Doença renal crônica: suscetibilidade em uma amostra representativa de base populacional

Chislene Pereira Vanelli Rogério Baumgratz de Paula Mônica Barros Costa Marcus Gomes Bastos Layla de Souza Pires Miranda Fernando Antonio Basile Colugnati Sobre os autores

RESUMO

A doença renal crônica apresenta elevada morbimortalidade. Com o objetivo de rastrear a doença, realizou-se estudo de base populacional em cidade de porte médio do sudeste brasileiro. Com base no instrumento SCreening for Occult REnal Disease (SCORED) foram avaliados 1.016 indivíduos com média de idade 44 (DP = 13,2) anos. Hipertensão arterial e diabetes mellitus, principais causas de doença renal crônica, foram relatados por 34,7% e 10,5%, respectivamente. Além disso, 31,3% da amostra apresentou risco aumentado para a doença, levando a uma estimativa de prevalência de 5,4%. Um método simples para rastreio permitiu a detecção precoce de população de risco para doença renal crônica.

Insuficiência Renal Crônica, Diagnóstico; Prevalência; Fatores de Risco; Diagnóstico Precoce

INTRODUÇÃO

No Brasil, estima-se que existam mais de dois milhões de indivíduos com algum grau de disfunção renal, dos quais 100.000 estão em terapia renal substitutiva, o que gera gastos da ordem de 10% do orçamento da saúde. Dentre as principais causas de doença renal crônica (DRC), destacam-se o diabetes mellitus (DM) e a hipertensão arterial sistêmica (HAS), condições crônicas prevalentes e frequentemente subdiagnosticadas em nosso meio11. Sesso R, Gordan P. Dados disponíveis sobre a doença renal crônica no Brasil. J Bras Nefrol. 2007;29 Supl 1:9-12..

Dessa forma, a detecção precoce da DRC torna-se fundamental, pois permite a implementação de medidas que atuem sobre a evolução natural da doença, reduzindo a ocorrência de complicações e a necessidade de terapia renal substitutiva22. Cueto-Manzano AM, Martinez-Ramirez HR, Cortés-Sanabria L. Management of chronic kidney disease: primary health-care setting, self-care and multidisciplinary approach. Clin Nephrol. 2010;74 Suppl 1:S99-104.https://doi.org/10.5414/CNP74S099
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No Brasil, há escassez de estudos de base populacional voltados para a prevalência da DRC, que permitem traçar o perfil da população e subsidiar medidas para o retardo da evolução da doença.

O presente estudo teve como objetivo realizar o rastreio de DRC, a partir do autorrelato da presença de fatores associados à doença, em uma amostra de base populacional representativa de uma cidade de porte médio da região sudeste do Brasil.

MÉTODOS

Em estudo transversal por inquérito populacional na cidade de Juiz de Fora, MG, Brasil, foi realizada coleta de dados de junho/2014 a abril/2016. Utilizou-se amostragem domiciliar em três estágios, estratificada pelas sete regiões administrativas – centro, leste, oeste, norte, nordeste, sul e sudeste - das unidades de atenção primária à saúde (UAPS), com setores censitários como unidades primárias de amostra. No primeiro estágio, foram selecionados os conglomerados (setores censitários), com probabilidade proporcional ao tamanho e com seleção sistemática, estando a medida de tamanho de acordo com a população residente em domicílios particulares permanentes. No segundo estágio, foi selecionado um número fixo de domicílios em cada conglomerado e a seleção do domicílio foi realizada de forma sistemática simples sobre a lista de endereços disponibilizada pelo IBGE (2010). No terceiro estágio, foi realizada de forma aleatória a seleção de moradores com idade ≥ 18 anos.

