Resumos
O presente artigo resgata algumas das principais definições dos conceitos de região e regionalização estabelecidos ao longo do século XX na geografia humana, no sentido de encontrar parâmetros para seu uso no atual debate da regionalização da saúde. Essa releitura permitiu que se propusessem três possíveis caminhos para entender a interface entre região/regionalização e a saúde: 1) o resgate crítico de conceitos ligados à tradição da relação homem/meio na atual fase da "transição epidemiológica"; 2) a releitura da geografia das "redes urbanas" como elemento para se pensar as atuais redes de atenção à saúde e para o uso do "complexo industrial da saúde" como mecanismo de desenvolvimento regional; e 3) por fim, a utilização dos conceitos de região e regionalização com origem no marxismo para enfatizar os aspectos materiais e imateriais que estão na base da formação de regiões no atual período da globalização. Do ponto de vista metodológico, o principal recurso utilizado para a consecução do artigo foi a revisão bibliográfica sobre os temas abordados.
Região; Regionalização; Saúde; Geografia humana
Introdução
Não são poucas as dificuldades associadas ao tratamento rigoroso dos conceitos de região e de regionalização, sobretudo na geografia. A primeira dificuldade, de caráter mais geral, advém do simples fato de que o termo região, por permitir referência a várias escalas, pode servir para indicar e localizar qualquer tipo de "extensão" concreta, desde uma "região" do cérebro humano até um bairro, uma província ou um conjunto de países (Beaujeu-Garnier, 1971BEAUJEU-GARNIER, J. La géographie: méthodes et perspectives. Paris: Masson, 1971.).
O termo tem também uma larga tradição de tratamento interdisciplinar (Claval, 1987CLAVAL, P. The region as a geographical, economic and cultural concept. International Social Science Journal, Oxford, v. 39, n. 2, p. 159-172, 1987.), sendo comum seu uso sistemático na biologia, na antropologia, na psicologia, na sociologia, na administração pública, na história e na economia, cada disciplina propondo da mesma forma definições próprias e significados "adequados" ao conceito.
Nesse contexto, o presente texto procura fazer uma reconstituição de algumas abordagens dos conceitos de região e regionalização na geografia humana que podem trazer aportes para seu uso atual no debate da "regionalização da saúde". Como mostram (Mello e Viana 2012MELLO, G. A.; VIANA, A. L. A. Uma história de conceitos na saúde pública: integralidade, coordenação, descentralização, regionalização e universalidade. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 1219-1239, 2012.), o tema da regionalização figura como um eixo central do pensamento progressista na área da saúde, como são também os temas da integralidade, coordenação, descentralização e universalidade. Procurou-se retomar os conceitos de região e regionalização a partir de três importantes debates que têm estado na interface da geografia e da saúde: 1) os estudos epidemiológicos e a "influência do meio geográfico" no processo saúde/doença; 2) a importância das redes para a formação das regiões e para a regionalização dos serviços de saúde; e 3) definições recentes dos conceitos de região e de regionalização, que podem conceder novos aportes para o entendimento de problemas contemporâneos da regionalização da saúde. Apesar de ser um aspecto essencial dessa interface geografia/saúde, não foram analisadas as relações entre as normas/leis e as regionalizações da saúde, dada a quantidade significativa de bons estudos que já existem neste campo (Guimarães, 2005GUIMARÃES, R. B. Regiões de saúde e escalas geográficas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1017-1023, 2005.; Machado, 2009MACHADO, J. A. Pacto de gestão na saúde: até onde esperar uma 'regionalização solidária e cooperativa'? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 24, n. 71, p. 105-119, 2009.; Lima et al., 2012LIMA, L. D. et al. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 11, p. 2881-2892, 2012.). Do ponto de vista metodológico, o presente artigo valeu-se principalmente do recurso à revisão bibliográfica para sua consecução.
Ainda que o tema da regionalização nos conduza a pensar nas formas de sua operacionalização prática, o texto procurou deter-se nos aspectos mais teóricos que envolvem algumas definições qualitativas do conceito no século XX, já que estas definições acabam por anteceder, em importância, a dimensão prática da discussão sobre a regionalização (McDonald, 1966McDONALD, J. R. The region: its conception, design, and limitations. Annals of the Association of American Geographers, Washington, DC, v. 56, n. 3, p. 516-528, 1966.). Os métodos operacionais de definição das regiões, quando não associados a uma densa e qualificada discussão de cunho mais teórico, acabam por ser mais rapidamente contestados ou ultrapassados (Dumolard, 1975DUMOLARD, P. Région et régionalisation: une approach systémique. L'Espace Géographique, Paris, v. 4, n. 2, p. 93-111, 1975.).
A regionalização como resultado da relação homem/meio: regiões naturais e regiões humanas
Antes de se tornar alvo de preocupações sistematizadas, os estudos regionais buscavam, sobretudo, identificar especificidades, curiosidades e descrições sobre as mais diferentes partes do globo (Claval, 1974CLAVAL, P. L'Évolution de la géographie humaine. Paris: Les Belles Lettres, 1974.). A partir de meados do século XVIII várias formas de descrição, classificação e técnicas de análise foram criadas, sem a intenção de desenvolver uma visão mais "científica" sobre o termo região. Essas preocupações tornaram-se mais comuns no início do século XX, quando a sistematização de uma "geografia regional" começou a dar seus primeiros passos, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos (Whitlessey, 1954WHITLESSEY, D. The regional concept and the regional method. In: PRESTON, J.; JONES, C. American Geography: inventory and prospect. Syracuse: Syracuse University Press, 1954. p. 19-68.); foram três os principais autores que elaboraram as primeiras definições de cunho mais teórico sobre o fenômeno regional: Alfred Hettner, na Alemanha, Vidal de la Blache, na França, e A. J. Herbertson, na Grã-Bretanha (Duarte, 1980DUARTE, A. C. Regionalização: considerações metodológicas. Boletim de Geografia Teorética, Rio Claro, v. 10, n. 20, p. 5-32, 1980.).
