Mortalidade atribuída à doença falciforme em crianças e adolescentes no Brasil, 2000–2019

Maria Isabel do Nascimento Ana Luísa Ferreira Przibilski Carolina Sampaio Gomes Coelho Katyslaine Frossard de Amorim Leite Mariana Makenze Stella Bayer de Jesus Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Estimar taxas e descrever tendências de mortalidade atribuídas à doença falciforme em crianças e adolescentes no Brasil, de 2000 a 2019.

MÉTODOS

Este é um estudo ecológico do tipo séries temporais de taxas de mortalidade que usou o método autorregressivo, proposto por Prais-Winsten, para avaliar tendências das taxas estimadas de mortes por doença falciforme em crianças e adolescentes no Brasil. Os óbitos com código D57 foram obtidos no Sistema de Informações sobre Mortalidade, considerando as faixas etárias (0–4, 5–9, 10–14, 15–19 anos) e usados para estimar taxas específicas por idade e taxas padronizadas por sexo e idade.

RESULTADOS

De 2000 a 2019, houve 2.422 óbitos por doença falciforme em menores de 20 anos no Brasil, com maior frequência na região Nordeste (40,46%), seguida de Sudeste (39,02%), Centro-Oeste (9,58%), Norte (7,84%) e Sul (3,10%). As principais vítimas foram pessoas de raça/cor da pele negra (78,73%). No Brasil, a taxa média padronizada global foi de 0,20/100 mil pessoa-ano, com tendência de elevação (mudança percentual anual – APC = 5,44%; intervalo de confiança – IC95% 2,57–8,39). O padrão se repetiu no sexo masculino (APC = 4,38%; IC95% 2,17–6,64) e no sexo feminino (APC = 6,96%; IC95% 3,05–11,01). A elaboração de taxas específicas por idade mostrou que a faixa até quatro anos experimentou as maiores taxas, sem distinção por região. A faixa etária de 15 e 19 anos foi a segunda mais afetada no Brasil e nas regiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste.

CONCLUSÃO

Houve tendência de aumento dos óbitos por transtornos falciformes em crianças e adolescentes. Considerando que a magnitude dos óbitos foi mais evidente nos primeiros anos (0–4) e no final da adolescência (15–19), o estudo sugere que abordagens específicas por faixa etária podem impactar no controle dos desfechos fatais causados pela doença falciforme no Brasil.

Criança; Adolescente; Anemia Falciforme, epidemiologia; Mortalidade, tendências; Estudos de Séries Temporais

INTRODUÇÃO

A doença falciforme (DF) engloba um grupo de β-hemoglobinopatias caracterizada pela predominância da hemoglobina falciforme (HbS) no interior dos eritrócitos. A mutação HbS torna a hemoglobina mais propensa a se polimerizar e danificar a membrana do eritrócito, o qual assume o aspecto de foice. A vida útil desses eritrócitos é reduzida, culminando em uma anemia hemolítica, com manifestações vaso-oclusivas dolorosas, disfunção endotelial isquêmica e resposta inflamatória crônica11. Quinn CT. Minireview: clinical severity in sickle cell disease: the challenges of definition and prognostication. Exp Biol Med (Maywood). 2016;241(7):679-88. https://doi.org/10.1177/1535370216640385
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.

