Resumos
O artigo desenvolve o argumento que a regionalização do cuidado à saúde na República Federativa do Brasil requer o aprofundamento da abordagem territorial nas políticas públicas e a contextualização das intervenções governamentais setoriais nas dinâmicas locais de desenvolvimento. A partir da síntese da trajetória dessa estratégia na história recente, em seus objetivos políticos, identifica aspectos da natureza federativa da gestão pública e concepções de território e de redes como processos políticos que podem contribuir para a compreensão do cenário em que vêm se construindo respostas regionais aos problemas locais. A argumentação problematiza a configuração de redes homogêneas de serviços no território nacional em prol de um planejamento territorial, participativo e orientado pelo interesse público que tome como ponto de partida a compreensão do processo saúde-doença e da situação de saúde que se quer alcançar, no futuro de cada lugar.
Políticas Públicas; Gestão Pública; Regionalização; Planejamento Territorial; Desenvolvimento Local
O presente artigo desenvolve o argumento de que uma abordagem à regionalização da saúde no Brasil, que aprofunde a compreensão da natureza federativa do campo de intervenções das políticas de saúde e atualize a conjuntura nacional e internacional dos governos na produção de respostas a problemas sociais, a partir de uma lógica territorial, pode contribuir para o melhor direcionamento político das proposições e práticas em curso na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS).
Tal argumento fundamenta-se na avaliação de que ainda que as estratégias políticas de regionalização setorial, implementadas sob indução da direção nacional do SUS desde o ano 2000, tenham incorporado em sua agenda temática categorias como gestão federativa, território, região, redes e governança sua operacionalização precisa avançar nas interações com outros setores e superar a lógica da oferta de serviços que predomina na regulação do sistema e no ambiente de gestão pública da saúde.
Partindo desses pressupostos, o estudo apresentado toma como ponto de partida a "provocação" feita pelo pesquisador francês Philippe Mossé, em evento ocorrido em Montreal, em 2012, quando, apresentando uma análise sobre o sistema de saúde na França, caracterizou a regionalização como "[...] uma solução consensual à procura de um problema(s)...para resolver [...]", argumentando que as diferentes modalidades de regionalização, até mesmo sua necessidade, dependem dos problemas que pretende resolver e do potencial de cada situação11Trabalho apresentado em: MOSSÉ, P. La "régionalisation" du système de santé: enjeux et mise en œuvre d'un processus. In: GOVERNANÇA, REGIONALIZAÇÃO E PERFORMANCE EM SISTEMAS DE SAÚDE, 2012, Montreal. Quebec, 2012..
Tomando essa provocação como desafio, a pergunta que orienta inicialmente o trabalho aqui desenvolvido é: a que problemas a regionalização em saúde no Brasil objetiva responder? Para isso, procede-se, inicialmente, a uma breve retrospectiva das formulações apresentadas nas últimas décadas para a regionalização da provisão estatal do cuidado à saúde no país, identificando os problemas que se pretendia resolver com esta orientação. Em seguida, busca-se explorar perspectivas do contexto federativo e do território em que se processam as respostas regionais do Sistema Único de Saúde na atualidade. Por fim, apresenta-se algumas considerações para o desenvolvimento de uma abordagem própria à questão. Assim, espera-se contribuir com subsídios que potencializem a capacidade setorial na solução de problemas existentes e emergentes em cada localidade do país.
As reflexões aqui apresentadas derivam de pesquisas realizadas nos últimos anos no âmbito da Cooperação Fiocruz-Conass-Conasems, do projeto Governança Regional no SUS, do Grupo de Pesquisa Governos e Sociedade na Gestão de Políticas Públicas e da experiência profissional da autora como servidora pública, na gestão do Sistema Único de Saúde em diferentes momentos das últimas décadas.
Regionalizar a provisão estatal de cuidado à saúde no Brasil: por quê e para quê?
A regionalização como estratégia de descentralização da provisão estatal do cuidado à saúde no Brasil faz parte da agenda política setorial há no mínimo 30 anos. Desde o início dos anos 1980, quando da formulação de estratégias governamentais para a integração assistencial dos serviços de saúde na transição democrática do Estado brasileiro, a regionalização compõe o leque de inovações para a institucionalização de um sistema nacional de saúde no país.
