Para onde seguir com a pesquisa em determinantes sociais da saúde?

Fúlvio Borges Nedel João Luiz Bastos Sobre os autores

RESUMO

Este comentário crítico retoma o debate sobre a determinação social da saúde e da doença. Seu principal argumento é o de que, se por um lado, são desnecessárias novas pesquisas que procurem conferir maior consistência aos resultados que fundamentam essa interpretação, por outro, é escassa, nesses estudos, uma análise pautada pela noção de que a pobreza e outras formas de opressão são escolhas políticas da sociedade, que devem ser situadas historicamente. Essa noção deve orientar a pesquisa e o debate na área, sob pena de que as associações encontradas supostamente para denunciar a injustiça terminem por naturalizá-la. A pesquisa pautada por esses princípios pode superar o alcance limitado de abordagens multicausais do tipo caixa-preta, que não analisam as inter-relações entre os determinantes e pouco contribuem para a construção de sociedades saudáveis.

Determinantes Sociais da Saúde; Saúde Pública; Disparidades nos Níveis de Saúde; Iniquidade Social; Pesquisa

Para onde seguir com a pesquisa em determinantes sociais da saúde?

A noção de que a saúde é determinada socialmente, isto é, que a saúde do indivíduo depende da sociedade em que ele vive, não é nova e já se pode perceber em textos hipocráticos, como Ares, águas e lugares. Tal ideia volta a operar no mundo ocidental a partir do trabalho de Ramazzini sobre As doenças dos trabalhadores, ao final do século XVII. Na primeira metade do século XIX, com os trabalhos de Alexandre-Louis, Villermé, Engels e sobretudo com o movimento da medicina social de Virchow e outros, vai-se estruturando o conhecimento em torno da ideia de que as condições de saúde, adoecimento e morte das pessoas (e consequentemente das populações) dependem das condições de vida, que dependem, por sua vez, das condições sociais de reprodução da vida11. Rosen G. Da polícia médica à medicina social: ensaios sobre a história da assistência médica. Rio de Janeiro: Graal; 1980..

Deve-se notar que tal conhecimento (e poucas associações serão tão evidentes quanto as relatadas por Villermé de que metade dos filhos dos patrões chegavam aos 21 anos, enquanto metade dos filhos dos operários não alcançavam os dois anos de idade) não pressupõe o estabelecimento de um agente etiológico da doença. Entretanto, convive com dois problemas intimamente relacionados: (1) o desejo de encontrar explicações simples para algumas questões, como que cada doença tenha uma única causa, mais ou menos específica – explicação que ainda se busca, agora trasladada à epidemiologia molecular e genética22. Kaufman JS, Dolman L, Rushani D, Cooper RS. The contribution of genomic research to explaining racial disparities in cardiovascular disease: a systematic review. Am J Epidemiol. 2015;181(7):464-72. https://doi.org/10.1093/aje/kwu319
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; e (2) está no cerne de uma disputa ideológica fundamental que nos remonta, pelo menos, a Chadwick33. Rosen G. A history of public health. New York: MD Publications; 1958. e se traduz pela indagação “deve-se mudar a organização social para promover saúde?”

Assim, em meio ao capitalismo crescente, o advento da bacteriologia ao final do século XIX serviu para eludir as propostas de mudanças nas cidades e na sociedade apresentadas pelos então defensores das teorias miasmáticas de etiologia das doenças33. Rosen G. A history of public health. New York: MD Publications; 1958.. Pode-se dizer que, quando nos limpamos das teorias miasmáticas, junto à água desse banho o capitalismo daquele momento aproveitou para jogar fora a criança da determinação social da saúde. Porque o entendimento de que a saúde é socialmente determinada traz o imperativo da mudança social para a melhoria das condições de saúde da população. Se desejamos uma sociedade com menos desigualdades injustificáveis, precisamos construir uma sociedade mais justa, com menos injustiças sociais. Para isso, o avanço no conhecimento biomédico é necessário, mas insuficiente44. Contandriopoulos AP. Pode-se construir modelos baseados na relação entre contextos sociais e saúde? Cad Saude Publica. 1998;14(1):199-204. https://doi.org/10.1590/S0102-311X1998000100029
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. Temos então, além do mais, uma questão ética que é igualmente central. O problema não é simplesmente que haja diferenças em saúde. Elas existirão, posto que as pessoas e as sociedades são diferentes, e não devem ser a epidemiologia ou a saúde pública instrumentos de homogeneização cultural; o nosso foco é nas diferenças de saúde injustas55. Dahlgren G, Whitehead M. Policies and strategies to promote social equity in health: background document to WHO - Strategy paper for Europe. Copenhagen (DNK): Institute for Future Studies; 1991..