As hemoglobinopatias são as doenças genéticas monogênicas mais frequentes no mundo, estando presente em aproximadamente 7% da população mundial22. Kohne E. Hemoglobinopathies: clinical manifestations, diagnosis, and treatment. Dtsch Ärztebl Int. 2011;108(31-32):532-40. https://doi.org/10.3238/arztebl.2011.0532
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. Estimativas globais mostraram que no ano 2010, 5.476.407 e 312.302 bebês recém-nascidos poderiam estar afetados por defeitos genéticos da hemoglobina do tipo heterozigóticos (AS) e homozigóticos (SS), respectivamente33. Piel FB, Patil AP, Howes RE, Nyangiri OA, Gething PW, Dewi M, et al. Global epidemiology of sickle haemoglobin in neonates: a contemporary geostatistical model-based map and population estimates. Lancet. 2013;381(9861):142-51. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(12)61229-X
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. No Brasil, a presença de hemoglobinopatias foi detectada em 3,7% da população adulta, sendo que o traço falciforme (2,49%) e a talassemia menor (0,8%) foram os tipos mais prevalentes44. Rosenfeld LG, Bacal NS, Cuder MAM, Silva AG, Machado IE, Pereira CA, et al. Prevalência de hemoglobinopatia na população brasileira: Pesquisa Nacional de Saúde 2014-2015. Rev Bras Epidemiol. 2019;22 Supl 2:E190007.supl.2. https://doi.org/10.1590/1980-549720190007.supl.2
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. O Ministério da Saúde reporta a incidência do traço falciforme em 1:35 nascidos vivos e estima que, anualmente, ocorra o nascimento de três mil crianças com DF e outras 200 mil apresentando traços da doença55. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Doença falciforme: condutas básicas para tratamento. Brasília, DF; 2012 [cited 2020 Sep 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doenca_falciforme_condutas_basicas.pdf
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.

O ano de 2001 marcou a inclusão do rastreamento da DF no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) no país e criou um cenário oportuno para a implementação precoce de abordagens clínicas visando à prevenção de complicações66. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 822, de 6 de junho de 2001. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Triagem Neonatal / PNTN. Diário Oficial da União. 15 out 2001 [cited 2020 Sep 10]; Seção 1: 64. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2001/prt0822_06_06_2001.html
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. Recentemente, uma revisão de estudos internacionais constatou a escassez de publicações abordando o monitoramento dessa anomalia genética via estudos de mortalidade77. Pompeo CM, Cardoso AIQ, Souza MC, Ferraz MB, Ferreira Júnior MA, Ivo ML. Fatores de risco para mortalidade em pacientes com doença falciforme: uma revisão integrativa. Esc Anna Nery. 2020;24(2):e20190194. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0194
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. Uma síntese de sete estudos conduzidos no Brasil mostrou que os indicadores apenas se restringiam à algumas unidades federativas88. Arduini GAO, Rodrigues LP, Marqui ABT. Mortality by sickle cell disease in Brazil. Rev Bras Hematol Hemoter. 2017;39(1):52-6. https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2016.09.008
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, sugerindo que há falta de estudos com enfoque na DF que tornem evidente a magnitude dos óbitos em escala nacional, particularmente no segmento de crianças e adolescentes, após a implantação da triagem pelo PNTN. Assim, o objetivo deste estudo foi descrever as taxas de mortalidade atribuída à doença falciforme em crianças e adolescentes, no Brasil e nas grandes regiões geográficas, de 2000 a 2019.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo ecológico do tipo séries temporais que usou uma modelagem autorregressiva para descrever a força e as tendências com que a DF provocou óbitos em crianças e adolescentes no Brasil, a partir do ano 2000. Os dados foram captados no site do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus)99. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Informações de Saúde [TABNET]: Estatísticas Vitais: mortalidade desde 1996 pela CID-10. Brasília, DF: DATASUS; [cited 2020 Sep 10]. Available from: https://datasus.saude.gov.br/mortalidade-desde-1996-pela-cid-10
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, consultando informações em saúde e estatísticas vitais. As estimativas populacionais foram obtidas no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeções da população. Rio de Janeiro: IBGE; 2018 [cited 2020 Jan 10]. Available from: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html?=&t=downloads
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Variáveis de Interesse

O estudo abrangeu o Brasil como um todo e as cinco regiões geográficas separadamente (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro Oeste) e teve enfoque nos óbitos com causa básica de DF (D57), conforme a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID 10. O período pesquisado englobou os anos de 2000 até 2019, que compuseram 10 biênios, iniciados em 2000–2001 e finalizados em 2018–2019. As análises de correlação entre taxas e biênios abrangeram sexo (masculino e feminino) e faixa etária (0–4, 5–9, 10–14, 15–19 anos), conforme especificado no site do Datasus.

