Resumos
Este trabalho teve como objetivo entender os significados dos encaminhamentos feitos aos CAPS III de Santos na visão dos profissionais de saúde que atuam nesses serviços, por meio de pesquisa de abordagem qualitativa, priorizando-se o método etnográfico. Para a obtenção das informações junto a esses profissionais, utilizou-se a técnica de entrevistas em profundidade, com roteiro semiestruturado. Foram entrevistados 12 profissionais (quatro psiquiatras e oito de outras especialidades) nos cinco CAPS III do município de Santos. Os significados dos encaminhamentos aos CAPS III, segundo os entrevistados, estão vinculados ao modo equivocado e “indevido” como ocorrem, com poucos dados e sem critérios específicos. Para eles, tais encaminhamentos, por profissionais de outros serviços, são decorrentes da falta de escuta; da pressa em encaminhar o paciente; do desconhecimento do que seja o CAPS III; o que acarreta uma demanda excessiva ou “voraz” para os CAPS III, sobrecarregando o serviço e impedindo que os profissionais possam se dedicar aos pacientes graves, prioritários nesses serviços. Observa-se uma contradição entre o discurso dos entrevistados e sua prática, pois as novas demandas, de casos leves, são atendidas. Ao se referirem aos CAPS III como um espaço de acolhimento, que oferece proteção e segurança, os entrevistados indicam de que maneira lidam em suas práticas com essa inversão de prioridades de demanda. Ao definirem o CAPS, seu local de trabalho e de experiência profissional, a partir da noção de acolhimento, uma “categoria nativa”, os entrevistados parecem explicar a contradição entre o discurso e a prática.
Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental; Encaminhamento; Significado; Método Etnográfico
The objective of this study was to understand the meaning of the referrals to the CAPS III in Santos according to the opinion of health professionals who work in these services. A qualitative research was conducted, prioritizing the ethnographic method. The in depth interviews technique with a semi-structured script was used to collect information from these professionals. The research was carried out with 12 professionals – four psychiatrists and eight professionals from other areas – covering the five CAPS III in the city of Santos. In the professionals' opinion, the meanings of the referrals are related to the mistaken and inappropriate ways they occur, with few data and without any specific criteria. For them, the inadequacy of those referrals, made by professionals from others services, is due to the lack of accurate listening, to the hurry to refer patients and to the lack of knowledge about the CAPS III. These inadequate referrals cause an excessive demand to CAPS III, a service overload and professionals' restraint to care severe ill patients, who are considered priority in these kinds of services. There is a contradiction between the interviewees' discourse and their practice as the new demands, the common disorders cases, are attended. When referring to CAPS III as a welcoming place that offers safety and security, respondents indicate how they deal with this inversion of priorities in their practices. When defining the CAPS, their place of professional experience, with the notion of a welcoming, a “native category”, the interviewees seem to explain the contradiction between discourse and practice.
Mental Health; Mental Health Services; Referral; Meaning; Ethnographic Method
Introdução
A cidade de Santos, em São Paulo, implantou entre 1989 e 1994, a primeira rede de atenção em saúde mental totalmente substitutiva ao manicômio no Brasil e esta foi, por vários anos, a experiência de maior repercussão, tanto nacional quanto internacional.
Neste período foram criados, além de outros serviços da rede de saúde mental, cinco núcleos de atenção psicossocial (NAPS), cuja proposta era uma prática centrada principalmente na convivência com as diferenças e no respeito ao direito de cidadania das pessoas com sofrimento psíquico, visando resgatá-las. Procurava-se criar novas formas de relação entre o serviço e os pacientes, favorecer a expressão, produzir espaços de subjetividade, de elaboração da história pessoal dos pacientes, enfatizando-se também a importância do NAPS como espaço de trocas e de socialização (Nicácio, 1994NICÁCIO, M. F. S. O processo de transformação da saúde mental em Santos: desconstrução de saberes, instituições e cultura. 1994. Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994., p. 91).
Após 1997, as novas gestões municipais mantiveram a rede de atenção à saúde mental construída até aquele momento e o funcionamento dos serviços, mas sem a continuidade do projeto de saúde mental implementado até 1996 (Luzio; L'Abbate, 2006LUZIO, C.; L'ABBATE, S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de São Paulo, Santos e Campinas. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 281–298, 2006., p. 290). Koda e Fernandes (2007)KODA, M.; FERNANDES, M. I. A. A reforma psiquiátrica e a constituição de práticas substitutivas em saúde mental: uma leitura institucional sobre a experiência de um núcleo de atenção psicossocial. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1455–1461, 2007. também ressaltam que as mudanças ocorridas na gestão municipal, no final da década de 1990, levaram à ruptura da proposta inicial, acarretando uma situação de crise entre os trabalhadores dos NAPS.
A partir da Portaria n° 336/GM, de 19/02/2002, os NAPS passaram a se constituir em CAPS III de acordo com porte/complexidade, abrangência populacional e atendimento 24 horas, diariamente, incluindo feriados e finais de semana. Ainda segundo a Portaria, os CAPS devem estar capacitados para atender prioritariamente pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área de abrangência (Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 fev. 2002. p. 22.).
Uma das mudanças mais perceptíveis nos CAPS III de Santos é exatamente a perda de sua característica original de priorizar o atendimento ao paciente psicótico e neurótico grave. Atualmente, sua maior dificuldade é a demanda excessiva dos “casos leves”, que acabam desviando a atenção dos profissionais dos pacientes realmente graves, os quais necessitam de uma assistência mais intensiva, próxima e constante.
A fim de compreender a mudança no perfil de demanda do CAPS e como ela é atendida nesse serviço, o presente artigo apresenta a análise e discussão dos significados dos encaminhamentos feitos aos CAPS III de Santos, na visão dos profissionais que neles atuam.
O contexto de demandas aos CAPS III: Transtorno Mental Severo e Persistente (TMSP) ou Transtorno Mental Comum (TMC)?
