Questionário de diagnóstico compartilhado da atenção básica: equipes de Saúde da Família típicas x ampliadas

Fábio Franchi Quagliato Antonio Ruffino Netto Aldaisa Cassanho Forster Sobre os autores

Resumos

A adscrição de clientela, a relação entre a equipe de atenção básica com as especialidades, as atividades de promoção à saúde e condições de infraestrutura são fatores organizacionais necessários para a Estratégia de Saúde da Família contribuir para proporcionar o cuidado integral no Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo deste artigo é comparar os resultados da aplicação do Questionário de Diagnóstico Compartilhado da Atenção Básica (QDCAB), no tocante aos quesitos referentes à integralidade, entre equipes de Saúde da Família típicas e ampliadas em um município paulista. O método e o QDCAB foram aplicados a equipes de Saúde da Família típicas e àquelas com especialistas das grandes áreas (equipes ampliadas), e a análise foi realizada utilizando o teste de Wilcoxon-Mann-Whitney, permitindo a comparação da distribuição das respostas entre os dois modelos de equipe. As equipes ampliadas estabelecem vínculo de forma mais coletiva (0,0026), porém, não houve diferença nos resultados dos esforços realizados nesse sentido entre os dois modelos de equipe (0,7227). As notas baixas atribuídas às questões relativas à relação da equipe com os especialistas, de uma forma geral, revelam as dificuldades para garantir a integralidade da atenção. As atividades de promoção à saúde receberam notas altas de ambos os modelos. A adequação da estrutura física do centro de saúde recebeu menores notas das equipes típicas (< 0,0001). A relação das equipes com os especialistas é um obstáculo para a garantia da integralidade e, para as equipes típicas, o excesso de demanda e as condições de infraestrutura também representam dificuldades.

Assistência Integral à Saúde; Medicina de Família e Comunidade; Educação em Saúde


Introdução

A Estratégia de Saúde da Família (ESF) assumiu papel prioritário para a Atenção Básica por meio de sua ampliação, qualificação e consolidação defendidas no Pacto pela Saúde de 2006 (Conill, 2008CONILL, E. M. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, p. S7-S27, 2008. Suplemento.; Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Apoio à Descentralização. Coordenação-Geral de Apoio à Gestão Descentralizada. Diretrizes operacionais dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Brasília, DF, 2006. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/pactos/pactos_vol1.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2011.
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). A Portaria n ̄° 2.488, de outubro de 2011, ressaltou um dos objetivos da estratégia, de "realizar avaliação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados, como parte do processo de planejamento e programação" (Brasil, 2011BRASIL. Portaria n° 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 de outubro de 2011. Seção 1, p. 48-55.; Sousa; Hamann, 2009SOUSA, M. F.; HAMANN, E. M. Programa Saúde da Família no Brasil: uma agenda incompleta? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1325-1335, 2009. Suplemento.).

Entre os princípios da ESF mais importantes, a integralidade garante que a equipe de Saúde da Família atenda às demandas não só biológicas, mas também socioculturais apresentadas pela população adscrita (Takeda, 2004TAKEDA, S. A Organização de Serviços de Atenção Primária à Saúde. In: DUNCAN, B. B.; SCHMIDT, M. I.; GIUGLIANI, E. R. J. Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 76-87.). Para que o princípio da integralidade seja alcançado, é preciso dimensionar adequadamente a população do território definido em relação à equipe (Conill, 2008CONILL, E. M. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, p. S7-S27, 2008. Suplemento.). De outra forma, a equipe terá dificuldades em realizar atividades de promoção, prevenção, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde, não cumprindo com seu papel em sua totalidade (Conill, 2008CONILL, E. M. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, p. S7-S27, 2008. Suplemento.; Facchini et al., 2006FACCHINI, L. A. et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da atenção básica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 669-681, 2006.).

Além disso, a integralidade e a longitudinalidade dependem do vínculo e da responsabilização estabelecidos entre as equipes e a população adscrita, garantindo também a coordenação do cuidado e as ações continuadas em saúde (Brasil, 2011BRASIL. Portaria n° 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 de outubro de 2011. Seção 1, p. 48-55.; Sousa; Hamann, 2009SOUSA, M. F.; HAMANN, E. M. Programa Saúde da Família no Brasil: uma agenda incompleta? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1325-1335, 2009. Suplemento.). O vínculo é necessário para que a tecnologia leve utilizada pelas equipes dê resultados (Coelho; Jorge, 2009COELHO, M. O.; JORGE, M. S. B. Tecnologia das relações como dispositivo do atendimento humanizado na atenção básica à saúde na perspectiva do acesso, do acolhimento e do vínculo. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1523-1531, 2009. Suplemento.).

