O financiamento da saúde no Brasil e as metas da Agenda 2030: alto risco de insucesso

Fabiola Sulpino Vieira Sobre o autor

RESUMO

OBJETIVO:

Examinar o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2010 a 2019 e analisar as tendências recentes da alocação de recursos federais para grandes áreas de atuação do sistema, bem como a possibilidade de alcance das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 3 da Agenda 2030.

MÉTODOS:

Dados da execução orçamentário-financeira dos entes da Federação foram obtidos. As transferências do Ministério da Saúde (MS) para as secretarias municipais e estaduais e suas aplicações diretas foram identificadas segundo grandes áreas finalísticas do SUS e áreas-meio. Estatísticas descritivas básicas, gráficos e tabelas foram utilizados para a análise da execução das despesas por essas áreas.

RESULTADOS:

O gasto público per capita com saúde aumentou entre 2010 e 2018. Contudo, em relação a 2014, teve redução de 3% em 2018. Constatou-se deslocamento da alocação de recursos federais em prejuízo das transferências aos estados (−21%). Também se observaram perdas da vigilância em saúde em favor da atenção básica e da assistência farmacêutica. No caso da atenção básica, o aumento do gasto veio atrelado a mudanças na política e à ampliação dos recursos alocados por emendas parlamentares. Já no caso da assistência farmacêutica, o aumento se deu pela incorporação de novos medicamentos, incluindo vacinas, pela judicialização, pelo aumento dos gastos com hemoderivados e pela centralização, no MS, da compra de itens de alto impacto orçamentário.

CONCLUSÃO:

Caso não haja mudança no quadro atual de financiamento do SUS, algo improvável sob a vigência da Emenda Constitucional nº 95, associada à redefinição das prioridades das políticas de saúde, o risco de não cumprimento das metas do ODS 3 da Agenda 2030 é muito alto.

DESCRITORES:
Sistema Único de Saúde; Alocação de Recursos para a Atenção à Saúde; Políticas Públicas de Saúde; Gastos em Saúde; Desenvolvimento Sustentável

INTRODUÇÃO

A Agenda 2030 é uma declaração que traduz o compromisso assumido pelos 193 Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015, para o alcance de um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que se desdobram em 169 metas, visando à promoção da prosperidade e do bem-estar das populações de forma sustentável em todo o mundo 11. Organização das Nações Unidas. Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: ONU; 2015 [cited 2020 21]. Available from: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf
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Especificamente para o campo da saúde, o ODS 3 – Saúde e Bem-Estar é composto por 13 metas globais que, no caso do Brasil, foram adequadas à realidade e às prioridades nacionais em 2018, especialmente porque algumas delas já haviam sido atingidas pelo país 22. Sá EB, Benevides RPS. ODS 3 Assegurar uma vida saudável e promover o bem estar para todas e todos em todas as idades. O que mostra o retrato do Brasil? Brasília, DF: IPEA; 2019 [cited 2020 Feb 21]. (Cadernos ODS, 3). Available from: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/190829_cadernos_ODS_objetivo_3.pdf
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. As metas readequadas são um guia para a ação do Estado brasileiro por quantificarem objetivos específicos relacionados à redução da mortalidade infantil, ao acesso universal a serviços de saúde, à diminuição das mortes prematuras por doenças não transmissíveis, entre outros, a serem alcançados até 2030.