Antecipando a importância do perfil raça/cor da pele para os desfechos falciformes, o estudo forneceu uma breve descrição da distribuição dos óbitos também por esse marcador, além de idade e sexo. O quesito raça/cor foi descrito conforme os estratos (branco, preto, pardo, amarelo e indígena) utilizados na plataforma Tabnet do Datasus99. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Informações de Saúde [TABNET]: Estatísticas Vitais: mortalidade desde 1996 pela CID-10. Brasília, DF: DATASUS; [cited 2020 Sep 10]. Available from: https://datasus.saude.gov.br/mortalidade-desde-1996-pela-cid-10
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e a categoria “negro”, corresponde à soma de “pardos” e de “pretos”, conforme utilizado pelo IBGE1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeções da população. Rio de Janeiro: IBGE; 2018 [cited 2020 Jan 10]. Available from: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html?=&t=downloads
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.

Taxas de Mortalidade

Para o cálculo das taxas de mortalidade foram utilizados, no numerador, o número de óbitos captados no Datasus e, no denominador, o contingente populacional projetado pelo IBGE. As taxas de mortalidade padronizadas por idade foram calculadas para cada um dos 10 biênios, considerando as quatro faixas etárias em análise e o conjunto da população brasileira alvo do estudo. As taxas foram padronizadas pelo método direto tendo como referência a população mundial1111. Segi M, Kurihara M, Matsuyama T. Cancer mortality for selected sites in 24 countries: No 5 (1964-1965). Sendai (JP): Tohoku University School of Medicine; 1969.. As taxas de mortalidade específicas por idade foram calculadas para as cinco macrorregiões, além do Brasil como um todo, considerando as quatro faixas etárias. Todos os indicadores foram apresentados por 100.000 pessoas-ano.

Tendências Temporais

Os indicadores foram dispostos em gráficos de linha tendo no eixo de y a variável dependente (taxa) e no eixo de x a variável independente (biênio). As taxas ajustadas por idade foram calculadas apenas para o Brasil e foram dispostas considerando o conjunto da população brasileira alvo do estudo, bem como estratos definidos por sexo. As taxas específicas por idade foram plotadas segundo faixas etárias, após alisamento dos coeficientes, utilizando a técnica de médias móveis de terceira ordem, sendo apresentadas com resultados do Brasil e das cinco macrorregiões.

Análise Estatística

A análise estatística foi conduzida empregando-se a regressão linear para verificar o comportamento das taxas ajustadas estimadas para o Brasil. Buscando reduzir o efeito da autocorrelação de resíduos, determinada pela proximidade dos eventos computados ao longo dos biênios, o estudo seguiu as recomendações de Antunes e Cardoso1212. Antunes JLF, Cardoso MRA. Uso da análise de séries temporais em estudos epidemiológicos. Epidemiol Serv Saude. 2015;24(3):565-76. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000300024
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e aplicou o método autorregressivo de Prais-Winsten1313. Prais SJ, Winsten CB. Trend estimators and serial correlation. Chicago, Ill: Cowles Commission; 1954 [cited 2020 Jul 13]. (CCDP Statistics; no 383). Available from: https://cowles.yale.edu/sites/default/files/files/pub/cdp/s-0383.pdf
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. As mudanças percentuais anuais (APC) foram calculadas após transformação logarítmica dos coeficientes e apresentadas com seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). As tendências foram interpretadas como estacionária, declínio ou elevação. As análises foram conduzidas com o uso do programa Microsoft Excel® e da plataforma R.

Aspectos Éticos

O estudo obedeceu às Diretrizes Internacionais para Desenvolvimento de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos e foi desenvolvido com dados secundários, disponibilizados publicamente, online, pelo Datasus e IBGE, estando, portanto, livre de procedimentos éticos formais.

RESULTADOS

De 2000 a 2019, ocorreram 2.422 óbitos por doença falciforme entre crianças e adolescentes no Brasil. A frequência foi maior no sexo masculino (54,24% versus 45,75%) e na faixa etária de zero a nove anos (55,20% versus 45,80). A distribuição por macrorregião mostrou maior frequência na região Nordeste (40,46%), seguida da Sudeste (39,02%), Centro-Oeste (9,58%), Norte (7,84%) e Sul (3,10%).