A primeira definição sistematizada da noção de região foi feita por Herbertson, em artigo datado de 1905HERBERTSON, A. J. The major natural regions: an essay in systematic geography. The Geographical Journal, London, v. 25, n. 3, p. 300-312, 1905.. No que diz respeito aos seus aspectos mais metodológicos, pode-se dizer que a proposta desse autor tem a preocupação de criar uma "geografia sistemática", e busca encontrar "[...] ordens de divisões geográficas [...]" no globo terrestre (Herbertson, 1905HERBERTSON, A. J. The major natural regions: an essay in systematic geography. The Geographical Journal, London, v. 25, n. 3, p. 300-312, 1905., p. 301). O referido texto inaugura a preocupação em definir a regionalização como um processo de classificação (Dickinson, 1976DICKINSON, R. The regional concept: the Anglo-American leaders. London: Routledge & Keagan Paul, 1976.). Faz referência explícita aos procedimentos de classificação da biologia (especialmente no que diz respeito à hierarquia da divisão dos seres vivos em espécie e gênero),11Para o autor, "While we may not be able to dissect our natural region or terrestrial macro-organism into the organs, tissues, and cells of the vital organism, we can find in this idea a useful hint" (Herbertson, 1905, p. 303) demonstrando portanto um viés dedutivo, partindo da definição prévia de critérios de delimitação das regiões para, em seguida, "[...] dividir o mundo em grandes regiões naturais" (p. 302). (Herbertson 1905HERBERTSON, A. J. The major natural regions: an essay in systematic geography. The Geographical Journal, London, v. 25, n. 3, p. 300-312, 1905.) propõe quatro "classes de fenômenos" para a definição das regiões, na seguinte ordem de importância: 1) configuração (principalmente os elementos da geologia e da geomorfologia da superfície terrestre); 2) clima (massas de ar, temperatura e níveis de precipitação); 3) vegetação; e 4) densidades populacionais.22Segundo a definição do autor: "In the determination of natural regions, climate and configuration must both be considered. Climate, because it not merely affects the physical features, but also because it summarizes the various influences acting on the surface. [...] A natural region should have a certain unity of configuration, climate and vegetation. The ideal boundaries are the dissociating ocean, the severing mass of mountains and the inhospitable deserts" (Herbertson, 1905, p. 309).
Definir as regiões naturais seria, nesse sentido, "[...] o passo necessário para a solução final dos problemas da geografia" (Dryer, 1915DRYER, C. R. Natural economic regions. Annals of the Association of American Geographers, Washington, DC, v. 5, p. 121-125, jan. 1915., p. 121), já que essas definições permitiriam estabelecer recortes válidos e duradouros da superfície terrestre, até mesmo para o desvelamento das funções econômicas que cada parcela do espaço iria cumprir, já que se acreditava que as atividades produtivas tinham relações causais inequívocas com elementos naturais como o clima, a geologia, o relevo, a vegetação e o solo de cada área. Essa verdadeira "regionalização física" do mundo foi seguida na época por várias tentativas semelhantes, realizadas sobretudo por geógrafos russos (Grigg, 1974GRIGG, D. Regiões, modelos e classes. In: CHORLEY, R.; HAGGETT, P. (Org.). Modelos integrados em geografia. São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: LTC, 1974. p. 23-66.). Paul (Claval 1974CLAVAL, P. L'Évolution de la géographie humaine. Paris: Les Belles Lettres, 1974., p. 63) mostra que nesse período "[...] a região era um dado da geografia física, um dado da natureza [...]", em praticamente todos os escritos sobre o assunto. (Gomes 1995GOMES, P. C. C. O conceito de região e sua discussão. In: CASTRO, I. E. et al. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 49-76., p. 55) lembra ainda que "[...] o conceito de região natural nasce, pois, desta ideia de que o ambiente tem um certo domínio sobre a orientação do desenvolvimento da sociedade." A maior parte dessas definições tinha um viés determinista ou "ambientalista".
Na França, o primeiro estudo sistemático sobre o conceito de "região natural" foi realizado pelo geógrafo Lucien Gallois, em seu livro Regions naturelles et noms de pays, de 1908 (Roncayolo, 1986RONCAYOLO, M. Região. In: ______. Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional, 1986. p. 161-189.). Segundo a definição original de (Gallois 2013GALLOIS, L. Régions naturelles et noms de pays: étude sur la région parisienne. Paris: Armand Colin, 2013., p. 222):
Em resumo, se a consideração do clima permite distinguir na superfície do globo somente certo número de grandes regiões, por seu turno a altitude e a constituição geológica do solo introduzem diferenças e justificam uma subdivisão em regiões menores, mais ou menos bem delimitadas, cuja característica é mais realçada quanto mais simples são os elementos que a constituem. São para essas unidades, grandes ou pequenas, mas todas de ordem física, que é conveniente reservar o nome de regiões naturais. [...] Creio, com efeito, que é na natureza mesmo que é necessário buscar o princípio de toda divisão geográfica.
Concomitantemente aos estudos de Lucien Gallois, Vidal de La Blache erige em várias obras todo seu edifício explicativo da geografia, procurando unir aspectos "naturais" e "humanos" em suas monografias regionais para a explicação dos fenômenos geográficos. Formado também em história, o autor dá grande ênfase aos longos lapsos de tempo necessários para a formação das regiões, e diminui assim a ênfase que era dada à determinação dos fatores naturais na configuração das diferentes formas da superfície terrestre. Para unir o quadro físico, a ação humana e a história, La Blache propôs o conceito de "gênero de vida", que seria uma síntese da relação entre as disponibilidades fisiográficas de cada lugar do mundo e as adaptações ativas e lentamente realizadas pelas sociedades para utilizarem-se destas disponibilidades. (Grigg 1974GRIGG, D. Regiões, modelos e classes. In: CHORLEY, R.; HAGGETT, P. (Org.). Modelos integrados em geografia. São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: LTC, 1974. p. 23-66., p. 27) lembra uma das famosas metáforas de La Blache para explicitar o significado do conceito de "gênero de vida": homem e natureza se "moldam" um ao outro "[...] como um caracol e sua concha [...]"; "[...] os dois formam uma amálgama complicada".
La Blache propõe assim o conceito de "região geográfica" para denominar essas parcelas da superfície terrestre que apresentam certa homogeneidade de características, derivadas da combinação entre elementos do meio natural e da ação humana. Como mostra Meri Lourdes (Bezzi 2004BEZZI, M. L. Região: uma (re)visão historiográfica: da gênese aos novos paradigmas. Santa Maria: UFSM, 2004., p. 65-66), "[...] não era mais a região natural - física - o objeto privilegiado da análise geográfica [...]", e sim as combinações diferentes de elementos naturais e culturais que em cada região geográfica se realizavam. Essa proposta de definição da região geográfica, do ponto de vista teórico, comporia um verdadeiro "sistema de conceitos" junto com as noções de "gênero de vida", "pays" e "paisagem", sendo que a área de manifestação de uma paisagem homogênea configuraria os próprios limites das regiões. A homogeneidade da paisagem, por seu turno, se refletiria tanto em seus aspectos fisiográficos quanto numa uniformidade dos arranjos humanos: os estilos e formas das habitações, os meios de transporte, os sistemas de cultivos agrícolas e os padrões de povoamento (densidade ou rarefação) em cada parcela do espaço.