O processo de territorialização é fundamental como forma de reconhecimento de recursos, de modo a permitir suas interações no sentido de promover rede de apoio à própria população atendida e o reconhecimento das necessidades já estabelecidas (Sousa; Hamann, 2009SOUSA, M. F.; HAMANN, E. M. Programa Saúde da Família no Brasil: uma agenda incompleta? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1325-1335, 2009. Suplemento.; Viana et al., 2006VIANA, A. L. D. et al. Modelos de atenção básica nos grandes municípios paulistas: efetividade, eficácia, sustentabilidade e governabilidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 577-606, 2006.).

O sistema de referência e contrarreferência também é fundamental para a garantia da integralidade, por meio da construção de redes de assistência à saúde e para minimizar a fragmentação da atenção nos diversos níveis de complexidade do sistema de saúde (Os autores…, 2012OS AUTORES respondem: quinze anos de uma agenda em construção: diálogos sobre o PSF no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1343-1345, 2012. Suplemento 1. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000800006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 fev. 2012.
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).

Finalmente, a integralidade depende também da satisfação e da resolutividade dos profissionais que atuam na Estratégia de Saúde da Família, que sofrem influência da estrutura física dos centros de saúde (Facchini et al., 2006FACCHINI, L. A. et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da atenção básica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 669-681, 2006.). Portanto, ao se avaliar a implantação e a qualificação da ESF, esse fator deve ser considerado.

Em muitos municípios, a organização da Atenção Básica é feita por meio de unidades de saúde com equipes tradicionais, equipes típicas de Saúde da Família e equipes ampliadas de Saúde da Família. O Departamento de Atenção Básica, de acordo com a portaria 2.488/2011, reconheceu essas combinações de equipes na organização e funcionamento, oferecendo formas distintas de financiamento da rede básica municipal (Brasil, 2011BRASIL. Portaria n° 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 de outubro de 2011. Seção 1, p. 48-55.).

Percebe-se que é preciso saber mais sobre o processo de implantar e qualificar esses modelos de prestação de atenção básica, se realmente são estruturas eficazes, se conseguem desenvolver as etapas de levantamento das necessidades, diagnóstico e programação de ações para a população adscrita.

O objetivo deste trabalho é comparar os resultados da aplicação do método e do Questionário de Diagnóstico Compartilhado da Atenção Básica (QDCAB), no tocante aos quesitos referentes ao cumprimento da integralidade, entre equipes de Saúde da Família típicas e ampliadas em um município paulista.

Material e Métodos

Trata-se de um estudo epidemiológico, tipo inquérito.

Foi usado o método e o Questionário para Diagnóstico Compartilhado da Atenção Básica (QDCAB) elaborados e descritos por Pinto em diagnóstico compartilhado no trabalho das equipes de saúde da família (Pinto, 2008PINTO, C. A. G. Diagnóstico compartilhado no trabalho das equipes de saúde da família. In: CAMPOS, G. W. S.; GUERRERO, A. V. P. (Org.). Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 298-322.) e consistiu em um trabalho de autoavaliação pelas equipes de saúde. O método da aplicação do questionário em equipe permite, por meio da discussão no grupo, a autoanálise e a cogestão do coletivo.

Foi realizada a comparação entre os resultados obtidos pela aplicação do QDCAB, em serviços de saúde com equipes de Saúde da Família típicas e equipes de Saúde da Família ampliadas. As equipes de Saúde da Família típicas contam com um médico generalista, enquanto as equipes ampliadas contam com clínico geral, pediatra e ginecologista, que atendem a duas ou mais equipes. Para isso, foram realizados encontros com membros das equipes de Saúde da Família do município de Ribeirão Preto que aceitaram participar do estudo, em períodos em que as equipes já realizavam suas reuniões rotineiras. Nesses encontros foi aplicado o QDCAB. No presente estudo, os itens do QDCAB analisados foram: relacionamento da equipe com a população adscrita e conhecimento do território, relação com especialistas, atividades de promoção da saúde e condições de infraestrutura. Esses itens foram escolhidos por sua importância para se alcançar o princípio da integralidade.

