RESUMO
Neste texto, discutem-se os impactos da judicialização na garantia do direito à saúde no Brasil e a necessidade de reavaliação do papel do Judiciário na sua proteção. Evidências da literatura técnico-científica e informações sobre a execução orçamentário-financeira e a aquisição de medicamentos do Ministério da Saúde foram utilizadas para fundamentar os argumentos. Mostra-se que, em 2019, as ações judiciais consumiram 25,2% dos recursos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, sendo 21% para 10 medicamentos. Argumenta-se que, embora o Judiciário promova esse direito quando o Estado falha em assegurar o acesso a medicamentos incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), ele compromete o acesso a medicamentos da população com as determinações de aquisição de produtos não incorporados. Defende-se a necessidade de o Judiciário pautar seu controle sobre a observância dos preceitos constitucionais e legais nas políticas públicas, especialmente na política fiscal, dado seu impacto sobre o financiamento do SUS.
Judicialização da Saúde; Acesso a Medicamentos Essenciais e Tecnologias em Saúde; Equidade na Alocação de Recursos; Sistema Único de Saúde; Direito à Saúde
INTRODUÇÃO
No Brasil, as ações judiciais no campo da saúde ganharam importância nas últimas décadas em razão do aumento significativo dos casos e de seus impactos, especialmente para o Sistema Único de Saúde (SUS). A judicialização da saúde pode ser entendida como uma situação de ampliação do acionamento do Poder Judiciário por parte de indivíduos ou grupos de indivíduos, na condição de cidadãos ou de consumidores, a fim de que sejam arbitrados conflitos destes com o Poder Executivo, com empresas privadas e pessoas físicas em matéria de saúde11. Vieira FS. Direito à saúde no Brasil: seus contornos, judicialização e a necessidade da macrojustiça. Brasília, DF: Ipea; 2020 [cited 2022 Jan 15]. (Texto para Discussão; nº 2547). Available from: https://bit.ly/35bGxYm
https://bit.ly/35bGxYm... .
Nos casos em que o réu é o Estado, o impacto da judicialização na garantia do direito à saúde tem sido apontado como positivo ou negativo. Por um lado, a judicialização seria benéfica por constituir um meio para garantir o direito à saúde e induzir melhora na resposta do Estado22. Ventura M, Simas L, Pepe VLE, Schramm RF. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis. 2010;20(1):77-100. https://doi.org/10.1590/S0103-73312010000100006
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201000... . Por outro lado, produziria tratamento desigual entre os cidadãos, em um país marcado por grandes desigualdades socioeconômicas e iniquidades em saúde3,45. Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER). Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça; 2019 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3Gg4PgY
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No SUS, as ações judiciais demandam medicamentos55. Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER). Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça; 2019 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3Gg4PgY
https://bit.ly/3Gg4PgY... ,66. Conselho Nacional de Justiça. Judicialização e sociedade: ações para acesso à saúde pública de qualidade. Brasília, DF: CNJ; 2021 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/32FwYAf
https://bit.ly/32FwYAf... devido a falhas no fornecimento dos produtos incorporados e solicitam medicamentos experimentais ou aprovados para comercialização, mas não incorporados ao sistema44. Ferraz OLM. Health as a human right: the politics and judicialisation of health in Brazil. New York: Cambridge University Press; 2020.,77. Catanheide ID, Lisboa ES, Souza LEPF. Características da judicialização do acesso a medicamentos no Brasil: uma revisão sistemática. Physis. 2016;26(4):1335-56. https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000400014
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201600... . Essas situações podem ser mais ou menos prevalentes, a depender da localidade, e são importantes na avaliação dos impactos da judicialização da saúde.
Assim, considerando a relevância desse tema, este texto tem por objetivo discutir os impactos do modelo atual de judicialização sobre a garantia do direito à saúde no Brasil e a necessidade de reavaliação do papel do Judiciário na proteção desse direito.
Evidências da literatura técnico-científica sobre a judicialização da saúde e o financiamento do SUS foram obtidas a partir de pesquisa feita na Biblioteca Virtual em Saúde, no campo “título, resumo e assunto”, para documentos publicados a partir do ano 2000, incluindo-se todas as bases e utilizando-se das palavras: i) “judicialização” e “saúde”; ii) “financiamento” e “SUS”. Também foram consultadas referências sobre esses temas em documentos levantados e publicações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Foram selecionados trabalhos que abordassem os seguintes temas: consequências das ações judiciais para a política de saúde, teoria da reserva do possível e papel do Judiciário na proteção de direitos sociais.
