O profissional da odontologia pós-reestruturação produtiva: ética, mercado de trabalho e saúde bucal coletiva11Publicação inédita baseada em tese de doutorado intitulada "A subjetividade do profissional da saúde pós-reestruturação produtiva". Apresentada na Universidade Federal de Santa Catarina, Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Doris Gomes Flávia Regina Souza Ramos Sobre os autores

Resumos

O objetivo deste artigo é desvelar os problemas éticos na nova realidade de trabalho dos profissionais da odontologia, pós-reestruturação produtiva. Pesquisa qualitativa do tipo exploratório descritivo realizada por meio de entrevista individual semiestruturada com dez profissionais da odontologia num universo total de 30 entrevistados, utilizando o método de análise textual discursiva. O mercado de trabalho da odontologia pós-reestruturação produtiva apresenta uma nova realidade de planos, convênios e clínicas populares que não atende às necessidades dos profissionais em vários quesitos, mas, sim, às suas próprias necessidades comerciais, ocasionando diversificados problemas éticos. Um crescente ressentimento interpares parece ter relação direta com a crise neste mercado de trabalho e com a transformação da velha concorrência liberal em competitividade. Diferenciada da lógica de mercado, as transformações na saúde bucal coletiva direcionam a um importante e contemporâneo debate: a necessidade social de construção da excelência para a odontologia pública como problema ético. Conclui-se que uma crise profissional na odontologia aponta diferentes problemas éticos, uma vez que as transformações no mercado de trabalho reforçam um sentido comercial na profissão, construindo configurações empresariais com ampliação de acumulação de capital em realidades de precarização no trabalho; e que a ação exclusiva do profissional na saúde bucal coletiva estimula o seu papel protagonista nas transformações rumo a uma nova excelência profissional pública.

Ética; Profissional da Saúde; Saúde Bucal; Odontologia


Introdução

A odontologia é uma profissão historicamente forjada na junção de uma intelectualização própria da medicina, a partir de um ramo especializado denominado estomatologia, com uma arte dentária prática. Segundo Botazzo (2000)BOTAZZO, C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2000., a estomatologia não nasceu verdadeiramente senão a partir do momento em que a anatomia foi cultivada na Europa e quando a organização da boca foi conhecida nos seus detalhes íntimos. Entretanto, a marca arte/comércio/ofício vai acompanhar e diferenciar essa profissão circunscrita à boca: hegemonia do ideal liberal-privatista, forte componente artesanal e relações de trabalho construídas no mercado - que classicamente rivaliza o bom serviço com o desejo de lucro. Constrói-se uma intersubjetividade imbricada à ontogênese da profissão: um ethos académico e um ideal de profissional bem-sucedido que perpassa, de forma natural e invisível, diferentes alteridades.

Para Cristina Carvalho (2006)CARVALHO, C. L. A Transformação no mercado de serviços odontológicos e as disputas pelo monopólio da prática odontológica no século XX. História, Ciência, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 55-76, 2006., a conquista do reconhecimento público da profissão passou pela superação da visão de comércio artesanal voltado ao lucro e com baixa autoestima social, por um serviço normatizado e indispensável de saúde bucal em bases científicas. Uma identidade profissional que se constrói sob forte resistência corporativa na disputa com diferenciados grupos de prestadores informais até a criação dos conselhos, que estabelecem o monopólio da prestação dos serviços bucais a essa categoria específica. Uma realidade percebida, ainda hoje, como objeção defensiva à formação e atuação de técnicos em saúde bucal e ao trabalho em equipe.

Um constructo de prática individualizada, voltada à alta tecnologia e especialização, que não acontece sob uma visão mais complexificada do ser humano e da dimensão social do processo saúde-doença, mas apoiada na biomedicina. A sua base científica moderna é edificada nas descobertas bacteriológicas de Miller, em 1890: responde aos anseios científicos da nova profissão, origina um estilo de pensamento científico pautado na doença cárie e consolida um coletivo de pensamento odontológico sobre uma sólida base de fatos "multicausais-biologicistas" (Gomes; Da Rós, 2008GOMES, D.; DA RÓS, M. A. A etiologia da cárie no Estilo de Pensamento da ciência odontológica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 1081-1090, 2008., p. 1083).

O componente "prática" como alicerce da formação no Brasil, especialmente cirurgia e prótese, marcou as primeiras faculdades brasileiras, que só incorporaram tardiamente a "clínica" (Warmling; Marzola; Botazzo, 2012WARMLING, C. M.; MARZOLA, N. R.; BOTAZZO, C. Da autonomia da boca: práticas curriculares e identidade profissional na emergência do ensino brasileiro da odontologia. História, Ciência, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 181-195, 2012.). O modelo flexneriano de ensino, introduzido na década de 1960, acompanhou a industrialização do capitalismo tardio brasileiro e aprofundou o caráter técnico-científico-especializado da formação odontológica. Um saber-fazer/poder consolidado numa clínica hermética em consultório, que permanece como desafio à saúde bucal coletiva, por sua "des-reconstrução". Um estilo de pensamento e um perfil profissional tradicional que entram em crise com a transição epidemiológica da doença cárie associada a uma saturação do mercado de trabalho, não mais realizador do status profissional.

Uma transição profissional que acontece concomitante à reestruturação produtiva na saúde: a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) dá-se num ambiente neoliberal de forte conflito com os princípios constitucionais de unicidade e universalidade, estabelecido no mix público-privado. O direito de cidadania, ligado ao estatuto do pleno emprego e seu poder protetor, é abalado pelas transformações do mundo do trabalho - desagregação profunda do trabalho e contestação das proteções sociais. As necessidades em saúde que já adquiriram conotação de bens de consumo na "era dourada" (Hobsbawn, 2002HOBSBAWN, E. A era dos extremos. São Paulo: Schwarcz, 2002.), começam a fazer parte de uma abordagem lucrativa com potencial ainda superior de acumulação de capital. Novas questões entram em pauta, não só no âmbito da compreensão dos processos materiais da produção da vida, como, também, de uma transformação subjetiva relacionada.

Agora o consumo de bens e serviços passa não mais à realização de necessidades, mas à sua própria produção, o que, segundo Mészarós (2002)MÉSZARÓS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002., obedece ao imperativo abstrato da lucratividade. O consumo estético é massificado como fetiche de felicidade aparente, uma ideologia necessária à dissimulação dos riscos sociais do desenvolvimento (descontrolado pelo mercado, especialmente financeiro. Para Harvey (2011)HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2011., a busca da autoexpressão como uma marca de identidade individual dentro de um coletivo acaba plasmada por modelos de consumo e estilo de vida. A necessidade de disciplinação, normalização e controle dos corpos e, em especial, da força de trabalho parece misturar normatização, repressão, familiarização, cooptação e cooperação, perpassando todos os meandros das relações humanas.

