Assédio da indústria de alimentos infantis a profissionais de saúde em eventos científicos

Ana Carla da Cunha Ferreira Velasco Maria Inês Couto de Oliveira Cristiano Siqueira Boccolini Sobre os autores

RESUMO

OBJETIVO

Analisar o recebimento de patrocínios da indústria de substitutos do leite materno por profissionais de saúde em eventos científicos.

MÉTODOS

Inquérito multicêntrico (Multi-NBCAL) conduzido entre novembro de 2018 e novembro de 2019 em seis cidades de diferentes regiões brasileiras. Em 26 hospitais públicos e privados foram entrevistados pediatras, nutricionistas, fonoaudiólogos e um membro da chefia, mediante questionário estruturado. Foram realizadas análises descritivas do conhecimento dos profissionais de saúde sobre a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL), das empresas patrocinadoras de eventos científicos e dos patrocínios financeiros ou materiais recebidos, conforme a categoria profissional.

RESULTADOS

Foram entrevistados 217 profissionais de saúde, principalmente pediatras (48,8%). Pouco mais da metade dos profissionais (54,4%) afirmaram conhecer a NBCAL, principalmente em Hospitais Amigos da Criança. A maior parte (85,7%) dos profissionais de saúde havia participado de congressos científicos nos últimos dois anos, mais da metade, 54,3%, deles apoiados pela indústria de substitutos do leite materno, em especial pela Nestlé (85,1%) e Danone (65,3%). Patrocínios foram recebidos por esses profissionais nos eventos, como materiais de escritório (49,5%), refeições ou convites para festas (29,9%), brindes (21,6%), pagamento de inscrição (6,2%) ou de passagem para o congresso (2,1%).

CONCLUSÃO

As indústrias de alimentos infantis infringem a NBCAL ao assediar profissionais de saúde em congressos científicos, oferecendo patrocínios materiais e financeiros diversos.

Substitutos do Leite Humano; Publicidade de Alimentos; Legislação sobre Alimentos; Eventos Científicos e de Divulgação; Pessoal de Saúde

INTRODUÇÃO

Os primeiros anos de vida de uma criança são caracterizados pela velocidade de crescimento e desenvolvimento, sendo o leite materno reconhecido como padrão ouro para a nutrição infantil, pois apresenta função moduladora 11. Garwolińska D, Namieśnik J, Kot-Wasik A, Hewelt-Belka W. Chemistry of human breast milk: a comprehensive review of the composition and role of milk metabolites in child development. J Agric Food Chem. 2018;66(45):11881-96. https://doi.org/10.1021/acs.jafc.8b04031
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, reduz a morbimortalidade infantil e confere proteção imunológica à criança 22. Victora CG, Bahl R, Barros AJD, França GVA, Horton S, Krasevec J, et al. Breastfeeding in the 21st century: epidemiology, mechanisms, and lifelong effect. Lancet. 2016;387(10017):475-90. https://doi.org/10.1016/S0140-6736 (15)01024-7
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. A Organização Mundial de Saúde (OMS) o recomenda de forma exclusiva durante os seis primeiros meses de vida e complementado por alimentos saudáveis até os dois anos de idade ou mais 33. World Health Organization. Indicators for assessing infant and young child feeding practices: Part 1, Definitions. Geneva (CH): WHO; 2008. .

Visando à proteção da amamentação, a OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em Reunião Conjunta sobre Alimentação do Lactente e de Crianças Pequenas, em 1979, propuseram a criação de um conjunto de normas regulatórias que deram origem, em 1981, ao Código Internacional dos Substitutos do Leite Materno 44. World Health Organization. Marketing of breast milk substitutes: national implementation of the international code status report 2016. Geneva (CH): WHO; 2016. .

Inspirado no Código, foi criada em 1988, no Brasil, a primeira legislação de regulação da propaganda e comercialização de substitutos do leite materno, que sofreu várias atualizações ao longo dos anos, passando a ser denominada Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL) e adquirindo força de Lei em 2006 55. Prado ISCF, Rinaldi AEM. Compliance of infant formula promotion on websites of Brazilian manufacturers and drugstores. Rev Saude Publica. 2020;54:12. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054001327
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. A Lei 11.265/2006 estabelece que fabricantes de fórmulas infantis, fórmulas para crianças de primeira infância, leites, alimentos de transição e produtos de puericultura correlatos e distribuidores desses produtos não podem conceder patrocínios financeiros ou materiais a pessoas físicas, sendo tal patrocínio permitido apenas a entidades científicas de ensino e pesquisa ou a entidades associativas de pediatras e nutricionistas reconhecidas nacionalmente 66. Brasil. Lei Nº 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diário Oficial da União. 4 jan 2006; Seção 1:1-3. . O Decreto 9.579/2018, que regulamenta essa Lei, define patrocínio como o custeio de materiais, pesquisas, evento ou o custeio de profissionais de saúde para participação em atividades ou incentivo de qualquer espécie. É concedido às empresas o fornecimento de uma amostra de fórmula ou alimento infantil a pediatras ou nutricionistas, por ocasião do lançamento do produto 77. Brasil. Decreto N º 9.579, de 22 de novembro de 2018. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a temática do lactente, da criança e do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais da criança e do adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 nov 2018; Seção 1:49. . A Agência Nacional de Vigilância Sanitária tem a responsabilidade de supervisionar e penalizar as empresas que infringem a NBCAL 88. Bartolini FLS, Amaral MPH, Vilela MAP, Mendonça AE, Vilela FMP, Amaral LH, et al. Official monitoring of the Brazilian Norm for Commercialization of food for nursling and children of first infancy, rubber nipples, pacifiers, and nursing bottles - NBCAL. Braz J Pharm Sci. 2009;45(3):475-82. .