Dados dos seguintes sistemas de informação também foram obtidos para fundamentar os argumentos: i) Painel Justiça em Números do CNJ: casos novos de demanda judicial (2014 a 2020); ii) Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG): aquisição de medicamentos pelo Ministério da Saúde (MS) (2016-2020); e iii) Siga Brasil: execução orçamentário-financeira do MS (2012-2020).
Consequências Positivas e Negativas da Judicialização
A judicialização da saúde pública teve início nos anos 1990 com as ações judiciais que demandavam tratamentos para pessoas HIV positivas. As decisões em favor dos pacientes representaram um avanço na garantia do acesso universal e integral aos serviços e bens de saúde88. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids. O remédio via Justiça: um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/aids no Brasil por meio de ações judiciais. Brasília, DF; 2005 [cited 2022 Jan 15]. (Série Legislação; nº 3). Available from: https://bit.ly/3G9u1Wh
https://bit.ly/3G9u1Wh... . Desde então, as demandas se diversificaram e multiplicaram, sendo majoritariamente individuais, favorecendo a percepção de que, embora parte delas seja relevante para assegurar o direito à saúde, outra parte tem potencial para desorganizar o SUS99. Oliveira VE. Caminhos da judicialização do direito à saúde. In: Oliveira VE, organizadora. Judicialização de políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019. p. 177-99..
Várias instituições implementaram medidas para ampliar o diálogo entre os poderes e estabelecer balizas para as decisões judiciais. Contudo, a despeito dos esforços empreendidos11. Vieira FS. Direito à saúde no Brasil: seus contornos, judicialização e a necessidade da macrojustiça. Brasília, DF: Ipea; 2020 [cited 2022 Jan 15]. (Texto para Discussão; nº 2547). Available from: https://bit.ly/35bGxYm
https://bit.ly/35bGxYm... , os casos novos não diminuíram (Figura 1). O ano de 2020 é atípico por causa dos impactos negativos da pandemia de covid-19 sobre a procura e a oferta de serviços de saúde1010. Mendes EV. O lado oculto de uma pandemia: a terceira onda da Covid-19 ou o paciente invisível. Brasília, DF: Conass; 2020. e dos demais serviços públicos, entre eles, os do sistema de justiça.
Também parecem ter sido pouco efetivos os enunciados do CNJ, publicados desde 2014 como orientações aos magistrados no enfrentamento da judicialização da saúde1111. Conselho Nacional de Justiça. Enunciados da I, II e III Jornadas de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça. Brasília, DF: CNJ; 2019 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3KSjQsQ
https://bit.ly/3KSjQsQ... . De 2008 a 2017, verificou-se que a menção aos enunciados foi de apenas 0,02% nas decisões de primeira instância e de menos de 0,01% nas de segunda instância55. Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER). Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça; 2019 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3Gg4PgY
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Entre os itens judicializados adquiridos pelo Ministério da Saúde de 2016 a 2020, a maioria dos 10 medicamentos de maior impacto orçamentário não estava incorporada ao SUS (Tabela). Houve também decisões que determinaram a compra de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em contrário ao que orienta o enunciado 501111. Conselho Nacional de Justiça. Enunciados da I, II e III Jornadas de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça. Brasília, DF: CNJ; 2019 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3KSjQsQ
https://bit.ly/3KSjQsQ... .
O gasto do Ministério da Saúde em ações judiciais de medicamentos cresceu significativamente entre 2012 e 2016 (221%), chegando a R$ 1,5 bilhão no último ano. Decresceu 26% entre 2016 e 2017, e manteve-se no patamar de R$ 1,1 bilhão de 2017 a 2019 (Figura 2).
Gasto do Ministério da Saúde em ações judiciais de medicamentos e com o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica - CEAF (2012–2020).
Estudos realizados nos anos 2000 já evidenciavam preocupação com as consequências das demandas judiciais. Questões como a desconsideração das responsabilidades dos entes da federação na organização do SUS, a compra de medicamentos não incorporados e sem registro na Anvisa, além de prejuízos à equidade, foram explicitadas1212. Vieira FS, Zuchi P. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Rev Saude Publica. 2007;41(2):214-22. https://doi.org/10.1590/S0034-89102007000200007
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200700... ,1313. Chieffi AL, Barata RB. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e equidade. Cad Saude Publica. 2009;25(8):1839-49. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2009000800020
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Na última década, autores vinculados ao sistema de justiça entraram no debate, destacando aspectos positivos e negativos da judicialização da saúde, o que representa um avanço por favorecer a discussão sobre o tema entre seus pares.
