Enfrentamento da violência contra a mulher: articulação intersetorial e atenção integral1

Paulo Ricardo de Macedo Menezes Igor de Souza Lima Cíntia Mesquita Correia Simone Santos Souza Alacoque Lorenzini Erdmann Nadirlene Pereira Gomes Sobre os autores

Resumos

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório, de abordagem qualitativa e com objetivo de identificar elementos que interferem no processo de enfrentamento da violência contra a mulher. Realizou-se entrevista com representantes de 15 serviços que integram a Rede de Atenção a Pessoas em Situação de Violência na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Os dados foram organizados com base na análise temática de Bardin. O estudo mostrou que a articulação intersetorial e a atenção disponibilizada pelos serviços são elementos que interferem no enfrentamento da violência contra a mulher. Ambos os elementos guardam relação com o fortalecimento da rede de atenção a mulheres vítimas de violência. O estudo sinaliza para a necessidade de se conhecer as atribuições de outras instituições e reafirma a importância da articulação entre elas. Oferece ainda elementos que orientam o desenvolvimento de políticas e ações articuladas no sentido de favorecer o processo de enfrentamento da violência contra as mulheres.

Violência contra a Mulher; Violência Doméstica; Atenção à Saúde; Ação Intersetorial; Enfermagem


Introdução

A violência contra a mulher é um dos temas de grande preocupação mundial, não somente pelos danos causados à saúde individual e coletiva, mas também pelo impacto na morbimortalidade em toda a sociedade exigindo, para sua prevenção e enfrentamento, políticas e ações articuladas que visem atender a mulher na sua integralidade.

Estudos nacionais e internacionais sinalizam para o crescimento de casos de violência contra a mulher. O percentual de vítimas de violência física ou sexual em todo o mundo varia entre 20% e 75% (Giffin, 1994GIFFIN, K. Violência de gênero, sexualidade e saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, p. 146-155, 1994. Suplemento.). Venturi e colaboradores (2004)VENTURI, G. et al. (Org.). Pesquisas de opinião: a mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. Disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/05629-introd.pdf>. Acesso em: 5 jun. 2014.
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mostram que mais de dois milhões de mulheres são espancadas a cada ano. Na época, 43% destas declararam já ter sido violentada por um homem. Estudos populacionais indicam que as mulheres estão mais vulneráveis a sofrer violência por parte de parceiros íntimos ou ex-parceiros do que por estranhos, revelando a maior exposição das mulheres no âmbito doméstico do que no espaço público (Schraiber e col., 2002SCHRAIBER, L. B. et al. Violência contra a mulher: estudo em uma unidade de atenção primária à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 470-477, 2002.).

Todavia, há uma dificuldade de percepção da violência doméstica, pois esta guarda relação com a visão tradicional da família como santuário sagrado, célula-mãe e base do edifício social (Soares, 1999SOARES, B. M. Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.). Durante décadas, o que acontecia dentro do cenário “casa”, tido como espaço privado, era mantido em silêncio, favorecendo o mascaramento da violência doméstica e consequentemente a subenumeração de tais dados. “Invisíveis à sociedade”, os episódios de violência doméstica tendem a ser repetitivos e a se tornar mais graves, caso não haja uma ação que os interrompa (Schraiber e col., 2002SCHRAIBER, L. B. et al. Violência contra a mulher: estudo em uma unidade de atenção primária à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 470-477, 2002.). Essa dificuldade de se mensurar tais situações, bem como sua magnitude, acaba por dificultar ações de prevenção e enfrentamento.

Nesse contexto, é imprescindível que, independentemente do espaço de atuação, os profissionais estejam aptos para identificar mulheres em vivência de violência e encaminhá-las, contribuindo para o seu empoderamento e consequente ruptura do ciclo. Vale salientar que as diversas demandas da mulher extrapolam o poder de resolutividade de um único setor, o que requer um conjunto articulado de ações intersetoriais.

Costa (2004)COSTA, A. M. Integralidade na atenção e no cuidado a saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.13, n. 3, p. 5-15, 2004. refere que o ideário da integralidade compõe um processo que se inicia desde a formulação de políticas por parte do Estado até a produção de ações e integração entre as diferentes instituições e prestadoras de serviços de atenção e cuidado ao cidadão. Concordando, Medeiros e Guareschi (2009) consideram as políticas públicas como um conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia dos direitos sociais, assegurando assim, uma atuação intersetorial de qualidade nos diferentes serviços.

