Resumos
Este artigo apresenta os resultados de uma investigação dirigida ao delineamento dos principais problemas (bio)éticos identificados pelos membros das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) do município de Viçosa (MG). Trata-se de estudo com abordagem qualitativa, situando-se no campo da pesquisa social. A investigação foi realizada por meio da aplicação de questionário semiestruturado com perguntas abertas e fechadas aos profissionais - médicos, profissionais de enfermagem e agentes comunitários de saúde - que atuam na ESF. Realizouse a apreciação das respostas pela técnica de análise de conteúdo - mais especificamente, sua modalidade temática -, em razão de sua adequação à investigação qualitativa na área da saúde. Participaram da investigação 73 profissionais de 15 equipes da ESF. Observou-se que grande parte dos entrevistados tinha dificuldade para identificar problemas de cunho (bio)ético em seu processo de trabalho. Ainda assim, foi possível categorizar cinco grandes grupos de problemas (bio)éticos vivenciados pelas equipes: os relacionados à desigualdade de acesso aos serviços de saúde; os relacionados à relação ensino-trabalho-comunidade; os relacionados ao sigilo e à confidencialidade; os relacionados aos conflitos entre equipe e usuários; e os relacionados aos conflitos entre membros da equipe. Conclui-se que, mesmo que aparentemente mais sutis - se comparados às questões (bio)éticas que se passam nas instituições hospitalares -, existem situações de conflitos morais atinentes ao âmbito da atenção primária à saúde que corroem o processo de trabalho e o alcance da promoção da integralidade do cuidado.
Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Ética; Bioética
Introdução
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) é um modelo de atenção à saúde - implementado pelo Ministério da Saúde a partir de 1994 - que articula complexamente (1) a promoção da saúde e (2) o cuidado - diagnóstico, tratamento, prevenção, reabilitação e recuperação - às pessoas doentes11Informações obtidas em: BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégia Saúde da Família. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_esf.php>. Acesso em: 17 dez. 2012.. Pensada originalmente como um programa (Programa de Saúde da Família - PSF), a ESF tem concorrido decisivamente para a reorganização da Atenção Primária à Saúde (APS) e para o pleno desenvolvimento, no âmbito dos serviços, dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, equidade, integralidade, descentralização, resolutividade, regionalização e hierarquização, participação popular e complementaridade do setor privado22Informações obtidas em: BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégia Saúde da Família. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_esf.php>. Acesso em: 17 dez. 2012.. Esse processo tem se viabilizado a partir do trabalho incansável das equipes da ESF, formadas por, no mínimo, um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e quatro a seis agentes comunitários de saúde (ACS). Deve ser destacado que profissionais da Saúde Bucal - um dentista, um auxiliar de consultório dentário e um técnico em higiene dental - também podem integrar a equipe (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. PNAB: Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012. (Série E). Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2012.
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco... ). Com o intuito de aprimorar as ações da ESF, o Ministério da Saúde aprovou, em 2008, a criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), que conta com a presença de profissionais de funções não coincidentes: assistente social; farmacêutico; fisioterapeuta; fonoaudiólogo; médico acupunturista; médico ginecologista; médico homeopata; médico pediatra; médico psiquiatra; nutricionista; profissional da educação física; psicólogo; terapeuta ocupacional (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. PNAB: Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012. (Série E). Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2012.
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco... ). Formado dessa maneira, o NASF vincula-se a um total de cinco a 20 equipes de ESF (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. PNAB: Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012. (Série E). Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2012.
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco... ).
Com profissionais da saúde de diversas áreas, as equipes multidisciplinares da ESF enfrentam, na construção dos vínculos entre si e com as pessoas da coletividade, uma série de questões éticas, que podem passar despercebidas, deixando de ser identificadas (Motta, 2012MOTTA, L. C. S. O cuidado no espaço-tempo do oikos: sobre a bioética e a Estratégia de Saúde da Família. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, p. 581, 2012.). Nesses termos, Zoboli e Fortes (2004)ZOBOLI, E. L. C. P.; FORTES, P. A. C. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa de Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1690-1699, 2004., descrevem diferentes ordens de problemas (bio)éticos33Optou-se por essa grafia para não adentrar nos meandros do debate teórico sobre as distinções e similaridades entre ética e bioética (Rego; Palácios; Siqueira-Batista, 2009). na ESF, destacando problemas éticos nas relações com usuários e família; nas relações da equipe; e nas relações com a organização e o sistema de saúde. Tais questões podem ser abordadas a partir de processos de educação continuada e de educação permanente, que poderão auxiliar os profissionais nos processos de construção do próprio conhecimento, o que se relaciona à capacidade de identificar questões e de resolvê-las utilizando princípios e conceitos morais que possam sustentar as melhores decisões (Zoboli, 2007ZOBOLI, E. L. C. P. Nurses and primary care service users: bioethics contribution to modify this professional relation. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 20, n. 3, p. 316-320, 2007.). É nesse contexto que se tornam necessárias e pertinentes as investigações dirigidas à avaliação e à delimitação dos problemas (bio)éticos no espaço da ESF. Tal etapa se faz essencial para que, em um segundo momento, sejam implementadas e, em seguida validadas as estratégias pedagógicas para abordagem de tais problemas, com o objetivo de tornar as equipes mais aptas a lidar com as questões (bio)éticas que se apresentam e com a construção do cuidado integral à saúde, aspecto essencial para a genuína construção do SUS.
Com base nessas considerações, este artigo aborda os principais problemas (bio)éticos identificados pelos trabalhadores da ESF da cidade de Viçosa, município de médio porte da Zona da Mata de Minas Gerais.
Percurso metodológico
Caracterização da área de estudo
Este estudo foi realizado no Município de Viçosa, que possui área territorial de 299,39 km2. Geograficamente pertence à microrregião de Viçosa e à mesorregião da Zona da Mata mineira, composta por 142 municípios, contabilizando um total aproximado de três milhões de habitantes. A população de Viçosa é de 72.200 habitantes - 93,2% residindo na zona urbana e 6,8% na zona rural (IBGE, 2010IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse do censo demográfico 2010, Minas Gerais. Rio de janeiro, 2010. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?uf=31&dados=0>. Acesso em: 22 dez. 2014.
http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse... ) -, com densidade demográfica de 241,2 hab./km2. A rede de atenção primária à saúde da cidade conta com 13 unidades, das quais 12 pertencem à ESF, com um total de 11.286 famílias cadastradas.
Participantes de pesquisa
Trabalhadores das quinze equipes de ESF do município de Viçosa (MG) que aceitaram preencher o questionário.
Desenho do estudo
Trata-se de uma investigação inscrita no campo da pesquisa social, utilizando, especialmente, o referencial teórico metodológico instrumental da pesquisa qualitativa, em razão das características do objeto investigado. O intento foi captar a realidade dinâmica e complexa dos problemas (bio)éticos na ESF em sua realização histórico-social (Minayo, 1994MINAYO, M. C. de S. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa qualitativa. In: ______. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 9-29.). Nesse sentido, este estudo organizou-se em torno do delineamento dos principais problemas (bio)éticos identificados pelos membros das equipes da ESF, através da aplicação de questionário semi-estruturado com perguntas abertas e fechadas.