Dada a articulação necessária entre a rede de saúde mental e a atenção básica, segundo documento do Ministério da Saúde (Brasil, 2003BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários. Brasília, DF, 2003. Disponível em: <https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/1734.pdf>. Acesso em: 21 out. 2013.
https://www.nescon.medicina.ufmg.br/bibl... ), é possível compreender, em parte, a mudança observada no perfil da demanda atendida nos CAPS, em função dos encaminhamentos feitos a esses serviços. Nesse documento, afirma-se “que uma grande parte das pessoas com transtornos mentais leves estão sendo atendidos na atenção básica (queixas psicossomáticas, abuso de álcool e drogas, dependência de benzodiazepínicos, transtornos de ansiedade menos graves, etc.)” (Brasil, 2003BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários. Brasília, DF, 2003. Disponível em: <https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/1734.pdf>. Acesso em: 21 out. 2013.
https://www.nescon.medicina.ufmg.br/bibl... , p. 2).
Estudos sobre o perfil dos pacientes com problemas mentais acolhidos na atenção básica corroboram esse cenário ao apontar o predomínio dos quadros depressivos e de ansiedade, de transtornos associados ao uso de álcool e dos transtornos somatoformes (Üstün; Sartórius, 1995ÜSTÜN, T. B.; SARTÓRIUS, N. (Ed.). Mental illness in general health care: an international study. Chichester: John Wiley & Sons, 1995.; Campos, 1994CAMPOS, G. W. S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e reforma das pessoas: o caso da saúde. In: CECILIO, L. C. O. (Org.). Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 29–88. apud Silva, 2008SILVA, L. C. G. Do que se trata e o que trata a psiquiatria: concepções de psiquiatras e usuários de um serviço municipal de saúde mental. 2008. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2008.).
No Brasil, estudo realizado por Fortes (2004)FORTES, S. Transtornos mentais na atenção primária: suas formas de apresentação, perfil nosológico e fatores associados em unidades do programa de saúde da família do município de Petrópolis/Rio de Janeiro. 2004. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004., em cinco unidades do Programa de Saúde da Família (PSF) do município de Petrópolis, Rio de Janeiro, apontou uma prevalência média de 56% de transtornos mentais comuns (TMC) dentre 714 pacientes.
Frente a esse quadro, um outro aspecto deve ser considerado para compreender a mudança no perfil de demandas: a identificação de casos como sendo leves ou graves, segundo as definições correspondentes de transtorno mental comum (TMC) e de transtorno mental severo e persistente (TMSP).
Schinnar et al. (1990)SCHINNAR, A. P. et al. An empirical literature review of definition of severe and persistent mental illness. American Journal of Psychiatry, Arlington, v. 147, n. 12, p. 1602–1608, 1990., ao compararem dezessete definições de TMSP utilizadas nos Estados Unidos, entre 1972 e 1987, consideraram-nas vagas e inconsistentes, concluindo que a definição de maior consenso e que mais representa a faixa média de prevalência é aquela apresentada pelo National Institute of Mental Health (NIMH).
A definição do NIMH baseia-se em três aspectos:
confirmação de diagnóstico de psicose não orgânica ou transtorno de personalidade;
incapacidades (avaliado por meio do Global Assessment of Function - GAF) que apresentem pelo menos três das seguintes disfunções: comportamento social demandando intervenção pelo sistema judiciário, prejuízo leve nas atividades da vida diária ou necessidades básicas, déficit moderado no funcionamento social, déficit moderado na performance de trabalho; c) duração, no qual considera-se a história de dois anos de doença mental ou de tratamento por dois anos ou mais. (Cavalcanti et al., 2009CAVALCANTI, M. T. et al. Critérios de admissão e continuidade de cuidados em centros de atenção psicossocial. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43, p. 23–28, 2009. Suplemento 1., p. 26)
Assim como as definições de transtorno mental severo e persistente mostram-se vagas e inconsistentes (Schinnar et al., 1990SCHINNAR, A. P. et al. An empirical literature review of definition of severe and persistent mental illness. American Journal of Psychiatry, Arlington, v. 147, n. 12, p. 1602–1608, 1990.), observa-se também que conceitos diferentes são utilizados para definir os transtornos mentais comuns, devido à falta de especificidade de seus sintomas.
Enquanto Silva (2008SILVA, L. C. G. Do que se trata e o que trata a psiquiatria: concepções de psiquiatras e usuários de um serviço municipal de saúde mental. 2008. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2008., p. 92) trabalha com a terminologia de TMC para definir “quadros leves, de sintomas inespecíficos, com queixas somáticas associadas e que frequentemente remitem de forma espontânea” e Fonseca (2007)FONSECA, M. L. G. Sofrimento difuso, transtornos mentais comuns e problemas de nervos: uma revisão bibliográfica a respeito das expressões de mal-estar nas classes populares. 2007. Dissertação (Mestrado em saúde pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2007. engloba nesta terminologia os quadros depressivos, ansiosos e somatoformes, classificáveis nos manuais diagnósticos, Valla (2001)VALLA, V. V. Globalização e saúde no Brasil: a busca da sobrevivência pelas classes populares via questão religiosa. In: VASCONCELOS, E. M. (Org.). A saúde nas palavras e nos gestos. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 39–62. utiliza o conceito de sofrimento difuso para nomear queixas somáticas inespecíficas, como dores de cabeça, insônia, nervosismo e mal-estar, não classificáveis nos diagnósticos médicos ou psiquiátricos, cujas causas podem estar nas relações sociais, de trabalho, familiares ou econômicas.
Na psiquiatria, tais queixas são nomeadas como transtornos somatoformes (TSs) e, na clínica médica, como síndromes somáticas funcionais (SSFs). Um mesmo paciente, ao ser atendido por um psiquiatra, pode receber um diagnóstico de TS, mas, se atendido por um clínico, poderá receber o diagnóstico de SSF, que se caracteriza mais por sintomas de sofrimento e incapacidade do que por patologias específicas e inclui fibromialgia, síndrome do intestino irritável (SII), síndrome de fadiga crônica, várias síndromes dolorosas, entre outras (Bombana, 2006BOMBANA, J. A. Sintomas somáticos inexplicados clinicamente: um campo impreciso entre a psiquiatria e a clínica médica. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 55, n. 4, p. 308–312, 2006.).
