Política pública brasileira na prevenção da doença renal crônica: desafios e perspectivas

Patrícia Aparecida Barbosa Silva Líliam Barbosa Silva Joseph Fabiano Guimarães Santos Sônia Maria Soares Sobre os autores

RESUMO

A doença renal crônica é uma patologia com aumento exponencial em suas prevalências no mundo. Essa tendência tem ocorrido principalmente pelo envelhecimento populacional e crescimento das condições crônicas, o que faz da prevenção um tópico prioritário em saúde pública. Destarte este comentário vem instigar o debate sobre os avanços e desafios nas políticas públicas direcionadas ao enfrentamento da progressão dessa doença e seus fatores de risco em uma realidade contemporânea que requer mudanças nos modelos de gestão das condições crônicas. As experiências brasileira e internacional evidenciam que ações de prevenção da doença renal crônica em grupos de risco ainda são incipientes, especialmente em países de baixa renda. Há necessidade de investimento nessa área, apoiando a planificação do cuidado individualizado, interdisciplinar e compartilhado com a atenção primária à saúde, assim como a responsabilização do usuário pelo seu cuidado, com proatividade e estabelecimento e monitoramento de metas para atingir resultados satisfatórios.

Insuficiência Renal Crônica, prevenção & controle; Grupos de Risco; Envelhecimento; Planos e Programas de Saúde; Atenção Primária à Saúde