Nesse sentido, é notável a definição de saúde pública de Winslow, no início do século XX66. Winslow CEA. The untilled fields of public health. Science. 1920;51(1306):23-33. https://doi.org/10.1126/science.51.1306.23
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, em plena vigência da explicação unicausal da doença, ainda que mais ou menos suavizada na concepção de “tríade ecológica”77. Barata RCB. A historicidade do conceito de causa. Rio de Janeiro: ABRASCO; 1990.. Bacteriologista de formação e fundador do Departamento de Saúde Pública da Escola de Medicina da Universidade de Yale, nos Estados Unidos da América, Winslow foi o propositor de uma das definições de saúde pública mais citadas até hoje. Numa publicação em que o autor discute o caráter multidisciplinar da saúde pública, além das amplas atribuições dos seus profissionais, Winslow arrisca a seguinte definição para a área: “A saúde pública é a ciência e a arte de prevenir doenças, prolongar a vida e promover saúde física e eficiência, através de esforços comunitários organizados para o saneamento do meio ambiente, controle de infecções comunitárias, educação do indivíduo em princípios de higiene pessoal, organização do serviço médico e de enfermagem para o diagnóstico precoce e tratamento preventivo da doença e desenvolvimento da maquinaria social que garantirá a todos os indivíduos da comunidade um padrão de vida adequado para a manutenção da saúde” 66. Winslow CEA. The untilled fields of public health. Science. 1920;51(1306):23-33. https://doi.org/10.1126/science.51.1306.23
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.

Essa definição não só delimita a saúde pública a partir da saúde – e não da doença –, como recupera a noção e inclusive a retórica presente no Manifesto da Medicina Social de Virchow de que a sociedade pode se organizar de modo a garantir um padrão de vida adequado à manutenção da saúde de seus indivíduos88. Mackenbach JP. Politics is nothing but medicine at a larger scale: reflections on public health’s biggest idea. J Epidemiol Community Health. 2009;63(3):181-4. https://doi.org/10.1136/jech.2008.077032
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. Apresenta, além disso, uma aguda distinção entre conceitos que foram, somente em décadas subsequentes, amplamente debatidos e refinados na área, tais como os de prevenção de doenças e de promoção da saúde99. Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. Winslow estabelece estreita vinculação das condições populacionais de saúde, doença e bem-estar com aspectos de ordem social, econômica e política: os serviços e a maquinaria social a que o autor se refere. Arriscamos argumentar, entretanto, que essa definição ganhou popularidade mais em função de sua dimensão bacteriológica – que permitiu ao establishment a ênfase no ataque à doença dos indivíduos e o entendimento de que a promoção da saúde é apenas parte da prevenção de doenças – do que por sua tentativa de retomar a noção de determinação social da saúde.

