Polifarmácia: uma realidade na atenção primária do Sistema Único de Saúde

Renata Cristina Rezende Macedo do Nascimento Juliana Álvares Augusto Afonso Guerra Junior Isabel Cristina Gomes Micheline Rosa Silveira Ediná Alves Costa Silvana Nair Leite Karen Sarmento Costa Orlando Mario Soeiro Ione Aquemi Guibu Margô Gomes de Oliveira Karnikowski Francisco de Assis Acurcio Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Caracterizar a polifarmácia em usuários da atenção primária e identificar fatores a ela associados.

MÉTODOS

Estudo transversal, exploratório, de natureza avaliativa, integrante do Componente Serviços da Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos, 2015. A variável de interesse foi a polifarmácia, definida como o uso de cinco ou mais medicamentos. Buscou-se identificar a associação de variáveis sociodemográficas e indicadores de condições de saúde à polifarmácia. Para a comparação de grupos utilizou-se o teste qui-quadrado de Pearson. A associação entre polifarmácia e variáveis explicativas foi avaliada por modelo de regressão logística (p < 0,05). A qualidade do ajuste foi verificada pelo teste de Hosmer-Lemeshow.

RESULTADOS

A prevalência de polifarmácia entre os usuários de medicamentos foi de 9,4% (IC95% 7,8–12,0) na população geral e de 18,1% (IC95% 13,6–22,8) em idosos acima de 65 anos. Houve associação estatisticamente significante entre polifarmácia e faixa etária acima de 45 anos, baixa autopercepção de saúde, presença de doenças crônicas, ter plano de saúde, atendimento em serviço de emergência e região do país. Usuários do Sul apresentaram as maiores chances para polifarmácia. Os medicamentos mais utilizados foram os do aparelho cardiovascular, sendo compatível com o perfil epidemiológico nacional.

CONCLUSÕES

A polifarmácia é uma realidade na população atendida no âmbito da atenção primária do Sistema Único de Saúde e pode estar relacionada ao uso exacerbado ou inapropriado de medicamentos. O principal desafio para qualificar a atenção em saúde é garantir que a prescrição de múltiplos medicamentos seja apropriada e segura.

Polimedicação; Fatores de Risco; Segurança do Paciente; Assistência Farmacêutica; Atenção Primária à Saúde; Pesquisa sobre Serviços de Saúde; Sistema Único de Saúde

INTRODUÇÃO

A prestação de cuidados em saúde é bastante complexa e pressupõe o necessário equilíbrio entre benefícios e danos que acompanham todo processo, a fim de proporcionar ao indivíduo o mais completo bem estar10. A segurança do paciente, entendida como a redução do risco de dano desnecessário associado ao cuidado, tem sido considerada um atributo prioritário da qualidade dos sistemas de saúde em todo o mundo1010. Donabedian A. An introduction to quality assurance in health care. New York: Oxford University Press; 2003.,1717. Ministério da Saúde (BR). Portaria no 529, de 01 de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). Diario Oficial Uniao. 2 abril 2013 [cited 2016 Mar 10]; Seção I:43. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
. No âmbito da atenção primária, a correlação inapropriada entre diagnóstico e tratamento prescrito, o uso inadequado de medicamentos e problemas de comunicação entre médicos e pacientes são as principais causas de eventos adversos1919. Mira JJ, Orozco-Beltrán D, Pérez-Jover V, Martínez-Jimeno L, Gil-Guillén VF, Carratala-Munuera C, et al. Physician patient communication failure facilitates medication errors in older polymedicated patients with multiple comorbidities. Fam Pract. 2013;30(1):56-63. https://doi.org/10.1093/fampra/cms046
https://doi.org/10.1093/fampra/cms046...
.

O uso de múltiplos medicamentos, ou polifarmácia, é comum e crescente na prática clínica, principalmente em pessoas acima de 65 anos. Este crescimento relaciona-se a vários fatores, como o aumento da expectativa de vida e o consequente aumento da multimorbidade, à maior disponibilidade de fármacos no mercado e de linhas-guia que recomendam o uso de associações medicamentosas para o manejo de várias condições de saúde, como a hipertensão e o diabetes mellitus77. Cadogan CA, Ryan C, Hughes CM. Appropriate polypharmacy and medicine safety: when many is not too many. Drug Saf. 2016;39(2):109-16. https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-5
https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-...
,1515. Macovic-Pecovik V, Skrbic R, Petrovic A, Vlahovic-Palcevski V, Mrak J, Bennie M et al. Polypharmacy among the elderly in the Republic of Srpska: extent and implications for the future. Expert Rev Pharmacoecon Outcomes Res. 2016;16(5):609-18. https://doi.org/10.1586/14737167.2016.1115347
https://doi.org/10.1586/14737167.2016.11...
. A associação otimizada de fármacos, prescritos de acordo com a melhor evidência disponível, pode curar, minimizar danos, aumentar a longevidade e melhorar a qualidade de vida66. Bushardt RL, Massey EB, Simpson TW, Ariail JC, Simpson KN. Polypharmacy: misleading, but manageable. Clin Interv Aging. 2008;3(2):383-9. https://doi.org/10.2147/CIA.S2468
https://doi.org/10.2147/CIA.S2468...
. Porém, algumas terapias são inadequadas e podem ocasionar reações adversas e interações medicamentosas1616. Medeiros-Souza P, Santos-Neto LL, Kusano LTE, Pereira MG. Diagnosis and control of polypharmacy in the elderly. Rev Saude Publica. 2007;41(6):1049-1053. https://doi.org/10.1590/S0034-89102006005000050
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200600...
.

Um dos desafios para a discussão sobre o uso seguro de associações medicamentosas é a ausência de uma definição de polifarmácia universalmente aceita77. Cadogan CA, Ryan C, Hughes CM. Appropriate polypharmacy and medicine safety: when many is not too many. Drug Saf. 2016;39(2):109-16. https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-5
https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-...
,2121. Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20130...
. A maioria dos conceitos identificados por Bushardt et al.66. Bushardt RL, Massey EB, Simpson TW, Ariail JC, Simpson KN. Polypharmacy: misleading, but manageable. Clin Interv Aging. 2008;3(2):383-9. https://doi.org/10.2147/CIA.S2468
https://doi.org/10.2147/CIA.S2468...
relacionam o termo ao uso exacerbado e inapropriado de medicamentos. Dentre as razões que explicam esta prática, destacam-se os tratamentos não baseados em evidências, a adoção de combinações com potenciais interações medicamentosas; o tratamento farmacológico dos efeitos secundários de outros medicamentos; e a prescrição simultânea, por vários médicos, sem que ocorra a necessária conciliação terapêutica para o paciente.

A associação inadequada de medicamentos é um grave problema para os sistemas de saúde, sendo reconhecida como uma prática onerosa66. Bushardt RL, Massey EB, Simpson TW, Ariail JC, Simpson KN. Polypharmacy: misleading, but manageable. Clin Interv Aging. 2008;3(2):383-9. https://doi.org/10.2147/CIA.S2468
https://doi.org/10.2147/CIA.S2468...
. De acordo com a Organização Mundial de Saúde2828. World Health Organization (WHO), World Alliance for Patient safety, The Research Priority Setting Working Group. Summary of The Evidence on Patient Safety: implications for research. Geneva: WHO; 2008 [cited 2017 Feb 25]. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/43874/1/9789241596541_eng.pdf
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665...
, cerca de 50% dos portadores de doenças crônicas não aderem aos tratamentos farmacológicos, 4% a 5% dos ingressos hospitalares ocorrem por eventos adversos preveníveis e cerca de 30% de consultas de emergência são geradas por problemas relacionados a medicamentos, muitos deles evitáveis.