O questionário - aplicado no período de março a julho de 2012 - abrangia 25 questões, divididas em três seções principais: (1) características gerais sobre a formação e o tempo de trabalho do profissional na ESF; (2) problemas (bio)éticos enfrentados pela equipe; e (3) conhecimento sobre os conceitos de (bio)ética. A seção "problemas bioéticos enfrentados pela equipe" continha indagações abertas, nas quais os profissionais deveriam descrever situação(ões) (bio)ética(s) vivenciada(s) na unidade da ESF, suas consequências, o modo segundo o qual a equipe abordou a(s) questão(ões), e, se houve - e qual foi a - solução do problema. A terceira e última seção do questionário - "conhecimento sobre os conceitos de ética e bioética" -, continha perguntas sobre o conhecimento acerca dessas concepções. Priorizou-se elucidar, neste artigo, apenas os dois primeiros domínios citados, reservando-se o último para outra publicação.
As equipes foram abordadas em suas próprias unidades da ESF - sempre pelo mesmo pesquisador - para exposição da proposta do estudo, formalização do convite de participação e esclarecimento acerca dos objetivos da investigação. Uma vez recebido o livre aceite do profissional, procedeu-se a aplicação do questionário semiestruturado para aqueles que desejassem participar. Coube ao pesquisador interferir o mínimo possível, apenas orientando e estimulando cada participante na elaboração de suas respostas.
Aspectos éticos da pesquisa
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade Federal de Viçosa. Para a realização do estudo foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) dos participantes, o qual enfatizava os riscos e os benefícios da investigação, além de explicitar a garantia ao sigilo sobre a identidade daqueles que se dispusessem a responder o questionário. Desse modo, o protocolo está em consonância com o estabelecido nos termos da Resolução 196/96 - e posteriores, incluindo a vigente Resolução 466/2012 - do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta as pesquisas que envolvem seres humanos.
Análise dos dados
As respostas foram avaliadas a partir da técnica de análise de conteúdo, especificamente a de análise temática (Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.), compreendida como o "conjunto de técnicas de análise de comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens" (Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009., p. 32), em virtude de sua adequação à investigação qualitativa na área da saúde. Ato contínuo à leitura criteriosa das respostas, foram cumpridas três etapas: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação (Minayo, 2007MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10. ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 2007.; Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.). A quantificação ulterior dos dados foi realizado no programa Epi InfoTM versão 3.5.2.
Resultados e discussão
A apresentação dos resultados será realizada por seção do questionário, com o objetivo de facilitar a visualização dos dados obtidos e da correlata discussão.
Seção I - Características gerais dos participantes da pesquisa
O questionário foi respondido, em um período de 30 a 35 minutos, por 73 profissionais da ESF (de um total de 138 trabalhadores da APS do município, ou seja, 73/138 = 52,9%), distribuídos de acordo com a Tabela 1. Percebeu-se que a maioria dos profissionais que responderam os questionários pertenciam ao sexo feminino (n = 62). Para garantia do sigilo da identidade de todos os participantes, atribuiu-se a cada questionário respondido uma codificação, contendo uma numeração associada a uma sigla, de modo que qualquer referência ao mesmo era feita em relação à codificação correspondente.
Distribuição do número e proporção (%) de profissionais da ESF segundo profissão, Viçosa, MG, 2012
A tabela 1 expõe que a maioria dos participantes da pesquisa pertence ao grupo dos ACS (47; freq. rel. = 64,4%) e que 60 (freq. rel. = 82,2%) responderam possuir nível médio de escolaridade, ao passo que 13 (freq. rel. = 17,8%) concluíram o nível superior (com especialização concluída ou em curso). Esse dado é significativo, na medida em que a perspectiva dos profissionais com nível médio de formação, com destaque para os ACS, sobre os problemas (bio)éticos na ESF prevalece no grupo estudado. Parece claro que o fato do ACS trabalhar e viver no mesmo espaço geográfico implica em uma visão diferenciada sobre a própria práxis e sobre os problemas que dela decorrem (Binda et al., 2013BINDA, J.; BIANCO, M. F.; SOUSA, E. M. O trabalho dos agentes comunitários de saúde em evidência: uma análise com foco na atividade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 389-402, 2013.). Entretanto, tal contexto reflete a realidade, uma vez que as equipes da ESF contêm, usualmente, 75,0% de profissionais de nível médio - ou seja, entre seis a oito ACS e mais um técnico de enfermagem, um médico e um enfermeiro (Guimarães et al., 2013GUIMARÃES, F. T. et al. Educação, saúde e ambiente: as concepções dos agentes comunitários de saúde. Ensino, Saúde e Ambiente, Niterói, v. 6, n. 1, p. 77-88, 2013.).
O tempo de trabalho dos profissionais - exclusivamente na APS - está apresentado na Tabela 2, sendo que dois participantes não responderam a tal questão.
Distribuição do número e proporção (%) de profissionais da ESF participantes na atenção primária segundo tempo de trabalho, Viçosa, MG, 2012
Os dados coletados permitem referir que poucos profissionais permanecem trabalhando na ESF ao longo do tempo, corroborando estudos anteriormente realizados e descritos na literatura, destacando a não fixação dos profissionais na APS (Cotta et al., 2006COTTA, R. M. M. et al. Organização do trabalho e perfil dos profissionais do Programa Saúde da Família: um desafio na reestruturação da atenção básica em saúde. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 15, n. 3, p. 8-18, 2006.; Junqueira et al., 2009JUNQUEIRA, T. S. et al. Saúde, democracia e organização do trabalho no contexto do Programa Saúde da Família: desafios estratégicos. Revista Brasileira Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p. 122-133, 2009., 2010JUNQUEIRA, T. S. et al. As relações laborais no âmbito da municipalização da gestão em saúde e os dilemas da relação expansão/precarização do trabalho no contexto do SUS. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 5, p. 918-928, 2010.). Dentre as causas importantes para explicar esse achado está a "precarização" do trabalho - e a insatisfação com o mesmo, advinda de problemas relacionados à não valorização profissional; à política salarial; à instabilidade do vínculo trabalhista - muitas vezes organizado como prestação de serviço indireta ao órgão de saúde municipal (Binda; Bianco; Sousa, 2013BINDA, J.; BIANCO, M. F.; SOUSA, E. M. O trabalho dos agentes comunitários de saúde em evidência: uma análise com foco na atividade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 389-402, 2013.); à desmotivação com as condições de trabalho; à escassez de oportunidade de crescimento profissional; ao relacionamento interpessoal dentro das unidades da ESF; à política de recrutamento e seleção de pessoal; a falta de infraestrutura adequada nas unidades de ESF; dentre outros (Medeiros et al., 2010MEDEIROS, C. R. G. et al. A rotatividade de enfermeiros e médicos: um impasse na implementação da Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, p. 1521-1531, 2010. Suplemento.; Junqueira et al., 2009JUNQUEIRA, T. S. et al. Saúde, democracia e organização do trabalho no contexto do Programa Saúde da Família: desafios estratégicos. Revista Brasileira Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p. 122-133, 2009., 2010JUNQUEIRA, T. S. et al. As relações laborais no âmbito da municipalização da gestão em saúde e os dilemas da relação expansão/precarização do trabalho no contexto do SUS. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 5, p. 918-928, 2010.; Cotta et al., 2006COTTA, R. M. M. et al. Organização do trabalho e perfil dos profissionais do Programa Saúde da Família: um desafio na reestruturação da atenção básica em saúde. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 15, n. 3, p. 8-18, 2006.). Outro aspecto desfavorável refere-se ao surgimento de modalidades ineficazes de gestão da ESF, tais como a terceirização por fundações estatais e por organizações sociais (OS) (Cotta et al., 2006COTTA, R. M. M. et al. Organização do trabalho e perfil dos profissionais do Programa Saúde da Família: um desafio na reestruturação da atenção básica em saúde. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 15, n. 3, p. 8-18, 2006.). Em relação aos ACS - grupo majoritário dentre os participantes da pesquisa - deve ser destacado que muitos trabalhadores mantêm-se em atividade na ESF temporariamente, até conseguir inserção no mercado de trabalho em ocupações para as quais têm formação. Nesse contexto, a investigação realizada por Mota e David (2010)MOTA, R. R. A.; DAVID, H. M. S. L. A crescente escolarização do agente comunitário de saúde: uma indução do processo de trabalho? Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 229-248, 2010., na cidade do Rio de Janeiro, demonstrou que os ACS têm buscado, cada vez mais, ampliar a própria escolarização, tanto em nível médio/técnico - técnico em administração, técnico em edificações, técnico em enfermagem, técnico em estética, técnico em informática, técnico em mecânica industrial, técnico em radiologia e técnico em segurança do trabalho -, quanto em nível superior - administração de empresas, arquitetura, biotecnologia, ciências contábeis, direito, educação física, enfermagem, geografia, gestão ambiental, letras, logística, matemática, nutrição, pedagogia, petróleo e gás, psicologia, publicidade, serviço social, tecnologia em processamento de dados, turismo e veterinária (Mota; David, 2010MOTA, R. R. A.; DAVID, H. M. S. L. A crescente escolarização do agente comunitário de saúde: uma indução do processo de trabalho? Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 229-248, 2010.).