Nesses primeiros momentos, a regionalização era apresentada como estratégia para o ordenamento racional da atuação do Estado na área de saúde, visando à integração das atividades preventivas, curativas e de reabilitação por meio da articulação interinstitucional dos serviços ofertados pelos governos federal, estadual e municipal, em uma rede hierarquizada segundos níveis de complexidade assistencial.
Objetivava-se economias de escala na oferta de serviços do sistema nacional de saúde; o estabelecimento de mecanismos de referência e contrarreferência entre unidades e níveis de complexidade; e a instituição de instâncias colegiadas de planejamento e gestão, com participação da sociedade.
Pode-se afirmar que a regionalização, naquela conjuntura política, consistia predominantemente de uma perspectiva gerencial para a racionalização da oferta desordenada de serviços e dos gastos públicos em saúde, no âmbito das expectativas de coordenação-integração interinstitucional que orientavam o reordenamento da ação estatal, conduzido pelo Ministério da Previdência e Assistência Social.
No entanto, a regionalização também integrava o conjunto de proposições em debate na sociedade em prol de uma reforma setorial que superasse as desigualdades de toda ordem geradas pelo padrão histórico brasileiro de intervenção estatal, consolidado durante o regime autoritário. Na perspectiva do movimento político pela reforma, a regionalização era defendida como instrumento essencial para a integralidade da atenção e para a equidade no acesso às ações e aos serviços, na concretização do direito universal à saúde.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a regionalização e a hierarquização como diretrizes para a organização da rede descentralizada de ações e serviços do Sistema Único de Saúde, visando assegurar o acesso igualitário da população aos cuidados providos pelo Estado para proteger, promover e recuperar a saúde de seus cidadãos. Dada a ampliação e o fortalecimento do federalismo promovidos no texto constitucional, o SUS nasceu com a tarefa de harmonizar a atuação dos entes federados na consecução da equidade em saúde no território nacional da federação.
Até finais dos anos 1990, as estratégias governamentais federais priorizaram a institucionalização e o fortalecimento da gestão descentralizada do sistema nos Estados e municípios, sobretudo nestes últimos. No âmbito local, respostas de alcance regional na organização do cuidado à saúde resultaram de iniciativas de associação intermunicipal para o estabelecimento de consórcios de saúde, incentivados, à época, pela direção nacional do SUS (Brasil, 1993) ou por opção de governos estaduais em promover a regionalização da ação estatal em sua jurisdição.
A partir dos anos 2000, a regulação da regionalização assistencial ganhou prioridade na agenda política da direção nacional do SUS, particularmente a partir do segundo mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso. Inicialmente orientada por uma visão sistêmica, circunscrita ao setor saúde, a regionalização foi direcionada por estratégias de hierarquização dos serviços de saúde e de busca de maior equidade no acesso por meio da organização de sistemas funcionais e resolutivos de escala regional, tecnicamente desenhados pela normativa federal. As normas ministeriais explicitavam o propósito de evitar a atomização do SUS em sistemas locais ineficientes, iníquos e não resolutivos. Nesse direcionamento inicial, foram valorizados instrumentos de planejamento regional como referência para a concertação intergovernamental, no âmbito dos quais se definiriam as regiões de saúde nos estados.
A normativa ministerial foi revista no início do Governo Luiz Inácio Lula da Silva, à luz da evolução do processo político setorial de concertação intergovernamental alcançada com o crescente fortalecimento da gestão descentralizada do SUS no novo ambiente federativo. A regionalização, solidária e cooperativa, passou a ser encaminhada no contexto de qualificação, aperfeiçoamento e melhor definição de responsabilidades sanitárias e de gestão entre entes federados nas regiões de saúde, em torno de prioridades de impacto na situação de saúde local.
A regionalização da saúde, nessa conjuntura, fundamentou-se em um pacto nacional setorial - o Pacto pela Saúde, que formaliza oficialmente compromissos entre os gestores federal, estaduais e municipais de equacionar dificuldades acumuladas pelo que se avaliou, à época, como excessiva indução nacional dos processos locais por meio de normas gerais pouco sensíveis a um país de dimensões continentais e com grandes desigualdades, e, pelo complexo e detalhado conteúdo técnico-processual que caracterizava a regulação anterior.
