Resumos
A violência tem se constituído importante objeto da saúde pública, tanto na produção científica como na elaboração de políticas públicas. O presente artigo tem como objetivo analisar as estratégias de cuidado construídas por equipes de saúde da família frente a situações de violência doméstica. Optou-se por uma abordagem qualitativa feita pela análise de casos traçadores identificados pelas equipes como “difíceis”, “típicos” e “bem-sucedidos”. Foram entrevistadas duas equipes de saúde da família e profissionais de diferentes serviços da rede intersetorial. Os resultados mostraram que a organização do serviço a partir das diretrizes da Estratégia de Saúde da Família propiciou condições favoráveis para o enfrentamento da violência doméstica. Os profissionais identificaram diferentes tipos de violência nas famílias atendidas, mas as ações das equipes voltaram-se prioritariamente para as situações de maus-tratos contra a criança. A violência contra a mulher em geral não foi tomada como objeto da equipe, demonstrando diferentes graus de “visibilidade” entre as violências. As estratégias incluíram ações de vinculação à família, de monitoramento dos casos e avaliação dos aspectos biomédicos, mas também ações incisivas, como a internação compulsória. As estratégias construídas alternam-se entre uma perspectiva prescritiva e outra centrada na ideia de cuidado, no diálogo com as famílias e suas necessidades. Os agentes comunitários de saúde e os profissionais do NASF foram os principais protagonistas nesses atendimentos, numa articulação entre o saber prático e técnico.
Violência Doméstica; Maus-tratos Infantis; Violência contra a Mulher; Atenção Primária à Saúde
Introdução
A violência doméstica como objeto da saúde pública no Brasil
A violência doméstica e sua repercussão na saúde de crianças, adolescentes e mulheres tem sido objeto de inúmeras pesquisas no campo da saúde pública, demonstrando tratar-se de fenômeno de alta prevalência e grande impacto na saúde mental e física. As pesquisas com amostras populacionais sobre a violência no Brasil encontraram uma prevalência de violência física grave2 contra crianças e adolescentes, cometida por pais ou mães, entre 8,2% a 10,2% em Duque de Caxias/RJ; 10,3% em Embu/SP e de 14,5% a 16,3% no Rio de Janeiro/RJ (Assis e col., 2009ASSIS, S. G. de et al. Situação de crianças e adolescentes brasileiros em relação à saúde mental e à violência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 349-361, 2009.). Já entre as mulheres brasileiras, 27,2% a 33,7% afirmam ter sofrido violência física pelo menos uma vez na vida (Schraiber e col., 2005SCHRAIBER, L. et al. Violência dói e não é direito: a violência contra a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo: Unesp, 2005. (Coleção Saúde e Cidadania).).
A construção de estratégias de enfrentamento da violência doméstica traz consigo peculiaridades importantes. Os dados mostram que as agressões ocorrem, grande parte das vezes, nos domicílios e têm um alto grau de reincidência, caracterizando-se não como um evento isolado, mas como experiência de longa duração.
A análise do problema em uma perspectiva sistêmica e longitudinal nos aponta que nas famílias em que se estabelecem relações violentas ocorre uma circulação dos papéis de agressor e vítima. Vale destacar que essa circulação e o uso da violência possuem significados socioculturais diversos, seja de gênero, seja dos papéis e poderes hierarquicamente construídos para cada um dos membros. Não obstante, a violência torna-se um modo de resolução dos conflitos no interior da família, compartilhado por diferentes membros e, embora de modo diverso para cada qual, afeta a todos.
Os impactos da violência doméstica na saúde são abordados por inúmeros pesquisadores e incluem não só os danos físicos e psicológicos, mas também o risco de morte (Schraiber e col., 2005SCHRAIBER, L. et al. Violência dói e não é direito: a violência contra a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo: Unesp, 2005. (Coleção Saúde e Cidadania).; Assis e Avanci, 2004ASSIS, S. G. de; AVANCI, J. Q. Abuso psicológico e desenvolvimento infantil. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Violência faz mal à saúde. Brasília, DF, 2004. p. 47-58.; Assis e col., 2009; Brasil, 2001BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Brasília, DF, 2001. (Série Cadernos de Atenção Básica; n. 8) – (Série A. Normas e Manuais Técnicos; n. 131).). A exposição à violência tem se mostrado como um importante fator de risco para problemas de saúde mental (Paula e col., 2008PAULA, C. S. et al. Mental health and violence among sixth grade students from a city in the state of São Paulo. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 524-528, 2008.). Estudos demonstraram a relação entre violência doméstica contra a mulher e a saúde mental de seus filhos, uma vez que as agressões sofridas acabam por afetar a capacidade de cuidado a diferentes membros da família (Levendosky e Graham-Bermann, 2001LEVENDOSKY, A. A.; GRAHAM-BERMANN, S. A. Parenting in battered women: the effects of domestic violence on women and their children. Journal of Family Violence, New York, v. 16, n. 2, p. 171-192, 2001.; Durand e col., 2011DURAND, J. G. et al. Repercussão da exposição à violência por parceiro íntimo no comportamento dos filhos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 45, n. 2, p. 355-364, 2011.).
O termo “violência doméstica” foi utilizado neste estudo considerando-o mais abrangente do que “violência familiar”, incluindo além das agressões ocorridas entre membros da mesma família, aquelas cometidas por outras pessoas que convivam no espaço doméstico (Brasil, 2001BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Brasília, DF, 2001. (Série Cadernos de Atenção Básica; n. 8) – (Série A. Normas e Manuais Técnicos; n. 131).), abordando diferentes formas de violência doméstica (contra mulher, criança e adolescente), independente de sua natureza (física, psicológica, sexual, por privação ou abandono).
O enfretamento as situações de violência doméstica no contexto da atenção básica
As pesquisas realizadas no âmbito da atenção básica sobre as práticas das equipes frente às situações de violência doméstica enfatizam os desafios e dilemas para a construção da atenção integral.
Vários estudos destacam as fragilidades e o limitado preparo dos profissionais para lidar com situações de violência, o que inclui a própria concepção dos profissionais sobre a violência e suas causas, as ações desenvolvidas (ou não) e a relação que se estabelece com a família e demais atores da rede intersetorial.