Seção II - Aspectos atinentes aos principais problemas (bio)éticos identificados pelos membros das equipes
A partir da análise das respostas consideradas questões de ordem (bio)ética, foi possível categorizar cinco tipos de problemas a respeito de situações vividas nas unidades da ESF (Tabela 3).
Distribuição do número e proporção (%) de profissionais da ESF segundo principais categorias de problemas (bio)éticos referidos, Viçosa, MG, 2012
Boa parte dos participantes (n = 40; freq. rel. = 53,8%) relatou não ter vivenciado problemas (bio)éticos (n = 26; freq. rel. = 35,6%) ou não respondeu à pergunta (n = 14; freq. rel. = 19,2%). Entre os que deixaram a questão sem resposta, quatro eram técnicos de enfermagem, um era enfermeiro e nove eram ACS. Pode ser igualmente observado na tabela 3 que 33 profissionais (freq. rel. = 45,2%) mencionaram conflitos (bio)éticos quando solicitados a identificar ou descrever situações dessa natureza vividas nas unidades da ESF.
No grupo que respondeu afirmativamente a pergunta, percebeu-se que muitas respostas expõem genuíno obstáculo quanto à identificação de situações atinentes aos problemas (bio)éticos, havendo certa confusão com transtornos relativos à organização ou ao planejamento do processo de trabalho da equipe:
[…] Falta de entrosamento entre a equipe, pontualidade no horário (TE13).
Discutir problemas na frente de algum paciente (TE33).
Falha na comunicação entre o pessoal de trabalho (TSB27).
Tais achados se articulam à identificação, por diferentes autores, de significativas dificuldades de reconhecimento, por profissionais da saúde, de questões (bio)éticas em situações da própria prática laboral (Motta, 2012MOTTA, L. C. S. O cuidado no espaço-tempo do oikos: sobre a bioética e a Estratégia de Saúde da Família. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, p. 581, 2012.; Zoboli; Fortes, 2004ZOBOLI, E. L. C. P.; FORTES, P. A. C. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa de Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1690-1699, 2004.) e, também, pelo desequilíbrio entre a aquisição das competências técnicas e das competências morais por tais trabalhadores (Feitosa et al., 2013FEITOSA, H. N. et al. Competência de juízo moral dos estudantes de medicina: um estudo piloto. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, p. 5-14, 2013.). Ademais, a referida observação é acentuada pela composição do grupo investigado - majoritariamente constituídos por ACS -, trabalhadores que, habitualmente, não têm incluídos conceitos de (bio)ética em seu processo de formação e que, até o presente momento, não têm um código de ética próprio (Vidal et al., 2013VIDAL, S. V. et al. Código de ética profissional dos agentes comunitários de saúde: a pactuação da confiabilidade. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, DF, v. 9, p. 357-368, 2013. Suplemento.).
Deve ser mencionado que tal dificuldade de identificação das - ou certa confusão nas - questões (bio)éticas atinentes ao próprio saber-fazer, foi também percebida em estudo realizado com médicos e enfermeiros da atenção primária à saúde em São Paulo (Zoboli; Fortes, 2004ZOBOLI, E. L. C. P.; FORTES, P. A. C. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa de Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1690-1699, 2004.). Propõe-se em Zoboli e Fortes (2004)ZOBOLI, E. L. C. P.; FORTES, P. A. C. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa de Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1690-1699, 2004. que os encontros com os usuários, nas unidades de APS, são mais frequentes e em situações de menor ou de inexistente urgência - por exemplo, quando comparado à realidade dos prontos-socorros ou das unidades de terapia intensiva -, apresentando-se de maneira mais sutil e, por conseguinte, tornando os problemas (bio)éticos menos perceptíveis pelos profissionais da ESF (Motta, 2012MOTTA, L. C. S. O cuidado no espaço-tempo do oikos: sobre a bioética e a Estratégia de Saúde da Família. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, p. 581, 2012.; Zoboli; Fortes, 2004ZOBOLI, E. L. C. P.; FORTES, P. A. C. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa de Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1690-1699, 2004.; Zoboli; Soares, 2012ZOBOLI, E. L. C. P.; SOARES, F. A. C. Capacitação em bioética para profissionais da Saúde da Família do município de Santo André. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 46, n. 5, p. 1248-1253, 2012.).
Os problemas identificados foram organizados em cinco categorias - Problemas (bio)éticos relacionados à desigualdade de acesso ao serviço de saúde; à relação ensino-trabalho-comunidade; ao sigilo e à confidencialidade; aos conflitos entre equipe e usuários; e aos conflitos entre os membros da equipe -, que serão comentadas nos tópicos seguintes. Na sequência, serão brevemente pontuadas as abordagens dos problemas (bio)éticos na ESF e suas consequências.
Problemas (bio)éticos relacionados à desigualdade de acesso ao serviço de saúde
Ao se observar a tabela 3, pode ser destacado que quatro profissionais (freq. rel. = 5,5%) referiram problemas (bio)éticos pertinentes à dificuldade de acesso dos usuários aos serviços da unidade de saúde da família, conforme algumas transcrições a seguir:
[…] Solicitação dos usuários por procedimentos inadequados na unidade […]; tempo de espera pela consulta especializada (AA70).