Se a falta de consenso na definição do que sejam os TMSP e a inespecificidade dos sintomas que definem os TMC dificultam o diagnóstico psiquiátrico, tal dificuldade torna-se ainda mais evidente nos encaminhamentos, como afirmam Fortes (2004)FORTES, S. Transtornos mentais na atenção primária: suas formas de apresentação, perfil nosológico e fatores associados em unidades do programa de saúde da família do município de Petrópolis/Rio de Janeiro. 2004. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. e Rozemberg (1994)ROZEMBERG, B. O consumo de calmantes e o problema de nervos entre lavradores. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 28, n. 4, p. 300–308, 1994. sobre a dificuldade dos médicos generalistas em diagnosticar os TMC, o que resulta em encaminhamentos e exames desnecessários, assim como dificuldade de acolhimento dessas manifestações de sofrimento, conduzindo muitas vezes à sua medicalização.
A mudança de demanda aos CAPS, observada em Santos e em outras localidades como Campinas (Diaz, 2009DIAZ, A. R. M. G. Pesquisa avaliativa em saúde mental: a regulação da “porta” nos centros de atenção psicossocial. 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.), coloca-nos, como aspecto central para o entendimento do quadro atual enfrentado nesses serviços, a questão do encaminhamento partindo da perspectiva dos atores sociais que vivenciam e questionam esse processo de mudança, ou seja, os profissionais dos CAPS III.
Método
O estudo qualitativo, de abordagem etnográfica, foi realizado com 12 profissionais dos cinco CAPS III de Santos, sendo quatro médicos psiquiatras, cinco psicólogas, dois assistentes sociais e uma enfermeira. A escolha dos profissionais levou em conta critérios de inclusão, sugeridos por Minayo (1992)MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1992., tais como: privilegiar os profissionais que detêm informações que o pesquisador pretende conhecer, isto é, neste estudo, profissionais mais antigos no serviço, portanto mais experientes e indicados para dar informações sobre o tema pesquisado; e, ao mesmo tempo, que o conjunto de informações pudesse ser diversificado, sendo, para isso, escolhidos profissionais de diferentes categorias. É preciso reiterar, também, que um importante critério para a inclusão dos profissionais dos CAPS foi o fato de suas vivências e práticas nesses serviços indicar a configuração de um grupo de interlocutores privilegiados para revelar os significados dos encaminhamentos, questão central nesta pesquisa. Excluiu-se, nessa perspectiva, aqueles que encaminham, principalmente porque os encaminhamentos feitos aos CAPS III são realizados, na sua maioria, por profissionais médicos, o que restringiria a visão sobre os encaminhamentos a uma única categoria profissional. Além disso, essa restrição não nos possibilitaria apreender como os profissionais pensam e lidam com os encaminhamentos feitos aos CAPS III, considerados um problema em relação ao perfil de demanda desses serviços, conforme apontado na introdução.
Optou-se, neste estudo, pelo referencial teórico-conceitual baseado na noção de significado da perspectiva antropológica, cujo pressuposto é a interação entre o pensamento e a experiência, que possibilita aos atores sociais explicar a realidade que vivenciam (Martin et al., 2006MARTIN, D. et al. Noção de significado nas pesquisas qualitativas em saúde: a contribuição da antropologia. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 178–180, 2006. Carta.). Dessa forma, a ideia de significado está estreitamente vinculada ao conceito de cultura, fundamental ao método etnográfico (Nakamura, 2009NAKAMURA, E. O lugar do método etnográfico em pesquisas sobre saúde, doença e cuidado. In: NAKAMURA, E.; MARTIN, D.; SANTOS, J. F. Q. (Org.). Antropologia para enfermagem. São Paulo: Manole, 2009. p. 15–35.), definido por Geertz (1989)GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. como a teia de significados que o homem teceu, a partir da qual ele olha o mundo e à qual se encontra preso.
No método etnográfico, cabe ao pesquisador desvendar essa teia de significados, permitindo que os dados coletados na realidade, constantemente remetidos à teoria a partir dos “óculos teóricos” do pesquisador, sejam direcionados por um olhar e uma escuta particulares sobre o objeto de estudo (Martin et al., 2006MARTIN, D. et al. Noção de significado nas pesquisas qualitativas em saúde: a contribuição da antropologia. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 178–180, 2006. Carta.).
Na pesquisa, adotou-se como instrumento de coleta a entrevista individual em profundidade, semiestruturada, privilegiando-se assim a escuta atenta e envolvida do pesquisador em relação aos seus interlocutores, num processo de “escuta participante”, tão importante quanto a observação (Forsey, 2010FORSEY, M. G. Ethnography as participant listening. Ethnography, London, v. 11, n. 4, p. 558–572, 2010.). Especificamente em relação ao tema da pesquisa, a entrevista mostrou-se como uma importante ferramenta para captar não apenas o contexto atual, mas todo o processo de mudanças vivido pelos atores sociais pesquisados em suas experiências nos CAPS, sabendo-se que, em etnografia, para entrevistar, é preciso saber ouvir, superando não apenas as eventuais barreiras da língua, mas fundamentalmente ouvindo o que o outro tem a dizer e que tem, para ele, algum sentido (Oliveira, 1998OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antropólogo. Brasília, DF: Paralelo 15; São Paulo: Unesp, 1998.). Para apreender esse contexto e os significados atribuídos aos encaminhamentos, seguiu-se um roteiro flexível, com questões sobre encaminhamento, triagem, o significado de termos como “neurótico”, “casos leves” ou “transtorno severo e persistente”, o entendimento do que é um CAPS III para o entrevistado, entre outras.
