Assistência pré-natal na rede pública do Brasil

Maria do Carmo Leal Ana Paula Esteves-Pereira Elaine Fernandes Viellas Rosa Maria Soares Madeira Domingues Silvana Granado Nogueira da Gama Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Verificar desigualdades regionais no acesso e na qualidade da atenção ao pré-natal e ao parto nos serviços públicos de saúde no Brasil e a sua associação com a saúde perinatal.

MÉTODOS

Nascer no Brasil foi uma pesquisa nacional de base hospitalar realizada entre 2011 e 2012, que incluiu 19.117 mulheres com pagamento público do parto. Diferenças regionais nas características sociodemográficas e obstétricas, bem como as diferenças no acesso e qualidade do pré-natal e parto foram testadas pelo teste do χ2. Foram avaliados os desfechos: prematuridade espontânea, prematuridade iniciada por intervenção obstétrica, baixo peso ao nascer, crescimento intrauterino restrito, Apgar no 5º min < 8, near miss neonatal e near miss materno. Para a análise dos desfechos perinatais associados, foram utilizadas regressões logísticas múltiplas e não condicionais, com resultados expressos em odds ratio ajustada e intervalo de confiança de 95%.

RESULTADOS

As desigualdades regionais ainda são evidentes no Brasil, no que diz respeito ao acesso e qualidade do atendimento pré-natal e ao parto entre as usuárias dos serviços públicos. A peregrinação para o parto se associou a todos os desfechos perinatais estudados, exceto para crescimento intrauterino restrito. As odds ratios variaram de 1,48 (IC95% 1,23–1,78) para near miss neonatal a 1,62 (IC95% 1,27–2,06) para prematuridade iniciada por intervenção obstétrica. Entre as mulheres com alguma complicação clínica ou obstétrica, a peregrinação se associou ainda mais com a prematuridade iniciada por intervenção e com Apgar no 5º min < 8, odds ratio de 1,98 (IC95% 1,49–2,65) e 2,19 (IC95% 1,31–3,68), respectivamente. A inadequação do pré-natal se associou à prematuridade espontânea em ambos os grupos de mulheres

CONCLUSÃO

Melhorar a qualidade do pré-natal, a coordenação e a integralidade do atendimento no momento do parto têm um impacto potencial nas taxas de prematuridade e, consequentemente, na redução das taxas de morbimortalidade infantil no país.

Cuidado Pré-Natal; Serviços de Saúde Materno-Infantil, Qualidade, Acesso e Avaliação da Assistência à Saúde; Fatores Socioeconômicos; Disparidades nos Níveis de Saúde

INTRODUÇÃO

A atenção pré-natal se constitui em um conjunto de ações que são simultaneamente preventivas, promotoras de saúde, diagnósticas e curativas, visando o bom desfecho da gestação para a mulher e seu(s) filho(s)11. World Health Organization. WHO Recommendations on antenatal care for a positive pregnancy experience. Geneva: WHO; 2016. .

A recomendação brasileira, no ano de 2012, era de no mínimo seis consultas de pré-natal, com uso de vacinas, realização de testes de diagnóstico laboratorial de exames de rotina, oferta de suplementos e tratamento medicamentoso para os problemas encontrados22. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Atenção ao pré-natal de baixo risco. Brasília, DF; 2012. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Cadernos de Atenção Básica, 32). , com todos os procedimentos registrados na Caderneta da Gestante, importante para a referência e a contrarreferência no momento do parto. A vinculação da gestante ao local do parto também é uma recomendação, para prevenir a peregrinação por busca de atenção hospitalar durante o trabalho de parto33. Brasil. Lei Nº 11.634, de 27 de dezembro de 2007. Dispõe sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília, DF; 2007 [citado 10 out 2017]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11634.htm
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.