Assim, apesar de definições como a de Winslow, a retomada de perspectivas que privilegiam uma relação de dependência entre as formas de organização social e a saúde dos indivíduos (em seu conjunto) coexistiu com uma reafirmação do pensamento biomédico sobre os problemas de saúde. A partir da segunda metade do século XX, em meio à transição epidemiológica e após a experiência de duas guerras mundiais, do nazismo e do fascismo, do Plano Marshall e do macarthismo1010. Hobsbawm EJ. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras; 1995., torna-se hegemônica a concepção causal da caixa-preta1111. Susser M, Susser E. Choosing a future for epidemiology: II. From black box to Chinese boxes and eco-epidemiology. Am J Public Health. 1996;86(5):674-7. https://doi.org/10.2105/AJPH.86.5.674
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. Essa proposta pretende-se multicausal, mas logo se revela unicausal ao explicar a função de cada fator como se atuasse isoladamente, numa análise simplista que não se preocupa com as relações entre os fatores e, menos ainda, com suas causas (as “causas das causas”1212. Rose G. Sick individuals and sick populations. Int J Epidemiol. 2001;30(3):427-32. https://doi.org/10.1093/ije/30.3.427
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)1313. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: has anyone seen the spider? Soc Sci Med. 1994;39(7):887-903. https://doi.org;10.1016/0277-9536(94)90202-X
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. Com efeito, multicausalidades descontextualizadas (ou “teias sem aranha” – isto é, redes causais sem causadores, nas palavras de Nancy Krieger1313. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: has anyone seen the spider? Soc Sci Med. 1994;39(7):887-903. https://doi.org;10.1016/0277-9536(94)90202-X
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) que haviam sido desenvolvidas décadas antes ganharam forma e inúmeros adeptos, sendo por vezes as abordagens hegemônicas para a explicação da origem de doenças e a proposição de estratégias para seu enfrentamento. Nessas vertentes biomédicas, predominou a ênfase em características clínicas (colesterol elevado, hipertensão arterial, sedentarismo etc.) como elementos produtores de morbimortalidade, todos flutuando num verdadeiro vácuo social e pouco situados de um ponto de vista histórico. Em análises com tal base teórica, os determinantes sociais da saúde, mesmo quando incluídos, têm pouco papel a cumprir, por maior que seja a significância estatística que alcancem em modelos multinível ou de equações estruturais.

São dignas de nota as contribuições teóricas e empíricas que demonstraram a insuficiência da caixa-preta1414. Almeida Filho N, Barreto ML, Veras RP, Barata RB. Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces e tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1998. (Epidemiologia Lógica; 2).

15. Barata RB. Epidemiologia social. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(1):7-17. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2005000100002
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-1616. Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55(10):693-700. https://doi.org/10.1136/jech.55.10.693
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. Insuficiência dada, não é demais ressaltar, não apenas por uma abordagem biomédica estrita, mas pela indisposição a uma análise mais complexa, que inclua a relação entre os fatores analisados e suas determinações, pelo menos, no modelo teórico do estudo. Isso significa que a abordagem comportamentalista e outras que eventualmente incluam variáveis indicadoras da condição social ou “de contexto” tampouco resolvem o problema, se não derem conta dessa limitação de base.

As crises associadas aos embates entre esses distintos estilos de pensamento em saúde pública1717. Löwy I. Fleck the public health expert: medical facts, thought collectives, and the scientist’s responsibility. Sci Technol Hum Values. 2016;41(3):509-33. https://doi.org/10.1177/0162243915610003
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, mas especialmente às contradições reveladas pela distância entre as abordagens ainda mais positivistas e a definição da saúde pública de Winslow66. Winslow CEA. The untilled fields of public health. Science. 1920;51(1306):23-33. https://doi.org/10.1126/science.51.1306.23
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, geraram consternação em alguns profissionais da área. Fazendo recurso a um tribunal de justiça imaginário em um artigo de 1997, Shy1818. Shy CM. The failure of academic epidemiology: witness for the prosecution. Am J Epidemiol. 1997;145(6):479-84. https://doi.org/10.1093/oxfordjournals.aje.a009133
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serve de “testemunha de acusação” de que a epidemiologia não atende aos interesses últimos da saúde pública. Em meio a esse cenário, criticou a epidemiologia biomédica e hegemônica, argumentando contrariamente à insistência em fatores de ordem “micro” e majoritariamente clínicos, que pouco contribuem para o desenho de intervenções efetivas para a melhora da saúde das populações. Tal insistência, aliada a uma descontextualização social e histórica, teria limitado o estudo das forças políticas, econômicas e culturais enquanto determinantes de padrões populacionais de saúde e doença44. Contandriopoulos AP. Pode-se construir modelos baseados na relação entre contextos sociais e saúde? Cad Saude Publica. 1998;14(1):199-204. https://doi.org/10.1590/S0102-311X1998000100029
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,1818. Shy CM. The failure of academic epidemiology: witness for the prosecution. Am J Epidemiol. 1997;145(6):479-84. https://doi.org/10.1093/oxfordjournals.aje.a009133
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.