Embora o governo e organizações da sociedade civil tenham investido na proteção à amamentação, as estratégias de marketing das corporações multinacionais fabricantes de substitutos do leite materno se renovam continuamente e têm sido efetivas no aumento das vendas, o que mostra a importância de leis nacionais abrangentes e da fiscalização adequada das suas práticas 99. Rollins NC, Bhandari N, Hajeebhoy N, Horton S, Lutter CK, Martines JC, et al. Why invest, and what it will take to improve breastfeeding practices? Lancet. 2016;387(10017):491-504. https://doi.org/10.1016/S0140-6736 (15)01044-2
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. As companhias produtoras de fórmulas infantis, bicos, chupetas e mamadeiras têm mostrado seus produtos como tão bons ou superiores ao aleitamento materno 99. Rollins NC, Bhandari N, Hajeebhoy N, Horton S, Lutter CK, Martines JC, et al. Why invest, and what it will take to improve breastfeeding practices? Lancet. 2016;387(10017):491-504. https://doi.org/10.1016/S0140-6736 (15)01044-2
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e se utilizado da influência e ascendência dos profissionais de saúde sobre as mães e seus familiares para aumentar seu mercado, como estratégias de marketing 1010. Lake L, Kroon M, Sanders D, Goga A, Witten C, Swart R, et al. Child health, infant formula funding and South African health professionals: eliminating conflict of interest. S Afr Med J. 2019;109(12):902-6. https://doi.org/10.7196/SAMJ.2019.v109i12.14336
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.

A indústria de alimentos infantis participa de eventos científicos para apresentar seus produtos e influenciar profissionais de saúde. O assédio da indústria tem como finalidade criar vínculos com profissionais, professores e estudantes da área da saúde 1111. Pereira TN, Nascimento FA, Bandoni DH. Conflito de interesses na formação e prática do nutricionista: regulamentar é preciso. Cien Saude Colet. 2016;21(12):3833-44. https://doi.org/10.1590/1413-812320152112.13012015
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. O presente estudo teve por objetivo analisar o recebimento de patrocínios da indústria de substitutos do leite materno por profissionais de saúde em eventos científicos.

MÉTODOS

Trata-se de estudo transversal, vertente do Estudo Multicêntrico de Avaliação do Cumprimento da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (Multi-NBCAL). Este projeto foi submetido ao comitê de ética em pesquisa da Fiocruz e aprovado pelo Parecer n o 2.912.729/2018.

A equipe de pesquisa foi composta por coordenador e vice-coordenador com expertise em inquéritos e na NBCAL, bem como um supervisor de campo e um a quatro entrevistadores por cidade. Todos os supervisores e entrevistadores foram capacitados em cursos teórico-práticos de 20 horas sobre a NBCAL, que compreenderam sessões práticas de avaliação do seu cumprimento em hospitais, farmácias e supermercados e foram instrumentalizados em coleta de dados online.

O presente estudo, realizado em hospitais que possuíam leitos obstétricos, seguiu protocolo adaptado do Netcode Periodic Assessment ( Netcode ) 1212. World Health Organization. Netcode toolkit: monitoring the marketing of breast-milk substitutes: protocol for ongoing monitoring systems. Geneva (CH): WHO; 2017. , que preconiza a seleção aleatória de 10 maternidades na capital ou na maior cidade do país para avaliação, assim como a seleção de mais maternidades, em outros cenários, caso os recursos financeiros o permitam.

A coordenação da pesquisa optou por comparar hospitais de diferentes tipos, situados em capitais com Índíces de Desenvolvimento Humano Municipal diferentes, bem como em uma cidade do interior brasileiro, e não concentrar a pesquisa apenas na capital ou maior cidade, devido à grande diversidade e extensão de nosso país. As cidades foram escolhidas intencionalmente, segundo a disponibilidade de instituições e pesquisadores dedicados à temática 1313. Boccolini CS, Oliveira MIC, Toma TS, Peres PLP, Santos EKA, Passos MC, et al. Metodologia e indicadores para monitoramento da NBCAL em estabelecimentos comerciais e serviços de saúde: estudo multicêntrico (Multi-NBCAL). Cad Saude Publica. 2021; 37 Sup 1:e00272920. https://doi.org/10.1590/0102-311X00272920
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. A pesquisa foi conduzida entre novembro de 2018 e novembro de 2019 em seis cidades de diferentes regiões do Brasil: Rio de Janeiro/RJ (seis hospitais), São Paulo/SP (cinco hospitais), Ouro Preto/MG (um hospital), Florianópolis/SC (quatro hospitais), João Pessoa/PB (seis hospitais) e Brasília/DF (quatro hospitais).