A violência é associada frequentemente à “pobreza” e “desestruturação familiar” (Andrade e col., 2011ANDRADE, E. M. et al. A visão dos profissionais de saúde em relação a violência doméstica contra crianças e adolescentes: um estudo qualitativo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 147-155, 2011.; Nunes e col., 2008NUNES, C. B.; SARTI, C. A.; OHARA, C. V. da S. Conceptions held by health professionals on violence against children and adolescents within the family. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 16, n. 1, p. 136-141, 2008.) ou a características “patológicas” da vítima ou do agressor (Santos, 2005SANTOS, N. C. dos. Práticas sanitárias frente à violência intrafamiliar no âmbito do PSF: um estudo de caso. 2005. Tese (Doutorado em Ciências na área de Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2005.), demonstrando uma compreensão superficial dos aspectos culturais, históricos e sociais presentes. A atuação das equipes mostra a tendência a “medicalizar” a violência, com atitudes prescritivas e intervencionistas em relação à família (Nunes e col., 2008NUNES, C. B.; SARTI, C. A.; OHARA, C. V. da S. Conceptions held by health professionals on violence against children and adolescents within the family. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 16, n. 1, p. 136-141, 2008.).
Outras pesquisas demonstraram que os profissionais, não raro, adotam uma atitude de omissão frente aos casos, não os tomando como objeto de seu trabalho. A atuação em equipe assume, então, caráter pontual e emergencial. No caso das situações de violência contra criança e adolescente, a denúncia ao Conselho Tutelar pelos profissionais é feita somente nos casos considerados mais graves. O medo de sofrer represálias das famílias/comunidades, a insegurança quanto à atuação dos conselheiros tutelares e o medo de romper os vínculos construídos com as famílias são as principais justificativas para o baixo número de denúncias (Andrade e col., 2011ANDRADE, E. M. et al. A visão dos profissionais de saúde em relação a violência doméstica contra crianças e adolescentes: um estudo qualitativo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 147-155, 2011.; Kiss e Schraiber, 2011KISS, L. B.; SCHRAIBER, L. B. Temas médico-sociais e a intervenção em saúde: a violência contra mulheres no discurso dos profissionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1943-1952, 2011.; Ramos e Silva, 2011RAMOS, M. L. C. O.; SILVA, A. L. da. Estudo sobre violência doméstica contra a criança em unidades básicas de saúde do município de São Paulo - Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 136-146, 2011.; Cavalcanti e Minayo, 2004CAVALCANTI, M. L. T.; MINAYO, M. C. de S. Abordagem da violência intrafamiliar no Programa Médico de Família: dificuldades e potencialidades. In: BOSI, M. L. M.; MERCADO-MARTINEZ, F. J. (Org.). Pesquisa qualitativa de serviços de saúde. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 480-517.; Santos, 2005SANTOS, N. C. dos. Práticas sanitárias frente à violência intrafamiliar no âmbito do PSF: um estudo de caso. 2005. Tese (Doutorado em Ciências na área de Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2005.).
Contribuições teórico-conceituais para pensar as violências e as práticas de saúde
A escolha do cuidado como lente analítica expressa, neste texto, o esforço em auscultar no cotidiano das equipes práticas de contraponto (ou de resistência) às usuais estratégias de abordagem biopolítica, ou seja, centradas no controle disciplinar medicalizador das populações e dos corpos (Foucault, 1985FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.).
Na produção acadêmica, o conceito de cuidado tem sido utilizado por diferentes autores. Tem sido associado à integralidade e, assim, é compreendido como práticas de saúde que superam uma perspectiva exclusivamente biomédica e atentam para os aspectos sociais, culturais e subjetivos, concretizando-a na relação entre profissional de saúde e usuário (Pinheiro e Guizardi, 2004PINHEIRO, R.; GUIZARDI, F. L. Cuidado e integralidade: por uma genealogia de saberes e práticas no cotidiano. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. São Paulo: Hucitec/IMS, 2004. p. 21-36.). Além disso, uma atenção integral deve ser capaz de articular a assistência com um olhar sobre a prevenção, superando a fragmentação em troca da proposta de cuidado compartilhado em equipe (Pinheiro e Mattos, 2001PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Uerj/IMS: Abrasco, 2001.).
O ato de cuidar, segundo Merhy (2002)MERHY, E. E. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. São Paulo: Hucitec, 2002. 189 p. (Saúde em debate, 145)., pressupõe uma mudança do modelo de atenção “procedimento centrado” para um modelo de atenção “usuário centrado”, tendo a defesa da vida do usuário como principal princípio norteador. Noutras palavras, o cuidado remete a uma prática que tem como objetivo principal a saúde do usuário tomado como sujeito, compreendendo-a como a ampliação de sua “reserva técnica” para enfrentar os desafios da vida, e não tomando os diagnósticos e os aspectos biológicos do adoecimento como centrais.
Falando mais sobre isso: compreender saúde como tema da vida, assunto de todos os humanos; que tem a ver com o estoque de recursos de que dispomos para levar a vida adiante da melhor maneira possível. Essa abordagem tem algo a ver com um projeto de felicidade, com os modos de estar no mundo. Melhor maneira possível que varia para cada um e também ao longo do tempo, da história e das sociedades. Se saúde é isso tudo, é claro que para produzi-la, alimentá-la, torná-la possível, são necessários muitos elementos: boas conexões, bons encontros, projetos de vida, possibilidades de realizar esses projetos, possibilidades de viver ganhos e perdas, de enfrentar – sem desmontar – as dificuldades, as frustrações e os desencontros que também fazem parte da vida (Feuerwerker, 2013FEUERWERKER, L. C. M. Cuidar em saúde. In: FERLA, A. A. et al. (Org.). VER-SUS Brasil: cadernos de textos. Porto Alegre: Rede Unida, 2013. p. 43-57. Coleção VER-SUS/ Brasil.).
Cuidar também é considerado algo da vida. Com diferentes arranjos ao longo do tempo e segundo os diferentes modos de vida, cuidar tem algo a ver com solidariedade, com suporte, com apoio, com produção de vida. Não é tema exclusivo da saúde. É tema da produção do humano, da construção da teia de relações e encontros que conformam a vida.
Cuidar da saúde, então, é tema de todos os viventes, não somente dos profissionais de saúde. Necessária essa consideração para sabermos que nesse terreno, o do cuidado em saúde, usuários, seus familiares e vários outros personagens são participantes ativos, com pauta própria e possibilidades e impossibilidades que muitas vezes desconhecemos. E há múltiplos sentidos nesta produção (Feuerwerker, 2013FEUERWERKER, L. C. M. Cuidar em saúde. In: FERLA, A. A. et al. (Org.). VER-SUS Brasil: cadernos de textos. Porto Alegre: Rede Unida, 2013. p. 43-57. Coleção VER-SUS/ Brasil.).