Em meados do século XX, o principal sistematizador do conceito de região na geografia francesa foi certamente André (Cholley 1940CHOLLEY, A. Régions naturelles et régions humaines. L'Information Géographique, Paris, v. 4, n. 2, p. 40-42, 1940., 1951CHOLLEY, A. La géographie: guide de l'étudiant. 2. ed. Paris: PUF, 1951.). Para o autor, "[...] os fatos geográficos são essencialmente complexos; eles respondem a convergências, a combinações de fatores" (1951CHOLLEY, A. La géographie: guide de l'étudiant. 2. ed. Paris: PUF, 1951., p. 18). Os fatores a serem combinados na superfície terrestre seriam de três ordens: 1) fatores físicos; 2) fatores bióticos; e 3) fatores humanos. Caberia à geografia encontrar as formas de combinação desses fatores em cada parcela da superfície terrestre, e identificar as "ordens" e as "unidades" existentes que derivariam dessas combinações.33"É justamente por ocasião do exercício das principais atividades da vida em sociedade, agricultura, cultivo, indústria etc., que nós os vemos aparecer (os "segredos" das combinações). Eles exprimem uma verdadeira convergência de fatores físicos, biológicos e humanos. Mas é o agrupamento humano com sua técnica, seu engenho (génie) de organização que os coloca em pé; nos as vemos nascer, durar, evoluir e desaparecer, substituídas por uma combinação nova" (Cholley, 1951, p.17). Com esse raciocínio sobre o fenômeno regional, Cholley inaugurou a possibilidade do estudo combinado desses três fatores (físicos, bióticos e sociais), como foi posteriormente desenvolvido por Jacques May na proposta dos chamados "geógenos" (isto é, os fatores ambientais que interferem na difusão dos "patógenos"), que se dividiriam justamente em "físicos", "biológicos" e "sociais" (Bousquat; Cohn, 2004BOUSQUAT, A.; COHN, A. A dimensão espacial nos estudos sobre a saúde: uma trajetória histórica. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 549-568, 2004.).
Esse período da evolução do conceito regional caracteriza-se, em primeiro lugar, como uma superação das definições da região a partir do predomínio dos dados da natureza em sua composição. Se Herbertson permitiu a construção da primeira grande regionalização do espaço mundial a partir dos dados da "configuração", "clima" e "vegetação" das partes do globo, todos os demais autores analisados procuraram trabalhar o conceito regional a partir de escalas menores, principalmente as "mesoescalas", dadas por parcelas de espaço configuradas dentro dos limites territoriais dos países.
É nesse contexto que Max Sorre realiza uma das mais importantes definições de região na geografia humana, mostrando que "[...] se trata destas áreas restritas individualizadas pela uniformidade de condições físicas no interior de seus limites e por um gênero de vida particular, ou ao menos pelas nuances de um gênero de vida" (Sorre, 1952SORRE, M. Les fondements de la géographie humaine. Paris: Armand Colin, 1952. t. III., p. 445), sendo que as regiões "elementares" seriam aquelas em que "[...] um grupo humano pratica um gênero de vida consolidado, em harmonia com o conjunto de condições geográficas e relativamente estáveis" (Sorre, 1952SORRE, M. Les fondements de la géographie humaine. Paris: Armand Colin, 1952. t. III., p. 449). Devemos também a Max Sorre a proposição do conceito de "complexo patogênico", nesse mesmo período, que permitiu ganhos explicativos consideráveis ao estudo da difusão de doenças infectocontagiosas em diferentes áreas do globo (Ferreira, 1991FERREIRA, M. U. Epidemiologia e geografia: o complexo patogênico de Max Sorre. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 301-309, 1991.; Costa; Teixeira, 1999COSTA, M. da C. N.; TEIXEIRA, M. G. L. C. A concepção de 'espaço' na investigação epidemiológica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 271-279, 1999.).
Cabe destacar que a região é, para essa geração de estudiosos, uma realidade "em si", independente do pesquisador. Nas palavras de Roberto Lobato (Correa 1986CORREA, R. L. Região e organização espacial. São Paulo: Ática, 1986., p. 28-29), "[...] a região geográfica assim concebida é considerada uma entidade concreta, palpável, um dado com vida, supondo portanto uma evolução e um estágio de equilíbrio". Para Paulo Cesar (Gomes 1995GOMES, P. C. C. O conceito de região e sua discussão. In: CASTRO, I. E. et al. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 49-76., p. 57),
A região [segundo esta definição] é uma realidade concreta, física, ela existe como um quadro de referência para a população que aí vive. Enquanto realidade, esta região independe do pesquisador em seu estatuto ontológico. Ao geógrafo cabe desvendar, desvelar, a combinação de fatores responsável por sua configuração.
Ainda em seus aspectos mais gerais, pode-se dizer que estas concepções de região e de regionalização se pautam por uma tradição geográfica de estudos da relação homem-meio, que reforçou o uso de conceitos como o de "gênero de vida", "paisagem", "habitat", "ecúmeno", entre tantos outros que aproximam o conhecimento sobre o espaço geográfico da ecologia humana, e dão ênfase significativa ao peso dos fenômenos "naturais" como elemento de definição dos termos região e regionalização.
A região e a regionalização como resultados da formação das redes urbanas
Junto com o desenvolvimento de todos esses novos métodos e conceitos para a análise regional, desenvolveu-se após a Segunda Guerra Mundial uma série de propostas na Europa que põem no centro do debate a formação e o desenvolvimento das redes de cidades, ou redes urbanas. As cidades, nesse sentido, passam a ser consideradas como o "[...] centro rector de la región en donde están ubicadas" (Dickinson, 1961DICKINSON, R. Ciudad, région y regionalismo: contribuición geográfica a la ecología humana. Barcelona: Ômega. 1961., p. 203).