Em cada cidade foram listados todos os hospitais com leitos obstétricos com mais de 500 partos por ano, por meio de consulta ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) aaMinistério da Saúde (BR), DATASUS. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES. Brasília, DF; s.d. [citado 22 mai 2022]. Disponível em: https://cnes.datasus.gov.br/ . Os hospitais foram estratificados em hospitais públicos credenciados na Iniciativa Hospital Amigo da Criança (IHAC), hospitais públicos não credenciados na IHAC e hospitais privados. A pesquisa não contemplou Hospitais Amigos da Criança da rede privada, pois, à época, o Brasil só dispunha de nove hospitais dessa categoria, todos situados em cidades do interior bbMinistério da Saúde. Portal Saúde da Criança NET. IHAC - Iniciativa Hospital Amigo da Criança [citado 22 mai 2022]. Disponível em: http://sisac.datasus.gov.br/saudedacrianca/ihacSobre.html# . A amostra visava contemplar dois hospitais por estrato em cada cidade, a serem selecionados ao acaso se houvesse um número superior a essa quantidade no município. Porém, Florianópolis/SC só dispunha de quatro hospitais com leitos obstétricos, sendo todos os hospitais públicos Amigos da Criança. Ouro Preto/MG só dispunha de um hospital com leitos obstétricos, também Amigo da Criança. Em João Pessoa todos os hospitais públicos eram credenciados nessa iniciativa. Em duas cidades, três maternidades se recusaram a participar do estudo e dificuldades para a obtenção dos termos de aceite institucional foram barreiras que impediram o alcance da amostra previamente estabelecida 1313. Boccolini CS, Oliveira MIC, Toma TS, Peres PLP, Santos EKA, Passos MC, et al. Metodologia e indicadores para monitoramento da NBCAL em estabelecimentos comerciais e serviços de saúde: estudo multicêntrico (Multi-NBCAL). Cad Saude Publica. 2021; 37 Sup 1:e00272920. https://doi.org/10.1590/0102-311X00272920
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. Foram avaliados, ao final do estudo, 11 hospitais amigos da criança, seis públicos não credenciados e nove privados.

Os entrevistadores foram orientados a realizar a pesquisa em único dia, entrevistando presencialmente em cada maternidade um membro da chefia, cinco pediatras e cinco nutricionistas e/ou fonoaudiólogos, um número fixo de profissionais por maternidade, segundo o protocolo de monitoramento do Netcode 1212. World Health Organization. Netcode toolkit: monitoring the marketing of breast-milk substitutes: protocol for ongoing monitoring systems. Geneva (CH): WHO; 2017. . Se na maternidade estivessem trabalhando menos de dez profissionais dessas categorias no dia da pesquisa, todos eram entrevistados. Se mais de dez profissionais estivessem atuando, era solicitada à chefia a lista de pediatras, nutricionistas e fonoaudiólogos presentes no dia da entrevista, sendo selecionados, de forma aleatória, até cinco pediatras, até cinco nutricionistas e/ou fonoaudiólogos e uma chefia por maternidade. Todas as entrevistas foram conduzidas mediante assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido 1313. Boccolini CS, Oliveira MIC, Toma TS, Peres PLP, Santos EKA, Passos MC, et al. Metodologia e indicadores para monitoramento da NBCAL em estabelecimentos comerciais e serviços de saúde: estudo multicêntrico (Multi-NBCAL). Cad Saude Publica. 2021; 37 Sup 1:e00272920. https://doi.org/10.1590/0102-311X00272920
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.

Para a realização das entrevistas foi utilizado um formulário eletrônico online por meio do aplicativo MAGPI, instalado em celulares com sistema operacional Android, com interface intuitiva para a entrada de dados, hospedagem eletrônica em servidores da Fiocruz, acompanhamento online da coleta de dados e possibilidade de exportação de dados para os pacotes estatísticos mais comuns 1414. Abbot A. Paper, paper, everywhere. Nature. 2005;437(7057):310. .