Desrespeito para com os funcionários devido ao tempo de espera pela consulta especializada (E63).
[…] Houve problema no agendamento; a pessoa cadastrada ficou nervosa […] (ACS65).
O acesso aos serviços de saúde pode ser avaliado do ponto de vista dos princípios do SUS, na perspectiva do princípio da integralidade e, especialmente, do princípio da equidade (Siqueira-Batista; Schramm, 2005SIQUEIRA-BATISTA, R.; SCHRAMM, F. R. A saúde entre a iniquidade e a justiça: contribuições da igualdade complexa de Amartya Sen. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 129-142, 2005.). Este último - um dos apoios fundamentais do debate atual acerca do direito à saúde - pode ser articulado, consoante ao assinalado por alguns autores, como princípio (bio)ético da justiça (Beauchamp; Childress, 2002BEAUCHAMP, T.; CHILDRESS, J. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002.), cuja formulação original pode ser buscada em Aristóteles:
Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais).
(Aristóteles, 1985ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília, DF: Ed. UnB, 1985., passo 1131a, 21-26, grifo nosso).
A identificação estabelecida pelos quatro profissionais está, por conseguinte, perfeitamente inscrita no debate (bio)ético - e jurídico - contemporâneo, especialmente ao considerar a previsão constitucional que assegura a todos os brasileiros o acesso à saúde e às melhores condições possíveis para sua manutenção e recuperação. Todavia, observando a realidade prática no cenário da APS, percebem-se numerosas dificuldades concretas à plena manifestação desses preceitos (Diniz, 2011DINIZ, M. H. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2011.), o que traz significativas implicações em termos de desigualdade e de potenciais agravos à saúde (Cotta et al., 2007COTTA, R. M. M. et al. Pobreza, injustiça e desigualdade social: repensando a formação de profissionais de saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 31, n. 3, p. 278-286, 2007.):
[…] as desigualdades, inclusive na atenção sanitária e não apenas no alcance da saúde, também podem ser importantes para a justiça social e a equidade na saúde […] Suponhamos que as pessoas A e B têm exatamente as mesmas predisposições em relação à saúde, entre elas a mesma propensão para uma enfermidade particularmente dolorosa. Mas A é muito rico e consegue curar ou suprimir completamente sua doença com algum tratamento médico caro, enquanto B, que é pobre, não pode pagar tal tratamento, pelo que sofre muito com a moléstia. Aqui há uma clara desigualdade na saúde. […] os recursos usados para curar o rico A poderiam ter sido usados para proporcionar algum alívio a ambos […].
(Sen, 2002SEN, A. ^Por qué la equidad en salud? Pan American Journal of Public Health, Washington, DC, v. 11, n. 5-6, p. 302-309, 2002., p. 304).
A situação hipotética apresentada por Amartya Sen vem sendo constatada em díspares investigações contemporâneas (Costa, 2012COSTA, S. A espera por cirurgia no SUS: análise da percepção de usuários e gestores; redes sociais e processo decisório familiar. 2012. Dissertação (Mestrado em Economia Doméstica) - Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2012.; Trad; Castellanos; Guimarães, 2012TRAD, L. A. B.; CASTELLANOS, M. E. P.; GUIMARÃES, M. C. S. Acessibilidade à atenção básica a famílias negras em bairro popular de Salvador, Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n. 6, p. 1007-1013, 2012.). O tratamento (bio)ético de tal problema implica no reconhecimento da situação de vulnerabilidade - e/ou de sofrimento - provocada pela enfermidade, a qual deve encontrar um sistema de saúde organizado e capaz de oferecer abordagem adequada para as ameaças ao bem-estar do usuário, utilizando-se, para isso, do espaço da unidade de saúde e da oferta das visitas domiciliares (Jungues, 2007JUNGUES, J. R. Vulnerabilidade e saúde: limites e potencialidades das políticas públicas. In: BARCHIFONTAINE, C. P.; ZOBOLI, E. L. C. P. Bioética, vulnerabilidade esaúde. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2007. p. 139-157.). Nesse sentido, o papel essencial da ESF para a equidade do acesso à saúde deve ser discutido pela equipe - como um problema (bio)ético e político -, podendo-se buscar experiências na literatura que subsidiem ações, no âmbito da gestão da atenção (Carneiro Júnior; Jesus; Crevelim, 2010CARNEIRO JUNIOR, N.; JESUS, C. H.; CREVELIM, M. A. A Estratégia Saúde da Família para a equidade de acesso dirigida à população em situação de rua em grandes centros urbanos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 709-716, 2010.), para tornar a APS ainda mais efetiva como porta de entrada ao SUS.
Problemas (bio)éticos relacionados à relação ensino-trabalho-comunidade
Entre os participantes desta investigação, apenas um (freq. rel. = 1,4%) destacou a esfera da relação entre ensino-trabalho-comunidade como elemento importante do ponto de vista (bio)ético. Esse dado chamou a atenção, em um contexto em que boa parte das unidades de saúde do município de Viçosa recebe os estudantes de graduação do curso de medicina da Universidade Federal de Viçosa - além de discentes dos cursos de enfermagem e de nutrição - desde março de 2010.44A partir desse momento, março de 2010, a primeira turma de medicina iniciou suas atividades na UFV (Universidade Federal de Viçosa), as quais incluíam participação nas ações desenvolvidas nas ESF do município de Viçosa.
A partir da pluralidade de referências e estudos já publicados, em consonância com o que preconiza as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação na área de saúde, percebe-se o quanto é necessário que o ensino - sobretudo para profissionais que atuarão na atenção primária à saúde, na medida em que neste nível prevê-se a resolução de até 80% dos problemas de saúde - assuma um desenho de prática social, organizando-se em torno do propósito de instaurar um saber-fazer no qual a produção/construção de conhecimento, a formação acadêmica e a prestação de serviços sejam adequadas aos usuários do sistema de saúde (Cézar et al., 2010CÉZAR, P. H. N. et al. Transição paradigmática na educação médica: um olhar construtivista dirigido à aprendizagem baseada em problemas. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 298-303, 2010.). Destaca-se, nesse contexto, que os processos pedagógicos de formação do profissional de saúde, devem priorizar, também, o debate (bio)ético, conforme ressaltado, por exemplo, nas DCN do Curso de Graduação em Medicina (Brasil, 2014BRASIL. Resolução CNE/CES n° 3, de 20 de junho de 2014, Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 jun. 2014. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=15874&Itemid=>. Acesso em: 21 jun. 2014.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio... ):
Art. 5° Na Atenção à Saúde, o graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social, no sentido de concretizar:
[…]
VI - ética profissional fundamentada nos princípios da Ética e da Bioética, levando em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico
(Brasil, 2014BRASIL. Resolução CNE/CES n° 3, de 20 de junho de 2014, Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 jun. 2014. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=15874&Itemid=>. Acesso em: 21 jun. 2014.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio... , p. 1-2; grifo nosso).