Após a aplicação do QDCAB às equipes de Saúde da Família, foram comparadas as respostas das equipes típicas com as equipes ampliadas, utilizando o teste de Wilcoxon-Mann-Whitney, que é usado na comparação de duas amostras extraídas de populações independentes (Hart, 2001HART, A. MannWhitney test is not just a test of medians: differences in spread can be important. BMJ: British Medical Journal, London, v. 323, n. 7309, p. 391-393, 2001.). Com o teste foi possível avaliar se houve diferença significante na distribuição de respostas nos dois modelos de equipes de Saúde da Família. Para a análise, foi utilizado o SAS System.

O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP (Processo HCRP no 8.788/2010).

Resultados

A coleta de dados foi realizada no período de maio de 2011 até novembro de 2011. Foram entrevistadas 20 equipes de Saúde da Família, sendo seis equipes de Saúde da Família ampliadas e 14 equipes de Saúde da Família típicas, com a participação de 137 profissionais ligados à Estratégia de Saúde da Família.

Dos 137 profissionais entrevistados, 34 faziam parte de equipes ampliadas, e 103 de equipes típicas. A tabela 1 apresenta a distribuição dos profissionais entrevistados, segundo o tipo de equipe de Saúde da Família.

Tabela 1
Distribuição do número de profissionais segundo profissão e tipo de equipe de Saúde da Família, Ribeirão Preto, 2011

Relacionamento da equipe com a população adscrita e conhecimento do território

O quadro 1 apresenta medidas de posição e de variabilidade (média, desvio-padrão e mediana) das respostas apresentadas para as questões referentes ao relacionamento da equipe com a população adscrita e ao conhecimento do território.

Quadro 1
Medidas de posição e variabilidade das respostas das questões sobre relacionamento da equipe com a população adscrita e conhecimento do território, Ribeirão Preto, 2011

Não houve diferença na avaliação das equipes em relação aos esforços em estabelecer vínculo e contrato da forma de atuar com as famílias da área de abrangência (0,3614). Ambos os modelos de equipes atribuíram notas altas a essa questão.

A forma das equipes típicas estabelecerem vínculo e contrato da forma de atuar com as famílias da área de abrangência é mais individual do que nas equipes ampliadas (0,0026) e as equipes ampliadas realizam mais contato com famílias novas do que as equipes típicas (0,0001). Com relação aos resultados desses esforços de uma forma geral e para o vínculo estabelecido com a comunidade, não houve diferença entre os dois modelos de equipes.

As equipes ampliadas forneceram notas mais altas ao seu conhecimento e interação com o território de responsabilidade sanitária, havendo diferença na distribuição das notas dos dois modelos de equipes (0,0028). Da mesma forma, as equipes ampliadas atribuíram notas maiores à realização de visitas em conjunto ao território (0,0036).

Com relação à interação com lideranças comunitárias, as equipes ampliadas atribuíram maiores notas (0,0043), porém as equipes típicas interagem mais com equipamentos de saúde do território (0,0107). Já a interação com equipamentos de educação, lazer e organizações não governamentais recebeu notas maiores das equipes ampliadas.

Relação com especialistas

O quadro 2 apresenta medidas de posição e de variabilidade (média, desvio-padrão e mediana) das respostas apresentadas para as questões sobre a relação das equipes com os especialistas.

Quadro 2
Medidas de posição e variabilidade das respostas das questões sobre a relação com especialistas, Ribeirão Preto, 2011

A forma de solicitação de interconsulta recebeu notas baixas dos dois modelos de equipes, devido à burocracia envolvida no procedimento, não havendo diferença entre eles (0,1061). Houve diferença em relação às notas atribuídas ao tempo entre a solicitação e a realização da interconsulta, tendo sido a percepção das equipes ampliadas pior em relação às equipes típicas (<0,0001). A interação do especialista com o paciente recebeu notas baixas de ambos os modelos, não havendo diferença entre elas (0,2828). Já a qualidade técnica da interconsulta teve uma percepção melhor das equipes típicas do que nas ampliadas (<0,0001). Não houve diferença na distribuição das notas relativas ao retorno dos achados da interconsulta à equipe, tendo sido as notas atribuídas a essa questão bastante baixas. As notas recebidas pela interação dos especialistas com a equipe foram melhores nas equipes típicas (0,0017), assim como a capacidade das equipes em superar a fragmentação da atenção quando o paciente é acompanhado em várias especialidades. Já a interação da equipe com equipe de atenção e internação domiciliar recebeu notas maiores das equipes ampliadas (0,0095).

Atividades de promoção da saúde

O quadro 3 apresenta medidas de posição e de variabilidade (média, desvio-padrão e mediana) das repostas das questões relacionadas às atividades de promoção da saúde.