O questionário empregado foi adaptado do questionário de monitoramento da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (em inglês: International Baby Food Action Network – IBFAN) ccRede Internacional em Defesa do Direito de Alimentar. Belo Horizonte, MG: IBFAN Brasil; 2022 [citado 22 mai 2022]. Disponível em: http://www.ibfan.org.br e do Netcode 1212. World Health Organization. Netcode toolkit: monitoring the marketing of breast-milk substitutes: protocol for ongoing monitoring systems. Geneva (CH): WHO; 2017. , com validação de conteúdo realizada por painel de especialistas 1313. Boccolini CS, Oliveira MIC, Toma TS, Peres PLP, Santos EKA, Passos MC, et al. Metodologia e indicadores para monitoramento da NBCAL em estabelecimentos comerciais e serviços de saúde: estudo multicêntrico (Multi-NBCAL). Cad Saude Publica. 2021; 37 Sup 1:e00272920. https://doi.org/10.1590/0102-311X00272920
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. Os entrevistados foram questionados presencialmente sobre: (1) perfil do profissional de saúde: sexo, faixa etária, cor da pele, profissão, tempo de formado e setores de atuação do profissional de saúde (podendo ser citado mais de um setor: alojamento conjunto, unidade neonatal, banco de leite humano); (2) conhecimento acerca da NBCAL (sim, regular – que correspondeu às respostas tenho noção/já ouvi falar, não); citou pelo menos um produto abrangido pela NBCAL (sim – compreendendo fórmula infantil, bico, mamadeira, chupeta, fórmula para criança de primeira infância, leite, ou alimento de transição; não); capacitação na NBCAL por meio de curso ou aula (sim, não); órgão responsável pela capacitação (órgão governamental, conselho profissional, indústria, particular – que correspondeu a: universidade particular/hospital particular/curso pago, outra empresa como distribuidores); capacitação em alimentação infantil (sim, não); (3) participação em congresso ou simpósio sobre alimentação infantil nos últimos dois anos (sim, não), apoio do evento por indústria de alimentos infantis ou produtos correlatos (sim, não), empresa patrocinadora (podendo ser citada mais de uma empresa: Nestlé, Danone, Abbott, Mead Johnson, outra), recebimento de patrocínio pelo profissional de saúde (podendo ser citado mais de um: pagamento de inscrição no congresso, pagamento de passagem, refeição ou festa durante o evento, material de escritório, brinde), recebimento de amostra grátis de substituto de leite materno (sim, não).

Foram realizadas análises descritivas da distribuição dos profissionais de saúde entrevistados por cidade, da caracterização do seu perfil, de seu conhecimento sobre a NBCAL, sua capacitação na NBCAL, o órgão responsável pelo curso e sua capacitação em alimentação infantil, segundo o tipo de hospital. Foi calculada a proporção de cada órgão responsável pela capacitação na NBCAL apenas entre os profissionais capacitados na mesma.

Para verificar a homogeneidade das características dos profissionais de saúde, assim como seu conhecimento e capacitação na NBCAL e em alimentação infantil, segundo o tipo de hospital, foi aplicado o teste qui-quadrado de Pearson, considerando o nível de significância estatística de 5%.

Foi analisada a proporção de profissionais de saúde que havia participado de eventos científicos nos dois últimos anos, segundo categoria profissional. Dentre os que relataram participação em eventos científicos, foi calculada a proporção dos que referiram que o evento foi apoiado por indústria de substitutos do leite materno, sendo descritas as empresas que patrocinaram esses eventos, cada profissional podendo citar mais de uma empresa.

Por fim, dentre os profissionais de saúde que participaram de eventos científicos apoiados pela indústria, foi analisada a frequência dos que receberam patrocínios materiais ou financeiros nesses eventos, bem como a frequência dos que receberam amostras grátis de substitutos do leite materno, segundo a categoria profissional.

RESULTADOS

Foram entrevistados ao todo 217 profissionais de saúde que atuavam em 26 hospitais de seis cidades brasileiras. Desses profissionais, 44,2% trabalhavam em hospitais públicos credenciados na IHAC; 26,3% em hospitais públicos não credenciados na IHAC e 29,5% em hospitais privados. Rio de Janeiro, São Paulo e João Pessoa foram as cidades com mais profissionais de saúde entrevistados ( Tabela 1 ). Foram registradas quatro recusas entre os profissionais de saúde abordados (1,8%).

Tabela 1
Profissionais de saúde entrevistados por município, segundo o tipo de hospital. Multi-NBCAL, 2018–2019.

A maioria dos profissionais entrevistados era do sexo feminino, principalmente na rede privada. Houve um predomínio de profissionais de saúde de cor branca, exceto na rede particular, e 12,4% dos profissionais não declararam a sua cor. Entre os entrevistados, 48,8% eram pediatras, 29% nutricionistas, 18% fonoaudiólogos e 4,1% de outras profissões em posição de chefia, e essa distribuição foi relativamente homogênea entre os diferentes tipos de hospitais. A maioria dos profissionais tinha entre 35 e 59 anos de idade e entre 11 e 24 anos como profissional formado. Os setores de atuação mais frequentes foram unidade neonatal e alojamento conjunto ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Características dos profissionais de saúde entrevistados, segundo o tipo de hospital. Multi-NBCAL, 2018–2019.

Relataram conhecer a NBCAL 54,4% dos profissionais de saúde e 59,9% souberam citar pelo menos um produto abrangido por essa legislação. Esse conhecimento foi superior em profissionais que atuavam em Hospitais Amigos da Criança e inferior naqueles lotados em hospitais públicos não credenciados. A participação em curso ou aula sobre a NBCAL foi de 30%, maior entre profissionais que atuavam em Hospitais Amigos da Criança (40,6%). Entre os capacitados na NBCAL, 93,8% relataram que o mesmo foi realizado por órgão governamental. A participação em curso ou aula sobre alimentação infantil foi alta (93,5%) em todos os tipos de hospitais ( Tabela 3 ).

Tabela 3
Conhecimento dos profissionais de saúde sobre a NBCAL, capacitação na NBCAL e em alimentação infantil, segundo o tipo de hospital. Multi-NBCAL, 2018–2019.