Diante do exposto, adotamos como objeto de estudo o processo de enfrentamento da violência contra a mulher. O estudo objetiva identificar elementos que interferem no processo de enfrentamento da violência contra a mulher.

Metodologia

Esta é uma pesquisa descritivo-exploratória com abordagem qualitativa, realizada em serviços que integram a Rede de Atenção a Pessoas em Situação de Violência na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. O Guia de Serviços de Atenção a pessoas em Situação de Violência organiza os serviços em quatro aéreas, a saber: policial, jurídica, psicossocial e da saúde.

A atenção policial constitui o primeiro serviço procurado pela mulher em busca de justiça, sendo constituída por serviços diretamente responsáveis por receber denúncias de infrações e/ou delitos, bem como por implantar ações preventivas e corretivas com o objetivo de conter e penalizar os autores de práticas e ações violentas. A atenção jurídica dá seguimento à policial na medida em que é responsável por avaliar e julgar, após apuração dos fatos, as infrações e delitos ocorridos, competindo também por esclarecer, informar e garantir os direitos dos cidadãos. A atenção psicossocial torna possível o exercício da cidadania por meio da garantia de condições de sobrevivência digna, da adaptação aos novos acontecimentos, da reabilitação psicoafetiva e da busca por novas alternativas de vida. A atenção à saúde encontra-se relacionada à prevenção, diagnóstico e tratamento de danos físicos e/ou psíquicos originados a partir da experiência de situações violentas (Aguiar e col., 2002AGUIAR, C. et al. Guia de serviços de atenção a pessoas em situação de violência. 2. ed. Salvador: Fórum Comunitário de Combate à Violência, Grupo de Trabalho Rede de Atenção, 2002. Disponível em: <http://www.fccv.ufba.br/rede/docs/guia.pdf>. Acesso em: 1 ago. 2012.
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).

O contato com os serviços foi viabilizado pelo apoio do Fórum Comunitário de Combate a Violência (FCCV), criado em 1996, com objetivo de propor e acompanhar políticas e ações destinadas a combater a violência na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Composto por entidades públicas e privadas, religiosas, não governamentais, comunitárias e por movimentos sociais que se reúnem mensalmente, o FCCV auxiliou no processo de identificação e contato dos serviços. Os serviços foram contactados com o intuito de esclarecermos acerca dos objetivos e relevância do estudo, por meio da elaboração e encaminhamento da carta-solicitação, além de ligações telefônicas, e-mail, fax e ofício.

O critério de seleção dos serviços pelo FCCV deu-se de forma aleatória, sendo que dentre os indicados, quatro instituições de saúde e duas na área policial não responderam ao convite. Assim, colaboraram com o estudo, 15 serviços, vinculados à Atenção à Saúde (01 Hospital Geral); à Atenção Policial (02 Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher - DEAM; 01 Delegacia Especializada de Repressão a Crimes contra Adolescentes em Delegacia - DERCA); à Atenção Jurídica (01 Defensoria Pública; 01 Vara de Violência Doméstica e Família; 01 Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher – GEDEM) e à Atenção Psicossocial (01 Casa-Abrigo; 01 Conselho Municipal de Direitos da Mulher; 03 Centros de Referência de Assistência Social – CRAS; 01 Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual – VIVER; 01 Grupo de Apoio a Pessoas com AIDS – GAPA; 01 Centro de Atendimento a Vítimas de Violência – CEAV).

Como técnica de coleta de dados, utilizou-se a entrevista acompanhada com um formulário semiestruturado contendo as seguintes questões: Considerando que as mulheres em situação de violência apresentam demandas/necessidades em diversas áreas, como esse serviço atua para o enfrentamento da violência contra a mulher? O que fazer para que a mulher seja atendida em suas demandas?

O projeto encontra-se vinculado à tese de doutorado, cujo projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Santo Antônio (n. 31/07), sendo respeitados todos os aspectos éticos para pesquisa envolvendo seres humanos baseados na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. No intuito de garantir o anonimato dos sujeitos e seus respectivos serviços, para cada fala foi atribuído o nome do serviço entrevistado.

Os dados foram transcritos na íntegra com o auxílio do programa Microsoft Word e organizados com base na Análise de Conteúdo de Bardin, mais especificamente a Análise Temática. Essa técnica consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação (Bardin, 2006BARDIN, L. (Org.). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2006.). Sendo assim, iniciamos a organização dos dados através da leitura flutuante das entrevistas até o alcance do nível de adensamento de seu conteúdo, permitindo-nos organizar as ideias. Na segunda etapa, detivemo-nos ao processo de codificação e categorização dos focos emergidos das falas dos entrevistados, desvelando as seguintes categorias: articulação intersetorial e atenção integral.