No tocante ao financiamento, a meta 3c foi readequada para “aumentar substancialmente o financiamento da saúde e o recrutamento, desenvolvimento, formação e retenção do pessoal de saúde, especialmente nos territórios mais vulneráveis”. Nenhuma alteração da redação da meta global foi feita em relação ao financiamento da saúde, tampouco foi definido indicador para acompanhar a alocação de recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS) 22. Sá EB, Benevides RPS. ODS 3 Assegurar uma vida saudável e promover o bem estar para todas e todos em todas as idades. O que mostra o retrato do Brasil? Brasília, DF: IPEA; 2019 [cited 2020 Feb 21]. (Cadernos ODS, 3). Available from: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/190829_cadernos_ODS_objetivo_3.pdf
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Explicação para este fato pode ser encontrada no contexto político, econômico e social contemporâneo do país. A crise econômica iniciada em 2014 comprometeu fortemente as finanças dos entes federados, particularmente da União e dos estados 33. Mendonça, MAA. Finanças públicas. Carta Conjuntura. 2016;(32):1-21. [cited 2020 Feb 24]. Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6911/5/cc32_financas_publicas.pdf
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, com impactos sobre a destinação de recursos para a saúde 44. Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Brasília, DF: Ipea; 2019 [cited 2020 Feb 24]. (Texto para Discussão, 2516). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9428/1/td_2516.pdf
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. E, no governo federal, a resposta à crise veio com a implantação de política de austeridade fiscal, resultando em expressiva limitação à ampliação do financiamento do SUS 55. Vieira FS, Benevides RPS. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Brasília, DF: Ipea; 2016 [cited 2020 Feb 21]. (Nota Técnica, 28). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7270/1/NT_n28_Disoc.pdf
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,66. Funcia FR, Ocke-Reis CO. Efeitos da política de austeridade fiscal sobre o gasto público federal em saúde. In: Rossi P, Dweck E, Oliveira ALM, organizadores. Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. São Paulo: Autonomia Literária; 2018. p.83-97. e em cortes de gastos com outras políticas públicas, com consequências sobre direitos constitucionalmente inscritos 77. Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Cienc Saude Coletiva. 2018;23(7):2303-14. https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.09192018
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Recursos financeiros são insumos essenciais para a oferta de bens e serviços de saúde e, nesse sentido, o Estado tem papel fundamental na garantia de proteção social para toda a população, defendendo os indivíduos contra perdas financeiras significativas e empobrecimento em virtude do pagamento por serviços de saúde diretamente do bolso ( out-of-pocket ) 88. Xu K, Evans DB, Carrin G, Aguilar-Rivera AM, Musgrove P, Evans T. Protecting households from catastrophic health spending. Health Aff (Millwood). 2007;26(4):972-83. https://doi.org/10.1377/hlthaff.26.4.972
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No tocante ao ODS 3, o alcance das metas assumidas pelo Brasil depende do aumento do financiamento público, não apenas para o SUS, a fim de ampliar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde, mas também para outras políticas sociais que impactam fatores relacionados às condições de vida e de trabalho da população – os determinantes sociais da saúde.

Considerando o ainda insuficiente financiamento do SUS e a implantação de medidas de austeridade fiscal 33. Mendonça, MAA. Finanças públicas. Carta Conjuntura. 2016;(32):1-21. [cited 2020 Feb 24]. Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6911/5/cc32_financas_publicas.pdf
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,99. Marques RM, Mendes A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: de 1985 a 2008. Econ Soc. 2012;21(2),345-62. https://doi.org/10.1590/S0104-06182012000200005
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, aumentam as incertezas sobre os avanços em saúde pública no país nas próximas duas décadas. Assim, os objetivos deste artigo são examinar o financiamento do SUS de 2010 a 2019 e analisar as tendências recentes da alocação de recursos federais para grandes áreas de atuação do sistema, bem como a possibilidade de alcance das metas do ODS 3 da Agenda 2030.

MÉTODOS

Realizou-se estudo sobre a trajetória recente do financiamento do SUS a partir da análise dos gastos das três esferas de governo entre 2010 e 2019.

Inicialmente, para contextualizar o Brasil em perspectiva internacional, obteve-se do sítio eletrônico da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) o indicador de despesa pública com saúde per capita em 2017 de países selecionados (valores em dólares por paridade do poder de compra – PPC), que consiste nas despesas do governo e/ou de esquemas compulsórios de saúde 1010. Organisation for Economic Co-operation and Development. OECD Statistics. Paris; 2010 [cited 2020 Feb 21]. Available from: https://stats.oecd.org/#.
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. Esse ano foi escolhido em função da disponibilidade de informação comparável mais recente para o Brasil 1111. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BR). CSS - Conta-satélite de saúde: 2010 – 2017. Rio de Janeiro: IBGE; 2019. . O valor do indicador em reais (R$) correntes foi ajustado para dólares PPC pela aplicação do índice de correção disponibilizado pela OCDE para aquele ano.

As despesas empenhadas pelas três esferas de governo com ações e serviços públicos de saúde foram levantadas. Essas despesas são as consideradas para fins de apuração da aplicação mínima em saúde. Elas representam reservas de valores feitas no orçamento de cada ente da Federação, em cada exercício, para honrar, posteriormente, gastos efetivos com o SUS.