A ética é constantemente confrontada aos interesses comerciais e "[…] a desumanização das relações entre os profissionais de saúde e os pacientes tem sido uma das principais causas apontadas para o aumento de denúncias e processos de promoção de responsabilidade jurídica" (Fortes, 2011FORTES, P. A. C. Ética e saúde. São Paulo: EPU, 2011., p. 15). Algumas transformações importantes na odontologia, tanto no mercado de trabalho quanto na saúde bucal coletiva, parecem pautar a busca por novas alternativas. Por um lado, a moral deontológica é construída num modelo de cura aliado à estética, agora acrescido do consumo estético/especializado com ampliação da capitalização sobre o trabalho - assalariado precarizado e/ou sob organizações de grupo/empresariais. Por outro lado, a incorporação das equipes de saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família (ESF) conforma um corpo de profissionais ligado exclusivamente à saúde bucal coletiva, portanto, fora do ideal de mercado e voltado a uma nova perspectiva sociocoletiva. Origina-se uma crise paradigmática com "[…] diluição das matrizes identitárias dos cirurgiões-dentistas" (Emmerich; Castiel 2009EMMERICH, A.; CASTIEL, L. D. A ciência odontológica: Sísifo e o "efeito camaleão". Interface, Botucatu, v. 13, n. 29, p. 339-351, 2009., p. 341), abrindo espaço a possíveis transformações epistemológica e ético-políticas. Este artigo objetiva, então, desvelar problemas éticos nessas novas realidades de trabalho do profissional da odontologia.

Metodologia

Pesquisa qualitativa do tipo exploratório descritivo, utilizou entrevista individual semiestruturada. Esse recorte foi baseado na análise dos dados obtidos junto a dez odontólogos do total de 30 entrevistados (médicos, enfermeiros e odontólogos) com experiência de trabalho no mix público-privado. Foram feitos contatos prévios com os profissionais solicitando autorização para início das entrevistas, primeiramente com os que atuavam no serviço público de uma Secretaria Municipal de Saúde da Região Metropolitana de Florianópolis. A seleção da amostra foi definida pelo método bola de neve, no qual um entrevistado inicial recomenda outro, repetindo-se o processo com os novos incluídos até que se atinja o critério de saturação de informações. Não foram estabelecidos limites institucionais ou formas de acesso exclusivo por essa via.

Em caso de concordância dos sujeitos, foram fornecidas informações mais detalhadas e acordadas as condições da entrevista. Os sujeitos passaram a ser reconhecidos pela letra "P", seguido de numeração, mantendo-se o anonimato. Para análise dos resultados utilizou-se a análise textual discursiva (Moraes; Galiazzi, 2011MORAES, R.; GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva. Rio Grande: UNIJÍ, 2011.), que se organiza em torno da desmontagem dos textos em unidades-base e formação de categorias (com auxílio do software ATLAS.ti) e na captação do novo emergente pela nova combinação de sentidos expressados num metatexto, seguido de um ciclo de análise a partir da crítica e validação. O projeto foi aprovado previamente pelo Comitê de Ética - CEPSH/UFSC/2461. A participação ocorreu de forma voluntária, utilizando-se um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e observando as condições de plena autonomia contidas na Resolução CNS 196/96.

Resultados e discussão

Problemas éticos no mercado de trabalho pós-reestruturação produtiva

Relativos aos Convênios e planos odontológicos

"[…] a minha clientela era mais convênio e chegou uma fase que não valia mais a pena, porque os convênios estão com um preço do repasse para os profissionais mínimo"(P8).

"[…] sempre vão dando um jeito para driblar a lei, são muito criativos, e a gente só trancado entre quatro paredes não pensa o todo e embarca de gaiato… a remuneração deles é muito baixa… tá pagando para trabalhar… estão marginalizando a profissão" (P10).

Acompanhando a lógica de outras áreas da saúde, os planos e convênios na odontologia tiveram um crescimento importante nas últimas décadas no Brasil. O aumento da demanda por esse tipo de serviço tem sido estimulado e sustentado pela sua compra direta pelo Estado, que transfere à iniciativa privada parte importante da sua função provedora: "[…] a escassez da oferta e a baixa qualidade dos serviços públicos de saúde, ambas resultantes da progressiva falta de financiamento, favoreceram a dinâmica do mix público-privado da saúde no Brasil" (Bahia; Scheffer, 2010BAHIA, L.; SCHEFFER, M. Planos eseguros de saúde: o que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil. São Paulo: UNESP, 2010., p. 27). Uma modalidade comercial regida inicialmente pelas leis do livre-mercado, que, devido à crescente insatisfação dos profissionais e usuários, passa a ser regulamentada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Fica estabelecida uma intermediação entre profissional e paciente que modifica substancialmente a prática liberal, quando parte da responsabilidade administrativa e da remuneração dos serviços é assumida por terceiros. A ausência do vínculo de trabalho num mix com a prática liberal propriamente dita, mesmo com a detenção dos instrumentos de trabalho ou parte deles, confere uma nova modalidade de precarização. Uma realidade pautada no livre exercício profissional atestado como ideal, que acaba estimulando serviços desnecessários e impedindo um potente controle social externo (Vianna; Pinto, 2013VIANNA, S. M.; PINTO, V. G. Financiamento e organização. In: PINTO, V. G. (Ed.). Saúde bucal coletiva. São Paulo: Santos, 2013.). Mesmo em franca expansão, essa "terceirização" não se volta ao atendimento das necessidades profissionais em vários quesitos, mas às necessidades de mercado das empresas.

"[…] acho que os convênios estão querendosacanear os dentistas, que é uma classe já desunida, que não luta pelos seus direitos" (P10).