Resultados e Discussão

O estudo mostrou que a articulação intersetorial e a atenção disponibilizada pelos serviços são elementos que interferem no enfrentamento da violência contra a mulher.

Articulação Intersetorial

As falas apontam a importância da articulação intersetorial no sentido de viabilizar o processo de enfrentamento dos abusos praticados contra as mulheres, conforme ilustram as falas a seguir:

Gostaríamos de articular com todos os serviços que atuam com a questão em pauta para melhorar a assistência e criar elos mais firmes [...](Hospital Geral).

[...]quando os profissionais do hospital desconfiam de alguma coisa, eles nos comunicam e nós vamos investigar [...](DERCA).

De uma maneira geral, para melhorar ações conjuntas é preciso manter contato [...](DEAM 1).

[...]é preciso a consciência de que a rede pressupõe comunhão de esforços e interação [...] (DEAM 2).

Kiss e colaboradores (2007)KISS, L. B.; SCHRAIBER, L. B.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 11, n. 23, p. 485-501, 2007. referem que a articulação intersetorial supera a fragmentação do conhecimento, favorecendo a resolução de problemas sociais complexos, uma vez que permite a interação entre os sujeitos de setores sociais diversos e, portanto, de saberes, poderes e vontades.

Chama a atenção que embora apenas uma instituição de saúde tenha sido alvo de entrevista, fica evidente o reconhecimento pelos demais serviços entrevistados acerca das implicações da violência para a saúde das mulheres. Tal situação pode ser ilustrada a partir das falas a seguir, que também sinalizam para a dificuldade de articulação com o setor saúde, conforme se vê:

[...] mesmo com grandes demandas para hospitais e centros de saúde, não conseguimos abrir canais de articulação com essas entidades [...] (Casa Abrigo).

É necessário obter uma articulação mais efetiva, principalmente com os serviços de saúde, para melhorar o atendimento das mulheres [...] (Conselho Municipal de Direitos da Mulher).

A dificuldade de articulação com as instituições de saúde pode estar associada à pouca percepção por parte dos profissionais de que a vivência de violência representa um agravo à saúde individual e coletiva. Entretanto, estudos mostram ser o setor saúde a porta de entrada para os casos de violência doméstica, podendo ser esta identificada durante qualquer atendimento de saúde, desde os desempenhados nas unidades de emergência até aqueles realizados nos espaços da atenção básica, a partir de sinais e/ou sintomas físicos, psicológicos ou mesmo pela revelação da usuária. Para alguns estudiosos, o não reconhecimento do fenômeno pode guardar relação com a dificuldade que os profissionais de saúde têm de compreender a violência doméstica como uma demanda inerente a sua prática (Schraiber e col., 2002SCHRAIBER, L. B. et al. Violência contra a mulher: estudo em uma unidade de atenção primária à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 470-477, 2002.).

Concordando, Galvão e Andrade (2004) acreditam que os serviços de atendimento às mulheres em situação de violência são de fundamental importância para o enfrentamento desse problema, sendo imprescindível que estes estejam articulados com os serviços de saúde a fim de promover uma atenção integral à mulher.

No Brasil foram criados, nos últimos anos, serviços específicos voltados para mulheres em situação de violência, tais como as delegacias de defesa da mulher, as casas-abrigo e os centros de referência multiprofissionais (Schraiber e col., 2002SCHRAIBER, L. B. et al. Violência contra a mulher: estudo em uma unidade de atenção primária à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 470-477, 2002.). Tais serviços surgiram da necessidade de oferecer às mulheres um melhor suporte nas áreas policial, jurídica e social vinculadas ao setor saúde. Neste sentido, a articulação intersetorial é necessária para se assegurar a saúde e a qualidade de vida dos indivíduos.

O estudo também sinaliza para a importância de encontros e reuniões sistemáticas no sentido de superar a deficiência de comunicação intersetorial, sugerindo serem estas estratégias que favorecem o fortalecimento da rede de atenção a pessoas vítimas de violência:

[...] sugiro que existam mais encontros das instituições como seminários e oficinas [...] (1a Vara de Violência Doméstica e Família).

[...] tem que ter uma articulação maior, encontros mensais, seminários, reunião entre os serviços, discutir os casos, pegar contatos, telefones para que juntos busquem estratégias de enfrentamento [...] (CRAS 1).