Na gênese dessa introdução da rede de cidades no pensamento regional estão os trabalhos do geógrafo alemão Walter Christaller, sobretudo seu livro Central places in Southern German (Christaller, 1966CHRISTALLER, W. Central places in southern Germany. London: Prentice Hall, 1966.). Para o autor, as "regiões complementares" seriam o resultado do funcionamento sistêmico das cidades, que por sua vez teriam sua organização comandada pela importância de cada cidade como ofertadora de bens e serviços mais - ou menos - complexos. Quanto mais complexas as atividades de comércio e serviços do centro urbano em questão, maior o "alcance dos bens" ofertados por aquele ponto do território, e maior a posição relativa deste "lugar central" na hierarquia do sistema de cidades do qual faz parte. Como nota (Bousquat 2001BOUSQUAT, A. Conceitos de espaço na análise de políticas de saúde. Lua Nova, São Paulo, n. 52, p. 71-92, jan. 2001., p. 74), "[...] é evidente a relação desta teoria com as diretrizes de regionalização e hierarquização da clientela, tão exaustivamente utilizadas no setor saúde."
Ainda que já encontremos em Max (Sorre 1952SORRE, M. Les fondements de la géographie humaine. Paris: Armand Colin, 1952. t. III.) a consideração das cidades - e, sobretudo, das metrópoles - no processo de regionalização, a incorporação definitiva das redes urbanas para o entendimento da formação das regiões é feita pelo trabalho da geografia francesa da década de 1960. De forma mais geral, essa geografia procurava tanto estabelecer uma forma mais crítica de entendimento do fenômeno regional como buscava ampliar a capacidade de intervenção da geografia na ação estatal, através do planejamento urbano e regional.
Dentre outros importantes autores dessa geração (que em grande parte se agruparam sob aquilo que se convencionou chamar de "geografia ativa"), deve-se destacar os nomes de Jean Tricart, Jean Dresch, e Pierre George (junto com seus alunos Bernard Kayser, Raymond Guglielmo, Yves Lacoste, Raymond Dugrand e Michel Rochefort). Essas novas perspectivas abertas na França a partir de uma "geografia engajada" (Bataillon, 2006BATAILLON, C. Six géographes en quête d'engagement: du communisme à l'aménagement du territoire: essai sur une génération. Cybergeo: European Journal of Geography, Paris, n. 341, juin 2006. Disponível em: <http://cybergeo.revues.org/1739?lang=en>. Acesso em: 30 set. 2013.
http://cybergeo.revues.org/1739?lang=en... ) recuperam elementos da tradição geográfica de análise das relações homem/meio, mas também avançam na identificação de fatores ligados à influência dos processos históricos, do Estado e da organização econômica do espaço para a definição do fenômeno da regionalização.
No que diz respeito à evolução do conceito de região, como mostra (Michel Rochefort 1961ROCHEFORT, M. Métodos de estudo das redes urbanas: interesse da análise e do setor terciário da população ativa. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 9, n. 160, p. 3-18, 1961., 1960ROCHEFORT, M. L'Organisation urbaine de l'Alsace. Strasbourg: Faculté des Lettres de l'Université de Strasbourg; Paris: Ophyrs, 1960.) em seus estudos pioneiros, as cidades são "pilares da vida de relações" que animam as redes urbanas, e o conjunto coeso do funcionamento desta "vida de relações" entre as cidades é que configura uma "armadura regional", ou simplesmente é o que forma as "redes urbanas regionais". Para (Kayser 1980KAYSER, B.; GUGLIELMO, R. A Região como objeto de intervenção. In: GEORGE, P. et al. A Geografia ativa. São Paulo: Difel, 1980. p. 322-354., p. 300), "[...] o conhecimento da rede urbana leva diretamente à compreensão geográfica da situação regional." Segundo Étienne (Juillard 1971JUILLARD, E. Villes et régionalisation. Revue Tiers Monde, Paris, v. 13, n. 51, p. 654-657, 1971., p. 23), pode-se considerar, assim, "[...] que as cidades, que a armadura urbana, são o motor da regionalização." Essa abordagem a partir das redes urbanas os afasta de algumas ideias básicas que configuraram a geografia lablacheana, como a busca das determinações da formação regional nas "relações homem/meio", ou de que a região é apenas "área de extensão de uma paisagem", uma das principais definições de la Blache para as regiões (Correa, 1986CORREA, R. L. Região e organização espacial. São Paulo: Ática, 1986.).
Coube sobretudo a Michel (Rochefort 1960ROCHEFORT, M. L'Organisation urbaine de l'Alsace. Strasbourg: Faculté des Lettres de l'Université de Strasbourg; Paris: Ophyrs, 1960.) propor os conceitos de "vida de relações" e de "rede urbana" como principais instrumentos de identificação das regiões na superfície terrestre. Cada parcela do espaço geográfico teria um conjunto de cidades funcionando em coesão, e aquelas que possuíssem uma maior complexidade de oferta de serviços teriam uma "zona de influência" mais estendida, e constituiriam o centro de comando da região em questão; isto é, seria uma "metrópole regional". A "armadura regional" de cada rede urbana apresentaria três componentes principais: 1) uma "metrópole regional", ou "capital regional"; 2) alguns "centros intermediários"; e 3) um vasto conjunto de "centros locais", de menor complexidade econômica, "centros locais" que são tributários dos "centros intermediários" e das metrópoles de comando da região.
É importante notar, portanto, que há uma hierarquia entre os centros urbanos, de acordo com o tipo de atividade central que exercem, e que "[...] daí não se poder estudar uma cidade isoladamente, como forma de atividade: a unidade deverá ser a 'rede urbana'" (Rochefort, 1961ROCHEFORT, M. Métodos de estudo das redes urbanas: interesse da análise e do setor terciário da população ativa. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 9, n. 160, p. 3-18, 1961., p. 3). Decorre ainda desse seu estudo original outro conceito que viria a ser bastante importante para o entendimento das redes urbanas - e das regiões - em suas formas contemporâneas. Trata-se do conceito de "setor terciário raro" ou "terciário superior", desenvolvido em texto do autor com Jean Labasse. De forma sintética, pode-se dizer que
Pelo poder de decisão, pela raridade dos serviços, ou por sua potência, certos equipamentos terciários superiores constituem a base da polarização da vida regional e sua localização fornece a melhor definição do nível superior da armadura urbana de um país (Rochefort; Labasse, 1965ROCHEFORT, M.; LABASSE, J. Équipements tertiaires supérieures et réseaux urbains. Économie et Humanisme, Lyon, n. 159, p. 124-141, mars 1965., p. 58).44Segundo Jean Labasse (1982), os hospitais de maior complexidade seriam elementos essenciais do setor "terciário superior" tanto por sua raridade (e, consequentemente, por sua capacidade de polarização de grandes áreas) quanto pelo dinamismo econômico que conferem à cidade e à região nas quais estão instalados.