Os eventos adversos a medicamentos (EAM) são uma complicação comum e onerosa dos cuidados em saúde, representando a quinta causa de mortalidade nos Estados Unidos55. Bourgeois FT, Shannon MW, Valim C, Mandl KD. Adverse drug events in the outpatient setting: an 11-year national analysis. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 2010;19(9):901-10. https://doi.org/10.1002/pds.1984
https://doi.org/10.1002/pds.1984...
. Tanto a idade do paciente quanto a polifarmácia são fatores associados ao maior número de consultas médicas e à ocorrência de EAM55. Bourgeois FT, Shannon MW, Valim C, Mandl KD. Adverse drug events in the outpatient setting: an 11-year national analysis. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 2010;19(9):901-10. https://doi.org/10.1002/pds.1984
https://doi.org/10.1002/pds.1984...
. Evitar o uso de medicamentos inadequados e de alto risco é uma estratégia importante, simples e eficaz para reduzir os problemas relacionados ao tratamento medicamentoso, principalmente em idosos. Porém, há importantes lacunas no conhecimento sobre este fenômeno, sendo as melhores evidências oriundas dos ambientes hospitalares2828. World Health Organization (WHO), World Alliance for Patient safety, The Research Priority Setting Working Group. Summary of The Evidence on Patient Safety: implications for research. Geneva: WHO; 2008 [cited 2017 Feb 25]. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/43874/1/9789241596541_eng.pdf
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665...
.

Poucos estudos avaliaram a polifarmácia no âmbito da atenção primária e em sistemas públicos de saúde2828. World Health Organization (WHO), World Alliance for Patient safety, The Research Priority Setting Working Group. Summary of The Evidence on Patient Safety: implications for research. Geneva: WHO; 2008 [cited 2017 Feb 25]. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/43874/1/9789241596541_eng.pdf
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665...
. Além disso, as evidências científicas de eficácia dos medicamentos são provenientes de ensaios clínicos randomizados, que excluem idosos, pessoas com comorbidades e polifarmácia1313. Guthrie B, Makubate B, Hernandez-Santiago V, Dreischulte T. The rising tide of polypharmacy and drug-drug interactions: population database analysis 1995-2010. BMC Med. 2015;13:74. https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-7
https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-...
. Desta forma, a maioria dos artigos publicados na literatura não fornece informações diretamente relevantes para as pessoas que necessitam de associações medicamentosas. Estudos sobre estes eventos no mundo real são especialmente importantes para uma melhor compreensão dos desafios na prestação de cuidados de qualidade em saúde2525. Ryan R, Santesso N, Lowe D, Hill S, Grimshaw J, Prictor M, et al. Interventions to improve safe and effective medicines use by consumers: an overview of systematic reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2014;(4):CD007768. https://doi.org/10.1002/14651858.CD007768.pub3
https://doi.org/10.1002/14651858.CD00776...
.

A Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Uso Racional de Medicamentos (PNAUM) – Serviços 2015 teve como objetivo caracterizar a organização dos serviços de assistência farmacêutica na atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas ao acesso e à promoção do uso racional de medicamentos, bem como identificar e discutir os fatores que interferem na consolidação da assistência farmacêutica no âmbito municipal. Neste contexto, o presente estudo, integrante da PNAUM – Serviços, objetiva caracterizar a polifarmácia em usuários da atenção primária do SUS e identificar fatores a ela associados, a fim de fornecer subsídios para o aprimoramento dos cuidados em saúde no Brasil.

MÉTODOS

Este trabalho é parte da PNAUM, um estudo transversal, exploratório, de natureza avaliativa, composto por um levantamento de informações numa amostra representativa de municípios, serviços de atenção primária, usuários, médicos e responsáveis pela dispensação de medicamentos nas cinco regiões do Brasil. O plano de amostragem considerou as várias populações de estudo e estimou os diversos tamanhos de amostra para cada uma dessas populações11. Álvares J, Alves MCGP, Escuder MML, Almeida AM, Izidoro JB, Guerra Junior AA, et al. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos: métodos. Rev Saude Publica. 2017;51 Supl 2:4s. https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017051007027
https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017...
. Para cada região foram amostrados 120 municípios, 300 serviços de saúde e 1.800 usuários. A amostra total de usuários (9.000) foi estimada considerando-se a possibilidade de até 20% de perda. Os usuários foram entrevistados nos serviços de atenção primária, utilizando-se um questionário estruturado específico. Após o treinamento dos entrevistadores, foi realizado um pré-teste, envolvendo municípios de diferentes portes populacionais, a fim de detectar possibilidades de melhoria e validar os instrumentos. Os dados foram coletados de julho de 2014 a maio de 2015.

Os entrevistados foram questionados sobre o conhecimento acerca de doenças crônicas diagnosticadas por profissional de saúde, quanto ao atendimento em serviço de emergência e hospitalização nos 12 meses anteriores à entrevista e sobre a prática de atividade física (frequência nos três meses anteriores), tabagismo (periodicidade e quantidade de cigarros) e uso de álcool (ocorrência, frequência e número de doses). Com relação ao uso de medicamentos, foram registrados todos os utilizados nos 30 dias anteriores à entrevista, conforme autorrelato. Para garantir maior acurácia, eram solicitadas, quando disponíveis, as prescrições ou embalagens dos medicamentos em uso. Os sujeitos foram divididos em três estratos, conforme o número de medicamentos em uso: um, dois a quatro e cinco ou mais medicamentos. A variável de interesse foi a polifarmácia, definida como o uso de cinco ou mais medicamentos. Utilizou-se a Denominação Comum Brasileira (DCB) e os medicamentos foram classificados de acordo com o quinto nível da Anatomical Therapeutic Chemical (ATC)2929. WHO Collaborating Centre for Drug Statistics Methodology. Anatomical Therapeutic Chemical (ATC) Classification Index 2016. Oslo; 2016 [cited 2016 Mar 10]. Available from: http://www.whocc.no/atc_ddd_index/
http://www.whocc.no/atc_ddd_index/...
. O critério Beers foi utilizado para identificar o uso de medicamentos potencialmente inadequados para idosos na população do estudo33. American Geriatrics Society. 2015 Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults. J Am Geriatr Soc. 2015;63(11):2227-46. https://doi.org/10.1111/jgs.13702
https://doi.org/10.1111/jgs.13702...
.