Os dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) mostram a evolução da cobertura da atenção pré-natal no Brasil, de nenhuma consulta para mais de 10% das gestantes brasileiras há vinte anos, em 1995, caindo para 2,2% em 2015. Menos da metade das mulheres grávidas faziam sete ou mais consultas, e esse percentual aumentou para 66,5% em 2015, mostrando a expansão dessa cobertura e a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1990, na difusão desse benefício44. Ministério da Saúde (BR), DATASUS. SINASC: nascimentos por residência da mãe por ano do nascimento segundo número de consultas de pré-natal. Brasília, DF; 2015 [citado 10 out 2017]. Available from: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinasc/cnv/nvuf.def
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O Ministério da Saúde (MS), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) pactuaram, em 2013, indicadores da atenção à saúde com vistas ao fortalecimento do Planejamento Integrado do SUS e à implementação do Contrato Organizativo de Ação Pública da Saúde (Coap)55. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Articulação Interfederativa. Caderno de diretrizes, objetivos, metas e indicadores: 2013-2015. Brasília, DF; 2013. (Série Articulação Interfederativa; v.1). .

Entre os indicadores pactuados, está a cobertura adequada da atenção pré-natal, que foi avaliada nesse artigo por grandes regiões geográficas, no SUS, com dados da pesquisa Nascer no Brasil. Também foram analisados os efeitos da inadequação da atenção pré-natal sobre a saúde da mulher e do recém-nascido.

MÉTODOS

Este estudo é parte da pesquisa Nascer no Brasil, conduzida em serviços públicos e privados entre 2011 e 2012.

É uma pesquisa hospitalar, de âmbito nacional, com amostragem em três estágios de seleção. No primeiro estágio foram selecionados hospitais com 500 ou mais partos ao ano, estratificados segundo as macrorregiões do país, pela localização (capital ou não capital) e pelo tipo de hospital (público, privado ou misto). No segundo foi definido o número de dias necessários para realização de 90 entrevistas com puérperas em cada hospital. No terceiro e último estágio, a seleção das puérperas elegíveis. Mais informações sobre o desenho amostral são detalhadas por Vasconcellos et al.66. Vasconcellos MT, Silva PL, Pereira AP, Schilithz AO, Souza Junior PR, Szwarcwald CL. Sampling design for the Birth in Brazil: national survey into labor and birth. Cad Saude Publica. 2014;30 Supl 1:S1-10. https://doi.org/10.1590/0102-311X00176013
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Participaram do estudo 23.894 puérperas admitidas por ocasião do parto nas 266 maternidades selecionadas e seus conceptos vivos com qualquer peso e idade gestacional, ou natimortos com peso ao nascer ≥ 500 g e/ou idade gestacional ≥ 22 semanas de gestação.

Cálculos post-hoc mostraram que, com um nível de significância de 5% e prematuridade espontânea de 6% nos não expostos, o subgrupo com menor tamanho amostral da regressão múltipla (3.807 mulheres com intercorrências clínicas ou gestacionais) teria 90% de poder para detectar um risco aumentado correspondente a um odds ratio (OR) ≥ 1,3. Para os desfechos mais raros, escore Apgar no 5º minuto < 8 e near miss materno, o menor subgrupo de mulheres teria 90% de poder para detectar riscos aumentados correspondentes a OR ≥ 2,0 e 2,5, respectivamente.

Para a presente análise, foram incluídas apenas as mulheres com parto pago pelo SUS, representando 80% da amostra nacional. Foram utilizadas informações obtidas por meio de entrevistas presenciais após o parto, dados do prontuário e dos cartões de pré-natal. Informações detalhadas sobre a coleta de dados estão disponíveis em outra publicação77. Leal MC, Silva AA, Dias MA, Gama SG, Rattner D, Moreira ME, et al. Birth in Brazil: national survey into labour and birth. Reprod Health. 2012;9:15. https://doi.org/10.1186/1742-4755-9-15
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Os indicadores da assistência pré-natal e acesso à maternidade foram: tipo de unidade do pré-natal, trimestre de início do pré-natal, número de consultas, recebimento do cartão da gestante, apresentação do cartão da gestante na admissão para o parto, resultado de exames de glicemia de jejum, urina (elementos anormais do sedimento – EAS), sorologia para sífilis (VDRL) e HIV, ultrassonografia, recebimento da orientação sobre a maternidade de referência para o parto, parto na maternidade referenciada, peregrinação para o parto, tipo e localidade do hospital do parto.

