Segurança e saúde dos motoristas profissionais que trafegam nas rodovias do Brasil

Fernanda Veruska Narciso Marco Túlio de Mello Sobre os autores

RESUMO

Acidentes de trânsito com consequentes lesões e mortes têm se tornado uma epidemia em nível mundial. No Brasil, a maioria dos motoristas profissionais, sobretudo motoristas de transporte de cargas, enfrenta jornada de trabalho irregular e permanece acordado por mais de 18 horas/dia, o que reduz seu desempenho e estado de alerta. Neste artigo, discutimos as leis dos motoristas profissionais brasileiros e suas alterações vigentes (nº 12.619/2012 e nº 13.103/2015) em relação às horas de trabalho ao volante e a pausas para descanso, imprescindíveis para a qualidade de vida dos motoristas e para a sociedade em geral. Observamos que a nova legislação se mostra menos eficiente que a anterior por causar insegurança e preocupação aos usuários do sistema de transporte, aos próprios motoristas e aos empregadores. Para restringir e reduzir acidentes, mortes e lesões no trânsito, é fundamental uma legislação adequada, que vise à segurança do trabalhador e dos usuários das rodovias. A legislação deve, também, beneficiar o aspecto comercial, que se fortalece pela redução das perdas de produção e logística. Adicionalmente, são necessários programas de educação no trânsito e melhor fiscalização em relação ao tempo total de jornada de trabalho.

Transportes, recursos humanos; Condições de Trabalho; Riscos Ocupacionais; Trabalho em Turnos; Acidentes de Trânsito; Saúde do Trabalhador; Legislação Trabalhista

INTRODUÇÃO

Lesões e mortes por acidentes nas rodovias têm se tornado uma epidemia em todo o mundo, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil. Nos Estados Unidos, a taxa de ocorrência de acidentes fatais causados por motoristas sonolentos entre os anos de 2009 e 2013 foi de 21%aaTeft BC. Prevalence of motor vehicle crashes involving drowsy drivers, United States, 2009-2013. Washington (DC): American Automobile Association Foundation for Traffic Safety; 2014 [citado 2017 Jan 20]. p.1-8. Disponível em: https://www.aaafoundation.org/sites/default/files/AAAFoundation-DrowsyDriving-Nov2014.pdf . No Brasil, em 2014, a Polícia Rodoviária Federal constatou 168.593 acidentes nas rodovias brasileiras, totalizando 100.396 feridos e 8.227 mortos. A falta de atenção e o sono ao volante causaram 32,3% e 6% dos acidentes fataisbbMinistério da Justiça (BR), Departamento de Polícia Rodoviária Federal. Prestação de contas ordinária anual. Relatório de gestão do exercício de 2014. Brasília (DF): DPRF/MJ; 2015 [citado 2017 jan 20]. Disponível em: https://www.prf.gov.br/portal/estados/sede/prestacao-de-contas/2014-relatorio-de-gestao , respectivamente. Diante desses dados alarmantes, torna-se importante conhecer e entender as causas ou os fatores de risco relacionados a esses acidentes. O objetivo deste artigo é discutir a alteração da Lei dos motoristas profissionais nº 12.619 de 30/4/2012ccBrasil. Lei nº 12.619, de 30 de abril de 2012. Dispõe sobre o exercício da profissão de motorista; altera a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943 [...] e dá outras providências. Diario Oficial Uniao. 30 abr 2012 [citado 2017 jan 20]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12619.htm por meio da Lei nº 13.103 de 2/3/2015ddBrasil. Lei nº 13.103, de 2 de março de 2015. Dispõe sobre o exercício da profissão de motorista; altera a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943 [...] e dá outras providências. Diario Oficial Uniao. 2 mar 2015 [citado 2017 jan 20]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13103.htm e os aspectos referentes ao sono, jornadas de trabalho e segurança dos motoristas que trafegam nas rodovias brasileiras.