Por isso o cuidado em saúde supõe um encontro entre o profissional de saúde e o usuário que se caracterize como uma relação intercessora, capaz de articular essas diferentes visões – a do profissional (saber técnico-científico, sua experiência clínica, seus valores) e a do usuário (seus projetos de vida, seus desejos, sua experiência pessoal), produzindo projetos terapêuticos a partir dessa composição (Merhy, 2002MERHY, E. E. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. São Paulo: Hucitec, 2002. 189 p. (Saúde em debate, 145).). É essa dimensão dialógica presente na ideia de cuidado em saúde que particularmente foi utilizada ao longo desta pesquisa.
Ayres (2005)AYRES, J. R. de C. M. Cuidados e reconstrução das práticas em saúde. In: MINAYO, M. C. de S.; COIMBRA JUNIOR, C. E. A. (Org.). Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 91-108. revisitou o conceito de “cuidado” a partir de diferentes leituras sobre o trabalho em saúde. Recuperando as obras de Heidegger, Foucault e as críticas atuais em relação ao trabalho em saúde na saúde coletiva, o autor aponta quatro diferentes leituras sobre o conceito: o cuidado enquanto categoria ontológica, como categoria genealógica, como categoria crítica e como categoria reconstrutiva.
A categoria ontológica resgata o conceito de cuidado a partir da obra de Heidegger, lembrando-nos que cuidar remete à condição de estar implicado, responsabilizar-se por determinado projeto e agir em função dele. Cuidar de alguém pressupõe, então, implicar-se com o outro e com seu projeto de vida, tomando esse projeto de vida como elemento norteador das práticas de saúde.
O cuidado como categoria genealógica reporta à gênese histórica social da ideia de “cuidado de si” feita por Foucault (1997)FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 134 p.. Este autor nos mostra como o cuidar foi historicamente constituindo-se como um labor, um conjunto de saberes e técnicas sobre o cuidar passíveis de serem sistematizadas, aprendidas e praticadas por meio de relações interpessoais. Há no cuidar um aspecto tecnológico cuja importância, enquanto prática social, foi gradualmente consolidando-se.
O cuidado como categoria crítica trata de questões já aqui abordadas quando foram anteriormente apresentadas as contribuições de Merhy (2002)MERHY, E. E. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. São Paulo: Hucitec, 2002. 189 p. (Saúde em debate, 145). e de Pinheiro e Guizardi (2004)PINHEIRO, R.; GUIZARDI, F. L. Cuidado e integralidade: por uma genealogia de saberes e práticas no cotidiano. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. São Paulo: Hucitec/IMS, 2004. p. 21-36. sobre o tema. A perspectiva crítica nasce da percepção de crise da área da saúde, expressa pela contradição entre o crescente avanço tecnológico (e sua intensa valorização) e os limites e problemas gerados por ele.
Diferentes autores apontam o duplo desdobramento dessa crise. O primeiro diz respeito às consequências relacionadas à assistência oferecida e seu descompasso com as necessidades e desejos dos usuários (Ayres, 2000AYRES, J. R. de C. M. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 117-120, 2000., 2004aAYRES, J. R. de C. M. Norma e formação: horizontes filosóficos para as práticas de avaliação no contexto da promoção da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 583-592, 2004a., 2005AYRES, J. R. de C. M. Cuidados e reconstrução das práticas em saúde. In: MINAYO, M. C. de S.; COIMBRA JUNIOR, C. E. A. (Org.). Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 91-108.; Pinheiro e Mattos, 2001PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Uerj/IMS: Abrasco, 2001., 2003PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Uerj/IMS: Abrasco, 2003.). O segundo refere-se aos efeitos dessa crise para os próprios profissionais, explicitados na crise de confiança nos profissionais, na dureza das intervenções, e marcado pelo abandono da perspectiva reflexiva, crítica e interativa que compõe o trabalho em saúde. Nesse contexto, a adoção do êxito técnico e a busca de uma tecnologia adequada são frequentemente tomados em si, como sinônimos de boa prática profissional (Schraiber, 2011SCHRAIBER, L. B. Quando o ‘êxito técnico’ se recobre de ‘sucesso prático’: o sujeito e os valores no agir profissional em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3041-3042, 2011.).
A leitura reconstrutiva, proposta por Ayres (2005)AYRES, J. R. de C. M. Cuidados e reconstrução das práticas em saúde. In: MINAYO, M. C. de S.; COIMBRA JUNIOR, C. E. A. (Org.). Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 91-108., integra a dimensão existencial do conceito de cuidado e a crítica às práticas de saúde atuais. Propõe que o conceito seja usado no sentido de uma mudança das práticas de saúde, de modo a organizar as ofertas tecnológicas e assistenciais a partir dos desejos e projetos do usuário, por meio de diálogo aberto e produtivo, numa articulação entre saber técnico, baseado nos conhecimentos científicos e tecnológicos, e sabedoria prática, baseada na experiência de adoecimento e expectativas dos pacientes e também do médico, em projeto compartilhado de intervenção assistencial. Dito de outro modo e nos termos do autor: o cuidado é a prática de saúde que articula “êxitos técnicos” com “sucessos práticos”.
A sabedoria prática presente no cuidado exige uma decisão dialogada, construída na negociação entre os conhecimentos do profissional (técnicos e práticos) e a perspectiva do usuário, seu conhecimento sobre si e sua vida, seus desejos e seus projetos de felicidade. “Assume-se que a saúde não é só objeto, [...] mas um modo de ‘ser-no-mundo’. Enquanto tal, utilizar ou não certas tecnologias, desenvolver ou não novas tecnologias passa a ser entendido como uma decisão entre outras [...] um exercício fundamental de autonomia humana” (Ayres, 2000AYRES, J. R. de C. M. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 117-120, 2000., p. 120).
Valorizar a sabedoria prática que compõe o cuidado não significa negar as tecnologias (conhecimentos técnicos, instrumentos e exames) e sua importância na assistência à saúde, mas utiliza-las de modo crítico e reflexivo, indagando sobre sua conveniência frente à situação concreta (Schraiber, 2011SCHRAIBER, L. B. Quando o ‘êxito técnico’ se recobre de ‘sucesso prático’: o sujeito e os valores no agir profissional em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3041-3042, 2011.).