Buscou-se a associação entre a polifarmácia e variáveis sociodemográficas (sexo, idade, estado civil, escolaridade, classe econômica e ter plano de saúde), estilo de vida (consumo de álcool, tabagismo, prática de atividade física) e indicadores de condições de saúde (autopercepção de saúde, número e principais doenças crônicas autorreferidas, atendimento em emergência e hospitalização). Estas variáveis foram incluídas no estudo pela importância epidemiológica e por estarem associadas à polifarmácia em diversos estudos farmacoepidemiológicos44. Bjerrum L, Sogaard J, Hallas J, Kragstrup J. Polypharmacy: correlations with sex, age and drug regimen: a prescription database study. Eur J Clin Pharmacol. 1998;54(3):197-202. https://doi.org/10.1007/s002280050445
https://doi.org/10.1007/s002280050445...
,88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
,1414. Loyola Filho AI, Uchoa E, Lima-Costa MF. Estudo epidemiológico de base populacional sobre uso de medicamentos entre idosos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica. 2006;22(12):2657-67. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006001200015
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200600...
,2121. Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20130...
.

Frequências absolutas e relativas foram utilizadas para descrever as variáveis, por meio do programa R® versão 3.2.1, utilizando-se o pacote surveyaaT. Lumley “survey: analysis of complex survey samples”. R package version 3.30. Vienna: The R Foundation; 2014.. Para a comparação de grupos utilizou-se o teste qui-quadrado de Pearson com correção de Rao-Scott, adotando-se nível de significância de 5%. A associação entre a existência de polifarmácia e variáveis explicativas foi avaliada por modelo de regressão logística. Os modelos univariados foram utilizados para selecionar variáveis para o modelo múltiplo, sendo elegíveis aquelas que apresentaram valor de p menor ou igual a 0,20. As variáveis selecionadas nos modelos univariados foram incluídas no modelo múltiplo e foi adotado o método backward para se chegar ao modelo final, onde permaneceram as variáveis com p menor que 0,05. A qualidade do ajuste foi verificada pelo teste de Hosmer-Lemeshow.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa sob o parecer CONEP nº 398.131/2013. Todas as entrevistas foram precedidas pelo esclarecimento dos objetivos ao entrevistado e pela assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

RESULTADOS

Foram entrevistados 8.803 usuários em unidades de atenção primária à saúde em 272 municípios brasileiros, 97,8% da amostra planejada. Desses, 6.511 utilizavam pelo menos um medicamento. A polifarmácia (uso de cinco ou mais medicamentos) foi identificada em 9,4% (IC95% 7,8–12,0) dos usuários de medicamentos. A maioria dos indivíduos em polifarmácia era do sexo feminino (79,9%, IC95% 75,2–83,9), com idade entre 45 e 64 anos (54,8%, IC95% 49–60,5), casada ou em união estável (64,6%, IC95% 58,5–70,3), com ensino fundamental incompleto (54,7%, IC95% 47,1–62,1%), da classe econômica C (54,0%, IC95% 48,7–59,3), moradora da região Sul do país (45,9%, IC95% 34,4–61,0) e não possuía plano de saúde (83,0%, IC95% 75,5–88,5). Dentre os que se encontravam em polifarmácia, 32,9% (IC95% 28,2–38,0) eram idosos acima de 65 anos (Tabela 1). A prevalência de polifarmácia neste grupo etário foi de 18,1% (IC95% 13,6–22,8%).

Tabela 1
Características socioeconômicas dos usuários de medicamentos atendidos no âmbito da atenção primária em saúde do SUS. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos – Serviços, 2015.

Quanto às características de estilo de vida e saúde autorreferidas, 5,9% (IC95% 3,8–9,1) dos usuários em polifarmácia consumiam álcool mais de uma vez por mês, 14,7% (IC95% 10,6–20,1) eram fumantes e 29,6% (IC95% 24,7–35,0) praticavam exercício físico ou esporte nos três meses anteriores à entrevista (Tabela 2). A maioria dos usuários em polifarmácia (51,1%, IC95% 45,3–56,9) classificou sua saúde como nem ruim/nem boa e referiu ser portador de duas ou mais condições crônicas (95,1%, IC95% 92,1–97,0). As principais doenças referidas foram hipertensão (84,3%, IC95% 79,9–87,9), dislipidemia (57,8%, IC95% 51,8–63,6), artrite, artrose ou reumatismo (51,3%, IC95% 44,8–57,7), depressão (47,3%, IC95% 40,9–53,9) e diabetes mellitus (41,6%, IC95% 36,6–46,8). Dentre os 25 medicamentos mais utilizados pela população em polifarmácia, 13 (52,0%) pertencem ao grupo C da ATC, ou seja, possuem ação no sistema cardiovascular. Os itens mais utilizados foram sinvastatina, losartana e omeprazol (Tabela 3). Destacam-se entre os mais utilizados os medicamentos amitriptilina, clonazepam, diazepam, fluoxetina e ibuprofeno, pertencentes à relação de itens potencialmente inapropriados para uso em idosos, conforme critério Beers33. American Geriatrics Society. 2015 Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults. J Am Geriatr Soc. 2015;63(11):2227-46. https://doi.org/10.1111/jgs.13702
https://doi.org/10.1111/jgs.13702...
.

Tabela 2
Características de estilo de vida e indicadores de condições de saúde dos usuários de medicamentos atendidos no âmbito da atenção primária em saúde. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos – Serviços, 2015.
Tabela 3
Medicamentos mais utilizados pelos usuários em polifarmáciaa dos serviços de atenção primária em saúde, segundo classificação Anatomical Therapeutic Chemical. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos – Serviços, 2015.

Os resultados dos modelos logísticos univariados e múltiplos para os preditores de polifarmácia estão apresentados na Tabela 4. Indivíduos com plano privado de saúde apresentaram 1,6 vezes mais chance de estar em polifarmácia do que aqueles que não o possuiam. A polifarmácia foi significativamente associada à faixa etária, sendo maior em idosos acima de 65 anos (OR 1,95 para pessoas com idade entre 45 e 64 anos e OR 2,43 para a faixa etária de 65 anos ou mais). Houve associação entre polifarmácia e autopercepção de saúde, sendo esta associação inversamente proporcional à piora da autopercepção (nem ruim nem boa OR 1,82; IC95% 1,40–2,38; ruim/muito ruim OR 2,91, IC95% 1,93–4,38), ao relato de ter atendimento em serviço de emergência (OR 1,59; IC95% 1,19–2,11) e à presença de doenças crônicas, sendo a maior associação verificada em indivíduos hipertensos (OR 3,49; IC95% 2,43–5,21). A força da associação entre as regiões do país e a polifarmácia foi variável, e residir na região Sul apresentou maior chance (5,8 vezes maior) que na região Norte.

Tabela 4
Fatores associados (odds ratio) à polifarmácia em usuários dos serviços de atenção primária em saúde. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos – Serviços, 2015.