Grande parte dos profissionais de saúde havia participado de congresso ou simpósio científico nos dois últimos anos (85,7%) e 54,3% deles relataram que empresas de substitutos do leite materno apoiaram esses eventos, principalmente pediatras (71,1%). Nestlé (85,1%) e Danone (65,3%) foram as empresas mais citadas como patrocinadoras de eventos científicos ( Tabela 4 ).

Tabela 4
Participação em eventos científicos, patrocínio da indústria a esses eventos e empresas patrocinadoras, segundo categoria profissional. Multi-NBCAL, 2018–2019.

A maior parte dos profissionais de saúde que participaram de eventos científicos apoiados pela indústria relataram ter recebido patrocínio financeiro ou material da indústria de substitutos do leite materno nesses eventos, como materiais de escritório (49,5%), refeições ou festas no evento (29,9%), brindes (21,6%), pagamento de inscrição (6,2%) ou de passagem para o congresso (2,1%), cerca de um terço dos entrevistados afirmaram não terem recebido patrocínio. Receberam amostras grátis de substitutos do leite materno 22,7% dos profissionais de saúde: pediatras (25%), nutricionistas (18,8%) e também um fonoaudiógo e outro profissional de saúde ( Tabela 5 ).

Tabela 5
Recebimento de patrocínios e de amostras grátis em congressos científicos, segundo categoria profissional. Multi-NBCAL, 2018–2019.

DISCUSSÃO

Apesar de vedado pela Lei 11.265/2006, quase dois terços dos profissionais que participaram de eventos científicos apoiados pela indústria referiram o recebimento de patrocínio financeiro ou material nesses eventos. Pediatras, nutricionistas e fonoaudiólogos foram assediados pela indústria de substitutos de leite materno, tanto pelo pagamento de inscrições e passagens para os congressos, itens de custo mais alto, como pelo convite a festas ou refeições nos eventos ou mesmo a oferta de sacolas, canetas, blocos, notepads , calendários e brindes, itens de mais baixo custo. Além de assediar profissionais de saúde por meio de financiamento e brindes, as indústrias de substitutos do leite materno disseminam informação e conceitos favoráveis ao uso de seus produtos em eventos científicos 1515. Tanrikulu H, Neri D, Robertson A, Mialon M. Corporate political activity of the baby food industry: the example of Nestlé in the United States of America. Int Breastfeed J. 2020;15(1):22. https://doi.org/10.1186/s13006-020-00268-x
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, buscando influenciar pediatras, cuja relação com os pacientes é considerada “fiduciária” na prescrição desses produtos, pois têm conhecimento especializado e experiência e detêm a confiança de todos 1616. Wright CM, Waterston AJR. Relationships between paediatricians and infant formula milk companies. Arch Dis Child. 2006;91(5):383-5. https://doi.org/10.1136/adc.2005.072892
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. As indústrias estabelecem também relações com líderes de opinião e com organizações de saúde, buscando influenciar programas de saúde por meio de acesso e colocação de atores em contextos de políticas governamentais 1515. Tanrikulu H, Neri D, Robertson A, Mialon M. Corporate political activity of the baby food industry: the example of Nestlé in the United States of America. Int Breastfeed J. 2020;15(1):22. https://doi.org/10.1186/s13006-020-00268-x
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. Buscam, ainda, reter avanços em medidas regulatórias, impedir a aprovação de legislações, postergar a sua implementação ou fazer retroceder medidas já implementadas 1717. Burlandy L, Alexandre VP, Gomes FS, Castro IRR, Dias PC, Henriques P, et al. Políticas de promoção da saúde e potenciais conflitos de interesses que envolvem o setor privado comercial. Cien Saude Colet. 2016;21(6):1809-18. https://doi.org/10.1590/1413-81232015216.06772016
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.