Para a avaliação da adequação da assistência pré-natal, utilizamos três indicadores. O primeiro levou em consideração o trimestre gestacional na época de início do pré-natal e o número total de consultas recebidas corrigido segundo a idade gestacional no momento do parto. Foi considerado adequado o início do acompanhamento pré-natal quando realizado até a 12ª semana gestacional, conforme recomendação do MS. Para cálculo da adequação do número de consultas, foi utilizado o calendário mínimo de consultas recomendado pelo MS, que preconiza a realização de pelo menos uma consulta no primeiro trimestre gestacional, duas no segundo e três no último22. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Atenção ao pré-natal de baixo risco. Brasília, DF; 2012. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Cadernos de Atenção Básica, 32). . O número de consultas foi considerado adequado quando a gestante realizou 100% das consultas mínimas previstas para a idade gestacional no momento do parto. O indicador foi considerado adequado quando ambos o início precoce e o número de consultas de pré-natal foram adequados.

O segundo indicador, denominado adequação global 1, foi elaborado por Domingues et al.88. Domingues RMSM, Viellas EF, Dias MAB, Torres JA, Theme-Filha MM, Gama SGN, et al. Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2015;37(3):140-7. e considera o início precoce, número mínimo de consultas, exames de rotina realizados e orientação sobre a maternidade de referência para o parto. O pré-natal é considerado adequado quando o início ocorre até a 12ª semana gestacional; o número de consultas é adequado (≥ 100% das consultas previstas para a idade gestacional no parto); há registro de pelo menos um resultado de cada um dos exames: glicemia de jejum, EAS, VDRL, HIV e ultrassonografia; e há orientação sobre a maternidade de referência para o parto. O terceiro indicador, denominado adequação global 2, considerou os itens da adequação global 1 mais o recebimento de assistência ao parto no hospital para o qual a mulher foi referenciada durante do pré-natal.

Foram avaliados os desfechos: prematuridade espontânea, prematuridade iniciada por intervenção obstétrica, baixo peso ao nascer (BPN < 2.500 g), crescimento intrauterino restrito (CIUR), Apgar no 5º min < 8, near miss neonatal e near miss materno. Classificamos como prematuridade espontânea os nascimentos com menos de 37 semanas gestacionais em que o início do trabalho de parto (TP) foi espontâneo ou com ruptura prematura das membranas. Já os nascimentos prematuros por intervenção ou foram iniciados por indução ou pela cesariana antes do TP. Mulheres com ruptura de membranas que deram à luz através do TP induzido ou pela cesariana antes do TP foram classificadas sob a categoria nascimentos espontâneos. O TP foi considerado induzido em mulheres com membranas intactas e que receberam intervenção médica para iniciar a contração uterina antes do início do TP espontâneo. Foram consideradas cesáreas antes do TP as cirurgias que ocorreram sem TP espontâneo ou induzido. Para a classificação do CIUR, utilizamos o percentil 10 de peso segundo a idade gestacional no nascimento de acordo com o critério Intergrowth99. Villar J, Ismail LC, Victora CG, Ohuma EO, Bertino E, Altman DG, et al. International standards for newborn weight, length, and head circumference by gestational age and sex: the Newborn Cross-Sectional Study of the INTERGROWTH-21st Project. Lancet. 2014;384(9946):857-68. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(14)60932-6
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. A idade gestacional no nascimento foi calculada por um algoritmo que baseou-se principalmente em estimativas de ultrassonografia precoce1010. Pereira AP, Leal MC, Gama SGN, Domingues RMSM, Schilithz AOC, Bastos MH. Determining gestational age based on information from the Birth in Brazil study. Cad Saude Publica. 2014;30 Supl 1:S1-12. https://doi.org/10.1590/0102-311X00160313
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A variável near miss neonatal foi construída baseada em recomendações de Pileggi-Castro et al.1111. Pileggi-Castro C, Camelo Jr JS, Perdoná GC, Mussi-Pinhata MM, Cecatti JG, Mori R, et al. Development of criteria for identifying neonatal near-miss cases: analysis of two WHO multicountry cross-sectional studies. BJOG. 2014;121 Suppl 1:110-8. https://doi.org/10.1111/1471-0528.12637
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, utilizando-se informações dos prontuários hospitalares. A presença de qualquer uma das características a seguir indica a presença de near miss neonatal. Critérios pragmáticos: escore de Apgar no 5º min < 7, peso ao nascer < 1.750 gramas e idade gestacional < 33 semanas. Critérios de manejo: uso de antibiótico, pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP), fototerapia nas primeiras 72 horas, droga vasoativa, anticonvulsivante, surfactante, recebimento de massagem cardíaca, presença de hipoglicemia e intubação orotraqueal. Por definição, near miss neonatal representa um evento mórbido que quase resultou na morte do recém-nascido nos primeiros 28 dias de vida1212. Avenant T. Neonatal near miss: a measure of the quality of obstetric care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2009;23(3):369-74. https://doi.org/10.1016/j.bpobgyn.2008.12.005
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Near miss materno é definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “uma mulher que quase morreu, mas sobreviveu à complicação que ocorreu durante a gravidez, parto ou até 42 dias após o fim da gestação”1313. Say L, Souza JP, Pattinson RC; WHO Working Group on Maternal Mortality and Morbidity Classifications. Maternal near miss: towards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2009;23(3):287-96. https://doi.org/10.1016/j.bpobgyn.2009.01.007
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. Propõe uma classificação utilizando 25 critérios baseados na presença de disfunção de cardíaca, respiratória, renal, hepática, neurológica, da coagulação e uterina, que representam um conjunto de identificadores clínicos, laboratoriais e de gerenciamento1414. Souza JP, Cecatti JG, Haddad SM, Parpinelli MA, Costa ML, Katz L, et al. The WHO maternal near-miss approach and the maternal severity index model (MSI): tools for assessing the management of severe maternal morbidity. PloS One. 2012;7(8):e44129. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0044129
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. Para a identificação dos casos de near miss materno, foram adotados esses critérios definidos pela OMS, utilizando-se informações dos prontuários hospitalares. Os casos identificados foram revistos por dois especialistas de forma independente, visando identificar possíveis inconsistências na extração e/ou na digitação de dados do prontuário.