INTRODUÇÃO

O crescente envelhecimento populacional e o aumento dos fatores de risco tradicionais, tais como hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares, projetam a doença renal crônica (DRC) como um dos maiores desafios à saúde pública mundial deste século11. Luyckx VA, Tonelli M, Stanifer JW. The global burden of kidney disease and the sustainable development goals. Bull World Health Organ. 2018;96(6):414-22D. https://doi.org/10.2471/BLT.17.206441
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. Estimativas indicam prevalência global de DRC (estágios 1 a 5) em 14,3% na população geral e 36,1% em grupos de risco22. Ene-Iordache B, Perico N, Bikbov B, Carminati S, Remuzzi A, Perna A, et al. Chronic kidney disease and cardiovascular risk in six regions of the world (ISN-KDDC): a cross-sectional study. Lancet Glob Health. 2016;4(5):e307-19. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(16)00071-1
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. No Brasil, a prevalência estimada de DRC (estágios 3 a 5) em adultos é de 6,7%, triplicando em indivíduos com 60 anos ou mais de idade33. Malta DC, Machado IE, Pereira CA, Figueiredo AW, Aguiar LK, Almeida WS, et al. Avaliação da função renal na população adulta brasileira, segundo critérios laboratoriais da Pesquisa Nacional de Saúde. Rev Bras Epidemiol. 2019;22 Supl 2: E190010. https://doi.org/10.1590/1980-549720190010.supl.2
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Em 2017, DRC foi responsável por 1,2 milhões de óbitos, assumindo a 12ª posição em causas de morte no mundo. No contexto brasileiro, tal condição crônica foi responsável por 35 mil mortes, ocupando a 10ª posição44. Institute for Health Metrics and Evaluation. Global Burden of Disease (GBD) 2017. GBD compare: Viz Hub. Seattle, WA: IHME; 2019 [cited 2019 Apr 15]. Available from: http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare
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. Estima-se ainda que 2,3 milhões a 7,1 milhões de indivíduos evoluíram a óbito prematuro pela falta de acesso à terapia renal substitutiva (TRS), com maiores taxas de óbitos em países de baixa e média renda (na Ásia, África e América Latina)55. Liyanage T, Ninomiya T, Jha V, Neal B, Patrice HM, Okpechi I, et al. Worldwide access to treatment for end-stage kidney disease: a systematic review. Lancet. 2015;385(9981):1975-82. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(14)61601-9
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Mediante o exposto, esforços globais para aumentar a consciência da DRC e seus fatores de risco têm mobilizado vários países para o enfrentamento dessa condição crônica e suas complicações, demandando dos governantes o delineamento de políticas públicas que possam respaldar programas de identificação e tratamento precoce, com ênfase nas medidas preventivas que retardam a velocidade de progressão da perda da função renal66. Crews DC, Bello AK, Saadi G; World Kidney Day Steering Committee. Burden, access, and disparities in kidney disease. Braz J Med Biol Res. 2019;52(3):e8338. https://doi.org/10.1590/1414-431X20198338
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. É importante destacar que a implantação de uma política pública na prevenção das doenças renais no mundo é recente, datada de 2002, quando foi publicada a primeira diretriz para diagnóstico e tratamento da DRC pela National Kidney Foundation, em seu documento Kidney Disease Outcomes Quality Initiative (K/DOQI)77. National Kidney Foundation. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification, and stratification. Am J Kidney Dis. 2002;39(2 Suppl 1):S14-16. https://doi.org/10.1053/ajkd.2002.30939
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. Essa diretriz representou um importante avanço na área da nefrologia, pois padronizou o sistema de classificação da DRC em diferentes partes dos continentes. Também foi o primeiro passo para a promoção da consciência da DRC entre os provedores do cuidado e as agências de saúde, colocando-a como um problema de saúde pública mundial88. Vassalotti JA, Centor R, Turner BJ, Greer RC, Choi M, Sequist TD, et al. Practical approach to detection and management of chronic kidney disease for the primary care clinician. Am J Med. 2016;129(2):153-62.e7. https://doi.org/10.1016/j.amjmed.2015.08.025
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Entretanto, tais iniciativas se mostram incipientes em sua implementação de forma efetiva nos grupos de risco, conforme evidenciado pelo projeto multinacional Global Kidney Health Atlas, que envolveu 118 países agrupados entre os quatro grupos de renda do World Bank (17 de baixa renda, 33 de renda média-baixa, 30 de renda média-alta e 38 de alta renda). Esse estudo identificou falhas no cuidado renal, principalmente no nível da atenção primária. Em países de baixa renda, particularmente na região da África, apenas um terço tinha acesso à dosagem de creatinina sérica e nenhum era capaz de dosar albuminúria e emitir laudo da taxa de filtração glomerular estimada (TFGe), parâmetros clínicos essenciais para o diagnóstico e estadiamento da DRC. Essa realidade também foi mantida em países de renda elevada, com somente 58% e 68% disponibilizando albuminúria e TFGe na atenção primária, respectivamente99. Htay H, Alrukhaimi M, Ashuntantang GE, Bello AK, Bellorin-Font E, Benghanem-Gharbi M, et al. Global access of patients with kidney disease to health technologies and medications: findings from the Global Kidney Health Atlas Project. Kidney Int Suppl (2011). 2018;8(2):64-73. https://doi.org/10.1016/j.kisu.2017.10.010
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. Esses resultados evidenciam o grande desafio que se impõe atualmente na concretização das estratégias de controle e prevenção da DRC, a qual consiste sobretudo na qualidade e efetividade dos programas existentes na atenção primária, bem como no grau de motivação, de capacitação e de educação permanente dos profissionais de saúde, além do estado de conscientização pública1010. Abreu PF. Doença renal crônica e Saúde Pública. J Bras Nefrol. 2006;28(3 Supl 2):6-7. Available from: https://bjnephrology.org/wpcontent/uploads/2019/11/jbn_v28n3s2a03.pdf
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Particularmente no Brasil, superar a fragmentação e incompletude das práticas clínicas e de promoção da saúde é um dos mais urgentes desafios para melhorar a qualidade da atenção primária no país1111. Teixeira MB, Casanova A, Oliveira CCM, Ensgtrom EM, Bodstein RCA. Avaliação das práticas de promoção da saúde: um olhar das equipes participantes do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica. Saude Debate. 2014;38 Nº Espec:52-68. https://doi.org/10.5935/0103-1104.2014S005
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. Essas fragilidades concorrem para que o atendimento à pessoa com DRC esteja ainda voltado à alta complexidade, bem como aos critérios técnicos do funcionamento dos serviços de diálise, em detrimento da integralidade do atendimento e promoção da saúde, situação que poderá ser agravada com os recentes projetos de privatização e mercantilização da saúde em âmbito nacional1212. Perusso IAO. Política Nacional de Atenção ao Portador de Doença Renal: uma experiência no Hospital Universitário do Recife [dissertação]. Recife, PE: Universidade Federal de Pernambuco; 2013.. Nesse sentido, este comentário vem instigar o debate sobre os avanços e desafios nas políticas públicas brasileiras direcionadas ao enfrentamento da progressão da DRC e seus fatores de risco em um cenário contemporâneo que requer mudanças nos modelos de gestão das condições crônicas.