A promoção de substitutos do leite materno por seus fabricantes e distribuidores é uma barreira global para o crescimento da amamentação no mundo 1818. Sharfstein JM, Silver DL. Relationship between the American Academy of Pediatrics and infant formula companies. JAMA Pediatrics. 2017;171(7):613-4. https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2017.1257
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, 1919. McFadden A, Mason F, Baker J, Begin F, Dykes F, Grummer-Strawn L, et al. Spotlight on infant formula: coordinated global action needed. Lancet. 2016;387(10017):413-5. https://doi.org/10.1016/S0140-6736 (16)00103-3
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, em especial nos países de baixa e média renda, onde as vendas dos substitutos do leite materno crescem em uma progressão de 10% ao ano 2020. Piwoz EG, Huffman SL. The impact of marketing of breast-milk substitutes on WHO- recommended breastfeeding practices. Food Nutr Bull. 2015;36(4):373-86. https://doi.org/10.1177/0379572115602174
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. Nesses países, apenas 37% das crianças menores de seis meses de idade são amamentadas exclusivamente e avanços na prática da amamentação poderiam salvar até 823.000 crianças todos os anos 22. Victora CG, Bahl R, Barros AJD, França GVA, Horton S, Krasevec J, et al. Breastfeeding in the 21st century: epidemiology, mechanisms, and lifelong effect. Lancet. 2016;387(10017):475-90. https://doi.org/10.1016/S0140-6736 (15)01024-7
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A NBCAL não permite o patrocínio da indústria de substitutos do leite materno a pessoas físicas, visando proteger as mães de pressões comerciais inadequadas, visto que as companhias produtoras de alimentos infantis se utilizam de várias estratégias para obter a fidelidade das mães ao consumo de seus produtos 2121. Hastings G; Angus K; Eadie D; Hunt K. Selling second best: how infant formula marketing works. Global Health. 2020;16:77. https://doi.org/10.1186/s12992-020-00597-w
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Contudo, no presente estudo, cerca de 60% dos pediatras que participaram de eventos científicos apoiados pela indústria receberam patrocínios materiais ou financeiros nesses eventos. Desses, mais de 40% receberam materiais de escritório e quase um terço, convites para festas ou refeições. Nutricionistas e fonoaudiólogos também foram bastante assediados pela indústria de alimentos infantis. Estudo realizado na Indonésia igualmente aferiu oferta a profissionais de saúde de ímãs, pôsteres, termômetros, calendários e gráficos de crescimento, bem como visitas frequentes aos mesmos por representantes de companhias multinacionais de alimentos infantis 2222. Hidayana I, Februhartanty J, Parady VA. Violations of the International Code of Marketing of Breast-milk Substitutes: Indonesia context. Public Health Nutr. 2017;20(1):165-73. https://doi.org/10.1017/S1368980016001567
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. A aceitação de presentes pelos profissionais de saúde pode se constituir em promoção indireta das empresas produtoras de substitutos do leite materno, em detrimento do apoio à prática da amamentação. O porte de brindes com o logotipo de empresas de alimentos infantis pelos profissionais de saúde pode ser percebido pelos seus pacientes como um endosso ao uso desses produtos 2323. Pries AM, Huffman SL, Adhikary I, Upreti SR, Dhungel S, Champeny M, et al. Promotion and prelacteal feeding of breastmilk substitutes among mothers in Kathmandu Valley, Nepal. Matern Child Nutr. 2016;12 Suppl 2:8-21. https://doi.org/10.1111/mcn.12205
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.

Grummer-Strawn et al. 2424. Grummer-Strawn LM, Holliday F, Jungo KT, Rollins N. Sponsorship of national and regional professional paediatrics associations by companies that make breast-milk substitutes: evidence from a review of official websites. BMJ Open. 2019;9(8):e029035. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2019-029035
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, utilizando dados coletados na internet, identificaram uma forte presença da indústria junto à categoria profissional dos pediatras, pois 60% das associações pediátricas em todo o mundo recebiam algum tipo de apoio financeiro da indústria de substitutos do leite materno, principalmente nas Américas (82%), na Europa (66%) e na Ásia (50%). Essa realidade se repete no Brasil, onde parceria entre a Sociedade Brasileira de Pediatria e uma indústria de substitutos de leite materno resultou no “Programa Jovens Pediatras: Nestlé Nutrition”, uma plataforma dirigida a médicos residentes de pediatria para influenciar a sua formação profissional ddAliança pela Alimentação Adequada e Saudável. Porto Alegre, RS; c2020 [citado 10 jul 2020]. Disponível em: https://alimentacaosaudavel.org.br/blog/organizacoes-denunciam-conflito-de-interesse-em-curso-da-nestle-para-medicos-residentes-de-pediatria/8180/ .

O patrocínio da indústria a um congresso de saúde ou nutrição infantil funciona como um endosso do congresso àquela marca. O recebimento de patrocínio coloca a entidade promotora em dívida com a indústria de substitutos do leite materno e referenda o uso de seus produtos ou práticas 1010. Lake L, Kroon M, Sanders D, Goga A, Witten C, Swart R, et al. Child health, infant formula funding and South African health professionals: eliminating conflict of interest. S Afr Med J. 2019;109(12):902-6. https://doi.org/10.7196/SAMJ.2019.v109i12.14336
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. O patrocínio por parte de fabricantes de substitutos do leite materno, assim como a oferta de apoio financeiro por parte dessas empresas, pode criar fidelidade do profissional de saúde e das associações profissionais às empresas de alimentos infantis 2222. Hidayana I, Februhartanty J, Parady VA. Violations of the International Code of Marketing of Breast-milk Substitutes: Indonesia context. Public Health Nutr. 2017;20(1):165-73. https://doi.org/10.1017/S1368980016001567
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. Rea e Toma 2525. Rea MF, Toma TS. Proteção do leite materno e ética. Rev Saude Publica. 2000; 34(4):388-95. https://doi.org/10.1590/S0034-89102000000400012
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, num dos primeiros estudos nacionais sobre o tema, ressaltam os conflitos de interesse envolvidos na relação profissional de saúde – indústria, apresentando resultados de um monitoramento da NBCAL realizado em mais de 30 cidades brasileiras, que observou formas de aliciamento de profissionais de saúde pela indústria de fórmulas infantis, como a concessão de passagens aéreas, busca do profissional no aeroporto e inscrição em congresso.