Como covariáveis foram avaliadas: idade (12–19, 20–34, ≥ 35 anos), cor da pele (branca, preta, parda), anos de estudo (≤ 7, 8–10, 11–14, ≥ 15), classe econômica (D+E, C, A+B), situação conjugal (mora, não mora com companheiro), trabalho remunerado (sim, não), paridade (0, 1–2, ≥ 3) e intercorrências clínicas ou gestacionais (distúrbios hipertensivos como hipertensão crônica, pré-eclâmpsia e síndrome HELLP; eclâmpsia; diabetes pré-existente; diabetes gestacional; doenças renais, cardíacas ou autoimunes; placenta prévia e descolamento prematuro de placenta). A classificação das intercorrências foi validada por dois obstetras usando informações do prontuário médico.

Na análise estatística, as diferenças macrorregionais nas características sociodemográficas e nas intercorrências clínicas ou gestacionais foram testadas pelo teste χ2, com significância estatística (p < 0,05). O mesmo procedimento foi utilizado para avaliar desigualdades, estratificando por mulheres com e sem intercorrências clínicas ou gestacionais.

Para o conjunto do país, testamos se a peregrinação e a inadequação do pré-natal se associavam aos desfechos neonatais nos dois subgrupos de mulheres. Para isso, utilizamos regressões logísticas múltiplas não condicionais e ajustamos pelas variáveis: região, idade, escolaridade e paridade. A seleção das variáveis de ajuste se deu pela associação delas, com significância estatística (p < 0,05), tanto com a exposição quanto com os desfechos estudados (dados não mostrados). Para o desfecho near miss materno, ajustamos também pelo tipo de parto. Os resultados foram expressos em OR ajustada e intervalo de confiança de 95% (IC95%).

Por tratar-se de uma amostra complexa, alguns cuidados foram levados em consideração em toda a análise estatística, que incluiu um processo de ponderação de dados calculado pelo inverso da probabilidade de inclusão de cada mulher na amostra, com um procedimento de calibração em cada estrato de seleção, a fim de corrigir o efeito do plano amostral. O software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 21, foi utilizado na realização das análises estatísticas.