Três fontes públicas de dados foram utilizadas: i) o sistema Siga Brasil, para as despesas da União 1212. Siga Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 2001 [cited 2020 Feb 21]. Available from: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil
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; ii) o Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), para as despesas dos estados, do DF e dos municípios, além de dados da população 1313. Ministério da Saúde (BR). Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde – SIOPS. Brasília, DF; 2000 [cited 2020 Feb 21]. Available from: http://siops.datasus.gov.br/
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; e iii) os arquivos anuais de repasse de recursos do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para os fundos de saúde estaduais e municipais 1414. Ministério da Saúde (BR), Fundo Nacional de Saúde. Arquivos de Repasse Anual Fundo a Fundo. Brasília, DF; 2000 - 2019 [cited 2020 Feb 21]. Available from: http://portalfns.saude.gov.br/arquivos-de-repasse-anual-fundo-a-fundo
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Calculou-se para cada esfera de governo o gasto público per capita com saúde, com base na despesa empenhada do período de 2010 a 2018, apresentando-o, em moeda nacional, em valores de 2018 com correção monetária pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) médio.

Para o governo federal, adicionalmente, identificaram-se as despesas efetivamente pagas por modalidade de aplicação, a fim de analisar a sua execução segundo as esferas de governo, agrupando-se tais modalidades em: i) transferências aos estados e ao DF; ii) transferências a municípios; iii) aplicações diretas (do Ministério da Saúde – MS) e transferências ao exterior; e iv) outras modalidades. Esses valores, que são desembolsos efetivos feitos pela administração pública, são resultantes da soma das despesas pagas do exercício financeiro e dos restos a pagar pagos nesse exercício. Restos a pagar são despesas que foram empenhadas em exercícios anteriores, mas não foram pagas até o dia 31 de dezembro do ano em que foram empenhadas, podendo ser inscritas e reinscritas para pagamento em exercícios financeiros subsequentes.

O uso da variável “despesa efetivamente paga” para o gasto do MS é importante para a análise conjunta dos valores executados diretamente pelo governo federal e daqueles repassados pelo FNS aos fundos municipais e estaduais de saúde por grandes áreas finalísticas de atuação do SUS, quais sejam: atenção básica, assistência farmacêutica, atenção de média e alta complexidade (MAC) e vigilância em saúde; e para financiar despesas com áreas-meio: gestão e investimentos.

As transferências do FNS por área de atuação foram identificadas no período de 2010 a 2017 pelos seis blocos de financiamento assim designados nos arquivos de repasse anuais. Para 2018 e 2019, a informação sobre o bloco não é suficiente em razão das mudanças na alocação de recursos do MS por meio da Portaria GM/MS nº 3.992/2017, que organizou os repasses em dois blocos de financiamento. Nesses dois anos, os valores para investimentos são provenientes do bloco “investimentos”, e as demais despesas são obtidas a partir da abertura do bloco “custeio” por grupo.

A soma das despesas pagas nas modalidades aplicação direta e transferências ao exterior do governo federal também foi classificada pelas áreas de atuação do SUS e áreas-meio mencionadas. Para tanto, os dados obtidos do Siga Brasil para essas duas modalidades foram abertos: por grupo de natureza de despesa (GND), para identificar despesas de custeio e de investimento; por subfunção, para discriminar a área do gasto; e por ação orçamentária, para análise da consistência da classificação por subfunção e para realocação de despesas, caso fosse necessário. Neste artigo, despesas com a aquisição de vacinas, outros imunobiológicos e insumos foram realocadas de vigilância epidemiológica para assistência farmacêutica, uma vez que imunobiológicos têm grande peso no orçamento e são medicamentos (ações 6031 e 20YE). Gastos com a ação orçamentária 8670, que financiou ações e serviços de vigilância epidemiológica e também insumos entre 2010 e 2012, permaneceram classificados como vigilância em saúde. Despesas com atenção à saúde indígena foram incluídas em atenção básica, e despesas com pesquisa e desenvolvimento tecnológico foram registradas em gestão.

Após os ajustes necessários na classificação das despesas e a atualização monetária dos valores pela aplicação do IPCA, corrigindo-os para reais de 2019, estatísticas descritivas básicas, gráficos e tabelas foram utilizados para a análise da execução das despesas por grandes áreas de atuação do SUS, segundo sua relação com as metas do ODS 3 da Agenda 2030.

RESULTADOS

Na Figura 1 , apresenta-se o gasto público per capita em 2017 de países selecionados. A magnitude da diferença entre o gasto do Brasil e o de países que também possuem sistema universal de saúde é expressiva, sendo maior para o do Reino Unido (que é de 5 vezes o gasto brasileiro), o da Espanha (3,8 vezes) e o de Portugal (3 vezes). O gasto do Brasil chega a ser menos que a metade do gasto do Chile, país este que tem um sistema de proteção social público limitado.