Há que se observar, entretanto, que isso acontece pari passu ao aumento de publicações1919. Celeste RK, Bastos JL, Faerstein E. Trends in the investigation of social determinants of health: selected themes and methods. Cad Saude Publica. 2011;27(1):183-9. https:/.doi.org/10.1590/S0102-311X2011000100019
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e grupos de pesquisa sobre desigualdades e determinantes sociais em saúde, especialmente nas duas últimas décadas. Foi nesse período que se observou um aumento expressivo na quantidade de publicações1919. Celeste RK, Bastos JL, Faerstein E. Trends in the investigation of social determinants of health: selected themes and methods. Cad Saude Publica. 2011;27(1):183-9. https:/.doi.org/10.1590/S0102-311X2011000100019
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que se preocupam em dar maior consistência a um conhecimento que, conforme apontamos acima, já está bem estabelecido. É também nesse período que se construiu o que agora tem sido denominado “imperativo da saúde”2020. Nunes JA. Saúde, direito à saúde e justiça sanitária. Rev Crit Cienc Soc. 2009;87:143-69., que, sob o pretexto de melhorar a saúde dos indivíduos, a coloca como o objetivo último a ser atingido, a reduz novamente à ausência de doenças e aprofunda a culpabilização do indivíduo e sua responsabilidade na gestão de seus problemas de saúde.

No entanto, o maior reconhecimento dos determinantes sociais da saúde vai além do aumento dessas publicações científicas e dos grupos de pesquisa. Os observatórios em saúde e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em que os Estados de diferentes países se comprometem a alcançar metas indicadoras de melhoras na situação de vida e saúde de suas populações, são de grande relevância prática para o desenvolvimento de políticas para um mundo mais justo.

Assim, em tal situação em que não há mais dúvida de que a saúde é determinada histórica e socialmente, mas, ao mesmo tempo, de que isso não é suficiente para que essa relação se estabeleça como base teórica dos estudos e orientadora das políticas, gestão ou assistência em saúde, qual o papel dos estudos sobre determinantes sociais em saúde? Contribuem para o conhecimento os que replicam essas associações sem propor ações ou políticas para a redução da injustiça? Particularmente no caso do Brasil – que desde a eleição presidencial de 2014 vive uma crise que só se aprofundou com o golpe institucional de 2016 e cujas graves consequências se expressam na saúde com a piora de vários indicadores em curto, médio e longo prazo2121. Boletim Informativo do PROADESS. Indicadores para o monitoramento do setor saúde na agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2018(3).,2222. Rasella D, Basu S, Hone T, Paes-Sousa R, Ocké-Reis CO, Millett C. Child morbidity and mortality associated with alternative policy responses to the economic crisis in Brazil: a nationwide microsimulation study. PLoS Med. 2018;15(5):e1002570. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1002570
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–, como esses estudos poderiam contribuir para o enfrentamento e a reversão desse quadro?