DISCUSSÃO

A prevalência de polifarmácia verificada no presente estudo (9,4% IC95% 7,8–12,0) foi semelhante à da atenção primária na Alemanha (10,0%)1212. Grimmsmann T, Himmel W. Polypharmacy in primary care practices: an analysis using a large health insurance database. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 2009;18(12):1206-13. https://doi.org/10.1002/pds.1841
https://doi.org/10.1002/pds.1841...
e inferior aos 20,8% em adultos atendidos pela atenção primária na Escócia1313. Guthrie B, Makubate B, Hernandez-Santiago V, Dreischulte T. The rising tide of polypharmacy and drug-drug interactions: population database analysis 1995-2010. BMC Med. 2015;13:74. https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-7
https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-...
. A polifarmácia em pessoas acima de 65 anos (18,1%) foi superior aos 11,0% em idosos de áreas cobertas pela Estratégia Saúde da Família na cidade de Recife/Pernambuco2121. Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20130...
, mas inferior ao encontrado em outros estudos: 28,0% em idosos em Goiânia2727. Silveira EA, Dalastra L, Pagotto V. Polifarmácia, doenças crônicas e marcadores nutricionais em idosos. Rev Bras Epidemiol. 2014;17(4):818-29. https://doi.org/10.1590/1809-4503201400040002
https://doi.org/10.1590/1809-45032014000...
, 32,7% entre aposentados do Rio de Janeiro2424. Rozenfeld S, Fonseca MJM, Acurcio FA. Drug utilization and polypharmacy among the elderly: a survey in Rio de Janeiro City, Brazil. Rev Panam Salud Publica. 2008;23(1):34-43. https://doi.org/10.1590/S1020-49892008000100005
https://doi.org/10.1590/S1020-4989200800...
, 36% em idosos no município de São Paulo88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
e 35,8% em idosos norte-americanos2222. O’Dwyer M, Peklar J, McCallion P, McCarron M, Henman MC. Factors associated with polypharmacy and excessive polypharmacy in older people with intellectual disability differ from the general population: a cross-sectional observational nationwide study. BMJ Open. 2016;6(4):e010505. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2015-010505
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2015-010...
.

Estudos sobre polifarmácia no âmbito da atenção primária, incluindo população geral, são escassos1212. Grimmsmann T, Himmel W. Polypharmacy in primary care practices: an analysis using a large health insurance database. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 2009;18(12):1206-13. https://doi.org/10.1002/pds.1841
https://doi.org/10.1002/pds.1841...
,1313. Guthrie B, Makubate B, Hernandez-Santiago V, Dreischulte T. The rising tide of polypharmacy and drug-drug interactions: population database analysis 1995-2010. BMC Med. 2015;13:74. https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-7
https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-...
,1919. Mira JJ, Orozco-Beltrán D, Pérez-Jover V, Martínez-Jimeno L, Gil-Guillén VF, Carratala-Munuera C, et al. Physician patient communication failure facilitates medication errors in older polymedicated patients with multiple comorbidities. Fam Pract. 2013;30(1):56-63. https://doi.org/10.1093/fampra/cms046
https://doi.org/10.1093/fampra/cms046...
. Considerando o processo de envelhecimento populacional e evidências sobre a relação entre aumento da idade e número de medicamentos prescritos, é importante que, no processo de cuidado em saúde, os profissionais assegurem a qualidade da farmacoterapia, evitando-se o uso exacerbado de múltiplos fármacos77. Cadogan CA, Ryan C, Hughes CM. Appropriate polypharmacy and medicine safety: when many is not too many. Drug Saf. 2016;39(2):109-16. https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-5
https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-...
,1313. Guthrie B, Makubate B, Hernandez-Santiago V, Dreischulte T. The rising tide of polypharmacy and drug-drug interactions: population database analysis 1995-2010. BMC Med. 2015;13:74. https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-7
https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-...
,1515. Macovic-Pecovik V, Skrbic R, Petrovic A, Vlahovic-Palcevski V, Mrak J, Bennie M et al. Polypharmacy among the elderly in the Republic of Srpska: extent and implications for the future. Expert Rev Pharmacoecon Outcomes Res. 2016;16(5):609-18. https://doi.org/10.1586/14737167.2016.1115347
https://doi.org/10.1586/14737167.2016.11...
. A polifarmácia tem sido associada a desfechos negativos em saúde, aumento da morbimortalidade, redução da qualidade de vida dos indivíduos, especialmente em idosos, e aumento dos custos da atenção, com impacto para as pessoas e os sistemas de saúde77. Cadogan CA, Ryan C, Hughes CM. Appropriate polypharmacy and medicine safety: when many is not too many. Drug Saf. 2016;39(2):109-16. https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-5
https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-...
.

Nos últimos anos houve aumento expressivo da polifarmácia geriátrica. Esse grupo normalmente possui elevado índice de comorbidades, alto risco para prescrição de medicamentos potencialmente inapropriados e são mais suscetíveis à perda de doses ou erros de administração, o que compromete a adesão ao tratamento77. Cadogan CA, Ryan C, Hughes CM. Appropriate polypharmacy and medicine safety: when many is not too many. Drug Saf. 2016;39(2):109-16. https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-5
https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-...
,2020. Mukete BN, Keith C, Ferdinand MD, FACC FAHA. Polypharmacy in older adults with hypertension: a comprehensive review. J Clin Hypertens (Greenwich). 2016;18(1):10-8. https://doi.org/10.1111/jch.12624
https://doi.org/10.1111/jch.12624...
. Além disso, apresentam estado nutricional muitas vezes comprometido e alterações farmacocinéticas e farmacodinâmicas inerentes ao processo de envelhecimento. Essas características justificam a maior vulnerabilidade dos idosos à ocorrência de eventos adversos, redução de eficácia terapêutica e risco aumentado de interações medicamentosas88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
,2020. Mukete BN, Keith C, Ferdinand MD, FACC FAHA. Polypharmacy in older adults with hypertension: a comprehensive review. J Clin Hypertens (Greenwich). 2016;18(1):10-8. https://doi.org/10.1111/jch.12624
https://doi.org/10.1111/jch.12624...
,2121. Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20130...
,2727. Silveira EA, Dalastra L, Pagotto V. Polifarmácia, doenças crônicas e marcadores nutricionais em idosos. Rev Bras Epidemiol. 2014;17(4):818-29. https://doi.org/10.1590/1809-4503201400040002
https://doi.org/10.1590/1809-45032014000...
. Estudos observacionais têm evidenciado uma forte relação entre o uso de medicamentos potencialmente perigosos e desfechos em saúde desfavoráveis, tais como EAM (delírio, sedação, hemorragias gastrointestinais, quedas e fraturas), hospitalização e morte22. American Geriatrics Society. Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults: The American Geriatrics Society 2012 Beers Criteria Update Expert Panel. J Am Geriatr Soc. 2012;60(4):616-31. https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2012.03923.x
https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2012...
.

Apesar de a maioria dos estudos investigar a polifarmácia em idosos, o presente estudo mostrou uma importante associação entre a faixa etária de 45 a 64 anos e o uso de cinco ou mais medicamentos. Estes dados precisam ser mais bem compreendidos para direcionar as políticas públicas e qualificar o cuidado na atenção primária. O modelo uma doença – uma terapia medicamentosa é uma abordagem inadequada frente à epidemia do uso de medicamentos no século 21. Conforme destacado por Bjerrum et al.44. Bjerrum L, Sogaard J, Hallas J, Kragstrup J. Polypharmacy: correlations with sex, age and drug regimen: a prescription database study. Eur J Clin Pharmacol. 1998;54(3):197-202. https://doi.org/10.1007/s002280050445
https://doi.org/10.1007/s002280050445...
, a implantação de estratégias de informação para médicos generalistas sobre os padrões de prescrição no âmbito da atenção primária pode melhorar esta prática e reduzir a polifarmácia, qualificando o cuidado em saúde.

