JP, Corrêa CL, Emura WS. O Programa Bolsa Família e a luta para superação da extrema pobreza no Brasil. In: Campello T, Falcão T, Costa PV, organizadores. O Brasil sem miséria. Brasília (DF): Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p.365-84.), e do valor médio mensal relativamente baixo fornecido para as famílias (média de R$107,00 por família em nosso estudo), investimentos para melhorar a focalização do programa parecem essenciais. Isso abriria a possibilidade, inclusive, de aumento do valor dos benefícios para aquelas famílias realmente em situação de pobreza e extrema pobreza. É relevante destacar que essas considerações são pertinentes ao município de Pelotas e, especificamente, para a população da coorte de 2004, e que os resultados podem ser influenciados pela gestão municipal da saúde, bem como pela organização de serviços complementares às famílias, tais como os acompanhamentos periódicos das famílias das coortes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2015
  • Aceito
    14 Jul 2016
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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