Foram visitados 4.800 domicílios, nos quais foram selecionados aleatoriamente 1.032 indivíduos que preencheram os critérios de inclusão e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. O tamanho da amostra forneceu estimativas de prevalência com erro amostral de cinco pontos percentuais, para cima ou para baixo, com nível de confiança de 95%. Para rastreio de DRC foi utilizado o instrumento SCreening for Occult REnal Disease (SCORED)44. Magacho EJC, Andrade LCF, Costa TJF, Paula EA, Araújo SS, Pinto MA, et al. Tradução, adaptação cultural e validação do questionário Rastreamento da Doença Renal Oculta (Screening For Occult Renal Disease - SCORED) para o português brasileiro. J Bras Nefrol. 2012;34(3):251-8. https://doi.org/10.5935/0101-2800.20120006
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, questionário composto por nove perguntas com pesos diferentes, que visa a predizer a chance de determinado indivíduo apresentar DRC. De acordo com esse instrumento, um indivíduo apresenta maior probabilidade de ser portador de DRC caso obtenha quatro ou mais pontos no questionário.

O estudo foi autorizado pela Secretaria Municipal de Saúde de Juiz de Fora, Minas Gerais, e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (Protocolo 133.399). Os dados coletados foram armazenados na plataforma RedCap®, com posterior análise por meio do software Stata® versão 13.1.

RESULTADOS

A partir de 1.032 entrevistas, foi aplicado o instrumento SCORED em 1.016 participantes. A média de idade dos respondedores foi de 44 (DP = 13,2) anos, sendo 722 (71,1%) do sexo feminino. Baseado no autorrelato, 34,7% dos indivíduos referiram diagnóstico prévio de HAS e 10,5%, diagnóstico de DM.

A Tabela apresenta as variáveis contempladas no questionário SCORED. Observa-se que 318 (31,3%) indivíduos apresentavam 20% de chance de apresentar DRC, ou seja, atingiram pontuação igual ou superior a quatro no instrumento.

Tabela
Rastreio de doença renal crônica em adultos de município de porte médio da região Sudeste do Brasil.

DISCUSSÃO

No presente estudo, realizado em amostra representativa da população de cidade do sudeste do país, observou-se elevado risco para diagnóstico de DRC aliado à alta prevalência de DM e HAS, reconhecidamente as principais causas de DRC em nível mundial.

Merece destaque que, em população relativamente jovem, na qual 58,5% dos entrevistados tinham idade inferior a 50 anos, detectou-se elevado risco para DRC, expondo a necessidade de rastreio de condições crônicas de saúde mesmo em indivíduos assintomáticos. É importante destacar ainda que, considerando o elevado número de indivíduos jovens na população estudada, a chance de DRC pode ter sido subestimada, uma vez que cerca de 600 indivíduos não pontuaram no instrumento de rastreio, com base no critério “idade”, pois apenas indivíduos com idade ≥ 50 anos pontuam no SCORED.

Em relação à elevada prevalência de HAS e de DM, ambas as condições apresentam evolução assintomática, dificultando o diagnóstico precoce e, por conseguinte, o rastreio da DRC. A taxa de prevalência de HAS autorreferida na amostra estudada, compatível com dados da literatura mundial, se contrapõe aos achados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)33. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional de Saúde 2013: ciclos de vida: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: IBGE; 2015 [cited 2018 Feb 8]. Available from: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94522.pdf
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de 2013, na qual observou-se prevalência de 21,4% em amostra representativa da população brasileira. Da mesma forma, a prevalência de DM foi superior às estimativas nacionais da PNS de 2013, na qual 6,2% dos participantes relataram diagnóstico prévio da doença. Em contrapartida, de acordo com a Internacional Diabetes Federation, em 2015, a prevalência de DM na população adulta mundial foi de 8,8% e a prevalência em nível nacional foi de 10,4%, semelhantemente aos dados do presente estudo.

Outro achado relevante foi o relato de diagnóstico prévio de doença cardiovascular (DCV) em aproximadamente 20% da amostra, a despeito da faixa etária. Na população com DRC, a mortalidade por DCV constitui a principal causa de óbito, dado que reforça a necessidade de rastreio para condições crônicas de saúde em nossa população.