Tendo em vista a importância da raça/cor da pele em estudos de DF, analisou-se a falta de informação nesse quesito. Observou-se que a proporção de dados perdidos foi de 9,54%, o que representa uma considerável redução, passando de 21,51% no ano 2000 para menos de 10% a partir de 2009 (8,06%), caindo para 3,01% em 2019. A partir do conjunto de óbitos com a variável raça/cor da pele adequadamente registrada (n = 2.191), observou-se que a maioria das vítimas fatais são pessoas que foram classificadas como negras, representando 78,73% dos óbitos no Brasil e em quatro das macrorregiões: 85,16% das mortes na Região Norte, 86,71% no Nordeste, 71,16% no Sudeste, e 80,47% no Centro-Oeste. Na região Sul, onde encontra-se a maior concentração de população branca do país, a distribuição de óbitos por cor da pele foi de 50% tanto em brancos quanto em negros (Tabela 1).

Tabela 1
Óbitos atribuídos à doença falciforme em crianças e adolescentes: distribuição por idade, sexo e cor da pele, segundo as Macrorregiões do Brasil, de 2000–2019.

No Brasil, as taxas de mortalidade padronizadas por idade permaneceram abaixo de 0,30 por 100 mil pessoas-ano ao longo de todos os biênios da série. No entanto, as taxas apresentaram um diferencial por sexo, pois a força da doença sobre os óbitos no conjunto da população, bem como no sexo feminino, não superou a encontrada no sexo masculino em nenhum biênio analisado (Figura 1). A análise de tendência indicou um crescimento temporal das taxas de mortalidade atribuídas à DF nos três estratos populacionais. No conjunto da população, o comportamento desses óbitos apresentou APC com elevação média de 5,44% (IC95% 2,57–8,39). Nas crianças e adolescentes do sexo masculino, o APC foi de 4,38% (IC95% 2,17–6,64) e no sexo feminino foi de 6,96% (IC95% 3,05–11,01).

Figura 1
Taxas de mortalidade padronizadas por idade, por 100 mil pessoas-ano, atribuídas à doença falciforme, em crianças (de zero a nove anos) e adolescentes (de 10–19 anos), por biênios, iniciando em 2000–2001 e finalizando em 2018–2019, no Brasil.

O perfil epidemiológico expressado por taxas específicas por idade apresentou um padrão particular. A mortalidade da DF foi maior nas duas faixas extremas de idade analisadas. No Brasil, a população de crianças da faixa etária de zero a quatro anos apresentou taxas de 0,20 e 0,32 por 100 mil pessoas-ano no biênio inicial (2000–2001) e no final (2018–2019), respectivamente. Na faixa etária de 15 a 19 anos as taxas específicas por idade foram 0,13 e 0,28 por 100 mil pessoas-ano, nos mesmos biênios. Regionalmente, a magnitude mais elevada de óbitos se repetiu na faixa etária de zero a quatro anos, mas mudou um pouco o padrão nas faixas etárias de cinco a nove anos e de 10 a 14 anos nas regiões Norte e Sul, que apresentaram taxas maiores do que as observadas na faixa de 15 a 19 anos (Tabela 2).

Tabela 2
Taxas específicas por idade atribuídas à doença falciforme em crianças e adolescentes, por biênios, iniciados em 2000–2001 e finalizados em 2018–2019, no Brasil.

A visualização da disposição temporal dos coeficientes em gráficos permite a interpretação de maior magnitude dos óbitos nas faixas etárias de zero a quatro anos e de 15 a 19 anos, ao mesmo tempo em que sugere tendência de elevação das taxas ao longo do tempo, tanto no Brasil quanto nas macrorregiões (Figura 2).

Figura 2
Tendências das taxas de mortalidade por doença falciforme, específicas por idade em crianças e adolescentes, por 100 mil pessoas-ano, no Brasil (a) e nas macrorregiões geográficas (Norte (b), Nordeste (c), Sudeste (d), Sul (e), Centro-Oeste (f)), por biênios, iniciando em 2000–2001 e finalizando em 2018–2019.