As entrevistas com os profissionais dos serviços pesquisados foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas, segundo o princípio interpretativo proposto por Geertz (1989)GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989., possibilitando que as experiências vividas pelos profissionais dos CAPS fossem descritas densamente. Na análise interpretativa, as situações e relações vividas pelos pesquisados são justapostas e comparadas, possibilitando que novos temas sejam identificados (Wing-Chung, 2008 apud Mantzoukas, 2012MANTZOUKAS, S. Exploring ethnographic genres and developing validity appraisal tools. Journal of Research in Nursing, London, v. 17, n. 5, p. 420–435, 2012.). Nesse exercício, o pesquisador “interpreta as diferentes interpretações” que os atores sociais fazem de suas realidades particulares (Geertz, 1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.). A interpretação é, portanto, fundamental à identificação dos significados atribuídos pelos participantes da pesquisa à realidade estudada (Nakamura, 2009NAKAMURA, E. O lugar do método etnográfico em pesquisas sobre saúde, doença e cuidado. In: NAKAMURA, E.; MARTIN, D.; SANTOS, J. F. Q. (Org.). Antropologia para enfermagem. São Paulo: Manole, 2009. p. 15–35.), bem como à descoberta de outros temas significativos para os entrevistados.
A partir do roteiro utilizado para as entrevistas, as respostas dos entrevistados para cada questão foram inicialmente agrupadas por assunto e interpretadas, evidenciando suas opiniões sobre a prática profissional nos CAPS III. Posteriormente buscou-se organizar e identificar, no grupo de respostas de cada tema, as categorias de maior relevância, reveladoras dos significados atribuídos pelos entrevistados à realidade vivenciada.
As categorias foram identificadas a partir do “reconhecimento de sua presença empírica, na forma de arranjos concretos e efetivos por parte dos atores sociais”, resultantes da abordagem etnográfica, que possibilitou identificar os “arranjos” ou as “teorias nativas”, segundo Magnani (2002MAGNANI, J. G. C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11–29, 2002., p. 20), em que consistem os significados; nesta pesquisa, em particular, os significados dos encaminhamentos feitos aos CAPS III de Santos.
Todas as entrevistas foram realizadas mediante assinatura de termo de consentimento, garantindo-se o caráter voluntário e o anonimato dos participantes. Desta forma, devido à proximidade dos profissionais e à possibilidade de reconhecimento, para manter o aspecto ético, optou-se por não diferenciá-los por categoria, utilizando-se apenas a sigla (E) em uma sequência numérica.
Cenário da pesquisa
Apesar dos cinco NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial) do município de Santos terem sido cadastrados em 2002, pela Portaria n° 336/GM, como CAPS III, ainda hoje se utiliza a terminologia NAPS e a numeração para destacar a ordem de criação e a região de abrangência.
Cada NAPS (CAPS III) é referência para os bairros do seu entorno, incluindo os respectivos morros, buscando facilitar o acesso do paciente ao serviço e dos profissionais ao território, tanto em relação à moradia dos pacientes como aos diversos recursos existentes na comunidade.
O NAPS I localiza-se na Zona Noroeste, que é uma região carente e populosa. Já houve a proposta, por parte da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Santos, de criação de outro CAPS III nesta região devido à grande demanda, o que, porém, não se concretizou.
O NAPS II abrange a região do centro e também possui uma população carente, com problemas geralmente relacionados às drogas e à prostituição.
Em contrapartida, o NAPS III, atualmente localizado no bairro da Aparecida, atende uma população diferente da dos anteriores, por se tratar de uma população com melhor poder aquisitivo e por não haver morros em seu território de abrangência.
Com relação ao NAPS IV, este se localiza atualmente no bairro do Marapé, fora de sua área de abrangência, pois na época da mudança não se conseguiu uma casa adequada em seu território de atuação. Segundo os profissionais que ali atuam, isto prejudica tanto o acesso dos pacientes ao serviço como o entendimento dos moradores das cercanias de que não têm este serviço disponível para seu tratamento, uma vez que existe outro NAPS, o NAPS V, na mesma região.
A população atendida no NAPS IV caracteriza-se por ser mista quanto à condição socioeconômica, pois agrega a população mais carente dos morros e a população com melhor poder aquisitivo de outros bairros.
Embora a população do NAPS V assemelhe-se à do NAPS IV, a primeira apresenta o diferencial de que um dos morros, o Morro Santa Terezinha, é composto por uma população de classe social alta.
Apesar da diferença de população atendida em cada um dos CAPS III e seus contextos particulares, os profissionais foram abordados de forma homogênea a partir da problemática comum que apresentam: a mudança de perfil de demanda vinculada à questão do encaminhamento.
Resultados e discussão
A partir das falas dos entrevistados, foram identificadas as “categorias nativas” mais relevantes, aquelas consideradas fundamentais para abordar o problema da pesquisa sobre a inversão de prioridades no atendimento devido à mudança no perfil de demanda ao CAPS III. Tomou-se como ponto de partida, o significado que os CAPS têm para esses profissionais.
O CAPS III como um serviço complexo e como espaço de acolhimento
Os profissionais, em sua maioria, consideram o CAPS III como um espaço de acolhimento e ressaltam em suas falas os termos “proteção”, “segurança”, “refúgio”.
[…] ele no começo ele estava bem mas depois ele… conseguiu não beber, não usar drogas, conseguiu vir aqui, pedir ajuda, ficar internado com a gente, agora ele voltou ao trabalho mas ele de vez em quando passa mal, fica, dorme uma noite aqui, hospedado, não internado né, mas assim né ele precisa ficar com a gente porque ele se sente protegido, seguro (E6)
Outra ideia compartilhada entre os profissionais é a de que o CAPS III é o lugar onde os pacientes psicóticos e neuróticos graves, que demandam uma atenção especializada, são acolhidos, reabilitados e ressocializados.