As variáveis sexo, classe econômica, situação conjugal e escolaridade apresentaram-se como condições menos relevantes na determinação do consumo de múltiplos fármacos na atenção primária do SUS. Loyola Filho, Uchoa e Lima-Costa1414. Loyola Filho AI, Uchoa E, Lima-Costa MF. Estudo epidemiológico de base populacional sobre uso de medicamentos entre idosos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica. 2006;22(12):2657-67. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006001200015
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200600...
destacaram que apenas estudos pontuais identificaram relação entre maior escolaridade, viuvez e polifarmácia. Com relação ao sexo, a maioria dos inquéritos nacionais e internacionais44. Bjerrum L, Sogaard J, Hallas J, Kragstrup J. Polypharmacy: correlations with sex, age and drug regimen: a prescription database study. Eur J Clin Pharmacol. 1998;54(3):197-202. https://doi.org/10.1007/s002280050445
https://doi.org/10.1007/s002280050445...
,88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
,99. Charlesworth CJ, Smit E, Lee DSH, Alramadhan F, Odden MC. Polypharmacy among adults aged 65 years and older in the United States: 1988-2010. J Gerontol A Biol Med Sci. 2015;70(8):989-95. https://doi.org/10.1093/gerona/glv013
https://doi.org/10.1093/gerona/glv013...
,1414. Loyola Filho AI, Uchoa E, Lima-Costa MF. Estudo epidemiológico de base populacional sobre uso de medicamentos entre idosos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica. 2006;22(12):2657-67. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006001200015
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200600...
,2727. Silveira EA, Dalastra L, Pagotto V. Polifarmácia, doenças crônicas e marcadores nutricionais em idosos. Rev Bras Epidemiol. 2014;17(4):818-29. https://doi.org/10.1590/1809-4503201400040002
https://doi.org/10.1590/1809-45032014000...
apontam que as mulheres procuram mais os serviços de saúde e que condições inerentes ao seu papel reprodutivo, como a gravidez e a contracepção, podem explicar uma maior utilização de medicamentos1414. Loyola Filho AI, Uchoa E, Lima-Costa MF. Estudo epidemiológico de base populacional sobre uso de medicamentos entre idosos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica. 2006;22(12):2657-67. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006001200015
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200600...
,1515. Macovic-Pecovik V, Skrbic R, Petrovic A, Vlahovic-Palcevski V, Mrak J, Bennie M et al. Polypharmacy among the elderly in the Republic of Srpska: extent and implications for the future. Expert Rev Pharmacoecon Outcomes Res. 2016;16(5):609-18. https://doi.org/10.1586/14737167.2016.1115347
https://doi.org/10.1586/14737167.2016.11...
. Entretanto, o presente estudo não observou associação entre sexo e polifarmácia. Corrobora com este resultado o estudo de O’Dwyer et al.2222. O’Dwyer M, Peklar J, McCallion P, McCarron M, Henman MC. Factors associated with polypharmacy and excessive polypharmacy in older people with intellectual disability differ from the general population: a cross-sectional observational nationwide study. BMJ Open. 2016;6(4):e010505. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2015-010505
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2015-010...
em população acima de 40 anos na Irlanda, que também não encontrou essa associação entre polifarmácia e sexo feminino.

À semelhança de outros estudos nacionais88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
,2121. Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20130...
, indivíduos com plano privado de saúde apresentaram maior chance de polifarmácia. Eles possuem maior acesso a consultas com especialistas, ampliando a variedade de prescrições22. American Geriatrics Society. Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults: The American Geriatrics Society 2012 Beers Criteria Update Expert Panel. J Am Geriatr Soc. 2012;60(4):616-31. https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2012.03923.x
https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2012...
,88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
. De acordo com Neves et al.2121. Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20130...
, médicos da Estratégia Saúde da Família normalmente prescrevem itens das listas padronizadas pelo SUS, a fim de possibilitar a obtenção gratuita dos medicamentos. Essa prática reduz a amplitude do arsenal terapêutico e, consequentemente, o número médio de medicamentos prescritos por paciente.

A autoavaliação de saúde como regular e ruim/muito ruim, observada por outros inquéritos88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
,1414. Loyola Filho AI, Uchoa E, Lima-Costa MF. Estudo epidemiológico de base populacional sobre uso de medicamentos entre idosos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica. 2006;22(12):2657-67. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006001200015
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200600...
,1515. Macovic-Pecovik V, Skrbic R, Petrovic A, Vlahovic-Palcevski V, Mrak J, Bennie M et al. Polypharmacy among the elderly in the Republic of Srpska: extent and implications for the future. Expert Rev Pharmacoecon Outcomes Res. 2016;16(5):609-18. https://doi.org/10.1586/14737167.2016.1115347
https://doi.org/10.1586/14737167.2016.11...
,2121. Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20130...
, mostrou associação positiva com a polifarmácia. De acordo com Carvalho et al.88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
, esses achados são consistentes porque é óbvia a conexão entre problema de saúde e uso de medicamentos. Esses resultados são reforçados pela associação também verificada para atendimento em serviço de emergência, o que pode estar relacionado a uma pior situação de saúde. Além disso, Mira et al.1919. Mira JJ, Orozco-Beltrán D, Pérez-Jover V, Martínez-Jimeno L, Gil-Guillén VF, Carratala-Munuera C, et al. Physician patient communication failure facilitates medication errors in older polymedicated patients with multiple comorbidities. Fam Pract. 2013;30(1):56-63. https://doi.org/10.1093/fampra/cms046
https://doi.org/10.1093/fampra/cms046...
identificaram que 5% dos erros de utilização em pacientes polimedicados ocasionaram graves consequências, requerendo busca por serviços de emergência ou hospitalização.

A associação entre autorrelato de hipertensão, diabetes mellitus, depressão, doenças reumáticas e polifarmácia está em consonância com outros estudos nacionais e internacionais44. Bjerrum L, Sogaard J, Hallas J, Kragstrup J. Polypharmacy: correlations with sex, age and drug regimen: a prescription database study. Eur J Clin Pharmacol. 1998;54(3):197-202. https://doi.org/10.1007/s002280050445
https://doi.org/10.1007/s002280050445...
,88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
,1515. Macovic-Pecovik V, Skrbic R, Petrovic A, Vlahovic-Palcevski V, Mrak J, Bennie M et al. Polypharmacy among the elderly in the Republic of Srpska: extent and implications for the future. Expert Rev Pharmacoecon Outcomes Res. 2016;16(5):609-18. https://doi.org/10.1586/14737167.2016.1115347
https://doi.org/10.1586/14737167.2016.11...
,2424. Rozenfeld S, Fonseca MJM, Acurcio FA. Drug utilization and polypharmacy among the elderly: a survey in Rio de Janeiro City, Brazil. Rev Panam Salud Publica. 2008;23(1):34-43. https://doi.org/10.1590/S1020-49892008000100005
https://doi.org/10.1590/S1020-4989200800...
. Essas são condições prevalentes no país, especialmente na população idosa, cujo controle e tratamento pressupõem o uso de medicamentos. Há coerência entre os 25 medicamentos mais utilizados pelos indivíduos polimedicados e as doenças autorreferidas. A hipertensão, corroborando outros estudos88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
,2121. Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20130...
, foi a condição crônica mais frequente e apresentou a associação mais intensa com polifarmácia.