No mesmo período, na França, destacam-se os estudos de Bernard (Kayser 1966KAYSER, B. Les divisions de l'espace géographique dans les pays sous-développés. Annales de Géographie, Paris, v. 75, n. 412, p. 686-697, 1966.; 1980KAYSER, B.; GUGLIELMO, R. A Região como objeto de intervenção. In: GEORGE, P. et al. A Geografia ativa. São Paulo: Difel, 1980. p. 322-354.) sobre os temas da região e da regionalização. Segundo o autor, para a formação efetiva das regiões existiria tanto o que chamou de processos "liberais" quanto processos "voluntários" (Kayser, 1980KAYSER, B.; GUGLIELMO, R. A Região como objeto de intervenção. In: GEORGE, P. et al. A Geografia ativa. São Paulo: Difel, 1980. p. 322-354.). O primeiro tipo de processo confunde-se com as lentas e espontâneas diferenciações das áreas, derivadas principalmente do aumento da complexidade da vida urbana e industrial dos países. Interfeririam nesse processo liberal cinco principais fatores:
fatores naturais: nunca considerados como fatores "iniciais" - a ação/ocupação humana sempre o são - os fatores naturais (como os dados do relevo, clima, fertilidade dos solos etc.) podem entrar tanto como "freios" como "catalisadores" na formação das regiões;
fatores históricos: todos aqueles elementos que dizem respeito às representações coletivas e identidades criadas em parcelas específicas do espaço podem ser considerados como "fatores históricos" na formação das regiões; Kayser cita os "sistemas de valores", "atitudes psicológicas" e "reações coletivas", entre outros fenômenos que configuram um certo "regionalismo", isto é, comportamentos coletivos com base na evolução histórica das diferentes parcelas do espaço geográfico;55Vale lembrar que os dois primeiros fatores aproximam o modelo teórico de Kayser das propostas da geografia regional clássica francesa. Para o autor, "[...] nem os fatores naturais nem os fatores históricos de formação regional podem ser negligenciados, eles desempenham frequentemente um papel de primeira grandeza para os limites. Mas nunca são os motores. O que explica a região, em seu dinamismo, seu mecanismo vivo e, definitivamente, sua formação, são seus órgãos, seu coração e suas artérias: seu ou seus centros, e suas vias de comunicação" (Kayser, 1966, p. 285).
a polarização: toda região desenvolve-se a partir de um centro urbano principal, e quanto maior for a importância em termos industriais e de serviços deste centro em relação ao seu entorno, maior será a sua capacidade de "realizar" sua região (Kayser, 1980KAYSER, B.; GUGLIELMO, R. A Região como objeto de intervenção. In: GEORGE, P. et al. A Geografia ativa. São Paulo: Difel, 1980. p. 322-354.; para o autor, "[...] na época contemporânea, não é portanto a região que criou sua capital, é a cidade que forjou sua região" (p. 286).
as comunicações: os equipamentos de transporte (sobretudo as redes ferroviária e rodoviária) são condição sine qua non para a formação regional; eles podem tanto fortalecer a centralização de certas cidades - em detrimento de outras - como tornar mais "equilibrado" o desenvolvimento regional dos países;
a administração: por fim, mas não menos importante, a consecução de mecanismos institucionais de "controle" das regiões é um elemento central de sua formação; as funções administrativas devem representar, segundo Kayser, a própria divisão hierárquica da vida urbana da região em questão. Além de ser essencial para o bom desenvolvimento econômico das regiões, a possibilidade de controle das decisões políticas no nível regional é essencial para a manutenção da coerência interna das regiões.
Esses são, em linhas gerais, os processos pelos quais se formam as regiões, sendo que a análise desses cinco elementos atribuiria solidez e capacidade explicativa efetiva à abordagem regional na geografia humana. É a consideração desses fatores, aliás, que concederia ao estudo geográfico das regiões um caráter mais concreto, em contraposição às propostas abstratas advindas da teoria econômica regional (Kayser; Guglielmo, 1980KAYSER, B.; GUGLIELMO, R. A Região como objeto de intervenção. In: GEORGE, P. et al. A Geografia ativa. São Paulo: Difel, 1980. p. 322-354.). Em relação à diferença entre a formação "liberal" e "voluntária" das regiões, Kayser nos mostra também que em países socialistas - assim como nos países "em desenvolvimento" -, todos esses fatores são mais fortemente controlados pelo Estado, sendo mais apropriado falarmos de uma formação "voluntária" ou "planejada" das regiões nesses casos (Kayser, 1966KAYSER, B. Les divisions de l'espace géographique dans les pays sous-développés. Annales de Géographie, Paris, v. 75, n. 412, p. 686-697, 1966.). Segundo esta abordagem, a região é uma realidade concreta, e sua existência depende fundamentalmente de todos os "fatores" acima mencionados. Nas palavras do autor,
As regiões são organismos vivos e complexos. Nascem, isto é, tomam corpo e se cristalizam - desenvolvem-se, isto é, se estruturam de uma maneira cada vez mais firme, ganham coesão. Também podem morrer bruscamente, devido à intervenção de um agente exterior, ou por lenta desintegração (Kayser, 1966KAYSER, B. Les divisions de l'espace géographique dans les pays sous-développés. Annales de Géographie, Paris, v. 75, n. 412, p. 686-697, 1966., p. 283).
Caberia aos estudiosos do fenômeno regional desvendar os "mecanismos vitais" que estão por trás da estruturação das regiões. Vale destacar, por fim, que para Kayser a noção de regionalização serve tanto para identificar a formação das regiões - pensando em sua evolução "liberal" (ou espontânea) - quanto para "construir" novas regiões - pensando em sua formação "voluntária" (ou planejada). Junto dessa segunda forma de definição (a regionalização voluntária) estariam todas as tentativas estatais de formar "regiões administrativas", assim como as propostas que François Perroux e Jacques Boudeville denominaram "regiões-piloto" ou "regiões planejadas". Nas palavras de (Kayser 1971KAYSER, B. Les types de régions au Brésil. Revue Tiers Monde, Paris, v. 13, n. 51, p. 75-86, 1971., p. 83), "[...] a regionalização é o meio, assegurando a melhor utilização possível do espaço, de contribuir ao desenvolvimento." Essa geração de geógrafos acaba por consolidar uma visão também "normativa" de região e de regionalização, tornando ambos os conceitos instrumentos fundamentais da ação estatal (Haesbaert, 2010HAESBAERT, R. Regional-Global: dilemas da região e da regionalização na geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.).