Sonolência e Fadiga ao Volante

Estudos reportam diversos fatores relacionados aos acidentes de trânsito: ingestão de álcool ao dirigir1616. Nascimento ECd, Nascimento E, Silva JdP. Uso de álcool e anfetaminas entre caminhoneiros de estrada. Rev Saude Publica. 2007;41(2):290-3.; consumo de medicamentos e drogas ilícitas1616. Nascimento ECd, Nascimento E, Silva JdP. Uso de álcool e anfetaminas entre caminhoneiros de estrada. Rev Saude Publica. 2007;41(2):290-3.,1919. Sinagawa DM, De Carvalho HB, Andreuccetti G, Do Prado NV, De Oliveira KC, Yonamine M, et al. Association between travel length and drug use among Brazilian truck drivers. Traffic Inj Prev. 2015;16(1):5-9.; privação ou restrição crônica de sono e distúrbios do sono55. de Pinho RS, da Silva-Junior FP, Bastos JP, Maia WS, de Mello MT, de Bruin VM, et al. Hypersomnolence and accidents in truck drivers: A cross-sectional study. Chronobiol Int. 2006;23(5):963-71.; falta de atenção1414. Ledesma RD, Montes SA, Poó FM, López-Ramón MF. Individual differences in driver inattention: the attention-related driving errors scale. Traffic Inj Prev. 2010;11(2):142-50. https://doi.org/10.1080/15389580903497139.
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; sonolência excessiva88. Ftouni S, Sletten TL, Howard M, Anderson C, Lenne MG, Lockley SW, et al. Objective and subjective measures of sleepiness, and their associations with on-road driving events in shift workers. J Sleep Res. 2013;22(1):58-69.,2020. Souza JC, Paiva T, Reimão R. Sono, qualidade de vida e acidentes em caminhoneiros brasileiros e portugueses. Psicol Estud. 2008;13(3):429-36.; excesso de horas de trabalho, monotonia e fadiga2121. Thiffault P, Bergeron J. Monotony of road environment and driver fatigue: a simulator study. Accid Anal Prev. 2003;35(3):381-91.,2222. Torregroza-Vargas NM, Bocarejo JP, Ramos-Bonilla JP. Fatigue and crashes: The case of freight transport in Colombia. Accid Anal Prev. 2014;72:440-8., entre outros. Dados estatísticos sobre acidentes de trânsito em decorrência da fadiga, da sonolência e do excesso de horas de trabalho têm preocupado pesquisadores e diversos profissionais em nível mundial44. de Mello MT, Narciso FV, Tufik S, Paiva T, Spence DW, Bahammam AS, et al. Sleep disorders as a cause of motor vehicle collisions. Int J Prev Med. 2013;4(3):246-57.,55. de Pinho RS, da Silva-Junior FP, Bastos JP, Maia WS, de Mello MT, de Bruin VM, et al. Hypersomnolence and accidents in truck drivers: A cross-sectional study. Chronobiol Int. 2006;23(5):963-71.,99. Gander PH, Marshall NS, James I, Le Quesne L. Investigating driver fatigue in truck crashes: Trial of a systematic methodology. Transp Res Part F Traffic Psychol Behav. 2006;9(1):65-76. https://doi.org/10.1016/j.trf.2005.09.001.
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,1313. Gonçalves M, Amici R, Lucas R, Akerstedt T, Cirignotta F, Horne J, et al. Sleepiness at the wheel across Europe: a survey of 19 countries. J Sleep Res. 2015;24(3):242-53. https://doi.org/10.1111/jsr.12267.
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,aaTeft BC. Prevalence of motor vehicle crashes involving drowsy drivers, United States, 2009-2013. Washington (DC): American Automobile Association Foundation for Traffic Safety; 2014 [citado 2017 Jan 20]. p.1-8. Disponível em: https://www.aaafoundation.org/sites/default/files/AAAFoundation-DrowsyDriving-Nov2014.pdf . Recentemente, um estudo realizado com 19 países europeus1313. Gonçalves M, Amici R, Lucas R, Akerstedt T, Cirignotta F, Horne J, et al. Sleepiness at the wheel across Europe: a survey of 19 countries. J Sleep Res. 2015;24(3):242-53. https://doi.org/10.1111/jsr.12267.
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constatou que aproximadamente 17% dos acidentes foram causados por sono ao volante. Desse percentual, as principais causas foram: sono ruim na noite anterior à viagem (42,5%) e hábitos ruins de sono (34,1%). Ainda assim, uma das razões determinantes para dormir ao volante foi a sonolência excessiva1313. Gonçalves M, Amici R, Lucas R, Akerstedt T, Cirignotta F, Horne J, et al. Sleepiness at the wheel across Europe: a survey of 19 countries. J Sleep Res. 2015;24(3):242-53. https://doi.org/10.1111/jsr.12267.
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Em termos mundiais, cerca de 7% a 30% das mortes fatais no trânsito são decorrentes da sonolência e da fadiga1313. Gonçalves M, Amici R, Lucas R, Akerstedt T, Cirignotta F, Horne J, et al. Sleepiness at the wheel across Europe: a survey of 19 countries. J Sleep Res. 2015;24(3):242-53. https://doi.org/10.1111/jsr.12267.
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,aaTeft BC. Prevalence of motor vehicle crashes involving drowsy drivers, United States, 2009-2013. Washington (DC): American Automobile Association Foundation for Traffic Safety; 2014 [citado 2017 Jan 20]. p.1-8. Disponível em: https://www.aaafoundation.org/sites/default/files/AAAFoundation-DrowsyDriving-Nov2014.pdf . No caso dos motoristas brasileiros, principalmente os que trabalham em turnos irregulares, o cansaço, a fadiga, o excesso de horas de trabalho, a falta de sono e pouco tempo para descanso são decorrentes da excessiva carga de trabalho para cumprir prazos e horários de entrega das mercadorias (cargas) contidas em seu veículo. Nascimento et al.1616. Nascimento ECd, Nascimento E, Silva JdP. Uso de álcool e anfetaminas entre caminhoneiros de estrada. Rev Saude Publica. 2007;41(2):290-3. mostraram que 69% dos caminhoneiros brasileiros viajam ≥ 9 horas/dia, 32% descansam ou dormem menos que quatro horas, 66% usam anfetaminas durante a viagem e 91% ingerem álcool durante o trabalho. Os motivos relatados pelos motoristas para a ingestão de álcool foram: participação social entre os amigos, fugir da rotina, ansiedade e problemas. Já os motivos para o uso da anfetamina durante as viagens foram: pressa para voltar para casa, maior número de fretes e pressão da empresa. Uma correlação moderada entre poucas horas de descanso ou de sono e o envolvimento em acidentes sob o efeito do álcool foi também observada pelos autores. Sinagawa et al.1919. Sinagawa DM, De Carvalho HB, Andreuccetti G, Do Prado NV, De Oliveira KC, Yonamine M, et al. Association between travel length and drug use among Brazilian truck drivers. Traffic Inj Prev. 2015;16(1):5-9. comprovaram urina positiva para anfetaminas entre os motoristas de caminhão (9,9%) que viajam longas distâncias (> 270 km), dos quais 96% (n = 203) justificam o uso pela necessidade de se manterem acordados. Assim, os autores concluíram que esses motoristas usam drogas ilícitas para combater a fadiga durante as viagens de longa distância.