A adesão dos profissionais aos planos privados sem grande conhecimento de suas limitações e inferências na autonomia provém das crescentes dificuldades em manter o status através da prática liberal em consultório: o convênio seria uma opção atraente para consultórios vazios (Bragança et al., 2011BRAGANÇA, D. P. P. et al. Avaliação dos procedimentos clínicos mais glosados nos convênios odontológicos. RFO, Passo Fundo, v. 16, n. 2, p. 136-139, 2011.). O desconhecimento dos conceitos de gestão e a ignorância da relação custo/receita/lucro pelos profissionais resulta numa nova forma de controle e precarização do trabalho liberal, gerando insatisfação majoritária (Saliba et al., 2011SALIBA, O. et al. Honorários praticados por operadoras de planos odontológicos e pelo SUS em relação aos definidos pelo Conselho Federal de Odontologia. Arquivos do Centro de Estudos do Curso de Odontologia, Belo Horizonte, v. 47, n. 4, p. 215-218, 2011.). Uma realidade perversa, que constrói uma relação de indispensabilidade ao profissional na tentativa de sua manutenção num mercado de trabalho de alta competitividade. Em lugar de um questionamento sobre sua assertividade, se constrói uma disposição para aprender a lidar com seus benefícios e mazelas.

Ficam estabelecidos como problemas éticos: 1) o controle do trabalho profissional para comprovação de procedimentos realizados ocasiona um ambiente de desconfiança nos procedimentos glosados, no lugar de um ambiente de respeito no trabalho em saúde; 2) o excesso de exames comprobatórios acaba submetendo o paciente a procedimentos desnecessários sem conhecimento ou anuência prévia, construindo um conflito ético - uma realidade que impulsionou mudanças no código de ética deontológico; 3) um sentimento de desamparo e insegurança pela falta da ação/proteção coletiva parece facilitar espaços de ascendência dos convénios sobre os direitos do profissional e do consumidor.

Na realidade das clínicas "populares"

"[…] uma ex-aluna minha falou que ganhava três reais por profilaxia e flúor e fazia uma a cada 10 minutos… essas clínicas populares são para lavagem de dinheiro… é aviltante, é degradante um profissional se submeter a isto" (P6).

"[…] minha colega falou que tinha 15 minutos para cada paciente, independente do que fosse fazer… ela falou que tinha uma lâmpada que quando dava o tempo, eles ficavam acendendo… o próprio profissional se corrompe" (P10).

Uma realidade de assalariamento nas clínicas "populares", confeccionadas sob o signo da profissionalização empresarial, busca acumulação de capital na odontologia sobre relações precarizadas de trabalho: a exigência de alta produtividade em cenários que desconsideram a autonomia profissional e preceitos éticos deontológicos é geradora de insegurança. Problemas éticos podem ser evidenciados em relação às cargas de trabalho e na relação profissional-paciente: submissão a tempos pré-determinados de atendimento; aprovação de pré-plano de tratamento delineado por outro profissional; valores cobrados abaixo das tabelas do Conselho Federal de Odontologia (CFO); proprietários e/ou administradores sem formação na área da saúde ou odontologia impulsionados por interesses comerciais; contratação de mão de obra recém-formada configurando quadro de exploração no trabalho.

Como no campo da saúde a produção e o consumo são simultâneos, ou seja, os próprios efeitos do trabalho transformam-se em mercadoria, tangível, vendável e produtora de lucro para o capital empregador, os próprios atos do trabalho no setor privado transformam-se em mercadoria - produtora de lucro. Marx já acentuava que a relação mercadológica de compra e venda é fruto de uma relação social, portanto, "[…] a atividade de serviço nas relações capitalistas pode ser produtiva se ela resulta na agregação de valor ao capital, ou seja, transforma-se em mercadoria capaz de produzir mais-valia" (Pena; Minayo-Gomez, 2010PENA, P. G. L.; MINAYO-GOMEZ, C. Premissas para a compreensão da saúde dos trabalhadores no setor serviço. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 371-383, 2010., p. 374).

O pensamento hegemónico de que o mercado regularia o acesso democrático a todos esbarra num tipo de clínica construída numa visão concorrencial tipo empresarial/comercial. Uma realidade vista pelos profissionais como eticamente imprópria ao serviço privado.

"[…] o mercado regula, todos podem ganhar dinheiro sendo honestos. Eu só vejo que as clínicas populares, as maiores, os donos estão visando o lucro, é uma empresa, o meio caminho não sei como está" (P10).

Essa nova formatação de clínica vende o sonho de consumo de uma odontologia estética especializada que supriria as necessidades em saúde bucal de uma população de baixa renda. Entretanto, não oferecem, boa parte das vezes, a resolução técnica e humana adequada ou em condições próprias de trabalho: "[…] muitas vezes a queda dos preços vem também com a queda da qualidade" (CFO, 2013CFO - CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA. Crescimento da classe C impulsiona odontologia. Jornal do CFO, Brasília, DF, v. 107, p. 1-11, abr-jun. 2013., p. 3). Alguns pressupostos baseiam esse tipo de investimento na odontologia: 1) necessidade real de uma população de baixa renda que ascende a um mercado consumidor em saúde (classes c ou d) (CFO, 2013CFO - CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA. Crescimento da classe C impulsiona odontologia. Jornal do CFO, Brasília, DF, v. 107, p. 1-11, abr-jun. 2013.); 2) propaganda massiva pautada na excelência da saúde privada; 3) pouca autonomia dos indivíduos associada à ignorância de conhecimentos especializados e vulnerabilidades sociais (Gonçalves; Verdi, 2007GONÇALVES, E. R.; VERDI, M. I. M. Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 755-764, 2007.); e 4) acesso à cobrança de direitos restrita nessa parcela-alvo da população.

"[…] veio uma paciente do setor privado para ser atendida; nós condenamos um dente, o profissional foi - a gente não pode julgar, mas aparentemente e pela história -um pouco desleixado, tanto que ela vai perder o dente. Antes tinha aquela história de que no setor público o profissional empurrava com a barriga, fazia de qualquer jeito, mas eu vejo agora (está muito igual). Não sei se porque aumentou muito o número de profissionais e essas redes populares de odontologia e eles trabalham muito por produção, tem muito profissional que faz um trabalho de não muito boa qualidade, eu vejo que há semelhanças hoje no privado e no público" (P10).

O padrão produtivo das clínicas "populares" parece estimular uma qualidade duvidosa que, associado à rapidez no atendimento, se assemelha ao praticado por boa parte dos profissionais do serviço público ao longo da história da odontologia brasileira - questionado na atualidade por sua reconstrução nos parâmetros da saúde bucal coletiva. Uma realidade de trabalho assalariado precarizado que, apesar disso, ainda vive a utopia de uma prática liberal, dissociada de uma visão clínica ampliada e um saber-fazer reflexivo e crítico - com participação ativa do profissional no seu contexto social (Santos et al., 2008SANTOS, A. M. et al. Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no Programa Saúde da Família. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 464-470, 2008.).