Em relação à violência, pode-se dizer que a sabedoria prática e a porção relacional, dialógica do trabalho em saúde assumem um papel central, já que são elementos fundamentais para a equipe no contato com as famílias. Se considerarmos como violenta toda a relação que reduz o outro a uma condição de objeto (Chauí, 2002CHAUÍ, M. de S. Convite a filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2002.), a atuação da equipe frente a situações de maus-tratos não pode traduzir-se numa atitude puramente prescritiva. A associação – feita por Ayres (2000)AYRES, J. R. de C. M. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 117-120, 2000. entre cuidado e exercício de autonomia e por Merhy entre cuidado e enriquecimento dos territórios existenciais – ganha, nesse contexto, novos significados: práticas que se traduzam em modos não violentos de relação, constituindo-se então como um contraponto às violações vividas pelas famílias cotidianamente.
Analisar a atuação dos profissionais da atenção básica em situações de violência exigiu uma definição sobre qual atenção básica abordaríamos, visto que há uma grande diversidade de modelos de atenção e arranjos tecnoassistenciais. A opção pelas Equipes de Saúde da Família baseou-se na expansão desse modelo no país e em suas características, que possibilitam maior aproximação entre as equipes de saúde e a comunidade. Nosso pressuposto foi de que essa aproximação poderia facilitar a identificação dos casos e tensionar as equipes a desenvolver estratégias para o problema.
O presente artigo tem como objetivo analisar as estratégias de cuidado construídas por equipes de saúde da família frente às situações de violência doméstica decorrentes de situações de violência contra as crianças e adolescentes.
A escolha de Diadema (SP) como campo de pesquisa justificou-se pelos investimentos feitos no município no sentido de estruturação e consolidação da ESF e de uma rede de atenção a pessoas vítimas de violência. A definição da unidade básica de saúde participante foi produzida adotando-se como critérios o tempo de implantação das equipes de saúde da família, sua configuração atual (equipes completas) e o envolvimento dos profissionais com a temática da violência (participação em capacitações, reuniões de rede).
Metodologia
A análise do cuidado prestado ao usuário foi feita a partir de casos traçadores. Esse método permite avaliar o trabalho de uma equipe de saúde pelo mapeamento da trajetória de um caso, a partir de diferentes fontes e pontos de vista. O seu pressuposto é que a análise em profundidade de um caso específico – que pode ser um tipo de agravo ou uma patologia –, por meio da reconstrução da história deste atendimento, pode esclarecer como se dão a organização do trabalho e a produção do cuidado pela equipe, sinalizando nós críticos e possibilidades criadas pelos profissionais e usuários (Kessner e col., 1973KESSNER, D. M.; KALK, C. E.; SINGER, J. Assessing health quality: the case for tracers. New England Journal of Medicine, Waltham, v. 288, n. 4, p. 189-194, 1973.; Silva, 2010SILVA, K. L. et al. Atenção domiciliar como mudança do modelo tecnoassistencial. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n .1, p. 166-176, 2010.; Merhy e Feuerwerker, 2008MERHY, E. E, FEUERWERKER, L. M. Atenção domiciliar: medicalização e substitutividade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. (Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde). Disponível em: <http://www.medicina.ufrj.br/micropolitica/pesquisas/atencaodomiciliar/textos/ad-medicalizacao_e_substitutividade.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2011.
http://www.medicina.ufrj.br/micropolitic... ; Feuerwerker e Merhy, 2011FEUERWERKER, L. C. M.; MERHY, E. E. Como temos armado e efetivado nossos estudos, que fundamentalmente investigam políticas e práticas sociais de gestão e de saúde? In: MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. Caminhos para análise das políticas de saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, 2011. p. 290-305. Disponível em: <http://www.ims.uerj.br/ccaps/wp-content/uploads/2011/10/Capitulo-15.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2014.
http://www.ims.uerj.br/ccaps/wp-content/... ).
Os dados foram coletados por meio de entrevistas em grupo, com roteiro semiestruturado, em três etapas: 1) entrevistas com duas equipes de saúde da família, psicóloga e assistente social da unidade básica de saúde; 2) entrevistas com profissionais de outros serviços que participaram do acompanhamento dos casos (Centro de Referência Especializada em Assistência Social, Conselho Tutelar e escola); e 3) análise dos documentos (prontuários, relatórios de diferentes serviços e outros). Foram realizados oito encontros na UBS, um no Conselho Tutelar, um no CREAS e um na escola do bairro, compondo um total de 11 entrevistas e 27 participantes.
A escolha dos casos traçadores foi feita pelas próprias equipes de saúde, a partir das situações de violência doméstica contra a criança e adolescentes por eles atendidas, sendo solicitado: a) um caso “bem-sucedido”, b) um caso considerado “difícil” e c) um “caso típico”, ou seja, que ocorre com maior frequência no cotidiano de trabalho. O roteiro utilizado centrou-se na produção das equipes, incluindo a nomeação dos tipos de violência identificados pelos profissionais, as ações e profissionais envolvidos em seu enfrentamento, o modo de definição das ações e as articulações intersetoriais construídas. Abordamos também os critérios utilizados pelas equipes para classificar o caso e as sugestões dos profissionais para qualificar o atendimento às situações de violência.
As entrevistas foram gravadas e transcritas. Foram analisados cinco casos traçadores, sistematizados por meio de fluxogramas analisadores que possibilitam a representação gráfica do atendimento prestado ao usuário. Na construção do fluxograma adaptamos a ferramenta proposta por Merhy (1997)MERHY, E. E. et al. Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em saúde: a informação e o dia a dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: MERHY, E. E.; ONOCKO, R. (Org.). Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 113-150., utilizando-a para descrever o conjunto de ações oferecidas à família em situação de violência, incluindo os diferentes serviços da rede intersetorial, além dos de saúde.
Os participantes autorizaram o uso das informações mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade.3
Resultados
Quando a “queixa” é a violência: as estratégias, saberes e sentidos das práticas das equipes
A observação sobre os atendimentos propostos em cada um dos casos e o modo como foram definidos indicam que a atenção básica organizada a partir da Estratégia de Saúde Família oferece condições favoráveis para a construção de práticas voltadas ao enfrentamento da violência doméstica.
As reuniões de equipe, as visitas domiciliares para aproximação com as famílias e, principalmente, o conhecimento das agentes comunitárias sobre a dinâmica familiar e do território foram amplamente utilizados nas estratégias de cuidado analisadas.