Outro estudo identificou que 68,6% dos motoristas de caminhão viajam mais de 10 horas sem pausa para descanso, dormem pouco (entre 5 e 6 horas), 43,8% ingerem álcool, 18,3% roncam e 26,5% relatam acidente prévio causado por sonolência ao volante55. de Pinho RS, da Silva-Junior FP, Bastos JP, Maia WS, de Mello MT, de Bruin VM, et al. Hypersomnolence and accidents in truck drivers: A cross-sectional study. Chronobiol Int. 2006;23(5):963-71.. Ao comparar caminhoneiros portugueses e brasileiros, pesquisadores2121. Thiffault P, Bergeron J. Monotony of road environment and driver fatigue: a simulator study. Accid Anal Prev. 2003;35(3):381-91. constataram que os motoristas brasileiros dirigem por mais tempo (> 16 horas) e apresentam piores índices de sonolência e de qualidade de vida em relação à saúde geral e mental. Os motoristas de ambos os países apresentam alta prevalência de distúrbios do sono, elevado consumo de álcool e drogas psicoestimulantes e alto índice de acidentes nos últimos cinco anos2020. Souza JC, Paiva T, Reimão R. Sono, qualidade de vida e acidentes em caminhoneiros brasileiros e portugueses. Psicol Estud. 2008;13(3):429-36..