Segundo Cavalcanti et al. (2011)CAVALCANTI, A. L. et al. Odontologia e o código de defesa do consumidor: análise dos processos instaurados contra cirurgiões-dentistas e planos odontológicos em Campina Grande - Paraíba. Revista de Odontologia da Unesp, Araraquara, v. 40, n. 1, p. 6-11, 2011., a odontologia brasileira privada passa por um momento de transição: de uma prestação de serviços baseada no vínculo de confiança profissional-paciente para uma massificação dos serviços, especialmente pós-década de 1980, indutora de uma prática subsumida aos interesses de consumo. Instaura-se um perfil profissional que fere a ética deontológica, evidenciado no número elevado de processos junto aos Procons e conselhos profissionais, baseados na violação dos direitos do consumidor.

A incorporação de um sentido molar - universalizante e transformador - nas mediações éticas profissional-paciente parece central para que essas singularidades não sejam apenas receptáculos de uma ideologia da ética hedonista ou da ética restrita às responsabilidades em uma empresa/instituição: um código de ações predefinidas de acordo com objetivos funcionais ao qual o profissional se submete. Mas que reproduza nos microespaços de poder as contradições e as pluralidades sociais, sem prescindir de um agente ético como sujeito dos processos, "[…] como um ser racional e consciente que sabe o que faz, como um ser livre que decide e escolhe, como um ser responsável que responde pelo que faz" (Chauí, 2011CHAUÍ, M. Ética e Violência no Brasil. Bioethikos, São Paulo, v. 5, n. 4, p. 378-383, 2011., p. 379).

A odontologia, como um serviço de saúde diferenciado de mera atividade comercial, mediado pela ética na relação profissional-paciente-sistema de saúde, tem sido destaque no debate coletivo em torno do código de ética deontológico. Mudanças significativas no novo código de ética, promovidas ao final de 2012, voltam-se também às entidades com atividade no âmbito da odontologia - ficando proibido, inclusive, o uso da palavra "popular" associado às atividades clínicas. Entretanto, e apesar disso, essas ações não parecem suficientes em função de: uma mão de obra excedente e de um forte potencial de mais-valia sobre a mercadoria trabalho; grandes desigualdades sociais, que dificultam o acesso a uma odontologia ainda cara e restritiva; um sistema público com alta demanda; e falta de um espaço de debate ético/bioético amplificado, com abordagem dos problemas contemporâneos de forma inter e transdisicplinar (Garrafa, 2006GARRAFA, V. Multi-inter-transdisciplinar, complexidade e totalidade concreta em bioética. In: GARRAFA, V.; KOTTOW, M.; SAADA, A. (Org.). Bases conceituais da bioética: enfoque latinoamericano. São Paulo: Gaia, 2006.) na saúde, tais como as novas realidades de trabalho precarizado e o papel da ideologia do mercado nas relações intersubjetivas em saúde.

Algumas questões permanecem como desafio: 1) o papel protagonista que os conselhos profissionais devem exercer na fiscalização da ética sob os marcos do novo código deontológico e no debate coletivo sobre ética/bioética frente às novas relações de trabalho que subsumem a ética aos interesses de mercado; 2) a ação dos sindicatos na defesa dos direitos trabalhistas nessa nova configuração de assalariamento na odontologia; e 2) o papel regulador da ANS e vigilância sanitária sobre o funcionamento das clínicas "populares".

Na relação interpares

Talvez o retrato mais fiel e, ao mesmo tempo, mais impactante de décadas de hegemonia da odontologia liberal no Brasil seja a relação interpares. A construção de uma intersubjetividade concorrencial na formação da identidade profissional, agora amplificada pela complexa competitividade resultante do processo de reestruturação, persegue três caminhos entrelaçados:

1) Forte subjetividade concorrencial construída num mercado de trabalho com saturação profissional e numa formação voltada à sobrevivência clínico-liberal-individualizada nessa realidade:

"[…] têm muitos colegas que criticam o trabalho do outro, pra ganhar dinheiro, para pegar o paciente, isto acontece muito" (P4).

Uma autonomia com sentido moral relacionada a valores éticos perde espaço a uma autonomia baseada numa visão tecnicista da profissão (Freitas, 2007FREITAS, C. H. S. M. Dilemas no exercício profissional da odontologia: a autonomia em questão. Interface, Botucatu, v. 11, n. 21, p. 25-38, 2007.).

2) Subsunção da ética ao imperativo da lucratividade:

"[…] tenho exemplo de colegas que botaram trabalho de acrílico dizendo para o paciente que foi porcelana… o paciente ficou muito chateado com o dentista por estar sendo enganado" (P6).

Parece haver a utilização de um saber-fazer especializado na relação singular profissional-paciente para manipulação do paciente, em situações nas quais os interesses particulares substituem o comprometimento ético necessário às construções dialógicas. Um constructo que mina a confiança e o comprometimento interpares: na construção da identidade profissional e do próprio self.

3) Ressentimento interpares: ao outro enquanto igual e ao outro enquanto coletividade:

"[…] o dentista vê o outro como inimigo, parece que está tirando o teu espaço profissional… tenho colegas que quando sabem que você é dentista, ficam estranhos. No prédio que eu moro acontece isso, no prédio onde eu trabalho acontece isso; eu acho que o dentista não é amigo de outro dentista, ele pode conversar contigo e ser simpático, mas acho que tem outro sentimento aí" (P3).

O profissional da odontologia não foi, ao longo de sua história como categoria profissional, estimulado a desenvolver o sentimento de fazer parte de um todo, de um coletivo, de uma realidade social; ao contrário, foi formado dentro de estratégias concorrenciais num modelo curativo-individual. O profissional se constrói narcízico, percebendo o outro como ameaça ao seu próprio desempenho. A falta de atuação como coletivo não potencializa um ambiente de solidariedade e comprometimento com o outro: galgar postos, aumentar status, passar por cima, são discursos que se constroem como ideologia. Um mundo pós-reestruturação produtiva sob a égide do mercado e da insegurança como produto da precarização no trabalho, associado à forte relação entre poder e conhecimento subsumidos aos mesmos interesses, acaba por fornecer um solo fértil à configuração de um crescente ressentimento interpares.