A maior prevalência de medicamentos do aparelho cardiovascular (grupo C da ATC) na população polimedicada corrobora com Charlesworth e colaboradores99. Charlesworth CJ, Smit E, Lee DSH, Alramadhan F, Odden MC. Polypharmacy among adults aged 65 years and older in the United States: 1988-2010. J Gerontol A Biol Med Sci. 2015;70(8):989-95. https://doi.org/10.1093/gerona/glv013
https://doi.org/10.1093/gerona/glv013...
, que observaram relação entre as classes de antihipertensivos, estatinas e antidiabéticos e o aumento na prevalência do uso de medicamentos em idosos americanos. Qato et al.2323. Qato DM, Wilder J, Schumm LP, Gillet V, Alexander GC. Changes in prescription and over-the-counter medication and dietary supplement use among older adults in the United States, 2005 vs 2011. JAMA Intern Med. 2016;176(4):473-82. https://doi.org/10.001/jamainternmed.2015.8581
https://doi.org/10.001/jamainternmed.201...
observaram um aumento estatisticamente significante da prescrição de estatinas nos Estados Unidos, atingindo 46,2% das pessoas acima de 65 anos, em 2011. Evidências sobre o uso clínico das estatinas são controversas, com estudos retratando sua utilidade em reduzir a morbimortalidade e outros demonstrando seu potencial prejuízo1111. Finegold JA, Shun-Shin MJ, Cole GD, Zaman S, Maznyczka A, Zaman S, et al. Distribution of lifespan gain from primary prevention intervention. Open Heart. 2016;3(1):e000343. https://doi.org/10.1136/openhrt-2015-000343
https://doi.org/10.1136/openhrt-2015-000...
.

O elevado uso de omeprazol no presente estudo pode ser explicado, conforme Carvalho et al.88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
, pela prescrição profilática e nem sempre racional de produtos para a redução da acidez gástrica. Muitas vezes, uma reação adversa pode ser interpretada como nova entidade clínica, sendo tratada com novo medicamento, o que constitui uma cascata iatrogênica88. Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201200...
. Bjerrum et al.44. Bjerrum L, Sogaard J, Hallas J, Kragstrup J. Polypharmacy: correlations with sex, age and drug regimen: a prescription database study. Eur J Clin Pharmacol. 1998;54(3):197-202. https://doi.org/10.1007/s002280050445
https://doi.org/10.1007/s002280050445...
destacam que alguns autores consideram a polifarmácia um “experimento não controlado”, pois a maioria dos indivíduos possuem uma combinação única de fármacos e, portanto, requerem atenção individualizada e conciliação terapêutica.

Dentre os medicamentos mais utilizados pelo grupo polifarmácia, merece destaque a identificação de cinco itens (amitriptilina, clonazepam, diazepam, fluoxetina e ibuprofeno) pertencentes à relação de medicamentos potencialmente inapropriados para uso em idosos, conforme critério Beers33. American Geriatrics Society. 2015 Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults. J Am Geriatr Soc. 2015;63(11):2227-46. https://doi.org/10.1111/jgs.13702
https://doi.org/10.1111/jgs.13702...
. Estes resultados são muito relevantes ao se considerar que a faixa etária acima de 65 anos esteve associada à maior chance de polifarmácia no âmbito da atenção primária do SUS. O critério Beers é uma importante medida de qualidade dos cuidados em saúde na população idosa, devendo ser incorporado em sistemas de registro eletrônico para apoiar o processo de prescrição e identificar situações em que alternativas não farmacológicas seriam mais adequadas22. American Geriatrics Society. Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults: The American Geriatrics Society 2012 Beers Criteria Update Expert Panel. J Am Geriatr Soc. 2012;60(4):616-31. https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2012.03923.x
https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2012...
,33. American Geriatrics Society. 2015 Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults. J Am Geriatr Soc. 2015;63(11):2227-46. https://doi.org/10.1111/jgs.13702
https://doi.org/10.1111/jgs.13702...
.

A polifarmácia variou conforme as regiões do país, sendo a maior intensidade de associação registrada nas regiões Sul e Sudeste. Estes resultados podem ser explicados pela característica da população amostrada, pois os indivíduos dessas regiões apresentaram maior prevalência de comorbidades. Além disso, os estados das referidas regiões apresentam maior cobertura de assistência médica privada, variável preditora de polifarmácia no presente estudo1818. Ministério da Saúde (BR), Agência Nacional de Saúde Suplementar. Caderno de informação da Saúde Suplementar: beneficiários, operadoras e planos. Rio de Janeiro: ANS; 2014 [cited 2016 Mar 11]. Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/Cadernoinformacao_saude_suplementar/2014_mes06_ caderno_informacao.pdf
http://www.ans.gov.br/images/stories/Mat...
.

Como destacam Rozenfeld et al.2424. Rozenfeld S, Fonseca MJM, Acurcio FA. Drug utilization and polypharmacy among the elderly: a survey in Rio de Janeiro City, Brazil. Rev Panam Salud Publica. 2008;23(1):34-43. https://doi.org/10.1590/S1020-49892008000100005
https://doi.org/10.1590/S1020-4989200800...
, a polifarmácia nem sempre é um evento evitável. Doenças crônicas de alta prevalência, como a hipertensão arterial e o diabetes mellitus, normalmente são tratadas por meio da associação de fármacos. A revisão dos medicamentos e a potencial desprescrição devem ser avaliadas, principalmente por médicos generalistas ou farmacêuticos, a fim de personalizar o tratamento em pessoas com multimorbidade ou vulnerabilidade específica. Além disso, é importante o monitoramento para a potencial ocorrência de interações medicamentosas1313. Guthrie B, Makubate B, Hernandez-Santiago V, Dreischulte T. The rising tide of polypharmacy and drug-drug interactions: population database analysis 1995-2010. BMC Med. 2015;13:74. https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-7
https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-...
. Conforme Secoli et al.2626. Secoli SR, Danzi NJ, Lima FFF, Lorenzi Filho G, Cesar LAM. Interações medicamentosas em pacientes coronariopatas. Rev Bras Cardiol. 2012 [cited 2016 Mar 10]; 25(1):11-8. Available from: http://www.rbconline.org.br/wp-content/uploads/v25n1_1.pdf
http://www.rbconline.org.br/wp-content/u...
, a avaliação de esquemas terapêuticos múltiplos, especialmente em idosos, possibilita a identificação e suspensão de associações com interações medicamentosas potenciais, no intuito de minimizar os danos e qualificar o uso dos fármacos. Protocolos e diretrizes para o manejo das doenças crônicas mais prevalentes devem contemplar, além das indicações de tratamento, recomendações sobre situações onde a desprescrição pode ser adotada.