RESULTADOS

Na Tabela 1 comparamos as características das 19.117 mulheres com parto pago pelo SUS segundo as macrorregiões do país. Nas regiões Norte e Nordeste, a frequência de partos entre adolescentes, mulheres de baixa escolaridade e de menor nível econômico foi maior que na região Sudeste. Não morar com companheiro foi mais comum na região Sudeste, enquanto o trabalho remunerado foi mais frequente no Sul. O Norte concentrou a maior proporção de mulheres com três ou mais partos anteriores. As intercorrências clínicas e gestacionais foram mais frequentes no Sul e Sudeste, exceto hipertensão crônica, que foi mais prevalente no Nordeste, e as síndromes hipertensivas gestacionais, mais frequentes no Centro-Oeste.

Tabela 1
Características sociodemográficas e intercorrências clínicas e gestacionais em mulheres com parto pago pelo Sistema Único de Saúde segundo macrorregiões do Brasil, 2011–2012.

A atenção pré-natal apresentou variações regionais importantes. Apesar da cobertura elevada, a proporção de mulheres sem nenhuma assistência pré-natal foi 60% maior no Norte que a média nacional. As regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste tiveram maior prevalência de mulheres com início precoce do pré-natal, e a Sudeste, a maior cobertura de mulheres com pelo menos seis consultas de pré-natal ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Assistência pré-natal de mulheres com parto pago pelo Sistema Único de Saúde segundo risco materno e macrorregiões do Brasil, 2011–2012.

O recebimento de cartão da gestante cobriu quase a totalidade das mulheres. Entretanto, nem todas apresentaram o cartão na admissão para o parto. A cobertura no país de pelo menos um exame VDRL e um HIV na gestação foi de 88% e 79%, respectivamente, tendo as regiões Norte e Nordeste as menores prevalências. A cobertura dos exames de glicemia e EAS foi próxima a 85%, tendo a região Sul a maior prevalência. Com relação à ultrassonografia, a região Norte apresentou o maior déficit, com cobertura inferior a 70% ( Tabela 2 ).

Pouco mais da metade das mulheres foram vinculadas à maternidade durante o pré-natal. A região Sul se destacou com mais de 90% das mulheres com parto nas maternidades indicadas. A peregrinação foi enfrentada por mais de 20% das mulheres, atingindo mais de 30% no Nordeste ( Tabela 2 ).

As mulheres com intercorrências tiveram melhores indicadores de pré-natal que as mulheres sem intercorrências. Para as primeiras, foi observada maior prevalência de assistência pré-natal, de início precoce e de realização de seis ou mais consultas. A cobertura de exames VDRL e HIV também foi superior. No Nordeste a diferença observada entre as mulheres com ou sem intercorrências foi mais proeminente que nas outras regiões ( Tabela 2 ).

Com relação à adequação do pré-natal, que considerou tanto o início precoce quanto o número mínimo de consultas, as regiões Sudeste e Sul apresentaram as maiores prevalências. Já para a adequação global 1, a prevalência caiu substancialmente em todas as regiões. Considerando o critério mais restrito, adequação global 2, a prevalência no país foi de apenas 16%, tendo a região Nordeste o pior resultado, 10% ( Tabela 3 ). A região Centro-Oeste teve a maior taxa de cesariana (49,5%) e a Nordeste, a menor (41,6%). A Sudeste teve a menor taxa de cesariana anteparto (6,8%), conforme observado na Tabela 3 .

Tabela 3
Adequação do pré-natal e desfechos neonatais e maternos em mulheres com parto pago pelo Sistema Único de Saúde segundo risco materno e macrorregiões do Brasil, 2011–2012.

As regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram os piores resultados neonatais, principalmente para prematuridade espontânea, BPN e CIUR. Foram encontradas mais desigualdades regionais e piores desfechos entre as mulheres com intercorrências ( Tabela 3 ).

A peregrinação para o parto se associou com todos os desfechos neonatais, exceto com CIUR, mesmo após o ajuste pelas variáveis de confusão. A razão de chances variou de 1,48 (IC95% 1,23–1,78) para o near miss neonatal a 1,62 (IC95% 1,27–2,06) para a prematuridade iniciada por intervenção. Entre as mulheres com alguma intercorrência, essa exposição se associou ainda mais fortemente à prematuridade iniciada por intervenção e Apgar no 5º min < 8, com OR de 1,98 (IC95% 1,49–2,65) e 2,19 (IC95% 1,31–3,68), respectivamente. A inadequação do pré-natal se associou à prematuridade espontânea nos dois grupos de mulheres ( Tabela 4 ).