Essa perspectiva - presente, também, nas DCN dos demais cursos da área da saúde - reaparece nas "Diretrizes para o Ensino na Atenção Primária à Saúde na Graduação em Medicina"55Documento elaborado conjuntamente pela Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). elaborada durante os anos de 2009 e 2010 (Demarzo et al., 2012DEMARZO, M. M. P. et al. Diretrizes para o ensino na atenção primária à saúde na graduação em medicina. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 10, p. 143-148, 2012.). Com efeito, justifica-se investir no ensino dos futuros profissionais de saúde no espaço-tempo da APS, condição necessária - ainda que não suficiente - para o desenvolvimento de uma prática clínica integrada e contextualizada, centrada nas pessoas e nas comunidades, possibilitando a interdisciplinaridade e a articulação entre técnica, política e (bio)ética. A proposta é que a inserção dos estudantes seja de forma longitudinal e contínua ao longo do curso de graduação, em um modelo espiral de complexidade crescente e, de preferência, com atividades na APS em todos os períodos do curso, privilegiando as metodologias dialógicas e ativas de ensino-aprendizagem, integrando a prática e a teoria, problematizando e possibilitando a reflexão sobre a prática profissional (Gomes et al., 2012GOMES, A. P. et al. Atenção primária à saúde e formação médica: entre episteme e práxis. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, p. 541-549, 2012.), trabalhando em pequenos grupos e com diversidade de cenários e atividades (Demarzo et al., 2012DEMARZO, M. M. P. et al. Diretrizes para o ensino na atenção primária à saúde na graduação em medicina. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 10, p. 143-148, 2012.; Gomes et al., 2012GOMES, A. P. et al. Atenção primária à saúde e formação médica: entre episteme e práxis. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, p. 541-549, 2012.).
Contudo, ainda no âmbito da APS, percebe-se e confirma-se o distanciamento entre o setor educacional e a prática no contexto da ESF (Gomes et al., 2012GOMES, A. P. et al. Atenção primária à saúde e formação médica: entre episteme e práxis. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, p. 541-549, 2012.; Gomes; Rego, 2013GOMES, A. P., REGO, S. Pierre Bourdieu and medical education. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, p. 260-265, 2013.; Junqueira et al., 2009JUNQUEIRA, T. S. et al. Saúde, democracia e organização do trabalho no contexto do Programa Saúde da Família: desafios estratégicos. Revista Brasileira Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p. 122-133, 2009.) e a falta de treinamento dos profissionais para trabalhar segundo os princípios da APS. Algumas considerações a respeito dessa percepção negativa das unidades de saúde da família podem ser justificadas pela reduzida oferta de atenção da equipe ao estudante da área de saúde, originada pela sobrecarga de trabalho, explicável - entre outras causas - pelo elevado número de famílias adscritas, o que, em última análise, é mais um elemento de precarização do trabalho na ESF (Junqueira et al., 2010JUNQUEIRA, T. S. et al. As relações laborais no âmbito da municipalização da gestão em saúde e os dilemas da relação expansão/precarização do trabalho no contexto do SUS. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 5, p. 918-928, 2010.).
Com base nessas conjecturas, chama a atenção que reduzido número de profissionais - apenas um - tenha sido capaz de perceber questões atinentes às tensões ensino-trabalho-comunidade, que provavelmente ocorrem sem ser, no entanto, identificadas, quiçá por razões similares ao comentado anterior sobre a "invisibilidade" dos problemas (bio)éticos no âmbito da APS/ESF.
Problemas (bio)éticos relacionados ao sigilo e à confidencialidade
A não garantia do sigilo e a preocupação com o respeito à confidencialidade das informações fornecidas aos profissionais pelos usuários e pelos familiares dos mesmos foi o principal problema (bio)ético relatado por 14 profissionais (freq. rel. = 19,2%), conforme apresentado nas respostas transcritas a seguir:
Sigilo profissional é uma questão de ética. Aconteceu um episódio na unidade com um preventivo que foi realizado e a funcionária falou com uma pessoa da comunidade a situação da paciente (E38).
Por mais que alguns agentes façam parte do sistema, algumas informações devem ser levadas ao médico e/ou ao enfermeiro responsável. Daí, entendo que às vezes aqui o sigilo é esquecido, deixado de lado (ACS11).
Paciente ler prontuário de outro paciente e 'espalhar' o que estava escrito porque o funcionário deixou ler. Funcionário comentar problemas de pacientes na rua com outros pacientes (ACS34). Funcionários comentando sobre doenças e problemas pessoais de usuários/pacientes para outros usuários (TE66).
Tal grupo de questões (bio)éticas foi o mais citado pelos participantes da pesquisa. Nesse contexto, torna-se relevante distinguir os termos "confidencialidade" e "sigilo" diante da proximidade de suas acepções, ainda que reconhecidamente não se tratem de ideias perfeitamente coincidentes. Com efeito, "confidencialidade" retrata o resguardo de informações fornecidas, diretamente, pelo paciente para o profissional de saúde, de modo que este garante a confidência desses dados. Em relação ao "sigilo", delineia-se a proteção de elementos pertinentes ao paciente, como resultados de exames ou, até mesmo, o contato com o conteúdo do prontuário pertencente ao mesmo, obtidos pelo profissional de saúde de forma indireta, sem anuência daquele (Francisconi; Goldim, 1998FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. Aspectos bioéticos da confidencialidade e privacidade. In: COSTA, S. I. F.; OSELKA, G.; GARRAFA, V. Iniciação à bioética. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 269-284.).
Lidar com o sigilo e a confidencialidade das informações é aspecto que deve permear todo o cotidiano do trabalho das equipes de ESF, haja vista a dificuldade para resguardar as informações dos usuários - tanto nos atendimentos realizados na unidade de saúde, quanto no domicílio dos enfermos66Informações obtidas em: BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégia Saúde da Família. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_esf.php>. Acesso em: 17 dez. 2012. - e de definir em que medida as informações privativas dos indivíduos e das famílias - bem como os fatos observados pelos profissionais, em especial o ACS - devem ser compartilhadas no âmbito da equipe.
Sabe-se que as informações que a equipe da ESF tem acesso não dizem respeito exclusivamente às condições mórbidas dos usuários (Zoboli; Fortes, 2004ZOBOLI, E. L. C. P.; FORTES, P. A. C. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa de Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1690-1699, 2004.; Saliba et al., 2011SALIBA, N. A. et al. Agente comunitário de saúde: perfil e protagonismo na consolidação da atenção primária à saúde. Cadernos Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 318-326, 2011.), mas, igualmente, a muitos aspectos relativos aos modos de vida das pessoas. Assim, a divulgação de tais informações, sem o devido consentimento, pode trazer situações extremamente desagradáveis, e, até mesmo, discriminatórias, para os envolvidos. O fato dos "usuários não considerarem a entrada do ACS em suas residências como uma invasão à sua privacidade e que esse profissional é visto, muitas vezes, apenas como um facilitador do acesso ao serviço de saúde" (Seoane; Fortes, 2009SEOANE, A.; FORTES, P. A. C. A percepção do usuário do Programa Saúde da Família sobre a privacidade e a confidencialidade de suas informações. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 42-49, 2009., p. 42) aumenta muito a responsabilidade desse trabalhador - e de todos os membros da equipe - no manejo das informações as quais se tem acesso (Seoane; Fortes, 2007SEOANE, A.; FORTES, P. A. C. A Percepção do usuário do Programa de Saúde da Família sobre a privacidade e a confidencialidade das informações reveladas ao agente comunitário de saúde. In: BARCHIFONTAINE, C. P.; ZOBOLI, E. L. C. P. Bioética, vulnerabilidade esaúde. Aparecida: Idéias & Letras; São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2007. p. 295-326.). A situação torna-se ainda mais complicada ao lidar-se em contextos de violência intra-domiciliar, mormente ao se considerar as pessoas com maior vulnerabilidade, como crianças, idosos e mulheres (Angelo et al., 2013ANGELO, M. et al. Vivências de enfermeiros no cuidado de crianças vítimas de violência intrafamiliar: uma análise fenomenológica. Texto Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 585-592, 2013.; Ramos; Silva, 2011RAMOS, M. L. C. O.; SILVA, A. L. Estudo sobre a violência doméstica contra a criança em unidades básicas de saúde do município de São Paulo - Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 136-146, 2011.; Wanderbroocke; Moré, 2012WANDERBROOCKE, A. C.; MORÉ, C. Significados de violência familiar para idosos no contexto da atenção primária. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 28, n. 4, p. 435-442, 2012.).