Quadro 3
Medidas de posição e variabilidade das respostas das questões sobre atividades de promoção da saúde, Ribeirão Preto, 2011

Referente à realização de atividades de educação em saúde, houve diferenças entre os dois modelos de equipe (0,0153), sendo que as maiores notas foram atribuídas pelas equipes ampliadas. Não houve diferença entre os modelos, relativa à realização de atividades de educação dos pacientes e familiares para o autocuidado (0,1329), com notas altas em ambos os grupos. As equipes ampliadas atribuíram notas maiores às orientações sobre estilo de vida e à realização de atividades em grupos de educação em saúde. Não houve diferenças entre os dois modelos de equipe entrevistados relacionados à avaliação da adesão dos pacientes ao acompanhamento regular, à avaliação das condições dos pacientes para o autocuidado, ao estímulo dos pacientes para esse autocuidado e à avaliação da rede social de apoio dos pacientes. As equipes típicas atribuíram notas maiores ao estímulo à formação de rede social de apoio dos pacientes (0,0011). Não houve diferença na distribuição das notas relativas à avaliação dos vínculos familiares dos pacientes e da avaliação de eles morarem com familiares.

Condições de infraestrutura

O quadro 4 apresenta medidas de posição e de variabilidade (média, desvio-padrão e mediana) das respostas das questões sobre condições de infraestrutura.

Quadro 4
Medidas de posição e variabilidade das respostas das questões sobre condições de infraestrutura, Ribeirão Preto, 2011

As notas atribuídas às condições para respeito à privacidade dos pacientes foram menores entre as equipes típicas (<0,0001), assim como em relação às condições de lavagem das mãos. Não houve diferença entre as notas atribuídas à disponibilidade de almotolias de álcool glicerinado para antissepsia das mãos (0,5212). A adequação da área física do centro de saúde recebeu notas menores das equipes típicas (<0,0001). Com respeito à adequação das condições de limpeza da unidade, não houve diferença entre os modelos de equipes (0,4067), tendo sido as notas baixas em ambos os grupos.

Discussão

O município de Ribeirão Preto conta com 24 equipes de Saúde da Família, sendo 8 equipes ampliadas e 16 equipes típicas. Das equipes ampliadas, 75% participaram das entrevistas, e 93,75% das equipes típicas aceitaram responder aos questionários, sendo que uma das equipes participou apenas do projeto-piloto. Essa adesão à pesquisa pode revelar uma maior disponibilidade das equipes típicas em discutir os problemas enfrentados e as possíveis soluções em equipe. Além disso, os médicos de família e comunidade estiveram mais presentes durante a aplicação do questionário, já que, das 14 equipes entrevistadas, 11 tiveram a participação do médico. Já nas 8 equipes ampliadas, dos 10 médicos que fazem parte das unidades, entre clínicos gerais, pediatras e ginecologistas-obstetras, apenas 5 participaram da aplicação do questionário.

Relacionamento da equipe com a população adscrita e conhecimento do território

As equipes ampliadas estabelecem vínculo e contrato da forma de atuar mais em ações coletivas do que em ações individuais, ao contrário das equipes típicas. Isso pode ocorrer devido ao fato de as visitas domiciliares, os atendimentos por profissionais e o acolhimento serem importantes recursos utilizados pelas equipes típicas para o estabelecimento de vínculo, que ocorre de forma individual.

A maior realização de contato no sentido de estabelecer vínculo com famílias novas que se mudam para a área de abrangência por parte das equipes ampliadas pode ser atribuída ao fato de as equipes típicas apresentarem uma demanda e uma população adscrita maior do que é possível absorver, impedindo o cadastro de novas famílias do território. Dessa forma, as famílias já cadastradas são priorizadas no contato com as equipes, em detrimento de famílias novas ou que ainda não buscaram atendimento na unidade de saúde.

Apesar dessas diferenças, o resultado desses esforços para o estabelecimento de vínculo parece ser o mesmo para os dois tipos de equipes de Saúde da Família, que atribuíram notas altas a essa questão.

Quanto ao conhecimento do território, as equipes ampliadas atribuíram notas maiores ao conhecimento e interação com o território de abrangência. Porém, 57,14% das equipes típicas tiveram sua primeira formação há menos de cinco anos, enquanto 33,33% das equipes ampliadas tiveram a sua formação há menos de cinco anos. As equipes ampliadas atribuíram notas maiores à realização de visitas ao território em conjunto do que as equipes típicas, possivelmente por terem um maior período de preparação e capacitação para os profissionais, por serem equipes mais antigas, algumas delas do início da implantação da Estratégia de Saúde da Família no município. Já as equipes mais recentes foram iniciadas com necessidades de assistência à população, sem tempo para a devida preparação.