Tabela 4
Desfechos neonatais e maternos associados à peregrinação e pré-natal inadequado em mulheres com parto pago pelo Sistema Único de Saúde segundo risco materno no Brasil, 2011–2012.

DISCUSSÃO

É quase universal a cobertura da atenção pré-natal no Brasil para as gestantes que utilizam o SUS, pelo critério de pelo menos uma consulta, mas esse panorama vai se modificando à medida que se consideram outros parâmetros. Ao incluir recomendações como o número mínimo de exames realizados e vinculação à maternidade para o parto, a adequação se reduz para pouco mais de um quarto de todas as mulheres, diminuindo ainda mais se considerarmos a vinculação efetiva a uma maternidade.

Tomasi et al.1515. Tomasi E, Fernandes PAA, Fischer T, Siqueira FCV, Silveira DS, Thumé E, et al. Qualidade da atenção pré-natal na rede básica de saúde do Brasil: indicadores e desigualdades sociais. Cad Saude Ppublica. 2017;33(3):e00195815. https://doi.org/10.1590/0102-311x00195815
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analisaram a assistência pré-natal no SUS no mesmo período deste estudo e observaram que 89% das gestantes fizeram seis ou mais consultas, mas apenas 15% das entrevistadas receberam atenção pré-natal adequada. As diferenças nos percentuais de cobertura entre os dois estudos se devem ao fato de que, no estudo de Tomasi, foram obtidas as informações de mulheres atendidas pelas equipes de unidades básicas de saúde (UBS), com 18 anos ou mais de idade, presentes nas unidades por ocasião da avaliação; enquanto o Nascer no Brasil entrevistou uma amostra representativa de mulheres no momento do parto, já que 99% dos partos ocorreram em hospitais, tendo assim um panorama mais aproximado da real cobertura pré-natal. Além disso, o critério utilizado para adequação do pré-natal foi diferente nas duas pesquisas, o que também contribui para as diferenças encontradas.

Os achados mostram que o SUS ainda apresenta falhas na continuidade e qualidade da atenção dispensada. Monteiro et al.1616. Monteiro CN, Beenackers MA, Goldbaum M, Barros MBA, Gianini RJ, Cesar CLG, et al. Use, access, and equity in health care services in São Paulo, Brazil. Cad Saude Publica. 2017;33(4):e00078015. https://doi.org/10.1590/0102-311X00078015
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verificaram, no estado de São Paulo, que o acesso quase universal aos serviços de assistência à saúde apresentava problemas na qualidade vivenciados principalmente pelos grupos socioeconômicos mais baixos, a maioria dos quais utilizavam o SUS.

As desigualdades sociais e econômicas entre as regiões geográficas do país são evidentes neste estudo. Na esfera da saúde reprodutiva, nas regiões mais desfavorecidas as mulheres são mais jovens, têm maior proporção de gravidez na adolescência e maior paridade. Por serem mais velhas e terem acesso a melhor diagnóstico clínico, as mulheres das regiões Sul e Sudeste apresentaram maiores proporções de intercorrências clínicas. No entanto, foi o Norte que apresentou a mesma proporção de mulheres sem assistência pré-natal para o grupo com e sem ocorrência obstétrica. Esse pior desempenho da região pode estar associado às dificuldades geográficas, grandes distâncias e barreiras de acesso aos grandes centros para diagnósticos e tratamento, ausência de profissionais qualificados etc. É também maior nessa região a proporção de partos domiciliares, que, quando realizados por profissionais não qualificados, associam-se com maior taxa de mortalidade infantil1717. Leal MC, Bittencourt SDA, Torres RMC, Niquini RP, Souza Jr PRB. Determinants of infant mortality in the Jequitinhonha Valley and in the North and Northeast regions of Brazil. Rev Saude Publica. 2017;51:12. https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2017051006391
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. Viellas et al.1818. Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, et al. Prenatal care in Brazil. Cad Saude Publica. 2014;30 Supl 1:S1-15. https://doi.org/10.1590/0102-311X00126013
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, estudando a atenção pré-natal no Brasil, identificaram que a menor cobertura e início tardio nas regiões Norte e Nordeste em gestantes com menor escolaridade estavam associadas mais a barreiras de acesso do que ao desconhecimento da gravidez e a problemas de natureza pessoal da gestante.