Os dados obtidos reforçam a ideia de que as conversações sobre as temáticas assinaladas - sigilo e confidencialidade - devem fazer parte do dia-a-dia da equipe da ESF, devendo ser trabalhadas em espaços de formação, quiçá no âmbito das estratégias de educação permanente (Gomes et al., 2013GOMES, A. P. et al. Estratégia Saúde da Família: a bioética como paidéia. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, v. 9, p. 90-91, 2013. Suplemento.).
Problemas (bio)éticos relacionados aos conflitos entre equipe e usuários
A perspectiva (bio)ética dos conflitos entre a equipe da ESF e os usuários foi citada por 10 (freq. rel. = 13,7%) dos profissionais que responderam ao questionário. Algumas ponderações a seguir referem-se a esses conflitos e ressaltam sua ocorrência, principalmente entre os ACS e membros da comunidade:
Pacientes interpretam as situações ao seu modo; se damos prioridade para urgências, pessoas com maiores necessidades não compreendem… egoísmo (ACS64).
Cada um interpreta cada situação vivida de seu modo, se damos preferências para pessoas com maiores dificuldades, outras não entendem (ACS69).
Os ACS são integrantes essenciais da equipe da ESF, sendo considerados personagens-chave na implantação de políticas voltadas para a reorientação do modelo de atenção à saúde preconizado pelo SUS (Bornstein; Stotz, 2008BORNSTEIN, V. J.; STOTZ, E. N. O trabalho dos agentes comunitários de saúde: entre a mediação convencedora e a transformadora. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 457-480, 2008.). Embora possuam suas atribuições bem definidas - em concordância com o descrito na "Política Nacional de Atenção Básica" (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. PNAB: Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012. (Série E). Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2012.
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco... ) - estudos realizados com equipes da ESF em Araçatuba-SP, Cajuri-MG, Campinas-SP e Teresópolis-RJ, também têm apontado que os ACS se deparam com diversas dificuldades para cumprir suas atribuições, o que produz reflexos, consequentemente, na qualidade das ações desenvolvidas em relação aos usuários da APS (Gomes et al., 2009GOMES, K. O. et al. A práxis do agente comunitário de saúde no contexto do Programa Saúde da Família: reflexões estratégicas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 4, p. 744-755, 2009.; Guimarães et al., 2013GUIMARÃES, F. T. et al. Educação, saúde e ambiente: as concepções dos agentes comunitários de saúde. Ensino, Saúde e Ambiente, Niterói, v. 6, n. 1, p. 77-88, 2013.; Nascimento; Correa, 2008NASCIMENTO, E. P. L.; CORREA, C. R. S. O agente comunitário de saúde: formação, inserção e práticas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 6, p. 1304-1313, 2008.) e no surgimento de conflitos com os usuários do sistema e com a própria equipe.
Algumas das principais questões relacionadas à práxis dos ACS incluem (Deleuze, 1992DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: ______. Conversações: 1972-1990. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 219-226.; Gomes et al., 2009GOMES, K. O. et al. A práxis do agente comunitário de saúde no contexto do Programa Saúde da Família: reflexões estratégicas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 4, p. 744-755, 2009.; Foucault, 1977FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.; Saliba et al., 2011SALIBA, N. A. et al. Agente comunitário de saúde: perfil e protagonismo na consolidação da atenção primária à saúde. Cadernos Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 318-326, 2011.; Siqueira-Batista et al., 2013SIQUEIRA-BATISTA, R. et al. Educação e competências para o SUS: é possível pensar alternativas à(s) lógica(s) do capitalismo tardio? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 159-170, 2013.): (1) a intervenção - por vezes significativa - realizada por esses trabalhadores na vida das pessoas, reproduzindo, mesmo sem que estes tenham conhecimento, processos de captura instados no âmbito das comunidades, afins às conformações constituídas no bojo das sociedades de controle (tal qual formuladas por Foucault e Deleuze); (2) dificuldade ou a não possibilidade de realização das visitas domiciliares em todas as famílias cadastradas, o que interfere no agendamento e no cuidado à saúde; (3) a atitude de alguns ACS em facilitar o acesso a pessoas mais próximas ou afins à unidade básica de saúde; (4) os baixo salários dos ACS; (5) a falta de capacitação prévia dos mesmos; (6) a sobrecarga de atividades nas unidades de saúde e a desvalorização do saber desses trabalhadores; (7) a falta de receptividade de alguns moradores da comunidade; e (8) o relacionamento com outros profissionais da equipe, criando uma auto-percepção de não aceitação pelos demais membros da ESF.
Os elementos comentados em relação aos ACS, especialmente aqueles atinentes à interação com a comunidade, são afins à realidade enfrentada pelos demais profissionais da ESF/APS. Nesse sentido, cabe retomar o comentário de Ayala e Oliveira (2007)AYALA, A. L. M.; OLIVEIRA, W. F. A divisão do trabalho no setor de saúde e a relação social de tensão entre trabalhadores e gestores. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 251-270, 2007., acerca do trabalho em saúde:
Ao nosso juízo, três condições são pertinentes às formas essenciais para o pleno desenvolvimento do trabalho em saúde: a primeira, o desenvolvimento da atividade em saúde deve ter como pressuposto as reais necessidades da coletividade; a segunda, a regulação dos processos de trabalho em saúde deve acontecer por meio do intercâmbio dos trabalhadores com a coletividade; por último, a ampliação e a alocação racional dos recursos humanos e materiais disponíveis combatendo a escassez.
(Ayala; Oliveira, 2007AYALA, A. L. M.; OLIVEIRA, W. F. A divisão do trabalho no setor de saúde e a relação social de tensão entre trabalhadores e gestores. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 251-270, 2007., p. 240, grifo nosso).
Nesse sentido, a adoção de estratégias de educação em saúde - em articulação com a educação popular (Santorum; Cestari, 2011SANTORUM, J. A.; CESTARI, M. E. A educação popular na práxis da formação para o SUS. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 223-240, 2011.; Stotz, 2005STOTZ, E. N. A educação popular nos movimentos sociais da saúde: uma análise de experiências nas décadas de 1970 e 1980. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 9-30, 2005.) - pode auxiliar a compreensão, por parte dos usuários, dos papéis que devem ser desempenhados pelos membros da ESF, minimizando a ocorrência de tensões entre os profissionais e a comunidade.