Diferentemente dos resultados obtidos por Andrade e colaboradores (2011)ANDRADE, E. M. et al. A visão dos profissionais de saúde em relação a violência doméstica contra crianças e adolescentes: um estudo qualitativo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 147-155, 2011., observamos que nas equipes pesquisadas as situações de violência contra a criança e o adolescente foram tomadas como objeto de trabalho das equipes. A análise dos fluxogramas permitiu identificar cinco tipos de estratégias de manejo dos casos, combinadas de modo distinto em cada situação estudada: 1) estratégias de aproximação e apoio; 2) estratégias de monitoramento e controle; 3) avaliação e tratamento em saúde; 4) articulação em rede; 5) intervenções legais/médicas compulsórias (internação ou abrigamento).
Destaca-se o fato de que o início do atendimento se deu, na maioria dos casos analisados, por demanda do usuário, em dois dos quais a comunidade reconheceu e utilizou a unidade básica de saúde como uma referência para lidar com a situação de violência doméstica contra crianças e adolescentes.
A reunião de equipe com a participação da assistente social e/ou psicóloga foi apontada como o principal espaço para definição das estratégias de cuidado, um modo de integrar a visão de diferentes profissionais, mas também uma estratégia de proteção da equipe, forma de compartilhar responsabilidades e dar continência aos aspectos emocionais que as situações de violência mobilizam nos profissionais. O dado pode sinalizar um esforço de contraposição à centralidade do saber biomédico e fragmentação do cuidado.
Houve participação de todos os profissionais da equipe na produção do cuidado em pelo menos um dos casos; entretanto, há evidente predomínio da atuação das agentes comunitárias de saúde, da assistente social e da psicóloga, sinalizando as abordagens mais frequentemente convocadas no enfrentamento às situações de violência por essas equipes de saúde da família.
A situação de violência convida os profissionais de saúde a construírem novas aproximações, que passam por uma compreensão da história de vida dos usuários, de suas redes familiares e sociais, das vulnerabilidades e dos aspectos protetivos presentes em cada caso. O diagnóstico sociorrelacional da família passa a ter um grande peso na definição do trabalho da equipe, enquanto os saberes de psicólogos, assistentes sociais e agentes comunitários de saúde ocupam um lugar central.
É possível que os deslocamentos que os temas médico-sociais provocam no funcionamento habitual das equipes tragam a possibilidade de experiências importantes para a consolidação do trabalho multiprofissional e para a experiência de um trabalho que pode aproximar a equipe do exercício da sabedoria prática em busca de um sucesso prático que não se restrinja ao êxito técnico (Ayres, 2000AYRES, J. R. de C. M. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 117-120, 2000., 2001AYRES, J. R. de C. M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 63-72, 2001. e 2004bAYRES, J. R. de C. M. Norma e formação: horizontes filosóficos para as práticas de avaliação no contexto da promoção da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 583-592, 2004a.; Schraiber, 2011SCHRAIBER, L. B. Quando o ‘êxito técnico’ se recobre de ‘sucesso prático’: o sujeito e os valores no agir profissional em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3041-3042, 2011.).
O agente comunitário de saúde foi apontado como ator fundamental para a definição e validação das ações planejadas pela equipe, diferindo dos resultados encontrados por Ramos e Silva (2011)RAMOS, M. L. C. O.; SILVA, A. L. da. Estudo sobre violência doméstica contra a criança em unidades básicas de saúde do município de São Paulo - Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 136-146, 2011.. O conhecimento desse profissional sobre o cotidiano das famílias e da comunidade foi constantemente acionado. Nos casos analisados os agentes cumpriram diferentes papéis: alertava às equipes sobre os riscos ou o provável fracasso da ação planejada; funcionava como “mediador de conflitos” entre profissionais e moradores da comunidade; e ajudava a equipe a escolher o melhor dispositivo (consulta ou visita domiciliar), a identificar possíveis “aliados” na família ou vizinhança (quem fica mais com a criança? Quem o adolescente ouve mais?).
O monitoramento dos casos e dos efeitos das intervenções propostas no cotidiano das famílias foi também papel desempenhado em grande parte pelos agentes comunitários, efetivado por meio das visitas domiciliares à família e, não raro, pelas informações trazidas por vizinhos e outros parentes. Esse trabalho é possivelmente o mais tenso e delicado, visto que o agente comunitário é frequentemente identificado pela comunidade como o autor da denúncia de situações de maus-tratos.
A participação dos profissionais do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (psicólogos e assistentes sociais) nas reuniões de discussão de casos foi apontada pelas equipes como um diferencial importante, que possibilitou maior agilidade e resolutividade. Esse diferencial se deu tanto pela possibilidade de ofertar ações específicas do núcleo desses profissionais (uma avaliação psicológica, por exemplo) como pelo compartilhamento de saberes e fazeres, permitindo aos profissionais da equipe de saúde da família maior segurança para assumirem certas ações.
A atuação da psicóloga e da assistente social junto às equipes foi frequente no manejo dos casos estudados e mostrou diferentes modos de compartilhar saberes e práticas. No caso da psicóloga, a contribuição se deu principalmente pela participação em reuniões e oferta de ações específicas, além de compartilhamento da discussão e reflexão sobre os casos atendidos. Já a assistente social contribuiu também com ações conjuntas com agentes comunitários, como visitas domiciliares, participação em reuniões com outros serviços da rede intersetorial e coordenação de grupos com adolescentes. Um compartilhamento que incluiu o fazer conjunto, em ato.
Os médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem foram os profissionais com participação mais discreta no atendimento às situações de violência estudadas. As consultas médicas foram utilizadas especificamente para avaliação geral do estado de saúde e pesquisa de possíveis infecções por hepatite e HIV, compondo quase que exclusivamente as estratégias de avaliação e tratamento descritas anteriormente. Os enfermeiros atuaram como articuladores da equipe e também agilizando a comunicação entre os profissionais.
É interessante observar que, apesar de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem serem os profissionais que menos se envolveram no atendimento direto aos usuários em situações de violência, em alguns casos são eles os profissionais que mais se encontram com esses pacientes, visto que muitas dessas famílias mantêm um frágil vínculo com a UBS, muitas vezes exclusivamente para atendimento de demandas espontâneas (por meio do acolhimento). O atendimento manteve, entretanto, um caráter pontual e não foram encontradas no prontuário anotações que sugerissem o uso desses encontros como oportunidade para vincular esses pacientes a um cuidado mais longitudinal, evidenciando as contradições ainda existentes entre o atendimento ofertado e a proposta da integralidade Pinheiro e Mattos, 2001PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Uerj/IMS: Abrasco, 2001., 2003PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Uerj/IMS: Abrasco, 2003.; Pinheiro e Guizardi, 2004PINHEIRO, R.; GUIZARDI, F. L. Cuidado e integralidade: por uma genealogia de saberes e práticas no cotidiano. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. São Paulo: Hucitec/IMS, 2004. p. 21-36.). Noutras palavras, observou-se limitada atuação dos médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem na aproximação e manejo dessas situações, apesar dos diversos encontros entre eles e as famílias, apontando um aspecto a ser melhor explorado pelas equipes.