Entre as companhias multinacionais de fórmulas infantis, a Nestlé se destacou como a mais citada pelos profissionais de saúde no patrocínio de eventos científicos. O Brasil é o segundo maior mercado e o quinto maior país em faturamento da Nestlé, fazendo dela a líder no setor alimentício nacional, com 15 filiais espalhadas por todo o território brasileiro, além de cinco centros de distribuição, quatro depósitos e 26 unidades fabris 2626. Zilber SN, Silva FL. Investigação sobre a existência de inovações disruptivas das grandes empresas multinacionais para o mercado brasileiro de baixa renda. Produção. 2013;23(2):283-96. https://doi.org/10.1590/S0103-65132012005000049
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. Do mesmo modo, no México, a Nestlé foi indicada por gestores entrevistados em hospitais públicos e particulares como a principal fabricante de alimentos infantis a entrar em contato com eles 2727. Hernández-Cordero S, Lozada-Tequeanes AL, Shamah-Levy T, Lutter C, González de Cosío T, Saturno-Hernandez P, et al. Violations of the International Code of Marketing of Breast-milk Substitutes in Mexico. Matern Child Nutr. 2019;15:e12682. https://doi.org/10.1111/mcn.12682
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.

Apesar de mais da metade dos profissionais de saúde ter afirmado conhecer a NBCAL e quase 60% terem sido capazes de citar ao menos um produto abrangido pela Norma, menos de um terço tinha frequentado algum curso ou aula sobre a temática. A maior parte dos cursos ou aulas sobre a NBCAL foi ministrada por órgãos governamentais. A ausência de capacitações promovidas por conselhos ou associações profissionais chama a atenção, pois é necessário um maior empenho dessas entidades na formação de profissionais para o cumprimento da NBCAL e do Código Internacional de Substitutos do Leite Materno. Uma maior familiaridade dos profissionais de saúde com essa importante legislação de proteção à amamentação não impediria o aliciamento de parte desses profissionais pela indústria de substitutos de leite materno, mas poderia aumentar sua percepção sobre os conflitos de interesse envolvidos nessa relação e reduzir as violações a essa Lei, contribuindo para a promoção à saúde da comunidade 2828. Liu A, Dai Y, Xie X, Chen L. Implementation of International Code of Marketing Breast- Milk Substitutes in China. Breastfeed Med. 2014;9(9):467-72. https://doi.org/10.1089/bfm.2014.0053
https://doi.org/10.1089/bfm.2014.0053...
.

Atualmente os currículos das escolas de medicina estão se dedicando mais a ensinar seus alunos a alimentar bebês com fórmula infantil do que em apoiar as mães a amamentar usando habilidades de aconselhamento 2929. Pérez-Escamilla R. Breastfeeding in the 21st century: how we can make it work. Soc Sci Med. 2020;244:112331. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2019.05.036
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. Estudo conduzido com discentes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas verificou um baixo conhecimento de alunos do último período sobre o Código Internacional e sobre a NBCAL, mostrando que há muito a ser feito para promover o ensino acerca do aleitamento materno no curso médico 3030. Frazão SM, Vasconcelos MVL, Pedrosa CM. Conhecimento dos discentes sobre aleitamento materno em um curso médico. Rev Bras Educ Med. 2019;43(2):58-66. https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n2rb20180175
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.

No presente estudo, o conhecimento e capacitação na NBCAL foram mais frequentes em profissionais atuando em Hospitais Amigos da Criança, no entanto era esperado que sua totalidade conhecesse essa legislação, conteúdo obrigatório na sua formação. É importante reforçar a necessidade da educação continuada, para que profissionais capacitados há mais tempo possam aprimorar seus conhecimentos e profissionais admitidos após o credenciamento desses hospitais na IHAC sejam sistematicamente capacitados 3131. Lamounier JA, Chaves RG, Rego MAS, Bouzada MCF. Iniciativa Hospital Amigo da Criança: 25 anos de experiência no Brasil. Rev Paul Pediatr. 2019;37(4):486-93. http://doi.org/10.1590/1984-0462/;2019;37;4;00004
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. A IHAC foi criada para fornecer maior apoio à prática da amamentação nos hospitais com leitos obstétricos, por meio da capacitação da equipe de saúde e da adequação das rotinas hospitalares, sendo o cumprimento do Código Internacional de Substitutos do Leite Materno um dos critérios a serem preenchidos para a adesão ao primeiro dos Dez Passos para o Sucesso do Aleitamento Materno 2424. Grummer-Strawn LM, Holliday F, Jungo KT, Rollins N. Sponsorship of national and regional professional paediatrics associations by companies that make breast-milk substitutes: evidence from a review of official websites. BMJ Open. 2019;9(8):e029035. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2019-029035
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, iniciativa considerada como uma importante estratégia, com impacto positivo nas taxas de aleitamento materno e inserida na agenda de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas 3131. Lamounier JA, Chaves RG, Rego MAS, Bouzada MCF. Iniciativa Hospital Amigo da Criança: 25 anos de experiência no Brasil. Rev Paul Pediatr. 2019;37(4):486-93. http://doi.org/10.1590/1984-0462/;2019;37;4;00004
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, 3232. Pérez-Escamilla R, Martinez JL, Segura-Pérez S. Impact of the Baby-friendly Hospital Initiative on breastfeeding and child health outcomes: a systematic review. Matern Child Nutr. 2016;12(3):402-17. https://doi.org/10.1111/mcn.12294
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. A sustentabilidade de suas ações vem sendo alvo de monitoramento contínuo no Brasil 3333. Araújo RG, Fonseca VM, Oliveira MIC, Ramos EG. External evaluation and self- monitoring of the Baby-friendly Hospital Initiative’s maternity hospitals in Brazil. Int Breastfeed J. 2019;14:1-9. https://doi.org/10.1186/s13006-018-0195-4
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.