Há evidências do efeito da educação de profissionais prescritores, com ênfase no estímulo a práticas preventivas, sobre a adesão à terapia e qualidade do uso dos medicamentos2525. Ryan R, Santesso N, Lowe D, Hill S, Grimshaw J, Prictor M, et al. Interventions to improve safe and effective medicines use by consumers: an overview of systematic reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2014;(4):CD007768. https://doi.org/10.1002/14651858.CD007768.pub3
https://doi.org/10.1002/14651858.CD00776...
. Mira et al.1919. Mira JJ, Orozco-Beltrán D, Pérez-Jover V, Martínez-Jimeno L, Gil-Guillén VF, Carratala-Munuera C, et al. Physician patient communication failure facilitates medication errors in older polymedicated patients with multiple comorbidities. Fam Pract. 2013;30(1):56-63. https://doi.org/10.1093/fampra/cms046
https://doi.org/10.1093/fampra/cms046...
verificaram que apenas 32,5% dos pacientes atendidos pela atenção primária na Espanha foram questionados pelos médicos sobre medicamentos prescritos por outros profissionais. Nesse estudo, o uso incorreto de medicamentos foi associado a: sentimento de não ser adequadamente ouvido, a perda de confiança na relação com o médico, a ocorrência de prescrições simultâneas por diversos profissionais especialistas e incoerências entre as informações repassadas pelos diferentes profissionais.

Serviços de acompanhamento farmacêutico, com consultas para desenvolver planos de cuidado, resolver os problemas relacionados aos medicamentos e fornecer acompanhamento oportuno, com foco na aquisição de habilidades e competências para a corresponsabilização, podem melhorar a adesão à terapia medicamentosa e, consequentemente, os resultados clínicos. A adoção de estratégias para o autorregistro de todos os medicamentos utilizados pelos indivíduos, incluindo plantas medicinais, medicamentos isentos de prescrição e suplementos alimentares, pode contribuir para o aprimoramento da anamnese clínica, reduzindo o viés de memória66. Bushardt RL, Massey EB, Simpson TW, Ariail JC, Simpson KN. Polypharmacy: misleading, but manageable. Clin Interv Aging. 2008;3(2):383-9. https://doi.org/10.2147/CIA.S2468
https://doi.org/10.2147/CIA.S2468...
.

O presente estudo possui algumas limitações. Por se tratar do primeiro estudo de abrangência nacional sobre polifarmácia em usuários de serviços de saúde, há diferenças metodológicas e entre as populações dos estudos utilizados para a discussão dos dados, o que restringe a comparação direta. Outra limitação refere-se ao conceito de polifarmácia adotado, analisada apenas como o uso concomitante de múltiplos fármacos. Não foram verificados os motivos para a prescrição dos medicamentos, a fim de possibilitar a avaliação sobre a pertinência do uso de cada medicamento. Além disso, os dados apresentados podem estar subestimados por restrições de memória, pois tanto os medicamentos como as doenças foram autorreferidas pelos usuários. Por se tratar de um estudo transversal, não se pode estabelecer a temporalidade dos fatores associados.

Em detrimento às limitações apresentadas, os resultados apontam um elevado índice de polifarmácia, especialmente na população idosa, que precisa ser mais bem compreendido pelos gestores e equipes multiprofissionais de saúde. A necessidade crescente de diminuir complicações evitáveis e prevenir os erros serve como um catalisador significativo para incentivar o uso de práticas seguras, baseadas em evidências. De acordo com Bjerrum et al.44. Bjerrum L, Sogaard J, Hallas J, Kragstrup J. Polypharmacy: correlations with sex, age and drug regimen: a prescription database study. Eur J Clin Pharmacol. 1998;54(3):197-202. https://doi.org/10.1007/s002280050445
https://doi.org/10.1007/s002280050445...
, programas destinados a reduzir problemas associados à polifarmácia são mais efetivos quando desenvolvidos para subgrupos de pacientes com risco aumentado. No processo de cuidado em saúde, o estabelecimento de corresponsabilidade e vínculos solidários com pacientes e seus familiares contribuem para o fortalecimento da segurança do paciente1717. Ministério da Saúde (BR). Portaria no 529, de 01 de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). Diario Oficial Uniao. 2 abril 2013 [cited 2016 Mar 10]; Seção I:43. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
.

Concluindo, a polifarmácia é uma realidade na população atendida no âmbito da atenção primária em saúde no SUS. As recentes alterações epidemiológicas, com o aumento da expectativa de vida e, consequentemente, das doenças crônicas, tem alterado a perspectiva sobre o uso de múltiplos fármacos no cuidado em saúde. Considerando o importante papel do fornecimento público de medicamentos no Brasil, o presente estudo fornece subsídios para o aprimoramento das práticas de prescrição e utilização destes insumos. Atividades para aumentar a segurança do uso de medicamentos, nas subpopulações com maior chance de polifarmácia, tem potencial para reduzir eventos adversos preveníveis, especialmente em idosos.

O número de medicamentos prescritos deve considerar as reais necessidades de cada indivíduo e a análise do balanço entre potenciais benefícios e riscos. O principal desafio para qualificar a atenção em saúde é garantir que a prescrição de múltiplos medicamentos seja apropriada e segura. A avaliação regular dos esquemas terapêuticos, com foco na adesão, adequação às preferências individuais e identificação de riscos pode minimizar danos e maximizar os benefícios pretendidos. Capacitação continuada de profissionais, trabalho de equipes multidisciplinares e educação da população são estratégias necessárias para qualificar o uso dos medicamentos e fortalecer a Política Nacional de Segurança do Paciente.