Diante do exposto, percebe-se a necessidade de implantar políticas públicas mais incisivas em relação à saúde e à segurança desses trabalhadores, que transitam pelas rodovias do país. Discussões sobre as leis vigentes em relação às horas de trabalho ao volante, escalas de trabalho, pausas para descanso e sono restaurador são imprescindíveis para a qualidade de vida dos motoristas e para a sociedade em geral que utiliza o sistema viário brasileiro.

Jornadas de Trabalho dos Motoristas de Caminhão

Mundialmente, a maior parte dos caminhoneiros enfrenta uma jornada de trabalho irregular ou em turnos e permanece acordada mais de 18 horas/dia. Estudos indicam que tempo acordado maior que 19 horas reduz o desempenho psicomotor e é equivalente a altas quantidades de álcool no sangue22. Dawson D, Reid K. Fatigue, alcohol and performance impairment. Nature. 1997;388(6639):235.,88. Ftouni S, Sletten TL, Howard M, Anderson C, Lenne MG, Lockley SW, et al. Objective and subjective measures of sleepiness, and their associations with on-road driving events in shift workers. J Sleep Res. 2013;22(1):58-69.. Um exemplo de trabalhadores de turno irregular é o motorista de caminhão autônomo ou não assalariado que perfaz jornadas superiores a 12/14 horas em horários irregulares e em turnos diversificados, com poucas horas de sono (4 a 6 horas). Já o motorista que trabalha em turnos alterna seus horários de trabalho de acordo com uma escala pré-estabelecida pela empresa. Nesses dois casos, na maioria das vezes, ocorre inversão do ciclo vigília-sono1515. Moreno CR, Louzada FM, Teixeira LR, Borges F, Lorenzi-Filho G. Short sleep is associated with obesity among truck drivers. Chronobiol Int. 2006;23(6):1295-303., o que prejudica a qualidade do sono, tornando-o insuficiente e com presença de repetidos despertares1818. Santos EH, de Mello MT, Pradella-Hallinan M, Luchesi L, Pires ML, Tufik S. Sleep and sleepiness among Brazilian shift-working bus drivers. Chronobiol Int. 2004;21(6):881-8..

Leis estabelecidas por alguns países da América, Europa e Austrália

Pesquisadores têm desenvolvido estudos sobre as jornadas de trabalho dos motoristas profissionais em várias partes do mundo. De forma geral, os países aplicam as leis ou regulamentações a fim de dirimir o cansaço e a fadiga desses trabalhadores, reforçando intervalos de descanso e limitando as horas ao volante. A Tabela 1 descreve os aspectos gerais das leis de trabalho referentes aos motoristas de transporte de cargas da União Europeia e de países como Estados Unidos, Austrália e Canadá.

Tabela 1
Leis internacionais de trabalho referentes ao motorista profissional de transporte de cargas.

No Brasil, as leis de trabalho referentes ao tempo de condução e de descanso do motorista profissional sofreram alterações ao longo de três anos (Tabela 2). O tempo de condução aumentou de 4 horas para 5h30 (Leis 12.619/2012 e 13.103/2015, respectivamente). Será que uma hora e meia a mais sem pausa para descanso pode prejudicar a atenção e a vigilância dos motoristas? Estudos recentes constataram alta prevalência de sonolência ao volante e de acidentes com motoristas que dormem pouco e dirigem por muitas horas sem descanso88. Ftouni S, Sletten TL, Howard M, Anderson C, Lenne MG, Lockley SW, et al. Objective and subjective measures of sleepiness, and their associations with on-road driving events in shift workers. J Sleep Res. 2013;22(1):58-69.,1717. Phillips RO, Sagberg F. Road accidents caused by sleepy drivers: Update of a Norwegian survey. Accid Anal Prev. 2013;50:138-46.. Pesquisas com motoristas colombianos e da Nova Zelândia mostraram que o excesso de horas de trabalho (> 12 horas) ao volante e duração de sono menor que 6 horas são fatores de risco para fadiga e acidentes99. Gander PH, Marshall NS, James I, Le Quesne L. Investigating driver fatigue in truck crashes: Trial of a systematic methodology. Transp Res Part F Traffic Psychol Behav. 2006;9(1):65-76. https://doi.org/10.1016/j.trf.2005.09.001.
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,2222. Torregroza-Vargas NM, Bocarejo JP, Ramos-Bonilla JP. Fatigue and crashes: The case of freight transport in Colombia. Accid Anal Prev. 2014;72:440-8..