Figura 1
Gasto público em saúde per capita de países selecionados, em dólares por paridade do poder de compra (2017).

Saindo da comparação internacional para uma visão federativa nacional, apresenta-se na Tabela a evolução das despesas empenhadas per capita no Brasil por esfera de governo entre 2010 e 2018. A partir dela, observa-se aumento do gasto federal (8%), do estadual – que inclui o do Distrito Federal – (8%) e do municipal (23%) no período analisado. Considerando os recursos alocados pelas três esferas, o gasto per capita cresceu 13%, passando de R$ 1.165, em 2010, para R$ 1.311 em 2018, em valores constantes. Entretanto, quando o olhar se volta para os anos mais recentes, verifica-se redução da despesa per capita entre 2014 e 2018 em 2% no governo federal, 5% nos estados, 4% nos municípios e 3% para o consolidado das três esferas de governo. Em termos absolutos, as despesas da União empenhadas aumentaram 19%, passando de R$ 99,5 bilhões para R$ 122,6 bilhões, em valores constantes, entre 2010 e 2019.

Tabela
Gasto público per capita com saúde no Brasil por esfera de governo (2010–2018).

Detalhamento da execução federal quanto às despesas efetivamente pagas por modalidade de aplicação é apresentado na Figura 2 , a partir da qual é possível verificar redução das transferências do MS às secretarias estaduais de saúde (−21%), e aumento das aplicações diretas acrescidas das transferências ao exterior (28%) e das transferências às secretarias municipais de saúde (33%) entre 2010 e 2019. O montante das despesas efetivamente pagas passou de R$ 103,3 bilhões para R$ 122,4 bilhões nesse período, perfazendo um aumento de 18%.

Figura 2
Despesas do governo federal com saúde por modalidade de aplicação em bilhões de reais de 2019 (2010–2019).

Na Figura 3 , as despesas efetivamente pagas pelo MS, que foram executadas nas modalidades de transferência aos estados (incluindo o Distrito Federal) e aos municípios, somadas – chamadas pelo FNS de repasses –, são apresentadas por áreas finalísticas de atuação do SUS e por áreas-meio. Entre 2010 e 2019, constata-se: i) aumento dos repasses para financiamento da atenção básica, especialmente a partir de 2017 (46%, de R$ 16,2 bilhões para R$ 23,5 bilhões), da MAC (13%, de R$ 48,7 bilhões para R$ 54,9 bilhões), da vigilância em saúde (4%, de R$ 2,6 bilhões para R$ 2,7 bilhões) e de investimentos (116%, de R$ 0,8 bilhão para R$ 1,6 bilhão); e ii) redução dos repasses para assistência farmacêutica (−59%, de R$ 4,4 bilhões para R$ 1,8 bilhão) e gestão (−91%, de R$ 499,2 milhões para R$ 43,5 milhões). Chama a atenção uma importante redução desses repasses para MAC entre 2014 e 2016 (−12%) e um pico nos repasses para investimentos em 2018 (R$ 4,5 bilhões).

Figura 3
Repasses do governo federal para estados e municípios por grupo de despesa em saúde (2010–2019).

As despesas pagas nas modalidades de aplicação direta e transferência ao exterior do MS, somadas, são apresentadas pelas mesmas áreas de atuação do SUS e período na Figura 4 . Nota-se aumento expressivo dos gastos com atenção básica (664%, de R$ 0,5 bilhão para R$ 3,7 bilhões) e assistência farmacêutica (170%, de R$ 6,5 bilhões para R$ 17,7 bilhões), paralelamente à redução de despesas com MAC (−13%, de R$ 5,3 bilhões para R$ 4,7 bilhões), vigilância em saúde (−84%, de R$ 1,7 bilhão para R$ 0,3 bilhão), investimentos (−31%, de R$ 1,6 bilhão para R$ 1,1 bilhão) e gestão (−20%, de R$ 15,7 bilhões para R$ 12,6 bilhões). Destaca-se a grande queda das despesas com vigilância entre 2010 e 2011 (−61%).

Figura 4
Aplicações diretas e transferências ao exterior do governo federal por grupo de despesa em saúde (2010–2019).