Referências bibliográficas

  • 1
    Álvares J, Alves MCGP, Escuder MML, Almeida AM, Izidoro JB, Guerra Junior AA, et al. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos: métodos. Rev Saude Publica 2017;51 Supl 2:4s. https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017051007027
    » https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017051007027
  • 2
    American Geriatrics Society. Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults: The American Geriatrics Society 2012 Beers Criteria Update Expert Panel. J Am Geriatr Soc 2012;60(4):616-31. https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2012.03923.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2012.03923.x
  • 3
    American Geriatrics Society. 2015 Updated Beers Criteria for Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults. J Am Geriatr Soc 2015;63(11):2227-46. https://doi.org/10.1111/jgs.13702
    » https://doi.org/10.1111/jgs.13702
  • 4
    Bjerrum L, Sogaard J, Hallas J, Kragstrup J. Polypharmacy: correlations with sex, age and drug regimen: a prescription database study. Eur J Clin Pharmacol 1998;54(3):197-202. https://doi.org/10.1007/s002280050445
    » https://doi.org/10.1007/s002280050445
  • 5
    Bourgeois FT, Shannon MW, Valim C, Mandl KD. Adverse drug events in the outpatient setting: an 11-year national analysis. Pharmacoepidemiol Drug Saf 2010;19(9):901-10. https://doi.org/10.1002/pds.1984
    » https://doi.org/10.1002/pds.1984
  • 6
    Bushardt RL, Massey EB, Simpson TW, Ariail JC, Simpson KN. Polypharmacy: misleading, but manageable. Clin Interv Aging 2008;3(2):383-9. https://doi.org/10.2147/CIA.S2468
    » https://doi.org/10.2147/CIA.S2468
  • 7
    Cadogan CA, Ryan C, Hughes CM. Appropriate polypharmacy and medicine safety: when many is not too many. Drug Saf 2016;39(2):109-16. https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-5
    » https://doi.org/10.1007/s40264-015-0378-5
  • 8
    Carvalho MFC, Romano-Lieber NS, Bergsten-Mendes G, Secoli SR, Ribeiro E, Lebrão ML, et al. Polifarmácia entre idosos do Município de São Paulo - Estudo SABE. Rev Bras Epidemiol 2012;15(4):817-27. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
    » https://doi.org/10.1590/S1415-790X2012000400013
  • 9
    Charlesworth CJ, Smit E, Lee DSH, Alramadhan F, Odden MC. Polypharmacy among adults aged 65 years and older in the United States: 1988-2010. J Gerontol A Biol Med Sci 2015;70(8):989-95. https://doi.org/10.1093/gerona/glv013
    » https://doi.org/10.1093/gerona/glv013
  • 10
    Donabedian A. An introduction to quality assurance in health care. New York: Oxford University Press; 2003.
  • 11
    Finegold JA, Shun-Shin MJ, Cole GD, Zaman S, Maznyczka A, Zaman S, et al. Distribution of lifespan gain from primary prevention intervention. Open Heart 2016;3(1):e000343. https://doi.org/10.1136/openhrt-2015-000343
    » https://doi.org/10.1136/openhrt-2015-000343
  • 12
    Grimmsmann T, Himmel W. Polypharmacy in primary care practices: an analysis using a large health insurance database. Pharmacoepidemiol Drug Saf 2009;18(12):1206-13. https://doi.org/10.1002/pds.1841
    » https://doi.org/10.1002/pds.1841
  • 13
    Guthrie B, Makubate B, Hernandez-Santiago V, Dreischulte T. The rising tide of polypharmacy and drug-drug interactions: population database analysis 1995-2010. BMC Med 2015;13:74. https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-7
    » https://doi.org/10.1186/s12916-015-0322-7
  • 14
    Loyola Filho AI, Uchoa E, Lima-Costa MF. Estudo epidemiológico de base populacional sobre uso de medicamentos entre idosos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2006;22(12):2657-67. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006001200015
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006001200015
  • 15
    Macovic-Pecovik V, Skrbic R, Petrovic A, Vlahovic-Palcevski V, Mrak J, Bennie M et al. Polypharmacy among the elderly in the Republic of Srpska: extent and implications for the future. Expert Rev Pharmacoecon Outcomes Res 2016;16(5):609-18. https://doi.org/10.1586/14737167.2016.1115347
    » https://doi.org/10.1586/14737167.2016.1115347
  • 16
    Medeiros-Souza P, Santos-Neto LL, Kusano LTE, Pereira MG. Diagnosis and control of polypharmacy in the elderly. Rev Saude Publica 2007;41(6):1049-1053. https://doi.org/10.1590/S0034-89102006005000050
    » https://doi.org/10.1590/S0034-89102006005000050
  • 17
    Ministério da Saúde (BR). Portaria no 529, de 01 de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). Diario Oficial Uniao 2 abril 2013 [cited 2016 Mar 10]; Seção I:43. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
  • 18
    Ministério da Saúde (BR), Agência Nacional de Saúde Suplementar. Caderno de informação da Saúde Suplementar: beneficiários, operadoras e planos. Rio de Janeiro: ANS; 2014 [cited 2016 Mar 11]. Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/Cadernoinformacao_saude_suplementar/2014_mes06_ caderno_informacao.pdf
    » http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/Cadernoinformacao_saude_suplementar/2014_mes06_ caderno_informacao.pdf
  • 19
    Mira JJ, Orozco-Beltrán D, Pérez-Jover V, Martínez-Jimeno L, Gil-Guillén VF, Carratala-Munuera C, et al. Physician patient communication failure facilitates medication errors in older polymedicated patients with multiple comorbidities. Fam Pract 2013;30(1):56-63. https://doi.org/10.1093/fampra/cms046
    » https://doi.org/10.1093/fampra/cms046
  • 20
    Mukete BN, Keith C, Ferdinand MD, FACC FAHA. Polypharmacy in older adults with hypertension: a comprehensive review. J Clin Hypertens (Greenwich) 2016;18(1):10-8. https://doi.org/10.1111/jch.12624
    » https://doi.org/10.1111/jch.12624
  • 21
    Neves SJF, Marques APO, Leal MCC, Diniz AS, Medeiros TS, Arruda IKG. Epidemiologia do uso de medicamentos entre idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica 2013;47(4):759-68. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
    » https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047003768
  • 22
    O’Dwyer M, Peklar J, McCallion P, McCarron M, Henman MC. Factors associated with polypharmacy and excessive polypharmacy in older people with intellectual disability differ from the general population: a cross-sectional observational nationwide study. BMJ Open 2016;6(4):e010505. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2015-010505
    » https://doi.org/10.1136/bmjopen-2015-010505
  • 23
    Qato DM, Wilder J, Schumm LP, Gillet V, Alexander GC. Changes in prescription and over-the-counter medication and dietary supplement use among older adults in the United States, 2005 vs 2011. JAMA Intern Med 2016;176(4):473-82. https://doi.org/10.001/jamainternmed.2015.8581
    » https://doi.org/10.001/jamainternmed.2015.8581
  • 24
    Rozenfeld S, Fonseca MJM, Acurcio FA. Drug utilization and polypharmacy among the elderly: a survey in Rio de Janeiro City, Brazil. Rev Panam Salud Publica 2008;23(1):34-43. https://doi.org/10.1590/S1020-49892008000100005
    » https://doi.org/10.1590/S1020-49892008000100005
  • 25
    Ryan R, Santesso N, Lowe D, Hill S, Grimshaw J, Prictor M, et al. Interventions to improve safe and effective medicines use by consumers: an overview of systematic reviews. Cochrane Database Syst Rev 2014;(4):CD007768. https://doi.org/10.1002/14651858.CD007768.pub3
    » https://doi.org/10.1002/14651858.CD007768.pub3
  • 26
    Secoli SR, Danzi NJ, Lima FFF, Lorenzi Filho G, Cesar LAM. Interações medicamentosas em pacientes coronariopatas. Rev Bras Cardiol 2012 [cited 2016 Mar 10]; 25(1):11-8. Available from: http://www.rbconline.org.br/wp-content/uploads/v25n1_1.pdf
    » http://www.rbconline.org.br/wp-content/uploads/v25n1_1.pdf
  • 27
    Silveira EA, Dalastra L, Pagotto V. Polifarmácia, doenças crônicas e marcadores nutricionais em idosos. Rev Bras Epidemiol 2014;17(4):818-29. https://doi.org/10.1590/1809-4503201400040002
    » https://doi.org/10.1590/1809-4503201400040002
  • 28
    World Health Organization (WHO), World Alliance for Patient safety, The Research Priority Setting Working Group. Summary of The Evidence on Patient Safety: implications for research. Geneva: WHO; 2008 [cited 2017 Feb 25]. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/43874/1/9789241596541_eng.pdf
    » http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/43874/1/9789241596541_eng.pdf
  • 29
    WHO Collaborating Centre for Drug Statistics Methodology. Anatomical Therapeutic Chemical (ATC) Classification Index 2016. Oslo; 2016 [cited 2016 Mar 10]. Available from: http://www.whocc.no/atc_ddd_index/
    » http://www.whocc.no/atc_ddd_index/

  • a
    T. Lumley “survey: analysis of complex survey samples”. R package version 3.30. Vienna: The R Foundation; 2014.

  • Financiamento: Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos e Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (SCTIE/MS – Processo 25000.111834/2, Descentralização de Recursos do FNS).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2016
  • Aceito
    07 Fev 2017
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@org.usp.br