Um importante desafio é o de não reproduzir no interior da UBS o modelo de “encaminhamento” que pouco contribuiria para ampliação da responsabilização e de saberes e práticas da própria equipe. Observou-se a preocupação dos profissionais do NASF em valorizar a discussão dos casos e seus desdobramentos com toda a equipe de saúde da família. Por outro lado, as intervenções conjuntas foram realizadas principalmente pela assistente social e as agentes comunitárias, sendo escassos os momentos em que se propôs uma atuação conjunta com médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Cabe aqui uma reflexão sobre como, na própria organização das ações dos serviços, acaba-se reforçando a cisão entre aspectos sociais e biomédicos, dificultando a incorporação desses saberes na prática de todos os profissionais. A divisão do trabalho no interior das equipes da ESF muitas vezes acaba por reproduzir a abordagem biomédica das especialidades, distanciando-se assim da lógica da atenção integral e empobrecendo o cuidado.
As diferentes estratégias para o manejo dos casos foram concretizadas por meio de ações no âmbito da UBS, incluindo consultas médicas, exames laboratoriais, visitas domiciliares de agentes comunitários de saúde, assistente social, enfermeiros e técnicos de enfermagem, atendimentos odontológicos e atendimentos individuais e familiares feitos pela assistente social, atendimentos psicológicos e grupos educativos com adolescentes.
A oferta de ações, “o projeto terapêutico”, foi formulada caso a caso, levando em consideração a singularidade dos casos, incluindo o risco a que a criança/adolescente estava exposta (de adoecimento, risco à integridade física), as redes sociais e familiares de que dispunha e as informações e percepções dos profissionais sobre as famílias – incluindo os aspectos subjetivos envolvidos nessa leitura.
Um aspecto relevante é o senso de responsabilização pelas famílias, manifestado em diversos momentos das entrevistas. A definição de equipes de referência para territórios delimitados, visando maior a responsabilização dos profissionais, mostrou seus efeitos na prática dessas equipes.
O esforço em “cercar o caso” – termo usado pelos próprios profissionais – traduz ao mesmo tempo a preocupação em monitorar de perto as famílias e os desdobramentos das ações propostas e o esforço em acompanhar a participação dos outros serviços da rede intersetorial no cuidado, a partir das pactuações feitas.
Os múltiplos sentidos dados aos termos (“cercar o caso”, “dar uma olhada”) usados para caracterizar responsabilidades das equipes abrem margem para uma reflexão sobre os vários sentidos que podem (e ocupam) as práticas dos profissionais e o modelo assistencial que perpassou os casos analisados.
O controle de frequência aos atendimentos e a internação compulsória no pronto-socorro são bons exemplos de atendimentos de caráter “prescritivo”, enquanto controle “dos corpos” e das famílias no sentido da biopolítica denunciada por Foucault (1985)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. e nomeadas anteriormente como estratégias de monitoramento e controle e de internações compulsória.
Por outro lado, também há a preocupação em preservar e fortalecer os vínculos com as famílias, em ampliar o diálogo com os usuários e seus projetos, bem como entre os profissionais envolvidos, no sentido reconstrutivo de cuidado proposto por Ayres (2005)AYRES, J. R. de C. M. Cuidados e reconstrução das práticas em saúde. In: MINAYO, M. C. de S.; COIMBRA JUNIOR, C. E. A. (Org.). Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 91-108. e da centralidade do usuário proposta por Merhy (2002)MERHY, E. E. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. São Paulo: Hucitec, 2002. 189 p. (Saúde em debate, 145).. O agendamento de consultas frequentes com familiares e com os próprios adolescentes, o esforço em pactuar mudanças possíveis (no sentido de redução de danos) com os adolescentes e suas mães, a estruturação de grupos com adolescentes que visam à troca de experiência e ao fortalecimento das redes sociais são exemplos dessa tentativa de mudar as práticas de saúde e a relação entre profissionais e usuários, caracterizando as estratégias de aproximação e apoio.
Essa ambivalência entre um modelo de “defesa da vida” dos usuários e um modelo “controle da vida e dos corpos” presente no campo da saúde mostra, assim, sua presença viva nas práticas desses profissionais.
(In)Visibilidade das violências domésticas
Os cinco casos selecionados demonstram a variedade de situações de violência doméstica atendidas pelas equipes, como ilustra o Quadro 1.
Os casos escolhidos pelas equipes transitaram por diferentes tipos de violência contra crianças e adolescentes (negligência, agressões físicas e abuso sexual). Mostraram ainda a coexistência – em grande parte dos casos – de situações de violência doméstica envolvendo outros membros da família, também identificadas e nomeadas pelos profissionais.
As abordagens mostraram-se centradas no atendimento e proteção à criança, e, não raro, as outras formas de violência – particularmente a violência contra a mulher – ficaram à margem das ações inicialmente definidas. As violências contra idosos e crianças/adolescentes foram as que mais apareceram como objeto de atuação da equipe em momentos anteriores, em especial as situações de negligência nos cuidados de saúde e alimentação.
A violência contra a mulher, também presente nas famílias em questão, permanece como um fenômeno quase invisível – para os profissionais, para os familiares e mesmo para as próprias mulheres agredidas, como nos mostra Schraiber e colaboradores (2006)SCHRAIBER, L. et al. Violência e saúde: estudos científicos recentes. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 112-120, ago. 2006. Número especial..
As questões de gênero e seu impacto na prática dos profissionais de saúde são tema ainda hoje pouco valorizadas nas pesquisas, e os resultados deste estudo sugerem a necessidade de seu aprofundamento. Nos casos analisados, o olhar da equipe sobre as mulheres, em especial as mães, seus sofrimentos e suas necessidades de saúde, pareceu-nos ficar frequentemente em segundo plano. As ações voltadas à proteção e ao apoio à mulher vítima de violência foram realizadas somente em momentos em que o agravamento das agressões já constituía risco à sua vida e a de seus filhos.