DISCUSSÃO

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o financiamento do SUS tem sido preocupação constante para pesquisadores e gestores públicos comprometidos com a garantia de acesso a bens e a serviços de saúde de forma universal, igualitária e integral. A apreensão com o presente e o futuro do sistema é amplificada diante das decisões de agentes públicos, especialmente no âmbito do governo federal, em sentido diverso daquele expresso na Constituição 55. Vieira FS, Benevides RPS. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Brasília, DF: Ipea; 2016 [cited 2020 Feb 21]. (Nota Técnica, 28). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7270/1/NT_n28_Disoc.pdf
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,1515. Vieira FS. Implicações de decisões e discussões recentes para o financiamento do Sistema Único de Saúde. Saude Debate. 2016;40(109):187-99. https://doi.org/10.1590/0103-1104201610915
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1717. Pinto EG. Erosão orçamentário-financeira dos direitos sociais na Constituição de 1988. Cienc Saude Coletiva. 2019;24(12):4473-8. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25092019
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A Emenda Constitucional nº 95/2016 (EC 95) impõe restrição importante ao financiamento do SUS. Até recentemente, essa medida foi considerada a grande investida contra a efetivação do direito à saúde no Brasil, mas as ameaças se tornaram mais graves com uma possível eliminação da obrigatoriedade de gasto mínimo em saúde pelas esferas de governo 44. Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Brasília, DF: Ipea; 2019 [cited 2020 Feb 24]. (Texto para Discussão, 2516). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9428/1/td_2516.pdf
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e com a Proposta de Emenda à Constituição nº 188, cujo objetivo é que o gasto adicional em saúde ou em educação para além do piso de cada área possa ser descontado da outra, para fins de apuração das aplicações mínimas 1818. Senado Federal (BR). Proposta de Emenda à Constituição N° 188, de 2019. Altera arts. 6º, 18, 20, 29-A, 37, 39, 48, 62, 68, 71, 74, 84, 163, 165, 166, 167, 168, 169, 184, 198, 208, 212, 213 e 239 da Constituição Federal e os arts. 35, 107, 109 e 111do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; acrescenta à Constituição Federal os arts. 135-A, 163-A, 164-A, 167-A, 167-B, 168-A e 245-A; acrescenta ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias os arts. 91-A, 115, 116 e 117; revoga dispositivos constitucionais e legais e dá outras providências. Brasília, DF; 2019 [cited 2020 Feb 24]. Available from: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8035580&ts=1582036854418&disposition=inline
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Como mostra a Figura 1 , o gasto público per capita em saúde do Brasil sofreu redução nos últimos anos e é muito baixo em comparação ao de países com sistema universal de saúde. E as perspectivas não são boas, pois a posição brasileira em contexto internacional tende a piorar sob a EC 95. Já se observa aumento da participação das famílias na despesa com o consumo final de bens e serviços de saúde, que passou de 53,5%, em 2010, para 56,8% em 2017 1111. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BR). CSS - Conta-satélite de saúde: 2010 – 2017. Rio de Janeiro: IBGE; 2019. . Ainda que não se disponha, até o momento, de números exatos para o Brasil, sabe-se que parte significativa dessas despesas ocorre por desembolso direto, especialmente para a compra de medicamentos, e que o crescimento desse tipo de desembolso é um dos principais fatores de piora da equidade no financiamento dos sistemas de saúde 1919. Rostampour M, Nosratnejad S. A systematic review of equity in healthcare financing in low- and middle-income countries. Value Health Reg Issues. 2020;21:133-40. https://doi.org/10.1016/j.vhri.2019.10.001
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Considerando as despesas pagas pelo MS por modalidade de aplicação, observa-se priorização da execução direta pelo governo federal e dos repasses para os municípios nos últimos anos. Como o montante executado dessas despesas aumentou 19% entre 2010 e 2019 e as aplicações nas modalidades mencionadas cresceram 28% e 33%, respectivamente, constata-se deslocamento da alocação de recursos em prejuízo das transferências aos estados, que tiveram queda de 21%. Também se observam perdas da vigilância em saúde em favor da atenção básica e da assistência farmacêutica.