[...] é preciso fortalecer mais a rede através das reuniões do Grupo de Trabalho [...] (Defensoria Pública).

As falas sinalizam para maior necessidade de socialização de problemas, conhecimentos e ideias que auxiliem conjuntamente para o progresso e conquistas do enfrentamento da violência. Sendo assim, as reuniões sistemáticas com representantes de diferentes serviços, que compõem o Grupo de Trabalho (GT) para o enfrentamento da violência contra a mulher em Salvador (Bahia, Brasil), se revelam enquanto alternativa para a consolidação da rede de atenção às mulheres em situação de violência.

Esses espaços de diálogo agem como pilares para a visibilidade e consequente resolutividade das questões referentes à violência contra a mulher. No entanto, o sucesso da interação entre os setores de uma organização depende do conjunto de colaboradores (recursos humanos) interligados em prol de objetivos comuns (Kurcgant e col., 2009KURCGANT, P. et al. Indicadores de qualidade e a avaliação do gerenciamento de recursos humanos em saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, p. 1168-1173, 2009. Número especial.). Para os entrevistados, o déficit de recursos humanos limita o poder de articulação entre os serviços da Rede:

[...] é preciso mais articuladores/coordenadores para exercer essa função de articulação com outros serviços, já que a falta de recursos humanos acaba gerando uma sobrecarga de trabalho, interferindo diretamente no processo de articulação [...] (Defensoria Pública).

[...] temos que considerar os limites de atuação de alguns serviços, devido ao limite de recursos humanos [...] (VIVER).

As falas denotam que o quantitativo de profissionais atuantes nos serviços reflete na dificuldade de desenvolvimento de ações integradas com outros setores. Para Bellenzani e Malfitano (2006)BELLENZANI, R.; MALFITANO, A. P. S. Juventude, vulnerabilidade social e exploração sexual: um olhar a partir da articulação entre saúde e direitos humanos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 115-130, 2006., a metodologia de trabalho utilizada no atendimento intersetorial só faz sentido quando inserida em uma rede de que partilhe de fato, entre os profissionais e serviços envolvidos, o projeto em andamento e a responsabilização por suas ações.

Atenção Integral

Promover atenção integral envolve identificação das necessidades da mulher, atendimento ao que compete a cada órgão e encaminhamentos no sentido de contemplar suas demandas. Tais ações são essenciais para o processo de enfrentamento da violência contra a mulher.

Todavia, o estudo revelou que muitos serviços ainda não estão preparados para lidar com a situação da violência contra a mulher, como ilustram as falas:

Os serviços não sabem lidar com a aproximação da violência [...] (CRLV - Centro de Referência Loreta Valadares).

[...] buscamos uma orientação para prevenir e acompanhar a mulher que está em situação de violência [...] (CRAS 2).

Intervir sobre o fenômeno da violência contra a mulher perpassa pela capacidade do profissional de reconhecer tal vivência. Torna-se essencial a compreensão acerca de sua complexidade, o que favorecerá a identificação das diversas demandas, que muitas vezes suplantam a capacidade de resolução de um único serviço. Medeiros e Guareschi (2009)MEDEIROS, P. F.; GUARESCHI, N. M. F. Políticas públicas de saúde da mulher: a integralidade em questão. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 1, p. 31-48, 2009. reflexionam sobre o termo integralidade, proposto pelos princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS), como o atendimento da pessoa em todas as suas necessidades.

Assim, é preciso desenvolver um olhar holístico para o atendimento a fim de assegurar que este se dê de forma integral, considerando os aspectos biológicos e psicológicos, além das questões jurídicas, policiais e socioeconômicas.

Todavia, Galvão e Andrade (2004)GALVÃO, E. F.; ANDRADE, S. M. Violência contra a mulher: análise de casos atendidos em serviço de atenção à mulher em município do Sul do Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 89-99, 2004. referem que diante da situação de violência contra a mulher, as intervenções institucionais ainda estão mais associadas às áreas de segurança pública e assistência social; o que, por sua vez, tem contribuído para a inserção desse fenômeno num ciclo vicioso e pouco resolutivo.