Por outro lado, as ações desenvolvidas frente às situações de negligência, em que a mãe era identificada como “agressora”, foram as que envolveram um maior número de serviços ou que desencadearam intervenções mais duras por parte da equipe. Noutras palavras, mobilizaram nas equipes o forte sentimento de que era necessário “tomar uma atitude”, fazer alguma coisa. A relação entre a situação de negligência à criança e as agressões contra a mãe, como descritas por Levendosky e Graham-Bermann (2001)LEVENDOSKY, A. A.; GRAHAM-BERMANN, S. A. Parenting in battered women: the effects of domestic violence on women and their children. Journal of Family Violence, New York, v. 16, n. 2, p. 171-192, 2001., não foram valorizadas pelos profissionais nos casos analisados.
Sugerimos com isso que as questões de gênero e, principalmente, os valores sociais relacionados à maternidade podem ser um elemento importante para compreendermos as escolhas das equipes nesses casos, merecendo uma reflexão mais aprofundada.
“Difícil”, “bem-sucedido” e “típico”: os desafios para as equipes de saúde
A complexidade das situações de violência doméstica coloca aos profissionais de saúde desafios ético-filosóficos e práticos, vividos cotidianamente em cada caso atendido.
O primeiro deles retoma as questões éticas ligadas ao reconhecimento e respeito à autonomia dos sujeitos e ao papel dos profissionais de saúde em situações que envolvem risco a outras pessoas ou a si mesmos.
O termo “difícil” – critério usado na escolha dos casos traçadores – foi utilizado pelas equipes de saúde da família e demais serviços para descrever os casos em que houve impasse entre as ações e as mudanças propostas pelas equipes e os desejos e o comportamento dos usuários, colocando-os em situação de risco ou dano à saúde. No caso de situações de violência doméstica, as escolhas individuais, o modo de organização da casa e da rotina familiar e o uso abusivo de drogas têm fortes repercussões na saúde e na vida de toda a família.
O dilema traduz-se na decisão entre “tomar uma atitude” ou “preservar os vínculos com a família”, ou seja, optar por uma ação mais radical que pode, no limite, separar os membros da família ou por ações de aproximação, suporte e orientação. A escolha, mais do que uma posição tomada em determinado momento do atendimento, acompanha os profissionais envolvidos e se recoloca a cada nova informação sobre o caso. Interessante notar que essa decisão é tomada como uma responsabilidade exclusiva dos profissionais, evidenciando que a definição das estratégias de cuidado não é pensada como algo a ser compartilhado (e negociado) com os usuários e sua família, como proposto por Ayres (2005)AYRES, J. R. de C. M. Cuidados e reconstrução das práticas em saúde. In: MINAYO, M. C. de S.; COIMBRA JUNIOR, C. E. A. (Org.). Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 91-108. e Merhy (2002)MERHY, E. E. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. São Paulo: Hucitec, 2002. 189 p. (Saúde em debate, 145)..
A identificação de casos considerados “bem-sucedidos” foi um desafio à parte para os profissionais, mostrando diferentes leituras sobre o que é “sucesso” nesse contexto.
Eu vejo assim: o PTS (Projeto Terapêutico Singular) ele visa ter metas finais. Mas ele não deveria ter metas finais. Deveria galgar. Nisso a gente pode ser bem-sucedido: a gente galgou uma meta parcial. Mas eu acho difícil chegar até o fim [...] (Médico – equipe A).
Quando a gente faz um plano de ação e a pessoa atende, cumpre as metas que a gente faz. Como se fosse um diagnóstico mesmo. Faz um diagnóstico, um plano de ação e a pessoa segue, quer se ajudar também. Porque não adianta a gente só orientar, orientar, orientar e ele não entender. Tem a parte do paciente (Enfermeira – equipe A).
Eu acho que o caso foi bem-sucedido, porque, assim, os contatos foram feitos, as meninas... Ela que deixou de fazer a parte dela. Da parte do posto (de saúde) foi muito bem-sucedido [...] (Técnica de enfermagem – Equipe A).
Sim, porque é o sentido do trabalho, pegar o momento agudo (da violência), quando está bem ruim a situação, e tentar alternar de alguma maneira... ela alterou minimamente, pode ter mil outras questões, mas se ela conseguiu proteger um pouquinho melhor o membro (da família) é bem-sucedido [...] (Psicólogo – CREAS).
No caso considerado “bem-sucedido”, esse foi um dos elementos apontados pela equipe: soube adotar uma medida mais radical no momento em que o adolescente corria risco iminente e houve adequada resposta da rede intersetorial. O “bem-sucedido” depende do relacionamento entre os profissionais da equipe e demais serviços da rede, de modo a garantir as ações pactuadas para o atendimento do caso.
Interessante observar que o caso “bem-sucedido” foi um dos que implicou maior aproximação entre a equipe e a família do adolescente. O abrigamento foi feito a partir de uma solicitação da família, considerando suas possibilidades e seus conhecimentos sobre o adolescente, o território e os riscos que ele corria. Entretanto, esse aspecto não foi valorizado pela equipe como um elemento para o sucesso da estratégia.
O sucesso foi compreendido pelos profissionais como êxito técnico, obtido a partir das ações dos profissionais (Ayres, 2000AYRES, J. R. de C. M. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 117-120, 2000.; Schraiber, 2011SCHRAIBER, L. B. Quando o ‘êxito técnico’ se recobre de ‘sucesso prático’: o sujeito e os valores no agir profissional em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3041-3042, 2011.). A autonomia dos usuários, seus desejos e escolhas ainda são vistos como um problema para o trabalho da equipe, apontados muitas vezes como a causa do insucesso nos atendimentos. Nesse sentido, o sucesso prático de que fala Ayres (2000)AYRES, J. R. de C. M. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 117-120, 2000., ou seja, a utilização dos conhecimentos técnicos mediante um diálogo com os usuários e seus projetos, não foi identificado pelos profissionais como elemento para o êxito das estratégias de cuidado.
Compreender a autonomia dos sujeitos como potência (e não como entrave) e possibilitar a participação dos usuários na definição de seus “projetos terapêuticos” são possivelmente os principais desafios atuais para as equipes. E sem esse elemento de produção compartilhada o risco de insucesso aumenta muito (Merhy e Feuerwerker, 2008MERHY, E. E, FEUERWERKER, L. M. Atenção domiciliar: medicalização e substitutividade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. (Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde). Disponível em: <http://www.medicina.ufrj.br/micropolitica/pesquisas/atencaodomiciliar/textos/ad-medicalizacao_e_substitutividade.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2011.
http://www.medicina.ufrj.br/micropolitic... ).