Neste estudo, gestantes com pré-natal inadequado foram mais suscetíveis a terem recém-nascidos prematuros espontaneamente. Um estudo com essa mesma amostra de mulheres observou que a prematuridade espontânea se associou com a pobreza e inadequação do pré-natal1919. Leal MC, Esteves-Pereira AP, Nakamura-Pereira M, Torres JA, Theme-filha M, Domingues RMSM, et al. Prevalence and risk factors related to preterm birth in Brazil. Reprod Health. 2016;13 Suppl 3:127. https://doi.org/10.1186/s12978-016-0230-0
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, fatores que contribuem para a manutenção das altas taxas da mortalidade infantil do país2020. Lansky S, Friche AAL, Silva AAM, Campos D, Bittencourt SDA, Carvalho ML, et al. Birth in Brazil survey: neonatal mortality, pregnancy and childbirth quality of care. Cad Saude Publica. 2014;30 Supl 1:S1-15. https://doi.org/10.1590/0102-311X00133213
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, dado que o nascimento pré-termo é o maior fator de risco para a morbidade e mortalidade no primeiro ano de vida e na infância2121. GBDCM 2015 Child Mortality Collaborators. Global, regional, national, and selected subnational levels of stillbirths, neonatal, infant, and under-5 mortality, 1980-2015: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2015. Lancet. 2016;388(10053): 1725-74. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(16)31575-6
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.

Outra questão identificada é a desconexão entre os níveis de atenção ambulatorial e hospitalar, aspecto que se reveste de importância, uma vez que conhecer a maternidade contribui para o bem-estar da mulher e o bom andamento do TP2222. Beaton J, Gupton A. Childbirth expectations: a qualitative analysis. Midwifery 1990;6(3):133-9. https://doi.org/10.1016/S0266-6138(05)80170-6
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. A lei da vinculação à maternidade já completou dez anos, mas não foi ainda devidamente implementada no país. Chama a atenção que a região Sul conseguiu vinculação efetiva para mais de 90% das gestantes, evidenciando uma maior organização do sistema e melhor coordenação do cuidado, continuidade e hierarquização das ações na saúde materno-infantil.

Foi elevada a taxa de cesariana em todas as regiões, principalmente para as mulheres com intercorrências obstétricas, 75% maior do que no grupo de baixo risco. A taxa média de 30,4% de cesariana no grupo de baixo risco se aproxima do valor da taxa global dos EUA e está muito acima da taxa dos países europeus, que ficam em torno de 20 a 25%2323. Betrán AP, Ye J, Moller AB, Zhang J, Gulmezoglu AM, Torloni MR. The Increasing Trend in Caesarean Section Rates: global, regional and national estimates: 1990-2014. PloS One. 2016;11(2):e0148343. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0148343
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. A região Sudeste, que teve a menor taxa de cesariana intraparto, teve também a menor taxa de cesariana do setor público próprio do SUS (dados não mostrados). Nos países europeus a maior proporção de cesarianas é intraparto, diferentemente do que ocorre no Brasil, onde predomina a anteparto ou cesariana agendada2424. Nakamura-Pereira M, Leal MC, Esteves-Pereira AP, Domingues RMSM, Torres JA, Dias MAB, et al. Use of Robson classification to assess cesarean section rate in Brazil: the role of source of payment for childbirth. Reprod Health. 2016;13 Suppl 3:128. https://doi.org/10.1186/s12978-016-0228-7
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. Esse melhor resultado da região Sudeste pode ser em consequência do movimento em curso de mudança no modelo de atenção ao parto nos hospitais próprios do SUS dessa região, focado nas melhores evidências científicas, sem desconsiderar o movimento das mulheres na busca por uma atenção ao parto menos medicalizada.