Segundo Ceccim et al. (2009)CECCIM, R. B. et al. Imaginários sobre a perspectiva pública e privada do exercício profissional em saúde e a educação em saúde. In: Pereira, R. C.; Silvestre, R. M. (Org.). Regulação e modelos assistenciais em saúde suplementar: produção científica da rede de centros colaboradores da ANS: 2006/2008. Brasília, DF: Organização Pan-Americana de Saúde Brasil, 2009., o sentido de profissão é forjado no imaginário liberal-privatista e ancorado no ensino da saúde numa concepção marcada pelo atendimento individual em consultório e embasado na díade diagnóstico-prescrição, em que a doença é a referência e a cura-biologicista, o paradigma. Um profissional bem-sucedido está configurado dentro de um saber-fazer tecnicista e/ou especializado; de um poder autônomo e hermético do consultório; com tecnologia de ponta; pragmatismo para sobrevivência no mercado; e status de classe. Um subjetivo profissional que rejeita a priori qualquer chancela de regulação pública, e vê esta regulação como função do próprio mercado, centrada na figura da competência e da competição e com a excelência produtiva como diferencial.

Para Milton Santos (2011)SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2011., na contemporaneida- de a velha concorrência é substituída por um tipo de competitividade que chega eliminando qualquer forma de compaixão na luta para vencer o outro e ocupar o seu lugar. O amor, a solidariedade e o comprometimento perdem espaço para a valorização do eu socialmente descompromissado. O problema ético da relação interpares na formação das identidades profissionais é desvelado como um marco significativo na construção de uma individualidade isolada dos contextos e realidades sociais e em relações regidas de forma mercadológica.

Ao mesmo tempo em que um indivíduo mais reflexivo é solicitado pela exigência de habilidades ético-cognitivas na tomada de decisões e escolhas, a apropriação da subjetividade humana nos moldes organizacionais da reestruturação - individualização para aumento da competitividade/produtividade e insegurança pela precariedade nas relações de trabalho - solicita a adesão atomizada de um novo tipo de trabalhador, a partir de uma tempestade ideológica de valores, expectativas e utopias de mercado (Alves, 2011ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.).

O desafio ético entre singular e universal, para o qual todos os seres humanos estão expostos pela própria presença dos outros, estaria sendo desmantelado e as pessoas estariam buscando cada vez mais se libertar de condutas humanas previamente padronizadas pelo social (socializadas), transferindo-as para a esfera das políticas de vida individuais. Uma grande contradição que acaba por assumir uma relativização da ética em cada momento dado, refugiando-se na ética restrita a interesses particulares de um grupo ou empresa ou na ética hedonista que foge do "dever ser" social e historicamente construído (Cortina, 2009CORTINA, A. Ética mínima. São Paulo: Martins Fontes, 2009.).

Uma individualização que acaba por constituir o outro como coisa, consequência direta da competitividade e da ascensão social a qualquer preço, que transforma as relações afetivas e éticas em relações subjugadas ao ter. Seguir o princípio do máximo prazer significa uma postura sustentada na promessa de consumo infinito. Um processo que torna cada um responsável por fixar seus próprios limites, como por instinto reflexivo: o privado se sobrepondo ao público num eterno movimento de anexação. A ética, bem como a percepção do humano nas relações em saúde, fica ainda mais subsumida aos interesses imediatistas de mercado/produção/consumo. Junto com a necessidade do ser humano se referenciar em um coletivo para se abrigar das incertezas da vida, os laços inter-humanos tradicionais perdem sua proteção institucional e se transformam em obstáculo a ser superado.

Para Bauman (2011)BAUMAN, Z. A ética épossível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011., o ressentimento surge não somente como "aquilo que é abatido" do indivíduo numa relação hierárquica que não pode ser reconhecida como tal - porque, a partir deste reconhecimento, se aceitaria a própria inferioridade -, mas também como um sentimento entre iguais. Para se autoafirmarem e autodefinirem numa relação de posição social com semelhante atribuição, os sujeitos são levados a uma árdua luta para chegar ao topo atirando os outros para baixo. O ressentimento resulta em competição, em luta pela redistribuição de poder e prestígio, e pode ser sentido "[…] pelos membros das classes médias entre si e incitando-os a competir febrilmente por conquistas similares, a promover a si mesmos, ao mesmo tempo em que degradam os outros como eles" (Bauman, 2011BAUMAN, Z. A ética épossível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011., p. 43).

Um tipo de comportamento no qual a riqueza e a opulência baseadas num consumo ostensivo forçam a humilhação do outro que não apresenta o mesmo poder de compra. Se o outro não implementa essa busca consumista como padrão de normalidade, é reconhecido como estranho. A ética perde espaço para relações dificilmente preenchidas por laços fraternos ou comprometidos. Especialmente num momento de crise profissional, em que a lógica liberal-privatista não consegue mais sustentar o status idealizado, a condição de ser respeitado pelos pares, que deriva da conclusão de que o que faço ou penso faz a diferença não apenas para "mim", é desestimulada. Se não há mobilização de vontades na construção de projetos coletivos, prevalecem os processos ainda hegemónicos de individualização e conformismo.

Um novo ethos profissional crítico e reflexivo, como resultado das novas configurações de trabalho e formação em saúde bucal, precisa quebrar o distanciamento ainda existente entre humanização e técnica/especialização, tanto no setor privado quanto no público, forjando uma reflexividade diferenciada de padrões percebidos como: 1) protecionismo ético: muros de silêncio construídos como uma falsa "lealdade comercial" entre pares, contrária aos preceitos do código de ética profissional e forjado no receio de "[…] informar ao usuário que o tratamento realizado pelo colega" não obedece às "[…] adequadas normas técnicas" (Amorim; Souza, 2010AMORIN, A. G.; SOUZA, E. C. F. Problemas éticos vivenciados por dentistas: dialogando com a bioética para ampliar o olhar sobre o cotidiano da prática profissional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 869-878, 2010., p. 875); e 2) precariedade subjetiva: uma marcante individualização profissional nos marcos privado/liberal - absolutizada na excelência técnica voltada ao mercado - constrói uma incapacidade de o indivíduo se perceber como sujeito coletivo, em relações precarizadas de trabalho socialmente construídas (assalariadas ou não) e como potencial catalisador de mudanças nesse processo.

Segundo Zizek (2011ZIZEK, S. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 93), a construção do self só é possível em uma relação de pertencimento a uma comunidade; só se consegue ser verdadeiramente universal "[…] quando se é radicalmente singular, nos interstícios das identidades comunitárias", pois a participação na dimensão universal da esfera pública se dá "[…] exatamente como indivíduos singulares extraídos da identificação comunitária substancial, ou até opostos a ela". Nesse sentido, há necessidade individual e coletiva de reflexão sobre os atos no trabalho em saúde, com valorização de um novo espaço coletivo na construção do "indivíduo si", comprometido com o outro e com as transformações sociais exigidas a partir desse comprometimento: "gentificado" (Freire, 2008FREIRE, P. Pedagogia do compromisso. São Paulo: Villa das Letras, 2008.).