Quanto aos aspectos positivos, destacam-se o fomento à formulação e à revisão de políticas públicas, a inclusão da saúde na agenda política, o desenvolvimento da avaliação de tecnologias em saúde e a ampliação do diálogo entre os poderes1414. Borges DCL. Individual health care litigation in Brazil through a different lens: strengthening health technology assessment and new models of health care governance. Health Hum Rights. 2018;20(1):147-62.,1515. Gebran Neto JP. Direito constitucional à saúde e suas molduras jurídicas e fáticas. In: Schulze CJ, Gebran Neto JP. Direito à saúde. 2. ed. Porto Alegre, RS: Verbo Jurídico; 2019. p. 99-130..
Com relação aos aspectos negativos, ressaltam-se a desorganização do SUS e das finanças públicas, as escolhas judiciais indevidas de políticas públicas, a fragilização da isonomia, a desconsideração dos critérios de priorização das tecnologias disponibilizadas e a ampliação das desigualdades em saúde33. Wang DWL. Right to health litigation in Brazil: the problem and the institutional responses. Hum Rights Law Rev. 2015;15(4):617-41. https://doi.org/10.1093/hrlr/ngv025
https://doi.org/10.1093/hrlr/ngv025... ,44. Ferraz OLM. Health as a human right: the politics and judicialisation of health in Brazil. New York: Cambridge University Press; 2020.,1515. Gebran Neto JP. Direito constitucional à saúde e suas molduras jurídicas e fáticas. In: Schulze CJ, Gebran Neto JP. Direito à saúde. 2. ed. Porto Alegre, RS: Verbo Jurídico; 2019. p. 99-130..
Além disso, permanece o entendimento de que o Judiciário pode considerar evidências científicas e determinar o fornecimento de tecnologias não incorporadas ao SUS, em um processo paralelo e capilarizado em todo o país, que concorre com a avaliação de tecnologias realizada pelo sistema de saúde11. Vieira FS. Direito à saúde no Brasil: seus contornos, judicialização e a necessidade da macrojustiça. Brasília, DF: Ipea; 2020 [cited 2022 Jan 15]. (Texto para Discussão; nº 2547). Available from: https://bit.ly/35bGxYm
https://bit.ly/35bGxYm... .
Esse entendimento tem várias implicações. Salientam-se duas delas: i) a fragilização das políticas como meio para a garantia do direito à saúde, pois, com tantas exceções à Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), desvirtua-se a regra, que deveria valer para todos; e ii) a redução dos recursos previstos no orçamento do ano para garantir o acesso da população aos medicamentos da Rename. Esta segunda implicação é discutida a seguir.
Reserva do Possível, Judicialização e Orçamento Público
Sobre a relação entre o orçamento público, a judicialização da saúde e a teoria da reserva do possível, as manifestações de parte dos gestores públicos e dos magistrados se contrapõem. De um lado, gestores se utilizam dessa teoria para justificar a impossibilidade de atendimento da demanda judicial, alegando a indisponibilidade de recursos para atendê-la. De outro lado, juízes contra-argumetam que não se pode sobrepor um interesse secundário do Estado ao direito à saúde sob o argumento da reserva do possível. O fato é que ambas as posições precisam ser repensadas.
O conceito de reserva do possível foi importado da Alemanha, onde houve reconhecimento de que questões envolvendo direitos sociais sofrem limitação em três dimensões: i) reserva do faticamente possível: a satisfação da demanda precisa ser viável; ii) reserva do juridicamente possível: a demanda precisa ser juridicamente possível; e iii) reserva do financeiramente possível: o atendimento à demanda fica limitado à capacidade financeira do Estado1616. Fogaça AR. Análise econômica do direito e judicialização da saúde: mínimo existencial versus reserva do possível. Curitiba, PR: Juruá; 2021..
Em relação ao uso da teoria da reserva do possível pelos gestores, ressalta-se que não se pode confundir capacidade financeira do Estado com o orçamento anual estabelecido para a saúde. A capacidade financeira do Estado é medida considerando todos os recursos que são arrecadados da sociedade. É claro que a capacidade de gasto com políticas que concretizam direitos sociais é limitada pelas receitas, sendo fundamental a participação da sociedade na discussão conduzida por seus representantes sobre a destinação dos recursos1717. Jorge EA. Financiamento setorial do SUS e a questão da municipalização da saúde. In: Ministério da Saúde (BR), Coordenação de Informação, Educação e Comunicação. Incentivo à participação popular e controle social no SUS: textos técnicos para conselheiros de saúde. Brasília, DF; 1998 [cited 2022 Jan 15]. p. 45-54. Available from: https://bit.ly/3s1vBnZ
https://bit.ly/3s1vBnZ... . Mas não se pode alegar escassez de recursos considerando apenas o orçamento anual da saúde.