Tabela 2
Leis de trabalho antiga (12.619/2012) e nova (13.103/2015) referentes ao motorista profissional de transporte de cargas no Brasil.

Em relação ao revezamento dos motoristas durante a viagem, a lei antiga assegurava o repouso dos motoristas com o veículo estacionado. A nova lei, porém, designou que os motoristas podem dormir com o veículo em movimento. Como obter um sono restaurador com o veículo em movimento? A National Sleep FoundationeeNational Sleep Foundation. Sleep in American poll: summary of findings. Washington (DC): National Sleep Foundation; 2008. recomenda dormir de acordo com a necessidade biológica, sem fragmentar o sono e em ambiente livre de perturbações. Dessa forma, observa-se que a legislação vigente desconsidera essas ações quanto ao aspecto de qualidade, eficiência e higiene do sono durante o período de descanso.

Com isso, constata-se que as alterações regulamentadas na Lei 13.103/2015 contribuem para maior tempo de jornada de trabalho e redução do tempo de descanso, prejudicando o sono restaurador, a atenção e o estado de alerta dos motoristas, o que pode causar sonolência e acidentes.

Diante desse cenário, é inegável que longas horas de jornada de trabalho e o débito cumulativo de sono podem provocar alterações dos ritmos biológicos e a redução do desempenho psicomotor, bem como provocar acidentes11. Åkerstedt T, Wright KP, Jr. Sleep Loss and Fatigue in Shift Work and Shift Work Disorder. Sleep Med Clin. 2009;4(2):257-71.,66. Folkard S, Lombardi DA. Modeling the impact of the components of long work hours on injuries and “accidents”. Am J Ind Med. 2006;49(11):953-63.. A Figura mostra alguns fatores desencadeantes de um acidente.

Figura
Fatores desencadeantes de um acidente.

Outra resolução instituída em 2008 e adequada em 2012 pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran/Denatran – Resoluções nº 267 de 15/2/2008; nº 425 de 27/11/2012ffConselho Nacional de Trânsito. Resolução nº 425, de 27 de novembro de 2012. Dispõe sobre o exame de aptidão física e mental, a avaliação psicológica e o credenciamento das entidades públicas e privadas de que tratam o art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código de Trânsito Brasileiro. Diario Oficial Uniao. 27 nov 2012 [citado 2017 jan 20]. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=247963 ) com o objetivo de reduzir o número de acidentes e mortes causados por motoristas sonolentos e fadigados33. de Mello MT, Bittencourt LR, Cunha Rde C, Esteves AM, Tufik S. Sleep and transit in Brazil: new legislation. J Clin Sleep Med. 2009;5(2):164-6., embora relevante para a sociedade brasileira, não tem sido exigida na prática durante as avaliações para renovação, adição e mudanças para as categorias C, D e E, e muito menos fiscalizada pelos órgãos de trânsito. Dessa forma, dificulta o controle e a redução dos riscos de acidentes nas rodovias brasileiras resultantes da privação e dos distúrbios do sono. Sabe-se que a sonolência e a fadiga decorrentes dos distúrbios do sono, da restrição ou privação de sono afetam diretamente a saúde e segurança dos motoristas44. de Mello MT, Narciso FV, Tufik S, Paiva T, Spence DW, Bahammam AS, et al. Sleep disorders as a cause of motor vehicle collisions. Int J Prev Med. 2013;4(3):246-57.,1515. Moreno CR, Louzada FM, Teixeira LR, Borges F, Lorenzi-Filho G. Short sleep is associated with obesity among truck drivers. Chronobiol Int. 2006;23(6):1295-303.. Dessa forma, torna-se fundamental o cumprimento das investigações clínicas referentes a essa resolução, além de fiscalização mais rigorosa.