O marxismo e as visões recentes do fenômeno regional
A partir do início da década de 1970 os estudos regionais nos moldes descritos passaram a sofrer duras críticas, vindas de todas as áreas do conhecimento, que questionavam a validade dessas abordagens ("regiões naturais", abordagem lablachiana, econômica, "de planejamento" etc.) e o próprio estatuto epistemológico dos conceitos de região e de regionalização. De uma forma geral, estas críticas tinham como base a filosofia do materialismo histórico, e viam a região como "[...] uma resposta local aos processos capitalistas" (Gibert, 1988GIBERT, A. The new regional geography in English and French-speaking countries. Progress in Human Geography, London, v. 12, n. 2, p. 208-228, 1988., p. 209).
Um dos pioneiros na crítica, Hugo (Zemelman 1972ZEMELMAN, H. Los conceptos de práxis y de totalidad en el análisis regional. Revista Latinoamericana de Ciencia Política, Santiago de Chile, v. 3, n. 2, p. 228-240, 1972.) advoga a ideia de que sem incorporar as categorias "totalidade" e "práxis", assim como a "perspectiva das classes sociais" na análise regional não se chega a uma definição concreta em nenhuma abordagem. José Luis (Coraggio 1972CORAGGIO, J. L. Hacia una revisión de la teoria de los polos de desarrollo. EURE, Santiago de Chile, v. 2, n. 4, p. 25-39, 1972.) faz pesadas críticas ao modelo de "desenvolvimento polarizado" de François Perroux, propondo que os polos, em países periféricos, acabam se transformando em verdadeiros "enclaves", e que servem mais como mecanismos de instalação de uma dominação capitalista estrangeira do que de efetivo desenvolvimento destas nações. São quatro as mais bem acabadas críticas da abordagem regional feitas nesse contexto de introdução do marxismo na geografia humana, respectivamente realizadas por Yves (Lacoste 1989LACOSTE, Y. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1989.), Milton (Santos 1990RONCAYOLO, M. Região. In: ______. Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional, 1986. p. 161-189.; 1991SANTOS, M. O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1991.), Doreen (Massey 1979MASSEY, D. In what a sense a regional problem? Regional Studies, Oxfordshire, v. 13, p. 233-243, abr. 1979.) e Ann (Markusen 1981MARKUSEN, A. Região e regionalismo: um enfoque marxista. Espaço & Debates, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 61-99, 1981.).
As críticas de Lacoste têm um endereço certo: a geografia regional "tradicional" francesa, em especial aquela proposta por seu principal articulador, Vidal de La Blache. Para Lacoste, seria necessário ressaltar a "[...] enorme despolitização do discurso que ela impunha" (Lacoste, 1989LACOSTE, Y. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1989., p. 60): apesar da geografia clássica ter se estruturado em função dos interesses colonialistas franceses, e ter permitido a difusão de uma série de ideologias (quando utilizada no ensino escolar, sobretudo), ela era tida - pelos próprios geógrafos que a praticavam - como uma geografia "científica".66Para Aloísio Duarte (1980), Lacoste teria ressaltado principalmente o caráter ideológico dos conceitos de região produzidos na França, já que essas propostas de delimitação regional teriam servido muito mais para aprimorar o domínio do Estado central sobre o território do país, além de estabelecerem uma série de juízos que encobrem contradições sociais latentes (permitindo um maior domínio das classes dominantes regionais sobre os quadros de trabalhadores locais).
Além dessas questões de cunho mais político, (Lacoste 1989LACOSTE, Y. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1989.) sugere ainda uma série de problemas epistemológicos nessas propostas. As definições das regiões em La Blache acabam se tornado "poderosos conceitos-obstáculo", e por não trabalhar de forma explícita os pressupostos metodológicos de sua geografia regional, o autor produz "axiomas escondidos [...] [e] deixa na penumbra o essencial dos fenômenos econômicos, sociais e políticos decorrentes de um passado recente" (Lacoste, 1989LACOSTE, Y. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1989., p. 62-63). O autor acrescenta que sendo as regiões "[...] dados de evidência (e não o resultado de uma escolha), nada mais há a fazer, parece, que observar essa porção do espaço dotada de certas peculiaridades que a tornam diferente dos territórios que a cerca" (p. 73). Em relação à definição de região, Lacoste mostra que
Enquanto seria politicamente mais sadio e mais eficaz considerar a região como uma forma espacial de organização política (etimologicamente, região vem de regere, isto é, dominar, reger), os geógrafos acreditam na ideia de que a região é um dado quase eterno, produto da geologia e da história. Os geógrafos, de algum modo, acabaram por naturalizar a ideia de região: não falam eles de regiões calcárias, de regiões graníticas, de regiões frias, de regiões florestais? Eles utilizam a noção de região, que é fundamentalmente política, para designar todas as espécies de conjuntos espaciais, quer sejam topográficos, geológicos, climáticos, botânicos, demográficos, econômicos ou culturais (Lacoste, 1989LACOSTE, Y. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1989., p. 65-66).
Em sua vasta obra, Milton Santos retoma o tratamento da questão regional em vários momentos, e a primeira grande síntese feita pelo autor sobre o tema é em seu livro O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo (Santos, [1971] 1991SANTOS, M. O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1991.). Santos chama ali a atenção para o fato de que as condições de desenvolvimento do sistema capitalista - cada vez mais internacionalizado -, assim como as formas contemporâneas de deslocamento de bens, pessoas e informações, feriram de morte os arranjos regionais existentes até então, com repercussões empíricas e teóricas para o debate regional. Para ampliar e dar dinamismo à análise regional, o autor fala da necessidade de ser incorporada a categoria da "totalidade" na geografia - e nos estudos regionais - levando em conta também as noções de estrutura, processo, função e forma (Santos, 1990SANTOS, M. Por uma geografia nova. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1990.) A "força motriz" dos processos de formação regional - e de organização do espaço e dos lugares - seria a "totalidade social", que é tanto um "[...] estado, mas é também a totalização em marcha. É uma situação, e uma situação em mudança" (Santos, 1990SANTOS, M. Por uma geografia nova. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1990., p. 177).77Para o autor (Santos, 1990, p. 177), "A totalidade espacial, que é uma dessas estruturas da sociedade, também deve ser tratada em termos de subestrutura (são subestruturas para a sociedade como um todo; para a totalidade espacial são simplesmente estruturas). Aqui cabe falar dos lugares e dos subespaços, áreas que na linguagem tradicional dos geógrafos chamam-se mais freqüentemente regiões".