Problemas (bio)éticos relacionados aos conflitos entre os membros da equipe
Do total de participantes, quatro (freq. rel. 5,5%) destacaram as tensões entre os membros da equipe como significativos problemas (bio)éticos, com destaque para os comentários a seguir:
Falta de respeito, falta de comunicação (ACS60).
Problemas com a médica anterior, do que ela falava durante as consultas com os pacientes sem a presença da equipe e que colocava alguns ACS em situação constrangedora (ACS60).
Falta de entrosamento entre a equipe […] (TE13).
Brigas, discussões, falta de interação até mesmo dos profissionais da área de saúde (ACS14).
Falta de entrosamento entre a equipe […] (TE13).
Os trechos apresentados - que exprimem falta de entrosamento e companheirismo, de respeito, de comunicação e de colaboração entre os trabalhadores - podem ser compreendidas à luz das dificuldades para se delimitar os papéis e as funções de cada membro da equipe da ESF e dos seus respectivos campos de atuação, os quais são decorrentes da incorporação de novos profissionais e das inovações nas propostas de atenção (Matumoto; Mishima; Pinto, 2001MATUMOTO, S.; MISHIMA, S. M.; PINTO, I. C. Saúde coletiva: um desafio para a enfermagem. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 233-241, 2001.; Zoboli, 2009ZOBOLI, E. L. C. P. Bioética e atenção básica: para uma clínica ampliada, uma bioética clínica amplificada. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 33, n. 2, p. 195-204, 2009.).
De fato, investigações recentes sobre o trabalho em equipe na ESF revelaram a ausência de responsabilidade coletiva do trabalho; o baixo grau de interação entre as categorias profissionais; a manutenção das representações sobre hierarquia entre profissionais; a fragmentação do processo de trabalho; e a realização de ações justapostas e isoladas dos profissionais em seus "núcleos de competência" (Ayala; Oliveira, 2007AYALA, A. L. M.; OLIVEIRA, W. F. A divisão do trabalho no setor de saúde e a relação social de tensão entre trabalhadores e gestores. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 251-270, 2007.; Franco; Bueno; Merhy, 1999FRANCO, T. B.; BUENO, W. S.; MERHY, E. E. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso de Betim, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 345-353, 1999.; Silva; Trad, 2005SILVA, I. Z. Q. J.; TRAD, L. A. B. O trabalho em equipe no PSF: investigando a articulação técnica e a interação entre os profissionais. Interface - Comunicação, Saúde e Educação, v. 9, n. 16, p. 25-38, 2005.).
Conforme o estudo realizado por Martins et al. (2012)MARTINS, A. R. et al. Relações interpessoais, equipe de trabalho e seus reflexos na atenção básica. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, p. 6-12, 2012. Suplemento 2. com profissionais da APS, em Pelotas-RS, constata-se que para resolução de conflitos entre a equipe multiprofissional - tendo em vista a formação de vínculos -, a equipe de trabalho precisa ser maleável, receptiva e adaptável às contínuas modificações que ocorrem nos serviços de saúde. Nesse processo, não se pode perder de vista que as pessoas são diferentes, com valores, pontos de vistas e crenças individuais e coletivas distintas, que precisam ser respeitadas e consideradas em um ambiente de diálogo e de comprometimento de todo o grupo. Acredita-se que a existência de compromisso com o trabalho, propicia a abertura e o contato necessários para se estabelecer relações de proximidade e confiança (Martins et al., 2012MARTINS, A. R. et al. Relações interpessoais, equipe de trabalho e seus reflexos na atenção básica. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, p. 6-12, 2012. Suplemento 2.). Nesse contexto, é possível que a educação permanente em saúde, mesmo com toda dificuldade associada à gestão dos conflitos entre as pessoas, seja a melhor forma de abordar essa significativa ordem de questões (bio)éticas.
Abordagens dos problemas (bio)éticos na ESF e suas consequências
No tocante à condução dos conflitos transcritos no questionário, 17 participantes (freq. rel. = 23,3%) relataram que a solução adotada foi o diálogo entre os envolvidos; dez (freq. rel. = 13,7%) responderam que não foi realizado nenhum tipo de abordagem para o problema; 37 dos participantes (freq. rel. = 50,7%) não responderam; cinco (freq. rel. = 6,8%) citaram que as questões foram resolvidas pela afetividade entre os envolvidos; e apenas quatro (freq. rel. = 5,5%) referiram que foi necessário o acionamento de instâncias administrativas da coordenação da ESF para o encaminhamento da questão.
Quando perguntados se foi necessário recorrer a alguma referência bibliográfica (artigo científico, código de ética profissional, texto ou outro) ou a algum consultor para auxiliar na resolução das questões (bio)éticas encontradas, apenas quatro profissionais (freq. rel. = 5,5%) informaram que houve consulta a alguma bibliografia; 32 (freq. rel. = 43,8%) responderam que não houve nenhum tipo de consulta; e 37 (freq. rel. = 50,7%) não responderam a questão.
As principais consequências dos problemas e conflitos (bio)éticos mencionados pelos participantes da pesquisa estão discriminadas na Tabela 4.
Distribuição do número e proporção (%) de profissionais da ESF segundo principais consequências dos problemas (bio)éticos vivenciados, Viçosa, MG, 2012
Observa-se que a esfera mais prejudicada no contexto das questões (bio)éticas identificadas foram os vínculos entre usuários e membros da equipe, elemento que se articula à discussão anterior, na seção que abordou os "Problemas (bio)éticos relacionados aos conflitos entre equipe e usuários".
O conjunto de dados obtidos pode ser entendido à luz de possíveis lacunas atinentes aos conceitos, teorias e métodos da (bio)ética - quiçá oriundas de uma formação que não prioriza tais aspectos - e de eventuais dificuldades na busca de boas informações sobre o assunto em documentos disponíveis em meio físico (papel) e em meio eletrônico (internet). Retomando o comentário anterior acerca do processo de formação dos profissionais da saúde, enfocando agora as DCN do Curso de Graduação em Enfermagem como exemplo, podem ser destacados os seguintes aspectos:
"Art. 4. A formação do enfermeiro tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades gerais: (…) Os profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética, tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em nível individual como coletivo(…)"
(Brasil, 2001BRASIL. Resolução CNE/CES n° 3, de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 nov. 2001. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES03.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2012.
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd... , p. 1-2).
Art. 5°. A formação do enfermeiro tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades específicas: […] XXIII - gerenciar o processo de trabalho em enfermagem com princípios de Ética e de Bioética, com resolutividade tanto em nível individual como coletivo em todos os âmbitos de atuação profissional […]
(Brasil, 2001BRASIL. Resolução CNE/CES n° 3, de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 nov. 2001. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES03.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2012.
