Resumos
Este artigo analisa o processo de formação da rede regional de atenção à saúde na Região Metropolitana da Grande Vitória-ES (RMGV-ES), com foco específico no atendimento hospitalar público, procurando dimensionar o estágio atual de estruturação da rede hospitalar intermunicipal no Estado do Espírito Santo, particularmente na Grande Vitória. Analisaram-se as internações realizadas nos hospitais do Sistema Único de Saúde e os deslocamentos dos usuários desses serviços entre os municípios que compõem a RMGV. O método adotado foi o processamento e análise dos dados do Sistema de Internações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS), sistematizados pelo seu Departamento de Informática, o Datasus. A Região Metropolitana da Grande Vitória assistiu a importantes fluxos populacionais para a utilização de serviços públicos de saúde, conforme indicam os dados coletados. Os maiores deslocamentos verificados foram de homens, crianças e adolescentes, e para internações cirúrgicas. Considerando-se a regionalização como novo princípio e diretriz do processo de descentralização da saúde, este artigo identificou transformações no processo, que anteriormente apontava para a municipalização e, agora, busca fortalecer uma perspectiva regional e intermunicipal para a assistência à população.
Políticas Públicas; Política de Saúde; Regionalização; Atendimento Hospitalar
Introdução
Tendo em vista a dinâmica recente de formatação das redes regionais de atendimento à Saúde, que tem sido estabelecida em todo o Brasil em consonância com as diretrizes do Pacto de Gestão da Saúde (Ministério da Saúde), este estudo aborda a regionalização do atendimento hospitalar público na Região Metropolitana da Grande Vitória-ES (RMGV-ES). A pesquisa definiu, como objetivo analítico, dimensionar o estágio atual de estruturação dessa rede intermunicipal no Estado do Espírito Santo, particularmente na Grande Vitória.11O estudo original foi financiado pelo programa de Fomento à Pesquisa da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular (FUNADESP).
O recorte estabelecido foi o atendimento hospitalar na rede prestadora de serviços do Sistema Único de Saúde, com análise dos dados das internações realizadas e, principalmente, dos deslocamentos feitos, pelos usuários, entre os municípios que compõem a RMGV. A pesquisa tomou como pressuposto o esgotamento do modelo de municipalização das políticas públicas de saúde (Barreto Jr., 2008; Dowbor, 2009DOWBOR, M. Da inflexão pré-constitucional ao SUS municipalizado. Lua Nova, São Paulo, n. 78, p. 185-222, set. 2009.), processo que tem conduzido para a montagem das redes regionais de atendimento. A nova formatação da política pública tornou necessária a regulação de pactos intermunicipais, que negociem os repasses financeiros que são transferidos do Ministério da Saúde para as cidades e a acomodação de demandas por serviços de saúde que extrapolam o território municipal. Esses pactos formaram o cerne da descentralização e regionalização das políticas públicas de saúde no Brasil e constituíram tema central na agenda de Reforma do Estado brasileiro, encadeada a partir da década de 1980 e nas seguintes, em virtude de dois fatores. Por um lado, a centralização característica do autoritarismo burocrático do regime militar pós-1964 converteu a descentralização num princípio ordenador das mudanças para os setores democráticos; e, por outro, a descentralização tornou-se peça também importante para o pensamento liberal de oposição ao regime. O debate teórico sobre as políticas públicas e sociais no Brasil revela que, entre a década de 1990 e os anos 2000, houve um deslocamento no foco principal dessa discussão: enquanto na década de 1990 predominavam temas como descentralização e reforma do Estado - através dos quais se procurava estabelecer um modelo estatal mais eficiente e eficaz para a gestão e execução das políticas públicas -, nos anos 2000 e seguintes, essa questão foi, ao menos parcialmente, deslocada, culminando na atitude dos gestores públicos de priorizar, na agenda da saúde, a regionalização dos serviços como forma de organizar o modelo de atenção (primária, secundária e terciária) e assegurar o acesso aos serviços de saúde.