Paralelamente, a presença de albuminúria, elemento chave na estratificação da DRC pela sua importância diagnóstica e prognóstica, foi referida em pequeno número de indivíduos estudados. Tal achado sugere que, como forma de rastreio, esse exame tem sido subutilizado na atenção primária à saúde, conforme observado por outros autores22. Cueto-Manzano AM, Martinez-Ramirez HR, Cortés-Sanabria L. Management of chronic kidney disease: primary health-care setting, self-care and multidisciplinary approach. Clin Nephrol. 2010;74 Suppl 1:S99-104.https://doi.org/10.5414/CNP74S099
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Com base no exposto, na população geral, o uso de instrumentos de avaliação de risco para DRC como o SCORED torna-se bastante útil. De acordo com as propriedades da validação do SCORED no Brasil44. Magacho EJC, Andrade LCF, Costa TJF, Paula EA, Araújo SS, Pinto MA, et al. Tradução, adaptação cultural e validação do questionário Rastreamento da Doença Renal Oculta (Screening For Occult Renal Disease - SCORED) para o português brasileiro. J Bras Nefrol. 2012;34(3):251-8. https://doi.org/10.5935/0101-2800.20120006
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, foi encontrado valor preditivo positivo de 14% e sensibilidade de 80% e, considerando o achado no presente estudo – 31,3% de testes com escore igual ou superior a quatro –, pode-se estimar uma prevalência de DRC em aproximadamente 5,4% da amostra avaliadaaaEsta estimativa é feita a partir das probabilidades condicionais envolvidas, sendo que: Prob(DRC) = VPP × P(SCORED ≥ 4) / Sensibilidade.

A prevenção e o retardo da progressão da DRC guardam relação direta com a detecção precoce, pois os melhores resultados na atenção à DRC são obtidos em indivíduos encaminhados precocemente a serviços de atenção especializada à saúde55. Paula EA, Costa MB, Colugnati FAB, Bastos RMR, Vanelli CP, Leite CCA, et al. Strengths of primary healthcare regarding care provided for chronic kidney disease. Rev Lat Am Enfermagem. 2016;24:e2801. https://doi.org/10.1590/1518-8345.1234.2801
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Uma limitação deste estudo é o elevado número de indivíduos do sexo feminino, o que pode estar relacionado à maior disponibilidade de mulheres nos domicílios visitados. Além disso, a população da cidade avaliada apresenta predomínio de indivíduos do sexo feminino.

Nossos resultados evidenciaram risco aumentado para o diagnóstico de DRC em cerca de 31% de uma população relativamente jovem e assintomática. No contexto da saúde pública, um método de rastreio simples e de fácil implementação permitiu a detecção precoce de risco para DRC. Dessa forma, sugere-se que estratégia semelhante possa ser de grande valor na elaboração de políticas de prevenção e vigilância de DRC em nosso meio.

Referências bibliográficas

  • 1
    Sesso R, Gordan P. Dados disponíveis sobre a doença renal crônica no Brasil. J Bras Nefrol 2007;29 Supl 1:9-12.
  • 2
    Cueto-Manzano AM, Martinez-Ramirez HR, Cortés-Sanabria L. Management of chronic kidney disease: primary health-care setting, self-care and multidisciplinary approach. Clin Nephrol 2010;74 Suppl 1:S99-104.https://doi.org/10.5414/CNP74S099
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  • 3
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional de Saúde 2013: ciclos de vida: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: IBGE; 2015 [cited 2018 Feb 8]. Available from: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94522.pdf
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  • 4
    Magacho EJC, Andrade LCF, Costa TJF, Paula EA, Araújo SS, Pinto MA, et al. Tradução, adaptação cultural e validação do questionário Rastreamento da Doença Renal Oculta (Screening For Occult Renal Disease - SCORED) para o português brasileiro. J Bras Nefrol 2012;34(3):251-8. https://doi.org/10.5935/0101-2800.20120006
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    Paula EA, Costa MB, Colugnati FAB, Bastos RMR, Vanelli CP, Leite CCA, et al. Strengths of primary healthcare regarding care provided for chronic kidney disease. Rev Lat Am Enfermagem 2016;24:e2801. https://doi.org/10.1590/1518-8345.1234.2801
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  • a
    Esta estimativa é feita a partir das probabilidades condicionais envolvidas, sendo que: Prob(DRC) = VPP × P(SCORED ≥ 4) / Sensibilidade

  • Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG – APQ 00054-13, 2012).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2018

Histórico

  • Recebido
    9 Ago 2017
  • Aceito
    11 Dez 2017
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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