Transformações ligadas à saúde bucal coletiva: a construção da excelência para a odontologia pública como problema ético

"[…] eu não acredito naquele profissional que trabalha no público de uma maneira e no privado de outra. Capricham mais no privado e no público… Não, eu acho que a gente tem que ter os mesmos cuidados, porque, senão, você pode ir pegando vícios que vai acabar levando para o privado também" (P4).

Variados problemas éticos são percebidos na incorporação automática da tradicional lógica liberal e de mercado como um ideário hegemónico também no serviço público. Apesar da crise, a odontologia privada ainda é referência de boa prática, satisfação e sucesso profissional. Segundo Narvai (2006)NARVAI, P. C. Saúde Bucal coletiva: caminhos da odontologia sanitária à bucalidade. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 141-147, 2006. Número especial., o fracasso histórico na tentativa de construção de um serviço bucal forjado na odontologia sanitária do método incremental, utilizado para eliminar as necessidades acumuladas e voltada aos escolares, não fez a odontologia pública avançar. Ao contrário, "[…] a odontologia sanitária teve a tarefa histórica de produzir uma prática odontológica que rompesse com a odontologia de mercado - e fracassou" (p.143).

"[…] se eu não estivesse aqui hoje fazendo o que eu faço, eu não tenho certeza que teria alguém com uma qualificação semelhante ou tão boa quanto para fazer o tipo de serviço que eu faço. Isso assusta um pouco; normalmente no serviço público a ideia dos dentistas é um trampolim ou um suporte temporário para você, depois, ter um consultório particular e ter a sua vida resolvida financeiramente " (P1).

A democratização no acesso à saúde bucal e o comprometimento com o outro - desconhecido - ainda pode ser evidenciado como importante problema ético contemporâneo na saúde bucal. A dualidade de interesses no mix público-privado reforça a ideia do serviço privado-liberal como status e ganho financeiro e do serviço público como garantia de estabilidade e vantagens trabalhistas. O saber universitário aparece como prática de classe social, e há uma identificação no exercício da profissão com o capital ao invés do trabalho (Ceccim et al., 2009CECCIM, R. B. et al. Imaginários sobre a perspectiva pública e privada do exercício profissional em saúde e a educação em saúde. In: Pereira, R. C.; Silvestre, R. M. (Org.). Regulação e modelos assistenciais em saúde suplementar: produção científica da rede de centros colaboradores da ANS: 2006/2008. Brasília, DF: Organização Pan-Americana de Saúde Brasil, 2009.). Valores que constroem uma intersubjetividade na qual o setor público estaria voltado às pessoas que não podem pagar direta ou indiretamente o atendimento nos marcos do contrato liberal (pobres) e, portanto, sem poder de reivindicação de bom serviço. Um processo construtor de sentimento de desvalorização profissional em relação à odontologia coletiva que abre espaço a uma qualidade de ação questionável, mas muito pouco ou quase nunca (auto)questionada. Constrói-se uma evasão de responsabilidade naturalizada no público que atinge o comprometimento com o outro e, portanto, a mediação ética pautada no "dever ser".

"[…] no serviço público tem muito empurra, empurra. Eu noto profissionais que não querem fazer o trabalho, daí encaminham para outro. Eu acho uma falta de ética não com o outro profissional, mas com o paciente" (P4).

Entretanto, a consolidação de um coletivo exclusivo de profissionais da saúde bucal coletiva, ainda que minoritário frente ao hegemónico mercado de trabalho odontológico no Brasil, promove um espaço de saber-fazer que pode ser ética e politicamente reconstruído como espaço de reflexividade. Vai sendo edificado um sentimento de inadequação profissional que questiona a introspecção da lógica privada pelo profissional da saúde coletiva, contrapondo a pulsão de desejo por status e ascensão social do ideário liberal, em uma nova formatação identitária coletiva. Uma excelência profissional voltada ao direito à saúde como conquista de cidadania e em bases distintas dos constructos exclusivos do mercado assume um sentido de transformação profissional, sob novos paradigmas de trabalho: em equipe, interdisciplinar, não biologicista, não mercadológico, inclusivo e participativo.

"[…] acredito que a tendência é melhorar, e aí cabe aos dentistas também exigir isto" (P9).

"[…] o trabalho no setor público, pra mim, é muito mais interessante, mais gratificante por causa do maior número de contato com pessoas, do maior número de pacientes, maior número de profissionais envolvidos, porque a equipe é grande… o contato com o ser humano na saúde pública evidentemente é maior" (P2).

A ética do "é o que há" passa por uma transposição à ética do "dever ser" - profissional historicamente construído, sem renúncia de horizontes coletivos e transformadores. Uma epistemologia com referencial de bucalidade transcendente à boca e aos dentes, a partir da relação do indivíduo si com o mundo, é solicitada juntamente com as transformações do já naturalizado estilo de pensamento multicausal-biologicista, e pode representar uma reconciliação da odontologia com a clínica e depois "[…] com a sociedade e consigo mesma" (Bottazzo, 2006BOTTAZZO, C. Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa e contribuição ao debate. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-17, 2006., p. 15).

Uma transição epistemológica que esbarra, inicialmente, numa perspectiva humanista reduzida ao sentido da produtividade/cura também nos marcos da odontologia coletiva - pela defasagem existente entre necessidade social e amplitude de cobertura. Uma nova construção que é dificultada, também, por problemas estruturais e de financiamento do sistema e baixo comprometimento profissional para além do prescrito, da boca e do consultório. A incorporação de ações humanizadoras pelo coletivo não acontece sem uma política de valorização do profissional da saúde - inclusive salarial; de investimento na satisfação no trabalho profissional; do debate em torno da ética da responsabilidade a partir da necessidade desvelada de um trabalho ético-político engajado; e de gestões que compartilhem espaços de autonomia com o sujeito/profissional na realização das ações, desvelando-se uma intersubjetividade sob novas bases: uma lógica coletiva e participativa, condições favoráveis às mediações éticas entre profissional-paciente/usuário-sistema de saúde e sujeito-comunidade.