A partir da publicação desse pacto em portaria específica do Ministério da Saúde (Brasil, 2006), a normativa vem atualizando orientações para a formulação de respostas regionais que buscam contemplar:
a natureza federativa das relações intergovernamentais implicadas na gestão política das regiões de saúde;
a diversidade de situações existentes nos Estados e municípios e o respeito à autonomia dos entes subnacionais na eleição de prioridades e no desenho das regiões de saúde;
a descentralização das decisões sobre alocação de recursos para colegiados de gestão regional;
o financiamento tripartite das mudanças necessárias;
a responsabilização de cada ente federado pelas decisões tomadas nas arenas de concertação federativa setorial nacional, estaduais e regionais; e
mecanismos de contratualização intergovernamental para a definição, acompanhamento e avaliação de metas regionais.
Nesse percurso, a lógica de planejamento integrado, compreendendo noções de territorialidade, é reforçada e reitera os objetivos de se garantir o acesso de todo e qualquer cidadão às ações e aos serviços necessários para a resolução de seus problemas de saúde, com otimização dos recursos disponíveis, e cooperação solidária entre os entes federados na provisão do cuidado.
Essas orientações gerais para a regionalização integram o conteúdo do Decreto 7508/2011, promulgado recentemente pelo Governo Dilma Roussef, que aborda a regionalização no conjunto dos dispositivos que estabelece para a regulação da organização do SUS, do planejamento da saúde, da assistência à saúde e da articulação interfederativa (Brasil, 2011).
Feita essa breve contextualização da abordagem setorial a soluções regionais para problemas locais no âmbito da gestão do Sistema Único de Saúde, em particular da normativa federal que regulou esse processo na história recente, parece lícito afirmar que a regionalização busca responder a necessidades de:
ampliação e equalização do acesso a cuidados adequados para a proteção, promoção e recuperação da saúde dos cidadãos brasileiros, onde quer que eles residam;
integração de instituições, unidades e serviços de saúde com distintas densidades tecnológicas, na conformação de uma rede hierarquizada de acesso universal, com gestão descentralizada e compartilhada entre entes federados;
racionalização/otimização de recursos na provisão das ações e serviços, orientada a ganhos de equidade; e
adequação das respostas do SUS à enorme diferenciação de realidades sanitárias existentes no território nacional.
Neste estudo, argumento que as experiências de reordenamento da ação governamental setorial nessa direção podem avançar na produção de políticas territorializadas e contribuir para o planejamento regional, a partir de uma maior compreensão:
do contexto federativo que condiciona a dinâmica política setorial e da participação de cada ente federado na gestão do Sistema Único de Saúde em cada lugar; e
do território que contextualiza o processo saúde-doença e onde se dá o encontro das políticas com a sociedade, qualquer que seja a escala da intervenção.
Dessa forma, a meu ver, será possível potencializar as respostas setoriais aos problemas existentes e emergentes em cada localidade do país. Nas sessões seguintes, justifico esse argumento.
A gestão federativa do SUS na construção da resposta regional aos problemas locais
O contexto federativo da ação estatal no Brasil traz para os processos de produção de políticas públicas - e para sua gestão - desafios importantes, sobretudo se considerarmos que nossa federação trina, com gestão descentralizada, é jovem - tem em torno de 26 anos, e neste período teve de acomodar os mais de cinco mil atores políticos incorporados à União com a elevação do município à condição de ente federado.
Esses desafios, vale notar, adquirem ainda maior complexidade se considerarmos as mudanças expressivas nos governos, no mercado e na sociedade derivadas dos processos da globalização, e nas relações entre eles, que incidiram diretamente na gestão pública e pressionaram por reconfigurações da ação estatal.
Nesse contexto, qualquer política pública, de abrangência regional, estadual ou federal, está diante dos desafios de encontrar o equilíbrio entre regulação, responsabilidade e autonomia na distribuição de atribuições entre os entes federados para sua operacionalização e o melhor arranjo intergovernamental para o seu financiamento.
A repartição de responsabilidades entre União, Estados e municípios na implementação da ação regional do sistema de saúde, em qualquer lugar do território nacional, requer, como em outras políticas da federação brasileira, a compreensão entre os entes envolvidos de que os recursos e serviços que correspondem à região devem ser planejados, organizados e geridos em regime de colaboração (Saviani, 2011SANTOS, M. O retorno do território. Observatorio Social de América Latina, Buenos Aires, v. 6, n. 16, p. 251-261, 2005. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf >. Acesso em: 31 ago. 2009.
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/a... ).