DISCUSSÃO

O estudo teve o mérito de analisar a doença falciforme, tema ainda pouco explorado cientificamente no Brasil, embora cause importante sofrimento aos pacientes e suas famílias. O enfoque em crianças e adolescentes revelou que as faixas etárias de zero a quatro anos e de 15 a 19 anos experimentaram as maiores taxas de mortalidade, tanto no Brasil como um todo quanto nas macrorregiões. As taxas de mortalidade ajustadas apontam para uma tendência de aumento desses óbitos ao longo dos anos no país e sugerem que, em média, o Brasil perde anualmente cerca de 125 crianças, devido às complicações de transtornos falciformes.

Foi possível verificar que crianças e adolescentes pardos e pretos são as principais vítimas fatais da DF nacional e regionalmente. Embora constitua uma característica comum da doença1414. Marques T, Vidal AS, Braz AF, Teixeira MLH. Perfil clínico e assistencial de crianças e adolescentes com doença falciforme no Nordeste Brasileiro. Rev Bras Saude Mater Infant. 2019;19(4):889-96. https://doi.org/10.1590/1806-93042019000400008
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, é preciso ter em mente as metas da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra1515. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 992, de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF; 2009 [cited 2020 Dec 12]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html
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, na qual se acentua a necessidade de priorizar ações que visem a redução das disparidades étnico-raciais nas condições de saúde, destacando a DF. No contexto étnico-racial, chama a atenção que, mesmo na região Sul, caracterizada pela dominância da população de cor branca, metade do contingente de óbitos foi registrada em pessoas brancas e a outra metade em pessoas negras. Levando em conta a miscigenação típica da população brasileira, a expectativa é que a distribuição proporcional seja, possivelmente, ainda maior entre afrodescendentes do que as apresentadas neste estudo.

Os dois estratos etários mais afetados (zero a quatro e 15 a 19 anos) também merecem reflexão, pois representam momentos da vida com significado, demandas e necessidades diferentes. Nos primeiros anos, a expectativa seria de maior usufruto da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias1616. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 1.391, de 16 de agosto de 2005. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde, as diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias. Brasília, DF; 2005 [cited 2020 Dec 20]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2005/prt1391_16_08_2005.html#:~:text=Institui%20no%20%C3%A2mbito%20do%20Sistema,Doen%C3%A7a%20Falciforme%20e%20outras%20Hemoglobinopatias
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, na qual se promove a garantia do seguimento das pessoas diagnosticadas pelo Programa Nacional de Triagem Neonatal, ofertando abordagens terapêuticas efetivas, medidas educacionais ampliadas aos familiares, aumento do acesso aos serviços de saúde especializados e, por consequência, redução da morbimortalidade nas crianças que nascem com defeitos falciformes1616. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 1.391, de 16 de agosto de 2005. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde, as diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias. Brasília, DF; 2005 [cited 2020 Dec 20]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2005/prt1391_16_08_2005.html#:~:text=Institui%20no%20%C3%A2mbito%20do%20Sistema,Doen%C3%A7a%20Falciforme%20e%20outras%20Hemoglobinopatias
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. Mas é justamente o estrato de zero a quatro anos que experimenta as maiores taxas de mortes indistintamente no Brasil e nas regiões geográficas.

Uma avaliação de causas de óbitos em pessoas com DF no Brasil, mostrou que 10,4% das mortes ocorreram em menores de cinco anos1717. Santo AH. Sickle cell disease related mortality in Brazil, 2000-2018. Hematol Transf Cell Ther. 2020 Dec 5:S2531-1379(20)31299-2. https://doi.org/10.1016/j.htct.2020.09.154. Epub ahead of print.
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. No presente estudo, o fato de o estrato 0–4 anos ter taxas mais elevadas e tendência de aumento sugere que os investimentos na DF feitos até então carecem de maior efetividade. É necessário identificar onde estão ocorrendo as falhas para propor medidas de aprimoramento que perpassem desde a adesão e/ou revisão dos protocolos até a ampliação do acesso dessas crianças aos serviços de saúde que possam fazer diferença nas condições de saúde, qualidade de vida e sobrevida com a doença.