O CAPS III é… um lugar de acolhimento, é a possibilidade de tratamento de um psicótico ahn… neurótico, psicóticos e neuróticos graves sem a necessidade do uso de…internação psiquiátrica, de asilamento. (E2)
A função é de atender os quadros psicóticos, é… graves né, que precisariam ser socializados, então esses casos ressocializados, mais este tipo de pacientes. Na verdade, aqui eu acho que seria um lugar… o protagonista seria o psicótico né, talvez já tenha sido, hoje não. Acho que os outros NAPS tão a mesma coisa. (E5)
Alguns profissionais consideram o CAPS III como um espaço de trocas afetivas e de experiências, valorizando-o como um espaço de convivência e “lugar de vida”.
Olha, pra mim, o CAPS deveria ser um espaço de, como já foi uma época, é, de trocas, sabe? De trocas de experiências, de trocas de afetividade (pausa). Eu acho que o CAPS é um serviço assim, muito complexo […] o CAPS deveria ser um espaço mais acolhedor, né? (E12)
[…] um lugar de muita vida, que as pessoas pudessem vir pra cá, estar aqui, conviver com os outros, independente de contratos, […] o CAPS teria que ser um lugar de vida, de trânsito, de relação com outros serviços. (E8)
Observa-se que os profissionais utilizam o conceito de acolhimento diferentemente de Schimidt e Figueiredo (2009)SCHMIDT, M. B.; FIGUEIREDO, A. C. Acesso, acolhimento e acompanhamento: três desafios para o cotidiano da clínica em saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 130–140, 2009., que o definem como “o primeiro contato com quem nos procura”. Mais do que a noção de contato, a ideia expressa pelos profissionais evidencia um espaço que o paciente pode procurar em momentos de fragilidade e insegurança, nele podendo ficar “hospedado”, segundo um entrevistado, e não internado.
No entanto, ao afirmarem que o CAPS III é um espaço acolhedor, propício para a convivência, para as trocas afetivas e de experiências, facilitando e ampliando as relações com a comunidade, os profissionais parecem aproximar-se da noção apresentada por Campos (1994)CAMPOS, G. W. S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e reforma das pessoas: o caso da saúde. In: CECILIO, L. C. O. (Org.). Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 29–88., que considera que o acolhimento não é apenas receber bem, mas passa pela estrutura adequada e agradável da unidade, pelo acesso geográfico, pelo atendimento humanizado e pela resolutividade dos problemas.
Uma vez que acolhimento, para os profissionais, está relacionado com uma visão mais ampla do que apenas o “receber bem” e está mais voltado ao serviço como um todo, o conceito expresso em seus depoimentos parece aproximar-se da concepção preconizada pela Política Nacional de Humanização (PNH), do Ministério da Saúde, de acolhimento como uma postura ética, em que que se toma a responsabilidade de “abrigar e agasalhar” outrem em suas demandas, uma ação que deve ocorrer em todos os locais e momentos do serviço de saúde (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2. ed. Brasília, DF, 2006. (Série B. Textos Básicos de Saúde)., p. 19).
O comprometimento e a cronicidade dos casos graves
A maioria dos profissionais entrevistados refere-se aos portadores de transtorno severo e persistente como sendo os graves, psicóticos ou crônicos, e para defini-los não se restringem a diagnósticos específicos, preferindo utilizar, com mais frequência, o grau de comprometimento que o transtorno acarreta nos seus portadores.
Então acho que é aquele transtorno que interfere no cotidiano, aquele transtorno que engessa a vida de alguém,… que aí independe do diagnóstico, às vezes você vê alguém com uma esquizofrenia, mas que tem uma liberdade, tem um trânsito muito maior que uma pessoa com depressão… até uma depressão mais moderada mas que a vida está engessada, aquela pessoa que está deixando a vida passar, não consegue sair deste circuito […] nós temos muitas pessoas aqui, com um quadro de depressão que dependem pra tudo, até que alguém traga pro NAPS porque não vêm, não conseguem sair da cama, não conseguem caminhar sozinho, pararam de trabalhar, pararam de…, a auto estima está lá em baixo, então acho que esse engessamento, esta perda de autonomia, é que caracteriza o transtorno severo. (E1)
Consideram pacientes graves aqueles que apresentam falta de crítica e juízo prejudicado, enfatizam a intensidade com que os sintomas influenciam o seu cotidiano, interferindo nas suas relações sociais e no desempenho do trabalho. A ideia de “engessamento” é utilizada por um profissional para referir-se ao estado de comprometimento da vida em que se encontram esses pacientes.
Os profissionais costumam utilizar apenas o termo psicótico, sem se ater a determinadas enfermidades, como a esquizofrenia, fato também observado na definição de transtorno severo e persistente pelo National Institute of Mental Health (NIMH), que utiliza, como um dos critérios a serem considerados nessa definição, o diagnóstico de psicose não orgânica, não se referindo a quadros específicos (NIMH, 1987NIMH - NATIONAL INSTITUTE OF MENTAL HEALTH. Towards a model for a comprehensive community-based mental health system. Washington, DC, 1987.).
Em contrapartida, em relação a outro critério utilizado pelo NIMH (1987)NIMH - NATIONAL INSTITUTE OF MENTAL HEALTH. Towards a model for a comprehensive community-based mental health system. Washington, DC, 1987., o de incapacidade, observa-se uma diferenciação na maneira de avaliar o grau de comprometimento. Embora o NIMH (1987)NIMH - NATIONAL INSTITUTE OF MENTAL HEALTH. Towards a model for a comprehensive community-based mental health system. Washington, DC, 1987. também considere o prejuízo nas atividades do dia a dia, o déficit no relacionamento social e demais performances, refere-se a estas perdas como leves e moderadas. Para os profissionais entrevistados, entretanto, as perdas são significativas e incapacitantes, uma vez que “engessam a vida”.
A dificuldade de resposta ao manejo da medicação também é considerada, por alguns profissionais, como critério para definir o paciente como caso grave.