Requer, e talvez esteja aí a maior dificuldade, a capacidade política de identificar o território regional como campo de responsabilidade e investimento comum, para o que é fundamental o esforço coletivo de construção, com a sociedade, de uma visão compartilhada para o futuro da ação dos governos na região, nem sempre compatível com a composição partidária dos governos locais.
A identificação e o financiamento das prioridades regionais no âmbito da ação do SUS exigem, por outro lado, esforço de superação na posição tradicional de dependência dos recursos do governo federal, ainda que esta seja uma realidade material. O financiamento deve ser compartilhado entre os entes federados envolvidos, respeitadas as peculiaridades, competências específicas e capacidades financeiras de cada um, em bases solidárias e voltadas para o desenvolvimento locorregional (Ribeiro; Barros, 2010KNOPP, G.; ALCOFORADO, F. Governança social, intersetorialidade e territorialidade em políticas públicas: o caso da Oscip Centro Mineiro De Alianças Intersetoriais (Cemais). In: CONGRESSO CONSAD DE GESTÃO PÚBLICA, 3, 2010, Brasília, DF. Anais... Brasília, DF: Consad, 2010. Disponível em: <http://www.escoladegoverno.pr.gov.br/arquivos/File/Material_%20CONSAD/paineis_III_congresso_consad/painel_29/governanca%20social_intersetorialidade_e_territorialidade_em_politicas_publicas_o_caso_da_oscip_centro_mineiro_de_aliancas_intersetoriais.pdf>. Acesso em: 28 fev. 2013.
http://www.escoladegoverno.pr.gov.br/arq... ). Por isso, é importante que se avalie as condições financeiras existentes para a reorganização do cuidado à saúde em regiões onde a ação regional do SUS se faça necessária, considerando:
a estrutura de financiamento da ação setorial no arranjo federativo nacional;
a participação de cada ente na distribuição das funções e gastos necessários à implementação das ações priorizadas;
a capacidade de cada ente de participar com recursos próprios no financiamento das mudanças necessárias;
a necessidade de participação complementar da União; e
a necessidade de se constituir ou conferir maior autonomia a instâncias regionais para a gestão e execução financeira.
Essa disposição é afetada não somente pela configuração partidária dos governos subnacionais que compõem a região, mas também pela capacidade técnica dos gestores e das burocracias técnica e política locais para analisar sua situação financeira e definir o melhor arranjo regional para o financiamento das inovações - o que, vale lembrar, requer igualmente ampla interlocução com os demais setores governamentais de cada ente e o acompanhamento permanente de governadores e prefeitos.
Lidar com essa complexidade das políticas públicas do Estado federativo brasileiro é condição sine qua non para se identificar, nos momentos de formulação de inovações setoriais, alternativas sustentáveis para a redução de desigualdades no acesso aos serviços de saúde esperada como resultado da ação regional do SUS.
O território usado como sujeito e objeto da produção de políticas públicas regionais
De igual relevância para a formulação de estratégias e programas de abrangência regional é o conhecimento profundo do processo saúde-doença, em sua diferenciação no território nacional e na especificidade que assume em cada lugar. Para isso, a meu ver, torna-se fundamental a compreensão da região como recorte de um território mais vasto do que o território sanitário - este, vale dizer, não raro identificado como mero suporte de uma oferta instalada de serviços, insuficiente.
A geografia política tem dado uma enorme contribuição para a compreensão das escalas territoriais sobre as quais incidem as intervenções governamentais no mundo contemporâneo, ao prover abordagens para a análise das políticas públicas, atualizadas com as novas dinâmicas encontradas nos cenários multiescalares, em rápida transformação, que caracterizam o espaço público. Central nessas abordagens é a recuperação da concepção do espaço como poder, na multidimensionalidade adquirida pelo poder na história recente; e das noções de território e territorialidade, em seus novos usos.
Reconhecido esse ambiente, de acordo com (Rückert 2010RIBEIRO, P.; BARROS, M. E. D. Regionalização e coordenação intergovernamental. In: UGÁ, M. A. D. et al. A Gestão do SUS no Âmbito Estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. p. 59-68.), qualquer política pública hoje é territorial e, nesse sentido, expressiva do poder exercido por diversos atores na produção do espaço, seja por meio da prática de poderes, de políticas, de programas estratégicos, seja pela impressão de novos usos ao território.