Breve Histórico e Avanços nas Políticas Públicas Brasileiras Direcionadas ao Enfrentamento da Progressão da DRC e Seus Fatores de Risco

No Brasil, a implantação de uma política pública na prevenção de doenças renais é recente, sendo instituída pela portaria GM/MS nº 1.168/20041313. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 1168/GM, de 15 de junho de 2004. Institui a Política Nacional de Atenção ao Portador de Doença Renal, a ser implantada em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. Brasília, DF; 2004 [cited 2018 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/portaria_1168_ac.htm
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, que tem como um de seus objetivos a organização de uma linha de cuidados integrais e integrados no manejo das principais causas para lesão renal no Sistema Único de Saúde (SUS). O reconhecimento das ações de promoção da saúde e prevenção da DRC em todos os níveis de atenção reflete a importância dessa regulamentação, bem diferente das políticas anteriores, que tratavam a problemática da DRC de forma fragmentada e pontual, priorizando a alta complexidade por meio da TRS, sobretudo na modalidade dialítica pela rede privada1212. Perusso IAO. Política Nacional de Atenção ao Portador de Doença Renal: uma experiência no Hospital Universitário do Recife [dissertação]. Recife, PE: Universidade Federal de Pernambuco; 2013..

Posteriormente, o Ministério da Saúde lançou em 2006 as diretrizes para Prevenção Clínica de Doença Cardiovascular, Cerebrovascular e Renal Crônica, que recomendaram a realização do rastreamento precoce na atenção primária em grupos de risco, quais sejam, diabetes mellitus, hipertensão arterial e história familiar de DRC1414. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Prevenção clínica de doença cardiovascular, cerebrovascular e renal crônica. Brasília, DF; 2006 [cited 2018 Dec 12]. (Cadernos de Atenção Básica; 14) (Série A. Normas e Manuais Técnicos). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/abcad14.pdf
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. Foi a primeira publicação dentro da agenda temática dos Cadernos de Atenção Básica do Ministério da Saúde a versar sobre a DRC, sintetizando de forma sistemática o conhecimento da época vigente sobre a prevenção das doenças renais (estadiamento da DRC pela equação Cockcroft-Gault). Antes, essas recomendações não eram uniformes, e se pulverizavam nos manuais e protocolos relacionados ao diabetes e à hipertensão. Nesse sentido, essas diretrizes avançaram em termos de políticas de saúde pública no Brasil, à medida que iniciaram uma estruturação da linha de cuidado do paciente renal crônico, pautada na integralidade do cuidado e maior destaque para o nível primário de atenção à saúde como porta de entrada do SUS. Elas inclusive trouxeram em seu escopo as atribuições e competências da equipe de saúde e os critérios de encaminhamentos para referência e contrarreferência.