Outro desafio é lidar com o entrelaçamento de situações de violência doméstica, uso de drogas e o narcotráfico. Na descrição das equipes, na situação “típica” há uma articulação importante entre violência doméstica contra a criança e o adolescente, aumento do grau de vulnerabilidade da criança (por maior permanência na rua), exposição ao uso de drogas e envolvimento com a criminalidade, traçando um círculo vicioso.
A aproximação entre a equipe de saúde da família e a comunidade possibilita uma relação de longo prazo com as famílias e permite testemunhar a trajetória de crianças e adolescentes do bairro. A violência doméstica e, principalmente, a perpetuação de vulnerabilidade da comunidade é descrita pelos profissionais como fonte de angústia, desesperança e revolta.
Os avanços em relação aos atendimentos à situação de violência são ressaltados pela equipe, mesmo considerando todas essas dificuldades apontadas anteriormente. O principal deles diz respeito ao lugar da unidade básica de saúde na comunidade em relação a esses temas, reconhecida e efetivada como um espaço de acolhimento.
Agora, o que eu acho que é legal desta unidade e do nosso trabalho é essa coisa. O povo tem aqui como referência (choro)... O fato das pessoas poderem chegar e dizer: “tô mal”. Isso é muito legal. A gente não sabe o que é a pessoa chegar num equipamento e as pessoas estarem recebendo a gente. [...] Mas ela (a usuária) saber que quando chegar aqui vai ter as técnicas, o enfermeiro, a médica, as agentes. Que alguém vai acolher, vai conversar. Isso é muito legal e eu acho que isso a gente construiu. Eu particularmente fico muito feliz quando as pessoas falam [...] (Assistente social – UBS).
O fato de tornar-se uma referência para a comunidade é visto pelos profissionais como uma grande conquista numa comunidade tradicionalmente excluída socialmente. No meio das contradições, dos dilemas, das práticas de controle ou nos diálogos foi possível observar o envolvimento e o senso de responsabilização pelas famílias. Dito de outra forma, os sinais do cuidado ontológico de que fala Ayres (2005)AYRES, J. R. de C. M. Cuidados e reconstrução das práticas em saúde. In: MINAYO, M. C. de S.; COIMBRA JUNIOR, C. E. A. (Org.). Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 91-108. ou do cuidado intercessor (Merhy e Feuerwerker, 2008MERHY, E. E, FEUERWERKER, L. M. Atenção domiciliar: medicalização e substitutividade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. (Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde). Disponível em: <http://www.medicina.ufrj.br/micropolitica/pesquisas/atencaodomiciliar/textos/ad-medicalizacao_e_substitutividade.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2011.
http://www.medicina.ufrj.br/micropolitic... ).
Considerações finais
A pesquisa propôs-se a uma análise qualitativa que permitiu reflexões e apontamentos, a serem avaliados por gestores e profissionais da rede intersetorial e aprofundados em novas pesquisas.
Os dados de prevalência de situações de violência doméstica e, sobretudo, os sentimentos e dilemas observados indicam ser esse um agravo que dificilmente poderá manter-se à margem das propostas de educação permanente voltados aos profissionais da atenção básica. A proximidade com os territórios e seus modos de vida faz da violência doméstica um tema frequente no trabalho das equipes de saúde. A falta de preparo dos profissionais potencializa os sentimentos de medo, angústia e impotência e expõe – os profissionais e as famílias – às consequências de ações inadequadas ou pouco resolutivas.
Os resultados apontam, entretanto, que a abordagem sobre o tema não pode se limitar a uma aproximação conceitual sobre os tipos de violência e sinais a serem observados pelas equipes. Eles explicitam a necessidade de espaços de reflexão sobre a prática, a partir de casos concretos atendidos pelas equipes, tomando como objeto os dilemas, os aspectos subjetivos e éticos que permeiam a definição das ações a serem tomadas. Espaços que possibilitem uma leitura multiprofissional da situação por meio do trabalho em equipe, com decisões compartilhadas e a reavaliação constante das escolhas feitas.
Outro aspecto particularmente importante para a qualificação do trabalho – e não somente para as situações de violência, mas para qualquer trabalho em saúde – é promover entre as equipes uma reflexão sobre saúde como exercício de autonomia e incluir a negociação com os usuários como elemento fundamental na definição de projetos terapêuticos. A concepção dos profissionais sobre a autonomia e participação do usuário no cuidado é um assunto que merece novos estudos e pode contribuir para o avanço da desejada atenção integral e centrada no usuário.
A concepção sobre gênero e sua influência nas práticas dos profissionais de saúde é outro tema a ser explorado em novas pesquisas. Nos casos analisados, pareceu-nos um ponto fundamental para compreender visibilidades e invisibilidades das violências, as ações tomadas e seus sentidos, os sentimentos que mobilizaram nas equipes e que influenciaram fortemente as estratégias construídas.
Os resultados apresentados privilegiaram a análise dos arranjos tecnológicos e das estratégias construídas nas e pelas equipes de saúde da família: atores envolvidos, saberes utilizados e os modos e espaços como as ações são definidas e implementadas. O enfrentamento às situações de violência doméstica necessita, entretanto, de uma abordagem intersetorial e que pressupõe em sua construção uma micropolítica própria, com a participação de outros atores e saberes na composição do cuidado. A análise dessas relações intersetoriais não foi o foco deste estudo, mas os dados encontrados sugeriram importantes diferenças entre os serviços: distintas visões sobre as famílias, expectativas e compreensões diferentes sobre o próprio papel no atendimento dos casos e o dos outros serviços. Ruídos e diálogos intersetoriais interessantes de serem explorados mais profundamente. Finalizamos assim, apontando o desafio de construirmos pesquisas que valorizem as múltiplas vozes dos diversos sujeitos da família e da população usuária dos serviços.
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- 1Este artigo apresenta parte dos resultados obtidos em pesquisa desenvolvida por Tatiana das Neves Fraga Moreira no Programa de Pós Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (mestrado).
- 2A categoria agressões graves utilizada no estudo incluem chutes, murros ou mordidas, bater com objetos, espancar, queimar alguma parte do corpo, ameaçar ou efetivamente usar armas contra a criança e o adolescente (Assis e Avanci, 2004ASSIS, S. G. de; AVANCI, J. Q. Abuso psicológico e desenvolvimento infantil. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Violência faz mal à saúde. Brasília, DF, 2004. p. 47-58.).
- 3Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo na 4ª/11 sessão de 13/05/2011. OF COEP/193/11.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2014
Histórico
- Recebido
09 Set 2013 - Recebido
05 Fev 2014 - Aceito
13 Mar 2014