Do ponto de vista das repercussões empíricas dessa abordagem, se já era difícil falarmos em regiões do tipo "lablacheanas" (cujas lógicas principais deveriam ser buscadas na própria relação local homem-meio) nas condições atuais da globalização, é impossível entendermos a região senão a partir dos vetores "internos" e "externos" que a conformam. Na definição de (Santos 1991SANTOS, M. Por uma geografia nova. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1990., p. 9-10),
Os progressos realizados no domínio dos transportes e das comunicações, bem como a expansão da economia internacional - que se tornou "generalizada" - explicam a crise da noção clássica de região. [...] Nas condições atuais da economia universal, a região já não é uma realidade viva, dotada de coerência interna. Definida sobretudo do exterior, seus limites mudam em função dos critérios que lhe fixamos. Por conseguinte, a região não existe por si mesma.
Deriva desse entendimento dinâmico da questão regional toda uma séria de definições contemporâneas do fenômeno. Para o autor, a região seria assim, do ponto de vista teórico, "[...] o lócus de determinadas funções da sociedade total em um momento dado" (Santos, 1985, p. 66), e se definiria "[...] como o resultado das possibilidades ligadas a uma certa presença, nela, de capitais fixos exercendo determinado papel ou determinadas funções técnicas e das condições do seu funcionamento econômico" (Santos, 1985, p. 67).
É possível destacar recentemente duas principais formas de tratamento da questão regional na obra de Milton Santos. Uma primeira dimensão de sua abordagem preocupa-se mais em identificar fatores "materiais" na definição das regiões e na análise da difusão daquilo que denominou de "meio técnico-científico-informacional" (Santos, 1994SANTOS, M. Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Hucitec, 1994., 1996SANTOS, M. A Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.). Esse tipo de meio geográfico compõe aquelas parcelas do território em que se apresentam intensamente - e de forma contígua - características centrais do atual período da globalização: infraestruturas de comunicação e de transportes modernas, sistemas de produção automatizados, empresas de alta tecnologia, universidades "de ponta", mão de obra qualificada, agricultura "científica" etc. Todas essas atividades e redes-suporte com enormes densidades de "ciência", "informação" e "tecnologia" são o resultado direto da modernidade imposta pela globalização, e são parte constitutiva do "meio técnico-científico-informacional". A difusão desse novo tipo de meio geográfico, porém, é extremamente seletiva, sobretudo nos países periféricos: há parcelas dos territórios que apresentam densidades técnicas e informacionais mais elevadas, e parcelas em que estes elementos aparecem com menor intensidade ou de forma "linear" ou "pontual". As demais áreas, impregnadas de um meio técnico mais "obsoleto", seriam o lócus de vida dos atores não hegemônicos e da população mais pobre.88No caso do território brasileiro, essas definições foram muito importantes para embasar a proposta de "região concentrada" que o autor faz, em seu livro escrito junto com a geógrafa María Laura Silveira (Santos; Silveira, 2001). A "região concentrada" seria essa parcela da porção meridional do nosso território que engloba as regiões Sul e Sudeste, definidas pelo IBGE, em que o "meio técnico-científico-informacional" se dá de forma mais intensiva, quase ubíqua, criando uma série de economias externas que são condição sine qua non para a instalação das atividades capitalistas mais dinâmicas.
Uma segunda dimensão da análise regional proposta por Santos (dimensão indissociável da "base material" supracitada) diz respeito aos aspectos "imateriais" que formam as regiões, isto é, às lógicas e intencionalidades das organizações (públicas ou privadas) que dão coesão e sistematicidade aos arranjos regionais. O conceito principal que ajuda a identificar essas lógicas mais "imateriais" é o de "solidariedades geográficas", que correspondem exatamente ao resultado da divisão social e territorial do trabalho que se instala em diferentes parcelas do espaço geográfico, a cada período histórico. Isto é: tão ou mais importantes do que as infraestruturas físicas são os dados "imateriais", a "inteligência" ou teleologia que unifica os lugares e as regiões. Essa unificação é guiada principalmente pelas vicissitudes de agentes hegemônicos (e de sua racionalidade instrumental), como é o caso das grandes corporações, que moldam as diferentes áreas do globo a seu favor. Para Milton (Santos 1994SANTOS, M. Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Hucitec, 1994., p. 92), portanto,
Na definição atual das regiões, longe estamos daquela solidariedade orgânica que era o próprio cerne da própria definição do fenômeno regional. O que temos hoje são solidariedades organizacionais. As regiões existem porque sobre elas se impõem arranjos organizacionais, criadores de coesão organizacional baseada em racionalidades de origem distante, mas que se tornam o fundamento da existência e da definição desses subespaços.
Como são sempre "funcionalizações do todo" - e como as mudanças em tempos de globalização são cada vez mais aceleradas -, os arranjos regionais não têm mais a estabilidade "histórica" que possuíam: nada mais anacrônico seria do que trabalhar com as categorias da velha tradição francesa clássica, em que as regiões eram consideradas como resultado do duradouro processo de formação dos "gêneros de vida" e das "paisagens" deles decorrentes. Além de não possuírem mais a "territorialidade absoluta de um grupo" - como era o caso nos períodos anteriores ao século XX -, o número de fatores que incide hoje sobre as formações regionais é muito maior, e muito mais complexos. O comando dessas mediações, no limite, é dado pela lógica das grandes empresas, partindo delas os principais nexos da organização regional do mundo atual. Destarte, "[...] agora, exatamente, é que não se pode deixar de considerar a região, ainda que a reconheçamos como um espaço de conveniência e mesmo que a chamemos por outro nome" (Santos, 1996SANTOS, M. A Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996., p. 196).