Ademais, reforçando que a principal ação na prevenção dos casos de DRC é a redução e tratamento dos principais fatores de risco para desenvolvimento de lesão renal, em 2011 foi elaborado pelo governo federal o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011–2022. Entre as metas propostas, destacam-se aquelas que influenciam no desenvolvimento da lesão renal, como redução da taxa de mortalidade prematura em indivíduos com idade inferior a 70 anos por condição crônica (incluindo DRC) em 2% ao ano, redução da prevalência de obesidade na população geral, incentivo à prática de atividade física no lazer, aumento do consumo de frutas e hortaliças, redução do consumo médio de sal, redução da prevalência de tabagismo e consumo nocivo de álcool1515. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Análise de Situação de Saúde. Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022. Brasília, DF; 2011[cited 2018 Dec 12]. (Série B. Textos Básicos de Saúde). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_acoes_enfrent_dcnt_2011.pdf
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Outra normativa que merece destaque refere-se à portaria nº 389 do Ministério da Saúde, de 13 de março de 2014, que define com maior riqueza de detalhes os critérios para a organização da linha de cuidado da pessoa com DRC1616. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 389, de 13 de março de 2014. Define os critérios para a organização da linha de cuidado da Pessoa com Doença Renal Crônica (DRC) e institui incentivo financeiro de custeio destinado ao cuidado ambulatorial pré-dialítico. Brasília, DF; 2014 [cited 2018 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt0389_13_03_2014.html
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. Essa portaria reforça a importância da atenção primária na otimização da gestão desse agravo, delineando como uma das atribuições da equipe de saúde a realização de diagnóstico precoce e tratamento oportuno da DRC em conformidade com os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, bem como a atenção de acordo com as Diretrizes Clínicas para o Cuidado ao Paciente com Doença Renal Crônica no Sistema Único de Saúde.

Tal dispositivo legal1616. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 389, de 13 de março de 2014. Define os critérios para a organização da linha de cuidado da Pessoa com Doença Renal Crônica (DRC) e institui incentivo financeiro de custeio destinado ao cuidado ambulatorial pré-dialítico. Brasília, DF; 2014 [cited 2018 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt0389_13_03_2014.html
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avança nos critérios diagnósticos da DRC ao incluir no estadiamento a presença de microalbuminúria nos estágios iniciais da DRC, além da emissão da TFGe automatizada pelos laboratórios de análises clínicas. Também incentiva a promoção da educação permanente dos profissionais de saúde para a prevenção, diagnóstico e tratamento da DRC e dos fatores de risco, em consonância com as diretrizes da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Assim, observa-se a existência de subsídios legais que possibilitam mudanças no processo de trabalho das equipes de saúde na atenção primária no país, com ampliação da capacidade de diagnóstico de risco das populações. Outro importante avanço dessa portaria1616. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 389, de 13 de março de 2014. Define os critérios para a organização da linha de cuidado da Pessoa com Doença Renal Crônica (DRC) e institui incentivo financeiro de custeio destinado ao cuidado ambulatorial pré-dialítico. Brasília, DF; 2014 [cited 2018 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt0389_13_03_2014.html
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refere-se ao estabelecimento de indicadores de qualidade para o monitoramento e avaliação dos estabelecimentos de saúde autorizados a prestar a atenção à saúde às pessoas com DRC no âmbito do SUS.

Em 2014, baseando-se nas novas recomendações técnicas propostas pelo grupo Kidney Disease: Improving Global Outcomes1717. Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO); CKD Work Group. KDIGO 2012 clinical practice guideline for the evaluation and management of chronic kidney disease. Kidney Int. 2013[cited 2018 Dec 12];3(1 Suppl):1-150. Available from: https://www.kisupplements.org/issue/S2157-1716(13)X3100-4
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, o Ministério da Saúde lançou as Diretrizes Clínicas para o Cuidado ao Paciente com Doença Renal Crônica no Sistema Único de Saúde1818. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada e Temática. Diretrizes clínicas para o cuidado ao paciente com Doença Renal Crônica - DRC no Sistema Único de Saúde. Brasília, DF; 2014 [cited 2018 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_clinicas_cuidado_paciente_renal.pdf
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. Como principais mudanças em relação às diretrizes de 20061414. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Prevenção clínica de doença cardiovascular, cerebrovascular e renal crônica. Brasília, DF; 2006 [cited 2018 Dec 12]. (Cadernos de Atenção Básica; 14) (Série A. Normas e Manuais Técnicos). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/abcad14.pdf
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, destacam-se a substituição da fórmula Cockcroft-Gault pelas equações Modification of Diet in Renal Disease (MDRD) e Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration (CKD-EPI) na mensuração da TFGe, a descrição do manejo clínico segundo os estágios da DRC e a disponibilização de fluxograma para avaliação da DRC.