O conhecimento e interação com lideranças comunitárias, equipamentos de lazer e de educação e organizações não governamentais parecem ser maior por parte das equipes ampliadas, porém as equipes típicas possuem territórios de abrangência menores, podendo não contar em sua área com tais recursos. A interação com esses equipamentos foi bastante variável mesmo entre cada uma das equipes, tanto ampliadas quanto típicas, revelando ser inadequado o padrão de urbanização, que distribui desigualmente os recursos durante seu processo (Conill, 2008CONILL, E. M. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, p. S7-S27, 2008. Suplemento.; Viana et al., 2006VIANA, A. L. D. et al. Modelos de atenção básica nos grandes municípios paulistas: efetividade, eficácia, sustentabilidade e governabilidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 577-606, 2006., 2008VIANA, A. L. D. et al. Atenção básica e dinâmica urbana nos grandes municípios paulistas, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, p. S79-S90, 2008. Suplemento.).

Relação com especialistas

De um modo geral, a relação das equipes de Saúde de Família, tanto as ampliadas quanto as típicas, com especialistas é considerada bastante inadequada pelos profissionais entrevistados, considerando os baixos valores atribuídos às questões referentes a esse tema. Ainda que haja diferenças quanto à percepção do tempo entre a solicitação e a realização de interconsultas, à qualidade técnica da interconsulta e à interação do especialista com a equipe, as notas foram baixas nos dois modelos entrevistados.

A dificuldade de acesso aos demais níveis de assistência, fator que compromete a integralidade, também foi encontrada por Conill (2008)CONILL, E. M. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, p. S7-S27, 2008. Suplemento. em Florianópolis. Os resultados refletem essa dificuldade pelas baixas notas atribuídas à forma burocrática de solicitação de interconsulta de especialistas e ao tempo despendido entre a solicitação e a realização da consulta com especialista. Ainda que as equipes típicas tenham uma percepção menor da demora para a realização das interconsultas, as notas foram baixas nos dois modelos.

Além disso, as áreas atendidas pelas equipes entrevistadas são periféricas, com populações carentes de serviços públicos, o que se assemelha a municípios com mais de 100.000 habitantes, em que a implantação das equipes de Saúde da Família ocorreu em áreas historicamente negligenciadas, comprometendo a integração da rede de saúde e organização de todo o sistema (Os autores…, 2012OS AUTORES respondem: quinze anos de uma agenda em construção: diálogos sobre o PSF no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1343-1345, 2012. Suplemento 1. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000800006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 fev. 2012.
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). Outra característica do município que contribui para essa deficiência do sistema de referência e contrar-referência é a grande produção ambulatorial de alta complexidade e cobertura hospitalar histórica de Ribeirão Preto, dificultando a organização da Estratégia de Saúde da Família como modelo prioritário de atenção (Viana et al., 2006VIANA, A. L. D. et al. Modelos de atenção básica nos grandes municípios paulistas: efetividade, eficácia, sustentabilidade e governabilidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 577-606, 2006.).

O princípio da integralidade pode estar comprometido pela interação insuficiente do especialista no contato com o paciente. As notas foram atribuídas de acordo com a percepção dos profissionais com referência à interação entre especialista e paciente. Ficou claro que não houve diferenças nessa percepção relativas aos dois modelos de equipes, ou seja, ambos os grupos mostraram que as informações e opiniões dos pacientes, nas quais os profissionais basearam sua nota, trazem insatisfação com as interconsultas.

A capacidade de superar a fragmentação da atenção pela equipe quando o paciente é atendido em diversas especialidades foi maior nas equipes típicas, possivelmente pelo fato da maior facilidade de compartilhamento de informações entre os diversos profissionais e por um maior comprometimento no sentido de se responsabilizar pela população adscrita. De qualquer forma, as dificuldades em superar essa fragmentação se devem, em grande parte, à precariedade de retorno dos achados das interconsultas à equipe e à quase inexistência de interação entre os especialistas e os profissionais da Atenção Básica.

A relação com especialistas parece ser uma das fragilidades do sistema tanto para as equipes ampliadas como para as equipes típicas.