Quanto ao contra-argumento dos magistrados, tampouco se pode considerar a capacidade financeira um interesse secundário do Estado. Os direitos têm custos, sendo preciso mensurar qual é o seu custo e definir como serão financiados, assim como controlar quem decide sobre os recursos que serão alocados para concretizá-los1818. Holmes S, Sunstein CR. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: Norton, 2000..
Quando o Judiciário ignora as macroquestões relacionadas ao tema e determina o fornecimento, para um indivíduo, de medicamentos não previstos nas políticas públicas, ele impacta o acesso dos demais aos medicamentos que constam nas políticas1919. Ferraz OLM, Vieira FS. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. Dados. 2009;52(1):223-51. https://doi.org/10.1590/S0011-52582009000100007
https://doi.org/10.1590/S0011-5258200900... . Isso ocorre porque o orçamento tem natureza de planejamento e é definido no ano anterior ao de sua vigência. A realocação de recursos entre diferentes áreas requer prévia autorização legislativa, logo, não se trata da simples vontade do gestor da saúde2020. Ministério da Economia (BR). Manual de contabilidade aplicada ao setor público. 8. ed. Brasília, DF; 2021. [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3AFSyB0
https://bit.ly/3AFSyB0... e, a depender das condições econômicas do país, a restrição orçamentária pode implicar a realização de escolhas trágicas na oferta de bens e serviços.
As Figuras 2 e 3 ilustram bem esse tipo de problema. No Ministério da Saúde, as despesas com ações judiciais de medicamentos são financiadas, desde 2014, exclusivamente por recursos alocados na ação orçamentária que financia o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF). Considerando apenas o gasto registrado nesta ação, observa-se que a participação das despesas por demandas judiciais cresceu desde 2012, chegando a 25,2% em 2019. Com isso, restam menos recursos para financiar o elenco de medicamentos desse componente para toda a população.
Participação do gasto do Ministério da Saúde em ações judiciais de medicamentos no gasto total com o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (2012–2020).
Analisando-se a Tabela e a Figura 2, observa-se que apenas 10 medicamentos foram responsáveis por 94,6% do gasto em ações judiciais do Ministério da Saúde em 2019 (R$ 950,33 milhões) e consumiram 21% dos recursos destinados ao CEAF. Com essa situação, não surpreende o relato de falta de medicamentos que estão sob a responsabilidade de aquisição do Ministério da Saúde2121. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Ofício Conass Nº 138. Regularização de entregas de medicamentos referentes à Assistência Farmacêutica (Grupo 1A do CEAF). Brasília, DF: Conass; 2019 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/34O0D8K
https://bit.ly/34O0D8K... ,2222. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Ofício Conass Nº 523, de 21 de dezembro de 2020. Assunto: Irregularidades no abastecimento dos medicamentos do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica sob responsabilidade de aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde. Brasília, DF: Conass; 2020 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3F8zT2N
https://bit.ly/3F8zT2N... , que deve ter diversos determinantes, mas certamente um deles é a judicialização.
Esse exemplo explicita de que forma a judicialização pode causar mais danos do que promover o direito à saúde no Brasil. Decisões sobre alocação de recursos são complexas e demandam legitimidade democrática. Ademais, requerem sólido conhecimento técnico em saúde. Não podem ter por único fundamento critérios que denotam sentimentos humanitários de solidariedade, justiça e empatia para com um único indivíduo2323. Zebulum JC. Decisões judiciais na saúde, um campo propício para a interferência de convicções pessoais de cada juiz: análise da jurisprudência de quatro tribunais de justiça. Rev Dir Sanit. 2019;19(3):16-33. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v19i3p16-33
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.... . Isso acaba levando a decisões que desconsideram a legislação sanitária do país e que colocam em risco a saúde das pessoas, como no caso da fosfoetanolamina2424. Santos MWB, Santos AV, Lima CMMA, Abreu APM, Martos ACV, Bernardi AS, et al. O caso da fosfoetanolamina sintética: judicialização com risco à saúde. In: Bucci MPD, Duarte CS, coordenadoras. Judicialização da saúde: a visão do Poder Executivo. São Paulo: Saraiva; 2017. p. 139-73.. Mas, enfim, de que forma o Judiciário poderia melhor proteger o direito à saúde?