Quando o médico entra com uma medicação e essa medicação não resolve. E aí aumenta a dose, muda a medicação, e o paciente, né, em algum momento até melhora um pouquinho e daqui a pouco tá com os sintomas novamente. Eu acho que aí é… no meu ponto de vista, esses são, severos e persistentes. (E11)
[…] que você vai tentando, é que tem muito paciente que você dá medicação, né, depois de achar, você aumenta medicação, volta medicação, e… É um paciente assim que, sem outros recursos, só o recurso medicamentoso, ele não vai melhorar. (E7)
Os profissionais associam o caso grave à cronicidade, relacionada, segundo eles, com a duração do tratamento. Acreditam na necessidade de vigilância e cuidados constantes desses pacientes, o que exigiria um suporte para a vida toda.
O não comprometimento e o sofrimento dos casos leves
Percebe-se que não é tarefa fácil, para os profissionais, definir o que consideram casos leves. Alguns chamam esses casos de neuróticos leves ou quadros leves, no geral, referindo-se às depressões leves e aos quadros de ansiedade, causados muitas vezes por questões sociais ou problemas do cotidiano.
Os outros, os leves né, que seriam as depressões bem leves, as ansiedades que… que surgem da vida, de problema do cotidiano, do desemprego, das drogas, que é uma coisa que acontece muito no território aonde o meu NAPS está inserido. (E3)
Um aspecto recorrente para definir o caso leve é a presença do sofrimento, que não aparece com tanta ênfase no relato dos casos graves. Alguns profissionais consideram que as pessoas com quadros leves não estão tão comprometidas psicologicamente, pois “não há perda de autonomia”.
São casos que muitas vezes, ah, eles vão precisar de uma ajuda às vezes temporária, não necessariamente médica, psiquiátrica, é, casos em que há um sofrimento, né, mas que não tá impedindo essa pessoa de realizar suas funções, suas ocupações, suas tarefas diárias, né. Não há perda assim da autonomia. (E12)
Depressão leve, uma coisa assim que não impossibilita sua vida, não atrapalha sua vida social, o teu trabalho […] (E9)
Apesar de os profissionais acreditarem não ser o CAPS III o lugar para atendimento das pessoas com casos leves, consideram a necessidade de escuta e cuidado dessas pessoas em situação de sofrimento.
[…] que eu chamo de mais leve, mas na verdade são pessoas que tem um sofrimento muito grande e que deixam também, em algum momento, de fazer aquilo que ela estava fazendo. (E10)
Valla (2001)VALLA, V. V. Globalização e saúde no Brasil: a busca da sobrevivência pelas classes populares via questão religiosa. In: VASCONCELOS, E. M. (Org.). A saúde nas palavras e nos gestos. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 39–62. refere-se a queixas somáticas inespecíficas na definição de sofrimento difuso, relacionando-as a situações sociais, de trabalho, familiares, econômicas, como também foi observado nos depoimentos dos profissionais.
As noções apresentadas pelos profissionais para definir o quadro leve parecem aproximar-se do que Silva (2008)SILVA, L. C. G. Do que se trata e o que trata a psiquiatria: concepções de psiquiatras e usuários de um serviço municipal de saúde mental. 2008. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2008. define como transtorno mental comum (TMC). O autor enfatiza que nesses casos pode haver uma remissão espontânea, e os profissionais acrescentam a importância da escuta como um aspecto que contribuiria para isso.
Ressalta-se que os profissionais médicos e não médicos utilizam de forma dicotômica a mesma categoria para definir casos graves e casos leves, qual seja, o comprometimento que acarretam na vida dos pacientes. Em relação a essa categoria, os casos leves são caracterizados a partir da negação ou diminuição do grau de comprometimento. Considerando-se esta visão dicotômica, os casos leves são aqueles “menos comprometidos”, em que “não há perda da autonomia”, que “não engessam a vida”, ao contrário dos casos graves.
Encaminhamento equivocado ou indevido e demanda voraz
Ao expressarem sua opinião a respeito dos encaminhamentos recebidos no CAPS III, os entrevistados os caracterizam como “indevidos”, “inadequados”, “com poucos dados”, consideram que “faltam critérios” e que há um “desconhecimento do CAPS III” por parte dos profissionais que encaminham.
Os médicos não saberem fazer um encaminhamento adequado, ah! eu não sei, a pessoa chorou ah! encaminha pro psicólogo, a pessoa gritou mais alto, encaminha pro psiquiatra, então não tem um objetivo concreto do que é encaminhar para o NAPS, para o serviço. (E4)
Essa indefinição em relação aos casos encaminhados constitui uma “demanda que é voraz” e que, portanto, descaracteriza o perfil original dos CAPS, segundo um entrevistado:
[…] nenhum trabalho dá conta desta demanda que é voraz, que chega todo dia, que pede ajuda, que pede ansiolítico, que pede a medicação, então o que acabou acontecendo é que esta demanda engoliu a atenção, ela roubou muito a atenção dos profissionais porque esta demanda ela chama, ela insiste, ela vem, ela busca mais que o psicótico. (E1)
Os profissionais médicos e não médicos apontam, como uma das causas dos encaminhamentos equivocados ou “indevidos” ao CAPS III, a falta de escuta por parte dos profissionais que encaminham o paciente, causando o seu vai-e-vem pelos serviços, tornando-o um paciente “rodador”, como define um entrevistado.
Percebe-se, muitas vezes, que com a falta de escuta não se consideram as necessidades reais do paciente e o que o serviço tem a oferecer antes de encaminhar.