Essa perspectiva complexifica o contexto territorial de implementação das políticas públicas, que passa a englobar natureza e sociedade, objetos e ações, formas espaciais e relações de poder, recursos ambientais e infraestrutura, interações econômicas, socioambientais, políticas e culturais, processos, continuidades e descontinuidades, novas escalas, materialidade e imaterialidade. O território torna-se uno e múltiplo, singular e plural - e singular no plural, espaço vivo, abstrato e concreto, concomitantemente (Saquet, 2007, apud Knopp; Alcoforado, 2010HANNERZ, U. Cultural complexity: studies in the social organization of meaning. New York: Columbia University Press, 1992.).
Em outros termos, o território como objeto de políticas públicas pode ser entendido como conteúdo, meio e processo das relações sociais; portador da história dos diferentes lugares; e suporte de dinâmicas territoriais multiescalares, em que várias territorialidades podem ser socialmente construídas, nos seus diferentes recortes.
A região como recorte territorial para a produção de políticas públicas, em tempos de relativização da escala nacional e de reescalonamento global, constitui-se, pois, como: i) campo de práticas, de normas, internas e externas, e de valores sociais, mercadológicos, culturais e políticos, semeado por contradições entre os processos institucionais globais e nacionais que nela incidem e as relações entre os indivíduos e atores sociais que ali vivem, circulam e interagem; e, ii) território usado, que assume na atualidade globalizada um novo funcionamento, resultante das verticalidades e horizontalidades que acontecem simultaneamente como redes e como espaço de todos (Santos, 2005RÜCKERT, A. A. Usos do território e políticas territoriais contemporâneas: alguns cenários no Brasil, União Europeia e Mercosul. Revista de Geopolítica, Ponta Grossa, v. 1, n. 1, p. 17-32, 2010.).
Ganha importância como recorte funcional à dinâmica de cooperação entre atores, como nível de coordenação política e como área prioritária de cooperação intersetorial, em processos reestruturantes da ação governamental, no âmbito dos quais, a depender da densidade de relações sociais e institucionais existentes, torna-se mais ou menos possível mobilizar esforços colaborativos e aprofundar a organização democrática.
Dessa perspectiva as regiões não podem mais ser vistas como espaços de intervenção administrativa, restritos às ações governamentais multissetoriais e multiníveis que ali se desdobram, mas como produto de um território onde há distintas, e não raro em confronto, expectativas econômicas, sociais, políticas, institucionais e individuais construindo novas territorialidades.
No Brasil, qualquer estudioso que se dedique a analisar as mudanças engendradas pela redemocratização do Estado e pela descentralização do poder para Estados e municípios vai constatar a emergência de práticas de poder com enfoque territorial nas múltiplas escalas de poder e gestão, e políticas territoriais em escala supranacional, nacional, mesorregional e regional local. São inúmeros os exemplos de políticas públicas de abordagem territorial em implementação nas unidades federadas. Vai se deparar, igualmente, com o desafio de redução dos desequilíbrios regionais colocado para os governos e para a sociedade nos diversos lugares.
Só para indicar alguns exemplos, nas últimas décadas o governo federal instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Regional e programas como o Programa de Desenvolvimento de Faixas de Fronteiras, o Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais e o Programa Territórios da Cidadania.
Esse cenário impõe para os governos a necessidade de territorializar sua abordagem aos problemas nacionais, regionais e locais na formulação de políticas públicas e estabelecer na gestão governamental - como prática estratégica - a gestão de territórios, observando a realidade territorial socialmente construída em cada parcela do espaço a recortar para organizar a ação estatal. Para as políticas públicas de saúde, impõe a valorização e o aprofundamento da abordagem territorial ao processo saúde-doença e ao planejamento das respostas setoriais.
Regionalizar, portanto, pode corresponder, nesse contexto, à produção de um recorte político em um determinado território (usado), visando a construção de respostas, social e institucionalmente articuladas, a problemas cuja solução requer esforços colaborativos e coordenados dos atores, governamentais e não governamentais, implicados em ações locais, na região.
A meu ver, as redes, entendidas como processos políticos ancorados no território, devem ser consideradas na construção das respostas regionais.
As redes como processos políticos que integram a produção de respostas regionais
Na perspectiva que orienta o desenvolvimento dos argumentos aqui apresentados, as redes são pensadas como processos políticos de suporte/sustentação à produção de respostas regionais.