A mortalidade da doença tem importância também sobre a faixa etária entre 15 e 19 anos, sendo o segundo estrato em número de mortes delineando um cenário de perdas entre aqueles que superaram longa trajetória de crises, adoecimentos e hospitalizações. Essa questão precisa ser investigada para que se possa indicar o que estaria acontecendo na adolescência tardia, causando aumento no número de mortes por DF como causa básica, um defeito genético que foi controlado durante os primeiros anos de vida. Elucidar essa problemática será essencial para readequar a atenção nessa fase da vida, a qual é impregnada de desafios e incertezas, agravados pela DF. Do lado prático, manter a adesão ao regime terapêutico é um grande desafio que deve ser trabalhado pelo profissional de saúde1818. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Manual de Educação em Saúde. Vol. 1: Autocuidado na Doença Falciforme. Brasília, DF; 2008 [cited 2020 Dec 12]. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_educacao_saude_volume1.pdf
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. Do lado científico, falta suprir lacunas com produção de evidências de alto nível, esclarecendo, por exemplo, o impacto da mudança do local de atendimento, que passa a ser ofertado em ambientes destinados aos adultos1919. Feinstein R, Rabey C, Pilapil M. Evidence supporting the effectiveness of transition programs for youth with special health care needs. Curr Probl Pediatr Adolesc Health Care. 2017;47(8):208-11. https://doi.org/10.1016/j.cppeds.2017.07.005
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No Brasil, a taxa de óbitos na faixa < 5 anos apresentou um aumento de 60% comparando-se os biênios 2000–2001 e 2018–2019. Um estudo restrito à população negra nos Estados Unidos apontou para o declínio de óbitos na mesma faixa etária com taxas caindo de 2,05 (1979–1989) para 0,47 (2015–2017), por 100 mil pessoas-ano2020. Payne AB, Mehal JM, Chapman C, Haberling DL, Richardson LC, Bean CJ, et al. Trends in sickle cell disease-related mortality in the United States, 1979 to 2017. Ann Emerg Med. 2020;76(3S):S28-36. https://doi.org/10.1016/j.annemergmed.2020.08.009
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. Na França, a investigação da causa de óbito em crianças diagnosticadas com DF ao nascimento foi feita em um estudo2121. Desselas E, Thuret I, Kaguelidou F, Benkerrou M, Montalembert M, Odièvre MH, et al. Mortality in children with sickle cell disease in mainland France from 2000 to 2015. Haematologica. 2020;105(9):e440-3. https://doi.org/10.3324/haematol.2019.237602
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de seguimento de 15 anos, encerrado em 2015. Os autores mostraram que as complicações envolvendo infecção e anemia foram as causas mais frequentes e mais da metade dos óbitos compartilhavam as duas condições.