“Por quê que eu estou aqui? Não era pra eu vir pra cá! Por que que ele me mandou pra cá? Ele nem ouviu, eu sou paciente dele” – de um neurologista da prefeitura – “mas ele nem me ouviu, eu só falei que tava achando que eu tava mais sensível, ele já me encaminhou”. (E8 reproduzindo a fala de uma usuária)
Esta forma de atuação é o que leva, conforme os profissionais, a uma pressa em “se livrar”, “despachar” o paciente. Preocupados em apenas atender a demanda, os serviços que encaminham os pacientes aos CAPS III parecem não considerar que o acolhimento implica uma mobilização de quem recebe, e do serviço, para dar uma resposta à necessidade da pessoa (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2. ed. Brasília, DF, 2006. (Série B. Textos Básicos de Saúde).).
O relato dos profissionais entrevistados parece indicar que o primeiro atendimento no serviço de origem se aproxima do conceito de triagem de Azevedo e Barbosa (2007)AZEVEDO, J. M. R.; BARBOSA, A. Triagem em serviços de saúde: percepções dos usuários. Revista de Enfermagem da UERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 33–39, 2007., cuja finalidade é avaliar, selecionar e encaminhar às unidades/especialidades adequadas à sua assistência. Pode-se considerar essa atitude contrária ao que defendem Schimidt e Figueiredo (2009)SCHMIDT, M. B.; FIGUEIREDO, A. C. Acesso, acolhimento e acompanhamento: três desafios para o cotidiano da clínica em saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 130–140, 2009., quando se referem ao acolhimento como o primeiro contato, o momento em que se evidencia o serviço, o que este pode oferecer, como pode acolher, avaliar e discriminar a demanda.
As considerações de Schmidt e Figueiredo (2009)SCHMIDT, M. B.; FIGUEIREDO, A. C. Acesso, acolhimento e acompanhamento: três desafios para o cotidiano da clínica em saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 130–140, 2009. sobre o primeiro atendimento são, portanto, fundamentais para compreender o fluxo dos encaminhamentos feitos aos CAPS III, na medida em que estes estão diretamente vinculados ao modo como o acolhimento é feito, que pode levar a equívocos, resultando apenas no aumento da demanda.
As colocações dos profissionais de que os encaminhamentos recebidos de UBSs, ambulatórios de especialidades, entre outros, são inconsistentes, com poucas informações e que denotam um desconhecimento da realidade dos serviços, reforçam assim a necessidade de integração entre eles, como sugere Schneider (2009)SCHNEIDER, A. R. S. A rede de atenção em saúde mental: a importância da interação entre a atenção primária e os serviços de saúde mental. Ciência & Saúde, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 78–84, 2009., e como também aponta o documento do Ministério da Saúde (Brasil, 2003BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários. Brasília, DF, 2003. Disponível em: <https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/1734.pdf>. Acesso em: 21 out. 2013.
https://www.nescon.medicina.ufmg.br/bibl... ).
Considerações finais
Os significados dos encaminhamentos, na visão dos profissionais entrevistados, ressaltam seu aspecto equivocado ou “indevido”, com poucos dados e sem critérios específicos. Os entrevistados acreditam que a causa de tais encaminhamentos seja a falta de escuta por parte dos profissionais de outros serviços, que encaminham o paciente sem ao menos saberem a causa de sua queixa. Consideram ainda que existe uma pressa desses profissionais em se “livrar” do paciente, que assim é “despachado”, chegando muitas vezes ao CAPS III sem saber o motivo por que está ali. Outra possível causa seria o desconhecimento, por parte dos profissionais que encaminham, do que seja o CAPS III, além de uma falta de qualificação dos mesmos.
Esses encaminhamentos mal direcionados geram, segundo um entrevistado, uma “demanda que é voraz”, que chega a todo o momento. É uma demanda de quem pede ajuda, pede ansiolítico, pede medicação, pede laudos e atestados, causando uma sobrecarga ao serviço e impedindo que os profissionais do CAPS III possam dar a devida assistência aos pacientes graves, os quais são a prioridade do serviço, de acordo com a maioria dos relatos.
Os significados atribuídos à noção de encaminhamento parecem, assim, explicar a inversão de prioridades apontada como o problema dessa pesquisa. Eles ainda revelam duas categorias relacionadas: encaminhamento equivocado ou “indevido” e demanda “voraz”. Ambas corroboram a hipótese, aqui apresentada, de que a inversão de prioridades e consequente mudança no perfil da demanda são decorrentes desse tipo de encaminhamento.
Embora os profissionais entrevistados e a Portaria no 336/GM, que regulamenta os CAPS III, refiram que estes serviços devem priorizar o atendimento às pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, não é o que se observa na prática, evidenciando uma lacuna entre o que a política preconiza e a prática desses serviços no município de Santos.
Observa-se, assim, uma contradição entre o discurso dos entrevistados e sua prática. Apesar de acreditarem ser o CAPS III voltado para o atendimento dos psicóticos (casos graves), os profissionais atendem os casos leves por três motivos: primeiro, parecem ainda estar orientados pela necessidade de acolher toda a demanda que chega ao serviço, como era quando o serviço se chamava NAPS; segundo, alegam a falta de opções diante dos casos não pertinentes ao CAPS III; e terceiro, afirmam que a UBS não dá conta de responsabilizar-se por esses casos.
É evidente nos depoimentos dos entrevistados a percepção de que o CAPS III se modificou muito, tendo perdido suas propostas e características iniciais,o que fica evidente na inversão de suas prioridades. Há certo saudosismo em relação ao que já foram os CAPS III de Santos, que hoje não conseguem realizar as mesmas ações propostas no início de sua implantação, tais como visitas domiciliares com frequência, trocas com o território, interlocução dentro da própria rede de atenção psicossocial, entre outras.
Ao se referirem aos CAPS III como um espaço de acolhimento, que oferece proteção e segurança, os profissionais entrevistados parecem indicar de que maneira lidam em suas práticas com uma demanda “voraz” decorrente de encaminhamentos “indevidos”, conforme já se ressaltou. Ao definirem o CAPS, seu local de trabalho e de experiência profissional, a partir da noção de acolhimento, os entrevistados parecem solucionar a contradição entre o discurso e a prática. O CAPS é visto por esse grupo de profissionais como um lugar de trocas afetivas e de experiências, sendo valorizado como um espaço de convivência e “lugar de vida”; ou seja, um espaço onde os encaminhamentos feitos não deixam de ser atendidos, em que pesem as críticas e os questionamentos que possam ser feitos à inversão de demanda.