Iniciativas como o SUS Legal, proposta pactuada na Comissão Intergestores Tripartite para que os repasses do MS fossem totalmente desvinculados de aplicações específicas 2020. Jaccoud L, Vieira FS. Federalismo, integralidade e autonomia no SUS: desvinculação da aplicação de recursos federais e os desafios da coordenação. Rio de Janeiro: Ipea; 2018. (Texto para Discussão, 2399). [cited 2020 Feb 24]. Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8523/1/TD_2399.pdf
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, e decisões como as de aumentar a participação das emendas parlamentares na alocação dos recursos federais e de centralizar algumas ações no governo federal ajudam a explicar esse deslocamento. Quanto ao SUS Legal, sob forte influência da agenda municipalista, aprovou-se maior flexibilidade financeira para a execução dos repasses do MS, mas não a desvinculação total pretendida 2020. Jaccoud L, Vieira FS. Federalismo, integralidade e autonomia no SUS: desvinculação da aplicação de recursos federais e os desafios da coordenação. Rio de Janeiro: Ipea; 2018. (Texto para Discussão, 2399). [cited 2020 Feb 24]. Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8523/1/TD_2399.pdf
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. Em relação às emendas parlamentares, houve aumento de sua participação no custeio do SUS, com ampliação das transferências para o incremento do Piso da Atenção Básica (PAB) e do Teto MAC 2121. Piola SF, Vieira FS. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Ipea; 2019 [cited 2020 Feb 24]. (Texto para Discussão, 2497). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9354
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. Essas e outras iniciativas do governo federal em resposta à crise econômica são apontadas como causas da fragilização da governança regional no SUS, que tem os estados como um ator importante 2222. Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cienc Saude Coletiva. 2019;24(12):4509-18. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25392019
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, podendo ser prejudiciais à integralidade do cuidado da saúde.

Analisando-se a execução das despesas do MS por área de atuação ( Figuras 3 e 4 ) em paralelo às metas do ODS 3 da Agenda 2030, questões importantes emergem. No tocante à atenção básica, observa-se ampliação dos recursos executados diretamente pelo MS ou por transferência ao exterior, particularmente para a Organização Pan-Americana da Saúde – com redução do montante nos últimos dois anos –, e ampliação dos repasses para os municípios. Na aplicação direta, o aumento inicial se deu, especialmente a partir de 2013, com a participação federal na provisão dos profissionais no âmbito do Programa Mais Médicos, e sua queda provavelmente tem relação com a saída dos médicos cubanos em 2018 e com a substituição daquele programa pelo Médicos pelo Brasil, em 2019. Nas transferências aos municípios, houve aumento dos recursos repassados para incremento do PAB e do Teto MAC nos últimos anos por meio de emendas parlamentares 2121. Piola SF, Vieira FS. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Ipea; 2019 [cited 2020 Feb 24]. (Texto para Discussão, 2497). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9354
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.

Em princípio, o foco na atenção básica é considerado medida crucial para a efetividade dos sistemas universais de saúde. Mas é preciso destacar que os estudos que demonstram a sua efetividade no Brasil avaliaram o modelo da Estratégia Saúde da Família (ESF) 2323. Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de Atenção Primária à Saúde que traz resultados. Saude Debate. 2018;42 (Nº Epec 1):18-37. https://doi.org/10.1590/0103-11042018S102
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. Não se identificaram estudos robustos sobre os efeitos do modelo “tradicional” para a saúde da população, em que o atendimento é feito estritamente na unidade básica de saúde pelos profissionais ali disponíveis. Com as medidas recentes de flexibilização dos modelos de equipes financiadas por recursos federais, a ESF passou a concorrer por recursos com o modelo tradicional 2424. Martins H. Política Nacional de Atenção Básica expressará realidades locais. Rev Conasems. 2017 [cited 2020 Mar 27];70:13-32. Available from: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2017/12/revista_conasems_edicao70_Tela.pdfcontent/uploads/2017/12/revista_conasems_edicao70_Tela.pdf
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,2525. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio da alteração da Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. Diario Oficial da União. 13 nov 2019 [cited 2020 Mar 27]; Seção 1:97. Available from: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.979-de-12-de-novembro-de-2019-227652180
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
. Tal situação pode resultar em consequências indesejadas para a efetividade da atenção primária no país. Estimou-se que uma eventual redução da cobertura da ESF poderia elevar a taxa de mortalidade por condições sensíveis à atenção básica em 5,8% até 2030, e em 8,6% em caso de encerramento do Mais Médicos 2626. Rasella D, Hone T, Souza LE, Tasca R, Basu S, Millet C. Mortality associated with alternative primary healthcare policies: a nationwide microsimulation modelling study in Brazil. BMC Med. 2019:17:82. https://doi.org/10.1186/s12916-019-1316-7
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.