Atividades de promoção da saúde

As notas atribuídas às atividades de promoção da saúde foram altas nos dois modelos de equipe, tendo sido maiores na equipe ampliada as relativas à realização de atividades de educação em geral. Porém, um dos pontos levantados pelas equipes típicas foi a dificuldade na programação de atividades coletivas devido às altas demandas por atendimentos individuais, pelo motivo de a população adscrita ser maior do que a recomendação de cerca de 800 famílias por equipe (Coelho; Jorge, 2009COELHO, M. O.; JORGE, M. S. B. Tecnologia das relações como dispositivo do atendimento humanizado na atenção básica à saúde na perspectiva do acesso, do acolhimento e do vínculo. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1523-1531, 2009. Suplemento.; Sousa; Hamann, 2009SOUSA, M. F.; HAMANN, E. M. Programa Saúde da Família no Brasil: uma agenda incompleta? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1325-1335, 2009. Suplemento.; Takeda, 2004TAKEDA, S. A Organização de Serviços de Atenção Primária à Saúde. In: DUNCAN, B. B.; SCHMIDT, M. I.; GIUGLIANI, E. R. J. Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 76-87.). Esse fato se reflete na diferença das notas atribuídas à realização de atividades em grupo de educação em saúde, maiores na equipe ampliada. Ainda assim, todas as equipes realizavam atividades coletivas com objetivo de orientar a população com respeito a ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde. Uma característica variável entre as equipes foi a participação dos diferentes profissionais nessas atividades, já que as equipes ampliadas não contavam com a equipe médica na realização dos grupos de promoção da saúde.

Assim como as atividades para promoção da saúde, de uma forma geral, as atividades específicas para orientação de autocuidado e para possibilitar a autonomia do paciente receberam notas altas, contribuindo para o sucesso do tratamento e conferindo maior colaboração por parte do paciente.

As altas notas atribuídas às questões desse tema mostram que as equipes de Saúde de Família, típicas ou ampliadas, que trabalham na lógica da estratégia, focam mais em ações programáticas no sentido de estabelecer vínculo com a comunidade, do que equipes tradicionais da Atenção Básica, como também mostrou Facchini et al. (2006)FACCHINI, L. A. et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da atenção básica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 669-681, 2006.. Essa realidade deve ser incentivada por meio da adscrição da população de forma a permitir que o atendimento da demanda não seja excessivo a ponto de comprometer a realização de tais atividades.

O estímulo à formação de redes sociais de apoio aos pacientes é maior entre as equipes típicas, contribuindo para a identificação de recursos na comunidade para a solução ou suporte de problemas sociais ou mesmo de saúde de usuários (Coelho; Jorge, 2009COELHO, M. O.; JORGE, M. S. B. Tecnologia das relações como dispositivo do atendimento humanizado na atenção básica à saúde na perspectiva do acesso, do acolhimento e do vínculo. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1523-1531, 2009. Suplemento.), na lógica da adscrição de clientela.

Condições de infraestrutura

As condições de infraestrutura são claramente diferentes entre as equipes típicas e ampliadas. Isso se deve ao fato de que 10 das 14 equipes típicas atuam em unidades de Saúde da Família adaptadas, ou sej a, casas não construídas para esse fim, enquanto todas as equipes ampliadas atuam em unidades que oferecem condições adequadas para o atendimento. Essa realidade demonstra a falta de comprometimento e de planejamento para a adequada implantação da Estratégia de Saúde da Família no município.

O fato de trabalhar em unidades que não oferecem condições adequadas para funcionarem como serviços de saúde compromete, inclusive, o respeito à privacidade dos pacientes, como revelam as baixas notas atribuídas pelas equipes típicas a essa questão. Além disso, a satisfação dos profissionais em trabalhar em unidades com infraestrutura inadequada, precária e improvisada pode ser comprometida (Facchini et al., 2006FACCHINI, L. A. et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da atenção básica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 669-681, 2006.).

Conclusões

As diferenças encontradas entre as equipes de Saúde da Família típicas e ampliadas mostram que o excesso de demanda, causado pela adscrição de populações maiores do que o recomendado às equipes típicas, a falta de infraestrutura e as dificuldades na relação com os especialistas podem comprometer o desempenho das equipes ampliadas ou típicas. Um sistema de referência e contrarreferência efetivo, mais investimentos e planejamento na implantação da Estratégia de Saúde da Família no município e uma melhor divisão do território adscrito são essenciais para alcançar melhores resultados e indicadores.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2013
  • Aceito
    14 Out 2013
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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