O trabalho pretendeu, assim, apresentar uma aproximação dos significados atribuídos ao encaminhamento por um grupo particular de profissionais que trabalham nos CAPS III de Santos. No exercício interpretativo realizado, que não se pretende conclusivo, a análise e a discussão das falas dos entrevistados revelaram outros aspectos relacionados à mudança do perfil de demanda e aos encaminhamentos feitos aos CAPS III, que poderão ser explorados em outros estudos para complementar a compreensão da problemática aqui abordada, contribuindo para a reflexão crítica e para a mudança de práticas que atualmente dificultam a atuação dos profissionais nesses serviços.
- 1Artigo baseado em dissertação de mestrado apresentada por Neuza Gonzaga ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências de Saúde da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista, em 2012, sob orientação da Profa. Dra. Eunice Nakamura.
Referências
- AZEVEDO, J. M. R.; BARBOSA, A. Triagem em serviços de saúde: percepções dos usuários. Revista de Enfermagem da UERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 33–39, 2007.
- BOMBANA, J. A. Sintomas somáticos inexplicados clinicamente: um campo impreciso entre a psiquiatria e a clínica médica. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 55, n. 4, p. 308–312, 2006.
- BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 fev. 2002. p. 22.
- BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários. Brasília, DF, 2003. Disponível em: <https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/1734.pdf>. Acesso em: 21 out. 2013.
» https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/1734.pdf - BRASIL. Ministério da Saúde. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2. ed. Brasília, DF, 2006. (Série B. Textos Básicos de Saúde).
- CAMPOS, G. W. S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e reforma das pessoas: o caso da saúde. In: CECILIO, L. C. O. (Org.). Inventando a mudança na saúde São Paulo: Hucitec, 1994. p. 29–88.
- CAVALCANTI, M. T. et al. Critérios de admissão e continuidade de cuidados em centros de atenção psicossocial. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43, p. 23–28, 2009. Suplemento 1.
- DIAZ, A. R. M. G. Pesquisa avaliativa em saúde mental: a regulação da “porta” nos centros de atenção psicossocial. 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
- FONSECA, M. L. G. Sofrimento difuso, transtornos mentais comuns e problemas de nervos: uma revisão bibliográfica a respeito das expressões de mal-estar nas classes populares. 2007. Dissertação (Mestrado em saúde pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2007.
- FORSEY, M. G. Ethnography as participant listening. Ethnography, London, v. 11, n. 4, p. 558–572, 2010.
- FORTES, S. Transtornos mentais na atenção primária: suas formas de apresentação, perfil nosológico e fatores associados em unidades do programa de saúde da família do município de Petrópolis/Rio de Janeiro. 2004. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
- GEERTZ, C. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: LTC, 1989.
- KODA, M.; FERNANDES, M. I. A. A reforma psiquiátrica e a constituição de práticas substitutivas em saúde mental: uma leitura institucional sobre a experiência de um núcleo de atenção psicossocial. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1455–1461, 2007.
- LUZIO, C.; L'ABBATE, S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de São Paulo, Santos e Campinas. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 281–298, 2006.
- MAGNANI, J. G. C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11–29, 2002.
- MANTZOUKAS, S. Exploring ethnographic genres and developing validity appraisal tools. Journal of Research in Nursing, London, v. 17, n. 5, p. 420–435, 2012.
- MARTIN, D. et al. Noção de significado nas pesquisas qualitativas em saúde: a contribuição da antropologia. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 178–180, 2006. Carta.
- MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1992.
- NAKAMURA, E. O lugar do método etnográfico em pesquisas sobre saúde, doença e cuidado. In: NAKAMURA, E.; MARTIN, D.; SANTOS, J. F. Q. (Org.). Antropologia para enfermagem São Paulo: Manole, 2009. p. 15–35.
- NIMH - NATIONAL INSTITUTE OF MENTAL HEALTH. Towards a model for a comprehensive community-based mental health system Washington, DC, 1987.
- NICÁCIO, M. F. S. O processo de transformação da saúde mental em Santos: desconstrução de saberes, instituições e cultura. 1994. Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994.
- OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antropólogo. Brasília, DF: Paralelo 15; São Paulo: Unesp, 1998.
- ROZEMBERG, B. O consumo de calmantes e o problema de nervos entre lavradores. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 28, n. 4, p. 300–308, 1994.
- SCHINNAR, A. P. et al. An empirical literature review of definition of severe and persistent mental illness. American Journal of Psychiatry, Arlington, v. 147, n. 12, p. 1602–1608, 1990.
- SCHNEIDER, A. R. S. A rede de atenção em saúde mental: a importância da interação entre a atenção primária e os serviços de saúde mental. Ciência & Saúde, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 78–84, 2009.
- SCHMIDT, M. B.; FIGUEIREDO, A. C. Acesso, acolhimento e acompanhamento: três desafios para o cotidiano da clínica em saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 130–140, 2009.
- SILVA, L. C. G. Do que se trata e o que trata a psiquiatria: concepções de psiquiatras e usuários de um serviço municipal de saúde mental. 2008. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2008.
- ÜSTÜN, T. B.; SARTÓRIUS, N. (Ed.). Mental illness in general health care: an international study. Chichester: John Wiley & Sons, 1995.
- VALLA, V. V. Globalização e saúde no Brasil: a busca da sobrevivência pelas classes populares via questão religiosa. In: VASCONCELOS, E. M. (Org.). A saúde nas palavras e nos gestos São Paulo: Hucitec, 2001. p. 39–62.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2015
Histórico
- Recebido
24 Jun 2013 - Revisado
15 Out 2013 - Aceito
07 Fev 2014