Mudanças solicitadas na formação a partir das competências incorporadas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e Diretrizes Curriculares Nacionais ressaltam a importância do aluno "[…] cultivar uma relação nova com a comunidade, baseada na atenção, na confiança, no respeito e no cuidado" (Costa; Araújo, 2011COSTA, I. C. C.; ARAÚJO, M. T. Definição do perfil de competências em saúde coletiva a partir da experiência de cirurgiões-dentistas atuantes no serviço público. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 1181-1189, 2011., p. 524). Entretanto, ainda revelam um comprometimento e uma valorização docente aquém dos objetivos e possibilidades da formação humanística, cultural e política, orientação didática, cenários de ensino-aprendizagem, bem como "[…] em relação às disciplinas éticas e formação docente, pela incipiente presença da bioética" como disciplina e tema transversal (Finkler; Caetano; Ramos, 2011FINKLER, M.; CAETANO, J. C.; RAMOS, F. R. S. A dimensão ética da formação profissional em saúde: estudo de caso com cursos de graduação em odontologia. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 4481-4492, 2011., p. 25).

São muitos os avanços já alcançados na saúde bucal, atestados pelos diversificados dados pós-implantação das estratégias e equipes de saúde bucal, como a diminuição da população que nunca foi ao dentista (de 18,7% em 2003 para 11,7% em 2008); a ampliação substancial da cobertura na área das especializações (958 CEO pelo país, com oferta expandida de 101 mil próteses em 2009); ampliação das ações de prevenção e controle (com priorização de 1.242 municípios com baixo índice de desenvolvimento da educação básica, totalizando 72,6 milhões de kits de material de saúde bucal); salto na cobertura assistencial (de 35,8 para 91,3 milhões de atendimentos); e a implantação de Equipes de saúde bucal (ESB) (em 85,3% dos municípios brasileiros), entre outras assertivas protagonistas de um novo perfil de saúde bucal à América Latina (Narvai, 2013NARVAI, P. C. Bases para uma saúde bucal de caráter coletivo: estratégias. In: PINTO, V. G. (Ed.). Saúde bucal coletiva. São Paulo: Santos, 2013.). Porém, ainda há grandes dificuldades para o efetivo engajamento do coletivo profissional nas ações de planejamento ou gerenciamento, nas equipes e atividades interdisciplinares e na ação coparticipativa junto às comunidades.

O papel dos conselhos de saúde no controle social e na construção de um espaço de debate ético/bioético contemporâneo deve acontecer não somente na perspectiva de uma alocação de recursos pautada nos princípios de justiça e proteção (Petry et al., 2010PETRY, P. et al. Comitê de bioética: uma proposta para a atenção básica à saúde. Bioethikos, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 258-269, 2010.), mas também como espaço "des-reconstrução" da prática profissional. Uma clínica ampliada e comprometida com as necessidades sociais e desejos do paciente/usuário ainda figura como problema ético-político na atualidade. Um comprometimento que deve ser buscado na construção do vínculo e da autonomia com o paciente/usuário, no compartilhamento de saberes e fazeres, bem como na percepção do alcance das práticas cotidianas na emancipação e corresponsabilização dos sujeitos (Santos et al., 2008SANTOS, A. M. et al. Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no Programa Saúde da Família. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 464-470, 2008.). Um modelo de saúde bucal que, segundo Gastão Wagner, deve combinar "[…] a objetividade da clínica e da epidemiologia com a singularidade da história dos sujeitos, grupos e coletividades" (Campos, 2013CAMPOS, G. W. S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: ______. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 66), seguindo um novo comprometimento humanizado do ser-sujeito-profissional.

Considerações finais

Alguns aspectos da reestruturação produtiva na odontologia constroem uma realidade de precarização no mercado de trabalho profissional: 1) ampliação de um mercado de planos e seguros de saúde privados pautado numa realidade perversa: vendem a ilusão das vantagens do trabalho liberal, mas funcionam sobre a égide do controle e terceirização de serviços interpostos na relação profissional-paciente; 2) formação de uma camada profissional assalariada, especialmente na nova modalidade de clínicas "populares"; 3) incorporação de uma inter-subjetividade individual-narcisista e concorrencial/competitiva na identidade profissional, que desperta ressentimentos interpares. Novas realidades de trabalho que conformam diversificados problemas éticos contemporâneos.

Mesmo havendo a hegemonia de uma identidade liberal-concorrencial, a ampliação do serviço odontológico com formação de um coletivo que atua exclusivamente na saúde coletiva potencializa um movimento ético-político e epistemológico transformador: um espaço profissional da saúde bucal coletiva como necessidade socialmente construída que, nesta condição, transforma a realidade profissional objetivada nas políticas de saúde e educação, e subjetivada numa nova excelência humanizada, em uma nova identidade coletiva. O caminho para uma odontologia comprometida com as conquistas de cidadania se amplia e o profissional parece estar assumindo um protagonismo como sujeito desse processo.

Entretanto, alguns mitos importados da lógica de mercado ainda impactam a construção dessa nova intersubjetividade: 1) serviço público como sinónimo de tratamento voltado àqueles que não podem pagar (pobres) e que, portanto, não têm os mesmos direitos de resultado; 2) incorporação incipiente de novos paradigmas coletivos no planejamento e ação em equipe, trans ou interdisciplinares; e 3) passos tímidos em direção a novos campos de ação em posições administrativas e/ou gerenciais.

Como resultado, uma clínica ampliada e em consonância com as necessidades sociais e desejos do usuário, num sentido diferenciado da odontologia de mercado, ainda enfrenta problemas no tocante à responsabilização, inclusão e participação do profissional e do usuário como sujeitos do processo. A odontologia coletiva continua se apoiando no tradicional saber/fazer-curativo/funcional, agora também interdisciplinar e preventivo. Entretanto, uma qualidade técnica e estética com participação coletiva/comunitária como base da própria humanização, deve seguir um caminho diferenciado de uma odontologia restrita à cura/funcionalidade, em direção à incorporação do ético e estético não subsumido à ideologia do mercado, mas num espaço cidadão-profissional-inclusivo no serviço como espaço intersubjetivo de bucalidade.

Neste sentido, as mudanças na formação e na educação para construção dessa nova excelência não se mostram suficientes sem uma política de valorização do profissional da saúde bucal coletiva, com investimento na satisfação profissional e na ampliação de espaços de debate ético/bioético, não só na mediação singular profissional/paciente, mas a partir de uma nova necessidade desvelada de comprometimento com o outro - si, coletivo e histórico:

O sentido coletivo na odontologia ainda parece descaracterizado, desacreditado e invisível nos ambientes individualizados de consultório, entretanto, sua ampliação pode quebrar a atomização profissional-consultório e aproximar o serviço da realidade social, para construção cidadã do direito à saúde e diminuição das distâncias entre as reais necessidades/desejos dos sujeitos e o sistema de saúde.