Em relação aos repasses para a MAC, embora tenham aumentado na série analisada, tiveram incremento menor do que o observado para a atenção básica. Além disso, esses repasses foram mais afetados pela crise econômica e pelos contingenciamentos de pagamento de despesas do MS entre 2014 e 2016. Na aplicação direta do MS, a queda da execução a partir de 2014 pode ser explicada em parte pela diminuição dos recursos repassados aos hospitais universitários no âmbito do Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais, que foi da ordem de R$ 630,3 milhões, em 2014, em valores constantes, e sem nenhum repasse em 2019 para o pagamento de despesas correntes. As ações e os serviços de MAC são fundamentais para assegurar a integralidade do cuidado no SUS, e estes dois níveis de complexidade são frequentemente apontados como gargalos do sistema. Assim, preocupa a baixa prioridade que tiveram nos últimos anos.

No tocante à assistência farmacêutica, a redução dos repasses está associada à decisão de centralizar a compra de medicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica no MS, antes sob a responsabilidade dos estados. Essa decisão, em conjunto com a incorporação de novos medicamentos sob financiamento federal, incluindo vacinas, e a ampliação dos gastos com hemoderivados e judicialização explicam o crescimento expressivo da aplicação direta do MS 2727. Vieira FS. Evolução do gasto com medicamentos do Sistema Único de Saúde no período de 2010 a 2016. Rio de Janeiro: Ipea; 2018 [cited 2020 Feb 25]. (Texto para Discussão, 2356). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8250/1/TD_2356.pdf
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. Ademais, nos últimos três anos, os medicamentos do Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica (imunobiológicos, antirretrovirais e hemoderivados) vêm ganhando espaço no gasto federal com produtos farmacêuticos, em detrimento dos itens oferecidos na atenção básica.

Quanto às despesas com vigilância em saúde, a aplicação direta do MS mais elevada em 2010 que em 2011 decorreu da implementação de ações e de serviços necessários ao enfretamento da pandemia pelo vírus influenza . Em 2011, o patamar de execução já era baixo e teve redução de 59% em relação a 2019. Também houve redução das despesas com gestão por aplicação direta do MS e dos repasses para projetos relacionados a essa área. No caso do MS, a queda se deu por diminuição dos gastos com pessoal ativo, que deve estar associada à redução do número de profissionais, podendo gerar maior precarização da força de trabalho no órgão.

A situação do financiamento do SUS nos últimos anos e mudanças em políticas estruturantes geram incertezas quanto ao futuro da saúde no país. Políticas de austeridade fiscal implantadas em resposta a crises econômicas têm sido apontadas como fator determinante da piora da situação de saúde da população em todo o mundo, especialmente entre os grupos socioeconomicamente mais vulneráveis 2828. Vieira, FS. Crise econômica, austeridade fiscal e saúde: que lições podem ser aprendidas? Brasília, DF: Ipea; 2016 [cited 2020 Feb 25]. (Nota Técnica, 26). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7266/1/NT_n26_Disoc.pdf
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,2929. Schramm JMA, Paes-Sousa R, Mendes LVP. Políticas de austeridade e seus impactos na saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz; 2018 [cited 2020 Feb 25]. (Textos para Debate, 1) Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/28240/2/Joyce_Mendes_et_al_politicas_de_austeridade.pdf
https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/ic...
. No Brasil, o impacto dessas políticas sobre o SUS tem gerado preocupação quanto à possiblidade de retrocessos na oferta de bens e serviços de saúde 3030. Massuda A, Hone T, Leles FAG, Castro MC, Atun R. The Brazilian health system at crossroads: progress, crisis and resilience. BMJ Glob Health. 2018;3(4):e000829. https://doi.org/10.1136%2Fbmjgh-2018-000829
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e no alcance: das metas relativas ao controle de doenças crônicas não transmissíveis 3131. Malta DC, Duncan BB, Barros MBA, Katikireddi SV, Souza FM, Silva AG, et al. Medidas de austeridade fiscal comprometem metas de controle de doenças não transmissíveis no Brasil. Cienc Saude Coletiva. 2018;23(10):3115-22. https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.25222018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231...
; dos ODS, de forma geral 3232. Souza LEPF, Barros RD, Barreto ML, Katikireddi SV, Hone TV, Sousa RP, et al. The potential impact of austerity on attainment of the Sustainable Development Goals in Brazil. BMJ Glob Health. 2019;4(5):e0011661. https://doi.org/10.1136/bmjgh-2019-001661
https://doi.org/10.1136/bmjgh-2019-00166...
; e da meta do ODS 3 relacionada à tuberculose 3333. Trajman A, Saraceni V, Durovni B. Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e a tuberculose no Brasil: desafios e potencialidades. Cad Saude Publica. 2018;34(6):e00030318. https://doi.org/10.1590/0102-311X00030318
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. O fato de a União ser o ente federativo com maior capacidade fiscal faz com que se espere maior esforço do governo federal no financiamento do SUS, posto que estados e municípios já se encontram no limite de suas possibilidades financeiras 44. Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Brasília, DF: Ipea; 2019 [cited 2020 Feb 24]. (Texto para Discussão, 2516). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9428/1/td_2516.pdf
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. Assim, para que o Brasil alcance as metas do ODS 3, maior alocação de recursos federais se faz necessária.