A resposta a essa indagação passa por aplicar, em cada estudo, o conhecimento acumulado (i.e., de que a saúde é a capacidade de viver uma vida significativa, apesar de suas limitações44. Contandriopoulos AP. Pode-se construir modelos baseados na relação entre contextos sociais e saúde? Cad Saude Publica. 1998;14(1):199-204. https://doi.org/10.1590/S0102-311X1998000100029
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, não a ausência de doença, e de que sua produção é coletiva) para a proposição de políticas públicas concretas de melhoria da saúde da população analisada2222. Rasella D, Basu S, Hone T, Paes-Sousa R, Ocké-Reis CO, Millett C. Child morbidity and mortality associated with alternative policy responses to the economic crisis in Brazil: a nationwide microsimulation study. PLoS Med. 2018;15(5):e1002570. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1002570
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. De nossa parte, entendemos que a reiterada denúncia das desigualdades sociais em saúde desacompanhada de proposições para seu enfrentamento exerce uma função de tampão social e naturalização da injustiça2323. Borde E, Hernández M. Revisiting the social determinants of health agenda from the global South. Global Public Health. 2019;14(6-7):847-62. https://doi.org/10.1080/17441692.2018.1551913
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, pois a repetição acrítica de um fato social leva à sua naturalização, ou seja, ao entendimento de que aquele fato é inerente às sociedades.

Em outras palavras, o referencial teórico dos estudos na área deve necessariamente reconhecer que os determinantes sociais da saúde operam em processos históricos de distintas durações e, consequentemente, fazer recomendações concretas para a redução das desigualdades. Tal proposição não é recente, entretanto, e pode ser identificada nos embates entre a abordagem sobre determinantes sociais da saúde e determinação social do processo saúde-doença-atenção. Enquanto a primeira permite a investigação de variáveis sem que processos sociais e históricos sejam com elas articulados, a segunda entende o problema como um processo histórico e coloca em questão as causas das “causas das causas” – os modos de organização social e suas consequências sobre a saúde das pessoas2323. Borde E, Hernández M. Revisiting the social determinants of health agenda from the global South. Global Public Health. 2019;14(6-7):847-62. https://doi.org/10.1080/17441692.2018.1551913
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. Os estudos devem responder a perguntas de pesquisa que se ancorem na realidade em que vive a população estudada e percebam o processo histórico que o constrói.

Não perceber o processo histórico é uma falha teórica que desemboca numa falha metodológica: a falta de retorno à categoria de análise ao interpretar o resultado das associações e modelos com variáveis descritoras dos determinantes sociais. Num estudo epidemiológico, uma variável é apenas um descritor de uma situação. Não retomar a referida situação implica interpretar os resultados do estudo pelo seu valor de face. O fato de as variáveis serem medidas objetivas (positivas, positivistas) não é mais que um artifício metodológico, que não justifica nem deve conduzir à reificação da situação estudada2424. Almeida Filho N. Epidemiologia sem números: uma introdução crítica à ciência epidemiológica. Rio de Janeiro: Campus; 1989..

Um editorial recentemente veiculado no periódico The Lancet Public Health lembra que a pobreza e outras formas de opressão, bem como suas consequências para o processo saúde-doença-atenção, nada mais são do que escolhas políticas2525. The Lancet Public Health. Poverty is a political choice. Lancet Public Health. 2018;3(12):e555. https://doi.org/10.1016/S2468-2667(18)30243-3
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. A pesquisa que se paute por esses princípios – o estudo da determinação e não dos determinantes – terá um maior potencial de influenciar ações com impacto positivo sobre a democracia e a justiça social e, consequentemente, produzir repercussões positivas para a saúde das populações.

Agradecimentos

Mauro Serapioni (Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra; Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal de Santa Catarina), pela leitura crítica e indicação de literatura a ser consultada para o aprofundamento de passagens específicas do texto. Yin Carl Paradies (Faculdade de Artes e Educação, Deakin University), pelos comentários críticos e leitura cuidadosa da versão em inglês do manuscrito.

Referências bibliográficas

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  • Financiamento: João L Bastos foi parcialmente apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, através de Bolsa de Produtividade em Pesquisa, registrada sob o número 304503/2018-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2019
  • Aceito
    04 Jun 2019
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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