Um debate articulado em espaços que ultrapassem as imposições consumistas do mundo moderno - impregnado de uma ideologia de mercado contaminadora das construções de necessidades e desejos - precisa ser forjado na reestruturação da produção em saúde bucal, para uma nova excelência ética e estética como projeto coletivo/social.

  • 1
    Publicação inédita baseada em tese de doutorado intitulada "A subjetividade do profissional da saúde pós-reestruturação produtiva". Apresentada na Universidade Federal de Santa Catarina, Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Referéncias

  • ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.
  • AMORIN, A. G.; SOUZA, E. C. F. Problemas éticos vivenciados por dentistas: dialogando com a bioética para ampliar o olhar sobre o cotidiano da prática profissional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 869-878, 2010.
  • BAHIA, L.; SCHEFFER, M. Planos eseguros de saúde: o que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil. São Paulo: UNESP, 2010.
  • BAUMAN, Z. A ética épossível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
  • BRAGANÇA, D. P. P. et al. Avaliação dos procedimentos clínicos mais glosados nos convênios odontológicos. RFO, Passo Fundo, v. 16, n. 2, p. 136-139, 2011.
  • BOTAZZO, C. Da arte dentária São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2000.
  • BOTTAZZO, C. Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa e contribuição ao debate. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-17, 2006.
  • CAMPOS, G. W. S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: ______. Tratado de saúde coletiva São Paulo: Hucitec, 2013.
  • CARVALHO, C. L. A Transformação no mercado de serviços odontológicos e as disputas pelo monopólio da prática odontológica no século XX. História, Ciência, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 55-76, 2006.
  • CAVALCANTI, A. L. et al. Odontologia e o código de defesa do consumidor: análise dos processos instaurados contra cirurgiões-dentistas e planos odontológicos em Campina Grande - Paraíba. Revista de Odontologia da Unesp, Araraquara, v. 40, n. 1, p. 6-11, 2011.
  • CECCIM, R. B. et al. Imaginários sobre a perspectiva pública e privada do exercício profissional em saúde e a educação em saúde. In: Pereira, R. C.; Silvestre, R. M. (Org.). Regulação e modelos assistenciais em saúde suplementar: produção científica da rede de centros colaboradores da ANS: 2006/2008. Brasília, DF: Organização Pan-Americana de Saúde Brasil, 2009.
  • CHAUÍ, M. Ética e Violência no Brasil. Bioethikos, São Paulo, v. 5, n. 4, p. 378-383, 2011.
  • CFO - CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA. Crescimento da classe C impulsiona odontologia. Jornal do CFO, Brasília, DF, v. 107, p. 1-11, abr-jun. 2013.
  • CORTINA, A. Ética mínima São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  • COSTA, I. C. C.; ARAÚJO, M. T. Definição do perfil de competências em saúde coletiva a partir da experiência de cirurgiões-dentistas atuantes no serviço público. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 1181-1189, 2011.
  • EMMERICH, A.; CASTIEL, L. D. A ciência odontológica: Sísifo e o "efeito camaleão". Interface, Botucatu, v. 13, n. 29, p. 339-351, 2009.
  • FINKLER, M.; CAETANO, J. C.; RAMOS, F. R. S. A dimensão ética da formação profissional em saúde: estudo de caso com cursos de graduação em odontologia. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 4481-4492, 2011.
  • FORTES, P. A. C. Ética e saúde São Paulo: EPU, 2011.
  • FREIRE, P. Pedagogia do compromisso São Paulo: Villa das Letras, 2008.
  • FREITAS, C. H. S. M. Dilemas no exercício profissional da odontologia: a autonomia em questão. Interface, Botucatu, v. 11, n. 21, p. 25-38, 2007.
  • GARRAFA, V. Multi-inter-transdisciplinar, complexidade e totalidade concreta em bioética. In: GARRAFA, V.; KOTTOW, M.; SAADA, A. (Org.). Bases conceituais da bioética: enfoque latinoamericano. São Paulo: Gaia, 2006.
  • GOMES, D.; DA RÓS, M. A. A etiologia da cárie no Estilo de Pensamento da ciência odontológica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 1081-1090, 2008.
  • GONÇALVES, E. R.; VERDI, M. I. M. Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 755-764, 2007.
  • HARVEY, D. A condição pós-moderna São Paulo: Loyola, 2011.
  • HOBSBAWN, E. A era dos extremos São Paulo: Schwarcz, 2002.
  • MÉSZARÓS, I. Para além do capital São Paulo: Boitempo, 2002.
  • MORAES, R.; GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva Rio Grande: UNIJÍ, 2011.
  • NARVAI, P. C. Saúde Bucal coletiva: caminhos da odontologia sanitária à bucalidade. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 141-147, 2006. Número especial.
  • NARVAI, P. C. Bases para uma saúde bucal de caráter coletivo: estratégias. In: PINTO, V. G. (Ed.). Saúde bucal coletiva São Paulo: Santos, 2013.
  • PENA, P. G. L.; MINAYO-GOMEZ, C. Premissas para a compreensão da saúde dos trabalhadores no setor serviço. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 371-383, 2010.
  • PETRY, P. et al. Comitê de bioética: uma proposta para a atenção básica à saúde. Bioethikos, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 258-269, 2010.
  • SALIBA, O. et al. Honorários praticados por operadoras de planos odontológicos e pelo SUS em relação aos definidos pelo Conselho Federal de Odontologia. Arquivos do Centro de Estudos do Curso de Odontologia, Belo Horizonte, v. 47, n. 4, p. 215-218, 2011.
  • SANTOS, A. M. et al. Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no Programa Saúde da Família. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 464-470, 2008.
  • SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2011.
  • VIANNA, S. M.; PINTO, V. G. Financiamento e organização. In: PINTO, V. G. (Ed.). Saúde bucal coletiva São Paulo: Santos, 2013.
  • WARMLING, C. M.; MARZOLA, N. R.; BOTAZZO, C. Da autonomia da boca: práticas curriculares e identidade profissional na emergência do ensino brasileiro da odontologia. História, Ciência, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 181-195, 2012.
  • ZIZEK, S. Primeiro como tragédia, depois como farsa São Paulo: Boitempo, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2013
  • Aceito
    07 Fev 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br