Necessidade de Novos Rumos
Não há dúvidas de que o Judiciário exerce importante papel quando determina que o Estado cumpra o seu dever de garantir o fornecimento de medicamentos incorporados ao SUS, em observância às diretrizes e normativos das políticas públicas. Diretrizes e normativos estes que 46% dos magistrados, em pesquisa recente, disseram não observar66. Conselho Nacional de Justiça. Judicialização e sociedade: ações para acesso à saúde pública de qualidade. Brasília, DF: CNJ; 2021 [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/32FwYAf
https://bit.ly/32FwYAf... .
Enquanto isso, decisões de política fiscal são tomadas no âmbito da União com grande impacto negativo nos direitos sociais, como a implantação do teto de gastos para as despesas primárias, o congelamento das aplicações mínimas em saúde e educação, a ausência de limitação das despesas financeiras e a ampliação do gasto tributário2525. Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Rio de Janeiro: Ipea; 2019 [cited 2022 Jan 15]. (Texto para Discussão; nº 2516). Available from: https://bit.ly/2JO4lUp
https://bit.ly/2JO4lUp... .
Dada a importância da política fiscal para a garantia de direitos, discutem-se hoje princípios de direitos humanos para a política fiscal, em uma iniciativa que busca aproximar os campos da economia e do direito2626. Instituto de Estudos Socioeconômicos. Princípios de direitos humanos na política fiscal. Brasília, DF: INESC; 2022. [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3uang3X
https://bit.ly/3uang3X... . O Judiciário precisa exercitar a macrojustiça, o que demanda controle sobre processos envolvendo as políticas macroeconômicas que afetam o custeio do SUS11. Vieira FS. Direito à saúde no Brasil: seus contornos, judicialização e a necessidade da macrojustiça. Brasília, DF: Ipea; 2020 [cited 2022 Jan 15]. (Texto para Discussão; nº 2547). Available from: https://bit.ly/35bGxYm
https://bit.ly/35bGxYm... ,2727. Pinto EG. Estado de coisas inconstitucional na política pública de saúde brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. (Textos para Debate). [cited 2022 Jan 15]. Available from: https://bit.ly/3IHYkoy
https://bit.ly/3IHYkoy... . Caso não a exerça, continuará fomentando iniquidades em saúde.
Dessa forma, é necessário que se reflita sobre o papel do Judiciário na proteção dos direitos sociais. Segundo Ferraz2828. Ferraz OLM. Harming the poor through social rights litigation: lessons from Brazil. Tex Law Rev. 2011 [cited 2022 Jan 15];89:1643-1668. Available from: https://bit.ly/3KRUFq5
https://bit.ly/3KRUFq5... (2011), eles seriam adequadamente protegidos se o Judiciário parasse de interferir no conteúdo das políticas e passasse a atuar no controle da sua formulação para garantir o respeito às normas constitucionais e legais. Essa é a mesma posição de Gebran Neto1515. Gebran Neto JP. Direito constitucional à saúde e suas molduras jurídicas e fáticas. In: Schulze CJ, Gebran Neto JP. Direito à saúde. 2. ed. Porto Alegre, RS: Verbo Jurídico; 2019. p. 99-130. (2019).
Assim, não se questiona a atuação do Judiciário na garantia do acesso aos medicamentos incorporados ao SUS, respeitadas as normas estabelecidas no âmbito do sistema de saúde. Se as normas e os procedimentos são questionáveis, considerando-se as balizas da Constituição Federal de 1988 e das leis, discutem-se as normas e os procedimentos. Mas não são razoáveis as alocações de recursos por ações judiciais para a compra de medicamentos não incorporados. Essas destinações descaracterizam a regra geral que deveria ser aplicada para todos e drenam recursos escassos, enquanto o SUS é submetido a um processo de subfinanciamento crônico2929. Rossi P, Dweck E. Impactos do novo regime fiscal na saúde e educação. Cad Saude Publica. 2016;32(12):e00194316. https://doi.org/10.1590/0102-311X00194316
https://doi.org/10.1590/0102-311X0019431... ,3030. Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Cien Saude Colet. 2018;23(7):2303-14. https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.09192018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018237... . Dessa forma, a universalidade fica prejudicada e o direito à saúde permanece sendo negado aos mais desfavorecidos socioeconomicamente.
Referências bibliográficas
- 1Vieira FS. Direito à saúde no Brasil: seus contornos, judicialização e a necessidade da macrojustiça. Brasília, DF: Ipea; 2020 [cited 2022 Jan 15]. (Texto para Discussão; nº 2547). Available from: https://bit.ly/35bGxYm
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» https://bit.ly/3G9u1Wh - 9Oliveira VE. Caminhos da judicialização do direito à saúde. In: Oliveira VE, organizadora. Judicialização de políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019. p. 177-99.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Fev 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
29 Jan 2022 - Aceito
28 Mar 2022