Limitações da presente pesquisa devem ser apontadas: não se sabe se as amostras recebidas pelos pediatras e nutricionistas entrevistados correspondiam a produtos sendo lançados, portanto, não se pode avaliar em que extensão a indústria estava descumprindo a Lei 11.265/2006 nesse aspecto, mas no presente estudo outros profissionais de saúde também receberam amostras de substitutos do leite materno, o que contraria a NBCAL 77. Brasil. Decreto N º 9.579, de 22 de novembro de 2018. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a temática do lactente, da criança e do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais da criança e do adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 nov 2018; Seção 1:49. . Outra limitação a ser ressaltada é que os profissionais foram perguntados sobre informações relativas ao recebimento de patrocínios em congressos nos dois últimos anos, sujeitas a viés de memória, uma vez que deve ser mais recorrente o esquecimento do recebimento de patrocínios do que o relato de recebimento de patrocínios não existentes. Esse viés pode ter levado à subestimação dos patrocínios recebidos, especialmente de brindes de menor valor.

A metodologia proposta pelo Netcode 1212. World Health Organization. Netcode toolkit: monitoring the marketing of breast-milk substitutes: protocol for ongoing monitoring systems. Geneva (CH): WHO; 2017. se propõe a identificar os tipos mais recorrentes de infrações ao Código Internacional 44. World Health Organization. Marketing of breast milk substitutes: national implementation of the international code status report 2016. Geneva (CH): WHO; 2016. (e à NBCAL 66. Brasil. Lei Nº 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Diário Oficial da União. 4 jan 2006; Seção 1:1-3. ) pelo seu método de seleção aleatória de maternidades e entrevistas, a Multi-NBCAL adaptou esse protocolo, avaliando 26 maternidades de diferentes cidades, entre elas a capital e a maior cidade do país. A limitação desta pesquisa está em sua amostra não ser probabilística, o que reduz a possibilidade de generalização dos resultados, o que significa que os achados do presente estudo refletem a realidade dos profissionais entrevistados nas maternidades incluídas, não devendo ser interpretados como a realidade das cidades avaliadas. Contudo, os resultados deste estudo multicêntrico são suficientes para promover o debate sobre potenciais conflitos de interesse das práticas profissionais ante o assédio das indústrias de produtos que competem com o aleitamento materno.

Um estudo de confiabilidade do questionário se faz necessário para avaliação das suas propriedades psicométricas, contudo, a supervisão constante da aplicação da grande maioria dos questionários por pesquisadores experientes, aliado ao rigoroso treinamento dos entrevistadores, pode ter reduzido uma potencial variabilidade interobservadores. Uma análise de confiabilidade do questionário encontrou um Alfa de Cronbach de 0,794 para o bloco de perguntas avaliadas no presente estudo (dados não tabulados), padrão considerado elevado.

Conclui-se que estratégias de marketing da indústria dirigidas a profissionais de saúde são largamente praticadas em espaços de formação, como congressos e simpósios científicos, indicando que a existência de uma regulamentação, mesmo na forma de Lei, não é suficiente para coibir práticas ilegais de promoção de substitutos do leite materno, apesar do seu impacto sobre a saúde infantil ser amplamente conhecido 3434. Robinson H, Buccini G, Curry L, Escamilla RP. The World Health Organization Code and exclusive breastfeeding in China, India, and Vietnam. Matern Child Nutr. 2019;15:e12685. https://doi.org/10.1111/mcn.12685
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. A inadequada fiscalização de eventos científicos permite que companhias multinacionais de substitutos do leite materno busquem indevidamente envolver profissionais de saúde no marketing dos seus produtos sem qualquer punição 1919. McFadden A, Mason F, Baker J, Begin F, Dykes F, Grummer-Strawn L, et al. Spotlight on infant formula: coordinated global action needed. Lancet. 2016;387(10017):413-5. https://doi.org/10.1016/S0140-6736 (16)00103-3
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.

Recomenda-se o desenvolvimento de ações governamentais que visem aumentar o conhecimento e a adesão à legislação vigente, tanto pelas empresas quanto pelos profissionais de saúde, e que a temática dos conflitos de interesse seja abordada desde os cursos de graduação da área da saúde. Como nenhum profissional de saúde tem mais ascendência sobre as mães do que os pediatras, que não só recomendam, como também prescrevem fórmulas infantis, as associações de pediatria devem colaborar com a formação continuada de seus profissionais dentro de um compromisso ético com o aleitamento materno e a saúde infantil. Também é necessário que a vigilância sanitária tenha uma atuação efetiva na fiscalização da NBCAL para um melhor cumprimento da legislação vigente. É urgente que situações de conflito de interesses entre a indústria e os profissionais de saúde sejam prevenidas e coibidas, objetivando a proteção ao aleitamento materno e à saúde infantil.

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  • Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - processo 408809/2017-5).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2020
  • Aceito
    14 Out 2021
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo - SP - Brazil
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