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd... , p. 2-3)
Os elementos assinalados nos artigos 4° e 5° representam aspectos que devem ser contemplados na formação de qualquer enfermeiro e, poder-se-ia dizer por extensão, de qualquer profissional da área da saúde. Quando ocorrem hiatos nesses domínios, a consequência pode ser a tomada de decisão sem embasamento teórico, com todas as consequências deletérias - como aquelas explicitadas na Tabela 4 - que tal prática pode trazer (Rego; Gomes; Siqueira-Batista, 2008REGO, S.; GOMES, A. P.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética e humanização como temas transversais na formação médica. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 482-491, 2008.).
Considerações finais
A ESF representa a estratégia inovadora e estruturante da atenção primária à saúde no Brasil - e, em última análise, do próprio SUS -, na medida em que contribui para a ultrapassagem da visão fragmentada - e reducionista - do ser humano, em prol da adoção de uma concepção integral da dimensão individual - inscrita nos âmbitos familiar, social e ambiental -, possibilitando, inclusive, o melhor entendimento do processo saúde-doença dos usuários. Tal complexidade tem permitido a emergência de questões (bio)éticas próprias - conforme pôde ser demarcado na presente investigação, a qual se mostra em consonância com trabalhos realizados anteriormente (Zoboli; Fortes, 2004ZOBOLI, E. L. C. P.; FORTES, P. A. C. Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa de Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1690-1699, 2004.; Motta, 2012MOTTA, L. C. S. O cuidado no espaço-tempo do oikos: sobre a bioética e a Estratégia de Saúde da Família. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, p. 581, 2012.) -, que não são imediatamente analisáveis pelos referenciais empregados, comumente, na abordagem de problemas (bio)éticos descritos em outros níveis de atenção à saúde como, por exemplo, aqueles que permeiam as instituições hospitalares.
Um aspecto que chama a atenção em relação aos dados obtidos diz respeito a não identificação de questões atinentes a dois domínios da (bio)ética contemporânea (Motta et al., 2012MOTTA, L. C. S.; VIDAL, S. V.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética: afinal, o que é isto? Revista Brasileira de Clínica Médica, São Paulo, v. 10, n. 5, p. 431-439, 2012.): os aspectos relacionados às questões ambientais e de inter-relação saúde/ambiente, que integram significativos determinantes no adoecimento da população (Siqueira-Batista et al., 2009SIQUEIRA-BATISTA, R. et al. Ecologia na formação dos profissionais de saúde: promoção do exercício da cidadania e reflexão crítica comprometida com a existência. Revista Brasileira Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 271-275, 2009.; Guimarães et al., 2013GUIMARÃES, F. T. et al. Educação, saúde e ambiente: as concepções dos agentes comunitários de saúde. Ensino, Saúde e Ambiente, Niterói, v. 6, n. 1, p. 77-88, 2013.); e os elementos atinentes à intersetorialidade, que interferem diretamente nos processos de cuidado à saúde no âmbito do SUS, tais como educação, moradia, transporte, trabalho, segurança pública, seguridade social, esporte, lazer e suas correlações com a saúde dos membros das comunidades (Santos et al., 2011SANTOS, F. P. A. et al. Estratégias de enfrentamento dos dilemas bioéticos gerados pela violência na escola. Physis, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 267-281, 2011.). Ademais, temas clássicos da (bio)ética, como os relativos ao início e ao fim da vida (Rego; Palácios; Siqueira-Batista, 2009REGO, S.; PALÁCIOS, M.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.), tampouco foram mencionados.
A identificação e a adequada abordagem das controvérsias (bio)éticas na ESF permanece incipiente, conforme se torna perceptível na pesquisa realizada e em outros bons estudos publicados, constituindo-se, por conseguinte, em um tema de fronteira ainda muito pouco explorado. A partir dessa perspectiva, abre-se a possibilidade para o desenvolvimento de investigações em, ao menos, três frentes distintas:
a premência de se buscar novos referenciais teóricos para abordagem das situações com implicação (bio)ética na ESF, na medida em que as correntes por excelência para a apreciação de conflitos na prática clínica - por exemplo, o "principialismo" (Beauchamp; Childress, 2002BEAUCHAMP, T.; CHILDRESS, J. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002.) - parecem ser insuficientes para a proposição de soluções, dadas as características da APS (Zoboli, 2009ZOBOLI, E. L. C. P. Bioética e atenção básica: para uma clínica ampliada, uma bioética clínica amplificada. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 33, n. 2, p. 195-204, 2009.), mormente a composição complexa entre conceitos, teorias e métodos da clínica e da saúde pública;
a necessidade - quiçá urgente - de se envidar esforços para a inclusão, em caráter definitivo, da (bio)ética na formação de todo profissional da saúde que atua na ESF (Gomes et al., 2013GOMES, A. P. et al. Estratégia Saúde da Família: a bioética como paidéia. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, v. 9, p. 90-91, 2013. Suplemento.; Zoboli; Soares, 2012ZOBOLI, E. L. C. P.; SOARES, F. A. C. Capacitação em bioética para profissionais da Saúde da Família do município de Santo André. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 46, n. 5, p. 1248-1253, 2012.; Vidal et al., 2014VIDAL, S. V. et al. A bioética e o trabalho na Estratégia Saúde da Família: uma proposta de educação. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 38, n. 3, p. 372-380, 2014.), considerando o debate (bio)ético contemporâneo e os novos referenciais mais dirigidos aos problemas da APS; e
o desenvolvimento de métodos para auxiliar a tomada de decisão em (bio)ética na ESF - com a perspectiva de elaboração de ferramentas de apoio (Siqueira-Batista et al., 2014SIQUEIRA-BATISTA, R. et al. Modelos de tomada de decisão em bioética clínica: apontamentos para a abordagem computacional. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 456-461, 2014.) -, o que dependerá de um estudo mais sistemático dos aspectos implicados no processo decisório, abrangendo, provavelmente, elementos da neurobiologia às ciências cognitivas e neurociência computacional.
As fronteiras brevemente assinaladas poderão contribuir - assim se aposta -para o aprimoramento do trabalho no âmbito da ESF/APS, tornando as ações de cuidado à saúde ainda mais efetivas, para aquele que, talvez, seja o principal propósito das profissões da área da saúde: ajudar às mulheres e aos homens a viver uma vida mais feliz.
Agradecimentos
Os autores são gratos ao CNPq, à FAPEMIG e à FUNARBE pelo apoio financeiro à pesquisa.
- 1Informações obtidas em: BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégia Saúde da Família. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_esf.php>. Acesso em: 17 dez. 2012.
- 2Informações obtidas em: BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégia Saúde da Família. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_esf.php>. Acesso em: 17 dez. 2012.
- 3Optou-se por essa grafia para não adentrar nos meandros do debate teórico sobre as distinções e similaridades entre ética e bioética (Rego; Palácios; Siqueira-Batista, 2009REGO, S.; PALÁCIOS, M.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.).
- 4A partir desse momento, março de 2010, a primeira turma de medicina iniciou suas atividades na UFV (Universidade Federal de Viçosa), as quais incluíam participação nas ações desenvolvidas nas ESF do município de Viçosa.
- 5Documento elaborado conjuntamente pela Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
- 6Informações obtidas em: BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégia Saúde da Família. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_esf.php>. Acesso em: 17 dez. 2012.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2015
Histórico
- Recebido
09 Maio 2013 - Revisado
03 Set 2013 - Aceito
24 Mar 2014