Concordando com o despreparo dos serviços para o acolhimento e encaminhamento da mulher, Cavalcanti (2002)CAVALCANTI, M. L. T. A abordagem da violência intrafamiliar no Programa Médico de Família: dificuldades e potencialidades. 2002. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2002. refere que muitos profissionais desconhecem os serviços de apoio às mulheres no processo de enfrentamento da violência, o que culmina no encaminhamento inadequado e repercute numa atenção fragmentada (Cavalcanti, 2002CAVALCANTI, M. L. T. A abordagem da violência intrafamiliar no Programa Médico de Família: dificuldades e potencialidades. 2002. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2002.). Daí, a necessidade de conhecimento dos serviços, sobretudo aqueles que já constituem a rede de atenção à mulher em situação de violência, como mostram as falas a seguir:

[...] é necessário que as instituições tenham maior compromisso em conhecer o papel desempenhado pelas outras organizações que estão na Rede [...](Conselho Municipal de Direitos da Mulher).

Há uma grande necessidade de ampliar a visibilidade dos serviços para a comunidade como um todo e para os serviços parceiros [...] (CRAS 2).

A interação dos serviços é essencial para o fortalecimento da rede bem como as informações referentes aos mesmos [...] (GEDEM).

Torna-se necessário esclarecer mais sobre as instituições que compõem a rede [...] (CEAV).

Na visão de Borsoi e colaboradores (2009), a maior dificuldade dos profissionais é dar encaminhamento à situação. Dessa forma, é de fundamental importância o suporte de uma rede intersetorial articulada e sistematizada, com o devido conhecimento sobre as atribuições de cada entidade a ela vinculada, com o intuito de garantir proteção plena a essas mulheres através da manutenção de seus direitos de cidadania (Borsoi e col., 2009BORSOI, T. S.; BRANDÃO, E. R.; CAVALCANTI, M. L. T. Ações para o enfrentamento da violência contra a mulher em duas unidades de atenção primária à saúde no município do Rio de Janeiro. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 28, p. 165-174, 2009.).

O processo de interação entre os vários setores que integram a Rede só se concretizará através da obtenção do conhecimento mútuo, o que envolve informações sobre suas competências, atribuições, localização, tramitação interna e externa, bem como os horários de funcionamento. De acordo com Njaine e colaboradores (2006)NJAINE, K. et al. Redes de prevenção à violência: da utopia à ação. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, p. 1313-1322, 2006. Suplemento., o conhecimento dos serviços está configurado e determinado através dos fluxos de informação e comunicação existentes na Rede. Dessa forma, para viabilizar o encaminhamento, atendimento e proteção das vítimas de violência, torna-se necessário assimilar o quanto a Rede incorpora de parcerias e interconexões.

Observa-se a necessidade de busca por estratégias de divulgação das instituições que integram a Rede de atenção a vítimas de violência, facilitando o acesso a informações, e levando o conhecimento destes serviços à população em geral. Como veículo de promoção dessa divulgação, pode-se utilizar a mídia escrita, falada e/ou televisionada, conforme as seguintes falas:

[...] tem que fazer informativo: o que é a Rede? (Conselho Municipal de Direitos da Mulher).

[...] preciso saber das novidades e divulgação dos serviços participantes da Rede... Esse processo pode ser feito por meio de um site específico, alimentado periodicamente [...] (Hospital Geral).

[...] é preciso estratégias de divulgação da Rede, a exemplo de um site, no intuito de conhecer e reconhecer as instituições que integram essa Rede [...](VIVER).

A possibilidade da formulação de um site específico da Rede é citada por mais de um serviço e aparece como uma boa alternativa na ampliação da visibilidade dos serviços, suas competências, contatos, localização e disponibilidade. O acesso on-line, rápido e qualificado irá viabilizar o conhecimento, não apenas aos componentes da Rede, mas também à população, tendo em vista a inclusão tecnológica digital ter alcançado uma grande parte da comunidade, inclusive as parcelas mais vulneráveis da sociedade, como aquelas de baixa renda e baixo grau de escolaridade, nas quais os atos violentos são mais praticados e perpetuados.

Para respaldar a discussão, Gomes (2009)GOMES, N. P. Processo de enfrentamento da violência conjugal. 2009. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009. também refere sobre a importância de se realizar a divulgação dos serviços participantes da Rede. A autora relata que, para eficiência na divulgação, faz-se necessário que os profissionais atuantes nesses espaços conheçam as instituições e a sua operacionalização, tanto nas áreas jurídicas, policiais, sociais quanto na área de saúde, com destaque para os agentes comunitários de saúde (ACS) pela sua aproximação com a comunidade.