O conceito de rede, como bem apontam (Enne 2004CONTEL, F. A geografia na política pública. [S.l.]: Região e Redes, 2014. Disponível em: <http://www.resbr.net.br/a-geografia-na-politica-publica/>. Acesso em: 23 set. 2014.
http://www.resbr.net.br/a-geografia-na-p... ) e (Acioli 2007ACIOLI, S. Redes sociais e teoria social: revendo os fundamentos dos conceitos. Revista Informação & Informação, Londrina, v. 12, n. 1, 2007. Número especial. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/view/1784/1520>. Acesso em: 10 jan. 2008.
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php... ), assumiu lugar comum nas análises atuais da sociedade para definir novas formas de socialização e de fluxo informacional, que vêm sendo analisadas de formas distintas dentro das ciências sociais e da comunicação.
Como sistema de interação social, se aplica aos contextos sociais contemporâneos em que a articulação e a rearticulação entre indivíduos é permanente. Campo de interações, representa uma construção social de relações que se compõem e recompõem em múltiplas possibilidades de arranjos e negociações, dependendo do potencial de contatos e fronteiras que os atores sociais envolvidos podem estabelecer.
Qualquer que seja a abordagem, o conceito de redes supõe administração de fluxos de informação, que são materializados, tornados públicos e distribuídos de acordo com as demandas das interações sociais (Hannerz, 1992FARAH, M. F. S. Gestão pública municipal e inovação no Brasil. In: ANDREWS, C. W.; BARIANI, E.(Org.). Administração Pública no Brasil. São Paulo: Unifesp, 2010. p. 145-182.). Nessa abstração de primeiro grau da realidade que é a rede, são os atores sociais que delimitam as fronteiras sociais e os critérios identificatórios de uma rede. Por isso, o conceito de rede refere-se também a um processo de comunicação que se estabelece a partir de padrões normativos para conduta e padrões de identificação daqueles que a compõem.
Essa referência conceitual, ainda que precise de maior desenvolvimento para aplicação à problemática que ambienta o campo de ação governamental, me parece útil para uma aproximação à materialidade assumida pelas políticas públicas como redes no território. Com esse entendimento, a rede que, a meu ver, melhor materializa e sintetiza os processos políticos que impulsionam a dinâmica de inovações tecnológicas, de rearticulações sociais, de empreendimentos econômicos e de produção governamental, com impacto direto sobre os resultados das políticas públicas, é a rede urbana. Sua densidade e seus fluxos variam significativamente nas diferentes regiões do país e condicionam o desenvolvimento local e a vida nas cidades. É preciso, pois, incorporar a dimensão da rede urbana em todas as políticas.
Essa tarefa é facilitada, no Brasil, porque podemos contar com iniciativas relevantes do governo federal, entre as quais destacarei duas: i) a linha de pesquisa do IBGE Regiões de Influência das Cidades (REGIC), que divulga periodicamente quadros de referência da rede urbana brasileira, permitindo o acompanhamento de sua evolução no período 1972/2007; ii) e a pesquisa Análise do Mapeamento e das Políticas para Arranjos Produtivos Locais no Brasil, realizada pelo BNDES em parceria com universidades de 22 Estados, no período 2009/2010.
Os dados e mapas fornecidos pela REGIC permitem a localização das atividades econômicas de produção, consumo privado e coletivo no território nacional, bem como fornecem importantes subsídios para o conhecimento das relações sociais vigentes e dos padrões espaciais que delas emergem. No que se refere a serviços sociais básicos, inclusive os de saúde, fornecem informações relevantes sobre as condições de acessibilidade da população aos locais onde estão instalados e de suporte a decisões racionais quanto a novas instalações destinadas ao atendimento da população em regiões determinadas.
A pesquisa sobre os arranjos produtivos locais, com seu mapeamento, busca identificar aglomerações de empresas, localizadas em um mesmo território, que apresentam especialização produtiva e mantêm vínculos de articulação, interação, cooperação e aprendizagem entre si e com outros atores locais, tais como: governo, associações empresariais, instituições de crédito, ensino e pesquisa.
Além disso, por meio de caracterização de ações de políticas públicas e privadas de apoio a esses arranjos em 22 Estados, em termos de estrutura de apoio, beneficiários, aderência, penetração, efetividade das políticas implementadas, localização municipal em mapas, traz importantes informações sobre as dinâmicas econômicas e contribui para a formulação de novas políticas de desenvolvimento regional.