A respeito da saúde e segurança dos motoristas, foi utilizado neste estudo o índice de risco de fadiga (IRF) (Fatigue/Risk Index, software Quineti Q for HSE)77. Folkard S, Robertson KA, Spencer MB. A Fatigue/Risk index to assess work schedules. Somnologie. 2007;11(3):177-85. e simulado em um período de 30 dias, três jornadas de trabalho (8, 10 e 12 horas), de turnos diurno e noturno, com 11 horas de tempo de descanso/24 horas, folga de 48 horas, limite de horas ao volante (4 horas e 5h30) e pausas para descanso de 30 minutos, sendo estas compatíveis às duas leis de 2012 e 2015. De acordo com os autores77. Folkard S, Robertson KA, Spencer MB. A Fatigue/Risk index to assess work schedules. Somnologie. 2007;11(3):177-85., o IRF está relacionado à probabilidade de níveis elevados de sonolência e o resultado é expresso a partir de um valor entre zero e 100. Um índice de 20,7 é considerado um valor médio de fadiga para uma jornada de dois dias de trabalho diurno, dois dias de turno noturno e quatro dias de folga. Já o risco relativo médio de um acidente ou incidente (RRA/I) é igual a um (1,0). Os resultados referentes ao IRF e ao RRA/I estão apresentados na Tabela 3.

Tabela 3
Valores médios do IRF e RRA/I de uma jornada de trabalho de 8, 10 e 12 horas durante 30 dias (simulação).

Os resultados mostraram aumento da fadiga e do risco de acidente a cada duas horas a mais de trabalho e a cada 1h30min a mais de condução sem pausa para descanso. É importante mencionar que o risco de acidente dobra a partir de 12 horas de trabalho e aumenta ao trabalhar 5h30 (RRA/I = 2,27) comparado a 4 horas (RRA/I = 2,20). Isso também foi constatado em estudos prévios que associaram riscos de acidentes ao dirigir por longas distâncias e ao trabalhar ≥ 2 horas consecutivas66. Folkard S, Lombardi DA. Modeling the impact of the components of long work hours on injuries and “accidents”. Am J Ind Med. 2006;49(11):953-63.,1717. Phillips RO, Sagberg F. Road accidents caused by sleepy drivers: Update of a Norwegian survey. Accid Anal Prev. 2013;50:138-46.. Dessa forma, torna-se relevante referir que essas 2 e 4 horas a mais de condução (10 e 12 horas) estão previstas nas leis citadas como horas extras de trabalho e que não são condizentes à melhora da segurança viária, do trabalho ao volante e, muito menos, da segurança da nossa população.

Sugerimos que a nova legislação dos motoristas se mostra menos eficiente que a anterior, por causar insegurança e preocupação aos usuários do sistema de transporte, aos próprios motoristas e aos empregadores. Infelizmente, percebe-se que a sociedade e as autoridades brasileiras ainda não têm ciência do aumento exponencial do risco para o acidente referente à falta de sono e ao excesso de tempo de vigília que esses motoristas são induzidos a praticar. Nesse sentido, observam-se complacência dos empregadores e negligência da legislação brasileira, bem como a falta de compromisso do próprio motorista com a prudência ao volante e para com os usuários da rede viária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ressaltamos a urgente necessidade de ações específicas em relação a acidentes e mortes no trânsito causados principalmente por excesso de trabalho e sono insuficiente. É possível propor alguns aspectos relevantes e cabíveis de serem implementados: 1) redução do tempo de condução do veículo; 2) maior número de pausas para descanso durante a jornada de trabalho; 3) cochilos programados; 4) maior número de folgas aos finais de semana; 5) atividades de lazer e prática de atividade física; 6) sono noturno, de qualidade e por mais tempo; 7) evitar trabalhar ou permanecer acordado durante a fase escura (turno noturno) a fim de manter a sincronização dos ritmos biológicos. Por meio de ações educativas e de conscientização dos motoristas e dos empregadores, essas estratégias-chave são fundamentais para melhorar o estilo de vida dos motoristas e proporcionar uma condução mais segura, a fim de dirimir ou exterminar este grande problema de saúde pública: o elevado número de acidentes e mortes no trânsito decorrentes da sonolência e da fadiga.

Agradecimentos

Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), Centro de Estudos em Psicobiologia e Exercício (Cepe), Centro Multidisciplinar em Sonolência e Acidentes (CEMSA), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    9 Out 2015
  • Aceito
    29 Mar 2016
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