Embora o cumprimento dessas metas dependa de um conjunto de ações e serviços oferecidos no âmbito de todo o sistema de saúde, e também de outras políticas públicas que atuam sobre determinantes sociais da saúde, pode-se dizer que, no que depende do SUS, esses propósitos estão mais associados a uma ou outra área finalística do sistema. As seguintes metas do ODS 3 estão bastante relacionadas à atenção básica, MAC e vigilância em saúde: 3.1 – redução da mortalidade materna; 3.2 – redução da mortalidade neonatal; 3.3 – fim das epidemias de aids, tuberculose, malária e doenças tropicais; 3.4 – redução da mortalidade prematura por doenças não transmissíveis, com promoção da saúde mental, do trabalhador e prevenção do suicídio; 3.5 – reforço à prevenção e ao tratamento decorrentes do uso de substâncias (drogas entorpecentes e uso nocivo de álcool); 3.6 – redução das mortes e lesões por acidentes no trânsito; e 3.9 – redução substancial das mortes e doenças por produtos químicos perigosos.

As seguintes metas envolvem fortemente as áreas de atenção básica, MAC e assistência farmacêutica: 3.7 – garantia de acesso universal aos serviços e insumos de saúde sexual e reprodutiva; e 3.8 – garantia de acesso a serviços essenciais de saúde de qualidade em todos os níveis de atenção e a medicamentos e vacinas incorporados ao SUS. Já estas metas se associam à vigilância em saúde e à gestão do sistema: 3a – fortalecimento da implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco no Brasil; e 3d – reforço às capacidades locais para alerta precoce, redução e gerenciamento de emergências e riscos nacionais e globais de saúde. Por sua vez, a meta 3b – apoio à pesquisa e ao desenvolvimento de tecnologias e inovações em saúde – se associa à gestão e aos investimentos no SUS, enquanto a meta 3c – aumento substancial do financiamento da saúde e desenvolvimento de recursos humanos – envolve decisão de política fiscal que depende muito dos chefes do Poder Executivo nas três esferas de governo, no primeiro caso, e de ações no âmbito da gestão do SUS, no segundo.

Em conclusão, no caso do financiamento, houve queda no gasto per capita nos últimos anos, e as perspectivas são de redução desse indicador sob a vigência da EC 95, pelo congelamento da aplicação mínima federal no SUS e pelo atraso que causa na retomada da economia, com consequências para a arrecadação dos estados e municípios e, logo, para a destinação de recursos por esses entes à saúde 55. Vieira FS, Benevides RPS. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Brasília, DF: Ipea; 2016 [cited 2020 Feb 21]. (Nota Técnica, 28). Available from: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7270/1/NT_n28_Disoc.pdf
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,66. Funcia FR, Ocke-Reis CO. Efeitos da política de austeridade fiscal sobre o gasto público federal em saúde. In: Rossi P, Dweck E, Oliveira ALM, organizadores. Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. São Paulo: Autonomia Literária; 2018. p.83-97. . Sem o aporte suficiente de recursos para o financiamento do SUS e para outras políticas que atuam sobre determinantes sociais da saúde, associado à redefinição das prioridades das políticas de saúde, o alcance das metas do ODS 3 fica comprometido, pois depende da ampliação do acesso a bens e a serviços de saúde e da melhoria da qualidade na prestação desses serviços. Caso não haja mudança no quadro atual, o risco de não cumprimento dessas metas é muito alto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2020
  • Aceito
    30 Mar 2020
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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