Por fim, não pretendendo aqui exaurir o tema, é apresentada no Quadro a sumarização dos marcos legais mencionados, os quais apontam tentativas de institucionalização de ações em prol de divulgar e conscientizar os tomadores de decisão, os profissionais de saúde e a população quanto às repercussões da DRC no quadro sanitário do país, hoje considerada a “epidemia negligenciada do século”1010. Abreu PF. Doença renal crônica e Saúde Pública. J Bras Nefrol. 2006;28(3 Supl 2):6-7. Available from: https://bjnephrology.org/wpcontent/uploads/2019/11/jbn_v28n3s2a03.pdf
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Quadro
Estratégias e marcos legais brasileiros para enfrentamento da doença renal crônica.

Desafios para a Prevenção e Controle da Doença Renal Crônica e Possíveis Propostas

Apesar de todos os esforços empreendidos em direção à redução das condições crônicas no Brasil, observa-se que desafios ainda precisam ser superados para garantir a melhoria do cuidado às pessoas com DRC. Lembra-se que, nas últimas décadas, predomina a lógica privatista da saúde, havendo uma intensificação nas propostas de mudanças de gestão, que defendem a ampliação do espaço privado nas políticas sociais, cabendo ao Estado coordenar e financiar políticas cuja execução competiria às instituições de natureza jurídica privada1212. Perusso IAO. Política Nacional de Atenção ao Portador de Doença Renal: uma experiência no Hospital Universitário do Recife [dissertação]. Recife, PE: Universidade Federal de Pernambuco; 2013..

Nesse sentido, a elaboração de políticas com base nos princípios do SUS não garante, por si só, sua implementação, autenticando o serviço e garantindo respaldo legal para as ações desempenhadas pelos profissionais de saúde, até mesmo porque é necessário prover as bases materiais para implementá-las. Nessa perspectiva, é importante estabelecer na miríade das políticas de saúde uma conexão entre o Estado, o setor privado e os usuários que una e reforce o bem maior de todos, quais sejam, a saúde e a vida com dignidade1919. Cohn A. O estudo das políticas de saúde: implicações e fatos. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. Cap. 8, p. 219-46., com o mínimo de doenças e complicações.

Diante das considerações feitas, tem-se como propostas: 1) implementação do gerenciamento das condições crônicas no nível primário, com foco na promoção da saúde e prevenção de agravos a partir da identificação precoce de grupos de risco para lesões renais, assim como o fortalecimento do autocuidado e autonomia dos usuários; 2) aperfeiçoamento das ações programáticas da linha-guia renocardiovascular, com a delimitação do diagnóstico situacional da área de abrangência e a avaliação sistemática do cuidado às pessoas em risco de lesão renal; 3) incentivo dos profissionais de saúde à incorporação na prática de aspectos não clínicos do cuidado crônico, enfatizando a abordagem de cuidados que reconheça o papel crucial dos usuários na gestão de sua própria condição de saúde; 4) realização de auditorias clínicas periódicas, assim como o feedback com os profissionais de saúde envolvidos no cuidado a partir da divulgação de informes com os dados e indicadores monitorados; 5) implantação da TFGe automatizada, estimada pela equação CKD-EPI, nos laboratórios distritais das prefeituras que ainda não o têm instituído na localidade – uma estratégia que não gera custo à gestão local e poderá reduzir os subdiagnósticos de DRC; 6) instituição da gestão clínica dos casos diagnosticados de DRC, com treinamento contínuo dos profissionais de saúde – o setor de educação permanente de cada secretaria municipal de saúde poderá ficar responsável pela prevenção das doenças renais e auditoria de gestão para identificação de possíveis preditores que influenciam nos casos de DRC subnotificada; 7) incentivo de programas de residência multiprofissional integrada em saúde na área de nefrologia.

Referências bibliográficas

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    Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Análise de Situação de Saúde. Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022. Brasília, DF; 2011[cited 2018 Dec 12]. (Série B. Textos Básicos de Saúde). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_acoes_enfrent_dcnt_2011.pdf
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  • Financiamento

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG APQ 00108-11; APQ 02212-14 e APQ 03556-13). Bolsa de auxílio financeiro concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    1 Maio 2019
  • Aceito
    20 Nov 2019
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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