Por outro lado, sabe-se que na história recente dos governos locais vem se multiplicando a configuração de redes de atores e de entidades que se mobilizam em torno de um ou mais problemas de interesse público, formando parcerias entre diversas instituições públicas e privadas. E, dessa forma, ampliando o espaço público e a ruptura com o modelo de provisão estatal uniorganizacional centralizado (Farah, 2010ENNE, A. L. S. Conceito de rede e as sociedades contemporâneas. Revista Comunicação e Informação, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 264-273, 2004.).
Assim, se de fato se adota a perspectiva territorial na produção de respostas setoriais a problemas locais em um dado recorte regional, há de se considerar no processo de formulação de estratégias a situação da rede urbana naquela região, em suas potencialidades e em seus limites, para a organização da resposta setorial; o potencial de desenvolvimento econômico da região; e as redes de atores articuladas ou em articulação no âmbito dos governos locais e/ou da região.
Considerações finais
Para concluir a argumentação aqui apresentada, retomo a pergunta que deu origem ao presente estudo, qual seja: que problemas a regionalização em saúde na República Federativa do Brasil objetiva responder? Talvez a resposta com maior possibilidade de consenso social seja: problemas relacionados a restrições no acesso aos serviços que impactam as condições e oportunidades dos entes federados atenderem às necessidades locais, coletivas e individuais de proteção e cuidado da saúde, produzindo iniquidades na aplicação do direito universal à saúde.
Nesse sentido, parece lícito conceituar a regionalização nos espaços de gestão do SUS como processos políticos, organizados para buscar respostas regionais a problemas de saúde, territorialmente contextualizados. Problemas identificados a partir de necessidades localmente definidas, sobre as quais estas repostas devem incidir para a obtenção de efetivas melhoras nas condições de vida e saúde, em cada lugar.
As respostas regionais, portanto, dificilmente estarão circunscritas ao campo de atuação do setor saúde, mas resultarão da combinação de ações de vários setores, governamentais ou não, que guardem complementariedade entre si ou tenham efeitos sinérgicos para o desenvolvimento local nas diferentes regiões.
Para isso, argumento, finalmente, que é preciso superar a lógica de equalização do acesso à saúde pela configuração de redes homogêneas de serviços no território nacional, idealmente regionalizadas e hierarquizadas, que vem conduzindo o SUS desde sua origem. Um planejamento territorial, participativo, que tome como ponto de partida a situação de saúde que se quer alcançar no futuro de cada lugar, município, Estado, região e do país, a partir do reconhecimento da especificidade assumida pelo processo saúde-doença em cada localidade, encontrará diferentes configurações para as respostas governamentais, nas diferentes escalas de incidência das políticas públicas.
Se se pretende que o SUS, de fato, tenha sua atuação regulada por políticas territorializadas, articuladas na gestão de territórios, é preciso conhecer as dinâmicas territoriais que caracterizam e condicionam o processo saúde-doença e a capacidade de resposta dos entes federados ao perfil epidemiológico e às prioridades, que devem ser socialmente identificadas e politicamente acordadas.
Tal conhecimento não se obtém apenas por meio dos aportes técnico-científicos das burocracias governamentais, sem dúvida imprescindíveis e relevantes. Emerge das interações urbanas, das interações entre os diferentes atores sociais, em rede ou na convivência cotidiana nas cidades, e das reconfigurações da ação política e do espaço público.
A construção coletiva desse conhecimento pode conferir às relações sociais papel de relevância na dinâmica setorial, equilibrando dinâmicas políticas particulares e interesses sociais em prol do interesse público. E, dessa forma, informar e aprimorar o planejamento participativo que já vem sendo praticado em vários Estados e municípios do país, no sentido de melhor discernir entre respostas locais e respostas regionais, definidas com base na natureza federativa da ação estatal.
Desse cenário podem surgir distintas modalidades de regionalização, espontâneas ou induzidas, de acordo com o potencial de cada situação, como aponta (Contel 2014BRASIL. Decreto nº 7508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 jun. 2011.). Ou mesmo, outros arranjos, supra ou inframunicipais, não necessariamente regionais, como alerta Mossé (2012).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2015
Histórico
- Recebido
31 Mar 2015 - Aceito
02 Abr 2015