A região, portanto, é o resultado da dialética entre dois tipos de lógica: uma que é dada pelos arranjos internos de cada divisão do trabalho regional (que é mais o resultado da formação histórica, espontânea das regiões) e outra que é expressa pela influência cada vez mais aguda de vetores externos (sejam eles normas, fluxos de informação, de capitais, de mercadorias, de investimentos etc.) que instalam sobre estas combinações preexistentes seus nexos "organizacionais". Aos arranjos mais "internos" Santos dá o nome de "horizontalidades"; aos vetores externos, "verticalidades". É a partir da análise dessas duas lógicas que se pode entender e definir os contornos regionais dos territórios no mundo contemporâneo. Ou, como mostra María Laura (Silveira 2010SILVEIRA, M. L. Região e globalização: pensando um esquema de análise. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 15, n. 1, p. 47-88, 2010., p. 77), "[...] a região pode ser compreendida como um tecido contínuo e heterogêneo de modernidades e formas herdadas, materiais e imateriais, que constituem horizontalidades."
Considerações finais
Ainda que alguns discursos teóricos recentes tenham decretado o "fim" da região, ela é, na verdade, o resultado do próprio avanço da globalização, já que a cada progresso da difusão dos vetores da modernidade global cria-se uma correspondente diferenciação dos espaços da superfície terrestre: por mais que a globalização tente homogeneizar o espaço, ela acaba por fragmentá-lo e regionalizá-lo ainda mais (Santos, 1996SANTOS, M. A Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.). Como mostra Rogério (Haesbaert 2010HAESBAERT, R. Regional-Global: dilemas da região e da regionalização na geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.), pela própria importância que adquiriu o conceito de região (e de regionalização) ao longo da história do século XX, ele sofreu idas e vindas, construções, rechaços e reformulações por diferentes autores, abordagens e filiações teórico-filosóficas.
As definições de região e regionalização em certas abordagens foram tidas como fenômenos ou fatos concretos, com autonomia de existência, e em outros momentos como meros fatos teóricos, criações do "espírito humano". As abordagens mais recentes são menos crentes dessa autonomia - ou estatuto ontológico - das regiões. Esse é o caso de toda a literatura de inspiração marxista, que intensifica ainda mais a definição das regiões enquanto resultado da "totalidade social". Segundo essas definições, além das regiões serem uma forma derivada da inteligência e do desígnio humanos - como quadro de referência para a ação dos Estados e das empresas -, essa criação ainda é "manipulada" de forma ideológica, para serem aquilatados ganhos políticos com os usos do conceito (Markusen, 1981MARKUSEN, A. Região e regionalismo: um enfoque marxista. Espaço & Debates, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 61-99, 1981.; Moraes, 1988MORAES, A. C. R. Ideologias geográficas. São Paulo: Hucitec, 1988.).
Ainda que de forma exploratória, pode-se dizer que o resgate dos conceitos de região e regionalização na geografia humana permite refletir sobre alguns dos principais debates contemporâneos da "geografia da saúde". Para além das abordagens sobre o meio geográfico que jogam grande peso em seus "aspectos naturais", o uso de definições atualizadas do conceito (como é o caso do meio-técnico-científico informacional) parece ser bastante operacional para lidar com os problemas da atual "transição epidemiológica" que o Brasil vem vivendo (Achutti; Azambuja, 2004ACHUTTI, A.; AZAMBUJA, M. I. R. Doenças crônicas não-transmissíveis no Brasil: repercussões do modelo de atenção à saúde sobre a seguridade social. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4, p. 833-840, 2004.; Mendes, 2010MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2305-2010, 2010.), já que doenças crônicas não transmissíveis e morbimortalidade vinculada a causas externas têm relação direta com o cotidiano de populações que moram e trabalham em meios geográficos urbanos bastante complexos, mais - ou menos - impregnados de "ciência", "tecnologia" e "informação".
O tratamento do tema da regionalização a partir das redes urbanas, por seu turno, permite ampla análise de pelo menos duas importantes dimensões do acesso aos serviços de saúde na contemporaneidade: 1) a distribuição mais equitativa dos equipamentos e ações de atenção à saúde a partir do nível de complexidade dos serviços e de sua articulação com a própria hierarquia das redes urbanas regionais - como procuraram mostrar também (Duarte, Balbim e Contel 2013DUARTE, L.; BALBIM, R.; CONTEL, F. B. Regionalização da saúde e ordenamento territorial: análises exploratórias de convergências. In: BOUERI, R.; COSTA, M. A. (Org.). Brasil em desenvolvimento: 2013. Brasília, DF: IPEA, 2013. v. 1, p. 147-172.); 2) o uso da distribuição desses equipamentos como forma de desenvolvimento regional, tanto pela consecução de políticas que melhorem a qualidade de vida/saúde da população (em áreas de baixa densidade de oferta de serviços) quanto pelo uso de verdadeiros "complexos industriais de saúde" (Gadelha et al., 2011GADELHA, C. A. G. et al. Saúde e territorialização na perspectiva do desenvolvimento. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 3003-3016, 2011.) - ou "[...] circuitos espaciais produtivos da saúde" (Antas Jr., 2013ANTAS JR, R. M. Urbanização e os circuitos espaciais produtivos da saúde. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 15., 2013, Recife. Anais... Recife: Anpur, 2013. Disponível em: <http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/anais/article/view/4368>. Acesso em: 28 set. 2014.
http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/in... ) - como forma de aumentar o dinamismo econômico local e regional.
Esses elementos de interface entre os problemas da área da saúde e da geografia humana podem, certamente, ajudar em um dos principais desafios para a retomada do debate regional, no período contemporâneo, que é o de buscar novas formas de "planejamento territorial democrático", como definiu Jacques (Scheibling 1976SCHEIBLING, J. Collectivités locales et régions: planification territorial démocratique. Économie et Politique, Paris, n. 264/265, p. 65-78, mars 1976.) para a sua época. Ou como mostrou recentemente (José Luis Coraggio 2004), o desenvolvimento humano pleno passa pela democratização do Estado e do sistema político e deve visar à ativação dos recursos próprios das regiões e satisfazer as carências das populações desde os lugares onde vivem.
- ACHUTTI, A.; AZAMBUJA, M. I. R. Doenças crônicas não-transmissíveis no Brasil: repercussões do modelo de atenção à saúde sobre a seguridade social. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4, p. 833-840, 2004.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2015
Histórico
- Recebido
02 Fev 2015 - Aceito
13 Mar 2015