As mulheres que tiveram ocorrências obstétricas receberam melhor atenção pré-natal que as de baixo risco. Isso mostra que a atenção básica vem tendo alguma efetividade em identificar esses problemas e atender melhor às gestantes de risco. No entanto, apesar desse esforço, o sistema falhou no processo de integralidade do atendimento, não dando continuidade no acesso à maternidade.

A falha do sistema na coordenação e integralidade do cuidado no momento do parto, com peregrinação de muitas mulheres, associou-se a grandes prejuízos para os recém-nascidos. Na obstetrícia é conhecido o papel que exercem as demoras no atendimento. Na década de 1990, autores ingleses propuseram um modelo teórico de três demoras conhecido como three delays model que as classifica em: fase I, a demora na decisão de procurar cuidados; fase II, a demora em chegar a uma unidade de cuidados adequados; e fase III, a demora em receber os cuidados adequados na instituição de referência2525. Thaddeus S, Maine D. Too far to walk: maternal mortality in context. Soc Sci Med. 1994;38(8):1091-110. https://doi.org/10.1016/0277-9536(94)90226-7
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. Quando uma mulher peregrina por mais de um serviço de saúde, certamente estamos diante da fase II e III. Pacagnella et al.2626. Pacagnella RC, Cecatti JG, Parpinelli MA, Sousa MH, Haddad SM, Costa ML, et al. Delays in receiving obstetric care and poor maternal outcomes: results from a national multicentre cross-sectional study. BMC Pregnancy Childbirth. 2014;14:159. https://doi.org/10.1186/1471-2393-14-159
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, utilizando esses conceitos, analisaram o papel das demoras na morbidade materna grave no Brasil e encontrou associação entre esse desfecho e as demoras no atendimento. Na presente análise, a peregrinação para o parto se associou a quase todos os desfechos negativos no recém-nascido, principalmente no grupo de gestantes com intercorrências, possivelmente por demandarem mais intervenções clínicas.

Uma recente análise com dados do Nascer no Brasil mostrou que, no SUS, 32% das mulheres de risco obstétrico foram atendidas em hospitais sem unidades de cuidado intensivo, enquanto 29,5% das de baixo risco realizaram o parto em hospitais com esse tipo de recurso2727. Bittencourt SD, Domingues RMSM, Reis LG, Ramos MM, Leal MC. Adequacy of public maternal care services in Brazil. Reprod Health. 2016;13 Suppl 3:120. https://doi.org/10.1186/s12978-016-0229-6
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. Isso mostra que o sistema não está adequadamente articulado para disponibilizar atenção de alta complexidade a quem necessita, ofertando-a desnecessariamente a quem não precisa. As consequências dessa desarticulação podem ser vistas neste estudo e merecem atenção dos gestores para evitar sofrimento, complicações e abreviamento de vidas.

O pré-natal é uma ação programática típica da atenção primária, e os resultados do estudo comprovam esse fato e sua relação com os resultados obstétricos. Uma vez que 90% das entrevistadas fizeram seu pré-natal na rede básica de saúde, as ações de qualificação das equipes e dos processos de trabalho têm papel fundamental na melhoria dos cuidados ao bebê e à gestante. Fachini et al.2828. Facchini LA, Tomasi E, Dilélio AS. Qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saude Debate. 2018;42 nº espec 1:208-23. https://doi.org/10.1590/0103-11042018s114
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destacam a importância no aumento da efetividade da Estratégia Saúde da Família, considerando seu efeito mediador na atenção à saúde.

Em conclusão, persistem as desigualdades regionais, as barreiras no acesso e a inadequação da atenção pré-natal, contribuindo para resultados adversos para os recém-nascidos. A melhoria da qualidade da atenção pré-natal e a coordenação e integralidade do cuidado no momento do parto têm potencial impacto sobre as taxas de prematuridade e consequentemente sobre a redução da taxa de morbimortalidade infantil no país.

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  • Financiamento

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - processo nº 557366/2009-7. Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde - Processo 25000.096149/2010-97. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Projeto INOVA) - Processo 25388.000773/2009-66. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) - processo nº E-26/103.083/2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2019
  • Aceito
    22 Abr 2019
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@org.usp.br