Considerando o conhecimento sobre os serviços, torna-se possível os encaminhamentos no sentido de garantir uma atenção integral às mulheres em situação de violência, contemplando os diversos campos de necessidades da mulher. Essa conduta, no entanto, requer uma atenção continuada de modo que os profissionais devem também buscar estratégias para o acompanhamento dos casos, conforme mostram as falas:

Sabemos da importância da contrarreferência, e por isso a fazemos. Prezamos por um acompanhamento do caso. É necessário não perder a mulher de vista e ter um retorno [...] (CEAV).

[...] é preciso elaborar um instrumento eficaz de monitoramento dos encaminhamentos [...] (GAPA).

As falas nos apontam para uma discussão ainda mais complexa, ou seja, o acompanhamento dos casos como um fator essencial no atendimento integral às mulheres. A eficácia desse acompanhamento se dá na efetividade de todas as etapas que a compõem: o reconhecimento da violência por parte dos profissionais, o atendimento adequado, o encaminhamento, bem como o interesse e a busca pelo retorno das referências, buscando, assim, uma melhor assistência à mulher.

Nessa perspectiva, vale mencionar o papel dos profissionais que atuam na Estratégia de Saúde da Família (ESF), isso porque, na maioria das vezes, a Unidade de Saúde da Família (USF) se apresenta como porta de entrada para essas mulheres. Neste sentido, a equipe de Saúde da Família deveria aparecer como protagonista no processo de acompanhamento das mulheres em situação de violência, uma vez que trabalha com uma população adstrita, secundária ao processo de territorialização, o que permite um maior envolvimento com a comunidade, e consequentemente o reconhecimento e a compreensão de suas necessidades. Nesse contexto, Gomes (2009)GOMES, N. P. Processo de enfrentamento da violência conjugal. 2009. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009. privilegia a enfermagem por conta da posição estratégica na ESF, podendo contribuir no processo de orientação dessa prática profissional.

Conclusões

O estudo discute o processo de enfrentamento da violência contra a mulher na ótica dos serviços, os quais apontam a necessidade de articulação intersetorial e de capacitação de seus profissionais inclusive para os encaminhamentos, a fim de que a mulher seja atendida de forma integral.

A categoria “Articulação Intersetorial” aponta a necessidade de articulação entre os serviços (que integram a rede ou não) como tática de enfrentamento da violência contra a mulher e revela a dificuldade de articular-se, além de propor estratégias que viabilizariam tais espaços de interação de saberes e ações.

A categoria “Atenção integral”, por sua vez, aponta para a percepção do serviço quanto ao (des)preparo profissional para o reconhecimento da violência e/ou para o acolhimento e encaminhamento da mulher. Considerando as diversas demandas que a mulher em vivência de violência apresenta, o estudo sinaliza que o processo de encaminhamento requer conhecimento dos serviços e de suas atribuições.

Aponta-se para a importância da gestão no processo de articulação intersetorial, a partir da viabilização da interação entre as mais diversas instituições. Daí a necessidade de espaços de encontros com representantes de diferentes instituições e a discussão de estratégias para o enfrentamento da violência, incluindo, o empoderamento das mulheres em situação de violência.

O estudo revelou ainda que muitos serviços não sabem lidar diante da situação de violência, não conhecem os serviços para encaminhamento e apontam para a necessidade de maior divulgação destes a fim de garantir à mulher o atendimento as suas necessidades. Para isso, faz-se necessário o suporte dos diversos serviços de atenção: jurídico, policial, social, de geração e renda, de habitação e de saúde. O conhecimento dos serviços dá suporte para o desenvolvimento de ações com vistas à prevenção, notificação, registro, encaminhamento e acompanhamento às mulheres em situação de violência em todas as etapas, favorecendo, assim, a continuidade da assistência e o aumento da credibilidade no serviço.

Acredita-se que os resultados desse estudo possam contribuir para maior visibilidade das questões que entravam o processo de atenção à mulher em situação de violência doméstica, oferecendo subsídios para se pensar ações e estratégias de prevenção e enfrentamento do fenômeno.

O estudo se limita por não tornar visível a trajetória da mulher na busca de apoio para o rompimento da violência, uma vez que parte do olhar de profissionais que atuam nos serviços. Sinaliza-se para a necessidade de pesquisas que valorizem as falas das mulheres e desvelem os caminhos percorridos por estas, o que facilitará o delineamento do fluxo e orientará as articulações intersetoriais no sentido de viabilizar o empoderamento feminino para uma vida livre de violência.

Referências

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  • 1
    Pesquisa Financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2012
  • Revisado
    02 Ago 2013
  • Aceito
    05 Ago 2013
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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