A DF vem ganhando atenção das autoridades brasileiras desde o início do século XXI, mesmo que lentamente, com a criação do Programa Nacional de Triagem Neonatal66. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 822, de 6 de junho de 2001. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Triagem Neonatal / PNTN. Diário Oficial da União. 15 out 2001 [cited 2020 Sep 10]; Seção 1: 64. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2001/prt0822_06_06_2001.html
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, no qual foram definidas algumas responsabilidades e atribuições. A Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias foi lançada em 2005 e deu ênfase à abordagem do problema no Sistema Único de Saúde1616. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 1.391, de 16 de agosto de 2005. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde, as diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias. Brasília, DF; 2005 [cited 2020 Dec 20]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2005/prt1391_16_08_2005.html#:~:text=Institui%20no%20%C3%A2mbito%20do%20Sistema,Doen%C3%A7a%20Falciforme%20e%20outras%20Hemoglobinopatias
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. Medidas gerais foram tratadas no Manual de Educação em Saúde do Ministério da Saúde1818. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Manual de Educação em Saúde. Vol. 1: Autocuidado na Doença Falciforme. Brasília, DF; 2008 [cited 2020 Dec 12]. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_educacao_saude_volume1.pdf
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. Em 2009, a doença foi listada entre as prioridades elencadas pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra1515. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 992, de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF; 2009 [cited 2020 Dec 12]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html
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. Um documento de protocolo clínico e diretrizes terapêuticas foi elaborado em 2010, no qual se avaliou o uso da hidroxiuréia2222. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria SAS/MS Nº 55, de 29 de janeiro de 2010. Doença Falciforme: protocolo clínico e diretrizes terapêuticas. Brasília, DF; 2010 [cited 2020 Dec 16]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2010/prt0055_29_01_2010.html
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. A decisão de incorporar a hidroxiuréia com dose terapêutica adequada às crianças de dois anos ou mais foi publicada em 20132323. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Portaria Nº 27, de 12 de junho de 2013. Decisão de incorporar hidroxiuréia em crianças com doença falciforme no Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília, DF; 2013 [cited 2020 Dec 20]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sctie/2013/prt0027_12_06_2013.html
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. As condutas básicas para tratamento de DF, lançadas em 2012, dão ênfase à propriedade das medidas profiláticas, principalmente nas crianças55. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Doença falciforme: condutas básicas para tratamento. Brasília, DF; 2012 [cited 2020 Sep 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doenca_falciforme_condutas_basicas.pdf
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. Apesar de todo esse arcabouço de políticas públicas, a mortalidade em crianças por DF ainda é crescente no país. Infecções, síndrome torácica aguda e sequestração esplênica aguda são condições evitáveis, mas comumente reportadas88. Arduini GAO, Rodrigues LP, Marqui ABT. Mortality by sickle cell disease in Brazil. Rev Bras Hematol Hemoter. 2017;39(1):52-6. https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2016.09.008
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, demonstrando que ainda é preciso ter atenção para descobrir as falhas e consertá-las.

A DF penaliza os pacientes duplamente, tendo em vista tanto a evitabilidade das manifestações clínicas quanto a baixa visibilidade que ela experimenta no Brasil, ainda que constitua um problema de saúde pública nos países em desenvolvimento2424. Viana MB. The invisibility of sickle cell disease in Brazil: lessons from a study in Maranhão. Rev Bras Hematol Hemoter. 2015;37(1):5-6. https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2014.11.001
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. Nesse sentido, o estudo teve o mérito de abordar os indicadores de mortalidade em âmbito nacional, contudo, algumas limitações devem ser enumeradas. Primeiramente, considerando a importância dos estudos epidemiológicos e sua contribuição para as políticas de saúde que visam a redução das desigualdades raciais em saúde, uma limitação foi não estimar taxas segundo cor da pele, devido à indisponibilidade de dados populacionais estratificados de acordo com tal característica para cada faixa etária e marco temporal. No entanto, apresentamos uma síntese da distribuição demográfica, o que reforçou a importância do problema no grupo populacional pardo e preto, regional ou nacionalmente.

Outra limitação foi o enfoque nos óbitos codificados como D57, não abrangendo causas básicas atribuídas a outras hemoglobinopatias (D56). Embora a possibilidade de erro na classificação dos óbitos e de subestimação das taxas não devam ser ignoradas, nossos resultados são próximos daqueles reportados para crianças no estado do Maranhão2525. Lima ARG, Ribeiro VS, Nicolau DI. Trends in mortality and hospital admissions of sickle cell disease patients before and after the newborn screening program in Maranhão, Brazil. Rev Bras Hematol Hemoter. 2015;37(1):12-6. https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2014.11.009
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.

CONCLUSÃO

O estudo mostrou tendência de aumento dos óbitos atribuídos aos transtornos falciformes em crianças e adolescentes. Considerando que a magnitude dos óbitos foi mais evidente nos primeiros anos (0–4) e no final da adolescência (15–19), o estudo sugere que abordagens específicas por idade podem impactar no controle dos desfechos fatais causados pela DF no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2021
  • Aceito
    8 Ago 2021
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