Essa racionalidade foi incluída no processo de reestruturação e reforma das políticas sociais no Brasil como ação que potencialmente eleva a efetividade da política de saúde e favorece que ela atue como componente das políticas de redução das desigualdades socioeconômicas. Toma-se, como contraponto, a racionalidade neoliberal para a qual a ação estatal atua em sentido inverso, produzindo ineficácia e clientelismo que oneram, pesadamente, o cidadão que procurava socorrer. Diversos autores (Barreto Jr., 2008BARRETO JR., I. F. Políticas públicas e sociais e superação de desigualdades: uma revisão teórica. CSOnline, Juiz de Fora, v. 2, n. 4, p. 234-245, 2008.; Cohn, 2009aCOHN, A. (Org.). Saúde da família e SUS: convergências e dissonâncias. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009a. v. 1., 2009bCOHN, A. Saúde e desenvolvimento social. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, p. 41-47, 2009b. Suplemento 2., 2009cCOHN, A. A reforma sanitária brasileira após 20 anos do SUS: reflexões. Cadernos de Saúde Pública Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, p. 1614-1619, 2009c.; Behring, 2003BEHRING, E. R. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.) discutem o processo de transformação ao qual foi submetida a política de saúde que, após a promulgação da Constituição, necessitou ainda de mais uma década de regulamentações (portarias, Normas Operacionais do Ministério da Saúde, entre outras) para adquirir os contornos atualmente apresentados. São escassos, porém, estudos que investiguem como essas mudanças rebateram e transformaram os sistemas municipais de saúde, particularmente nos aspectos voltados à montagem das redes de atendimento hospitalar, objeto deste artigo. A cidade é, potencialmente, locus privilegiado para o embate de forças políticas, em sentido amplo, uma vez que, em seu território, há espaço para abrigar os consensos e dissensos existentes na sociedade. Mas como essa lógica se reflete na regionalização das políticas? Com as inovações de gestão pública inauguradas com a adoção da municipalização das políticas de saúde, em que a esfera local ganha força, são esperadas atribuições e recursos, na condução de uma política, que digam respeito ao interesse de toda a coletividade. Assim como é esperado que a saúde ganhe importância na agenda regional, não apenas quanto aos componentes de gestão dos sistemas de saúde, mas também, especialmente, no embate das forças políticas locais.
O processo de municipalização, e posterior regionalização, das políticas sociais, colocou os prefeitos no centro das decisões sobre o modelo de política que seria oferecido às populações de cada localidade. Ao longo do processo de reforma das políticas de saúde, os municípios foram colocados na linha de frente de uma situação que exige intervenções ágeis e que supera as antigas rotinas de cosmética urbana, como gerir amplos projetos de infraestrutura, políticas sociais e a dinamização das atividades econômicas locais. Mesmo que sob a coordenação do Ministério da Saúde, o SUS atribui uma relativa autonomia para o gestor municipal definir quais ações e programas de saúde serão desenvolvidos na localidade, preconizando o controle público através dos conselhos municipais e, mais recentemente, da regionalização da atenção à saúde. Dessa maneira, os prefeitos possuem autonomia e tomam decisões fundamentadas em seus compromissos públicos, e o mesmo se aplica para os matizes adotados na formulação das políticas públicas.
Foi o que ocorreu na RMGV, onde persistem gargalos relacionados ao acesso aos serviços e nas condições de saúde de sua população, conforme revelaram os dados estatísticos que serão apresentados posteriormente, neste artigo. Na região em análise, tal como na maioria dos aglomerados urbanos brasileiros, a população não apresenta perfil socioeconômico homogêneo entre suas diferentes cidades e microrregiões. Tal heterogeneidade é refletida na existência de áreas de pobreza e maior vulnerabilidade a riscos, provocada pelas condições socioeconômicas, acesso desigual aos serviços de saúde, baixa escolarização e rendimentos. Esse estado de coisas torna relevante a agenda de intervenções públicas que procurem mitigar essas diferenças e assegurar condições mínimas de saúde e qualidade de vida para a todas as áreas e segmentos populacionais da região, conforme os princípios do Sistema Único de Saúde.
Conforme se observará ao longo deste artigo, a Região Metropolitana da Grande Vitória, frente à sua complexidade, porte populacional e relevância econômica e política no estado do Espírito Santo, assistiu a importantes fluxos populacionais para a utilização de serviços públicos de saúde, conforme indicam os dados coletados. Segundo (Barreto Jr., Ferreira e Silva 2008BARRETO JR., I. F.; FERREIRA, M. P.; SILVA, Z. P. Pesquisa de condições de vida 2006: acesso aos serviços de saúde em áreas vulneráveis à pobreza. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 5-18, 2008., p. 7), "as condições de acesso refletem características da oferta de serviços, que facilitam ou dificultam a capacidade dos indivíduos de dada população para utilizar os serviços de saúde de acordo com suas necessidades". Assim, a procura e a utilização de serviços estão condicionadas por uma série de fatores que, segundo Andersen, (apud Travassos; Martins, 2004TRAVASSOS, C., MARTINS, M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. 190-198, 2004. Suplemento 2., p. 191):
Podem ser agrupados em: fatores predisponentes, fatores capacitantes e necessidade de saúde. No primeiro grupo, de predisposição de procura, encontram-se variáveis relativas às características sociodemográficas, como idade e sexo. No segundo, capacidade de consumo ou utilização, aglutinam-se fatores referentes à cobertura de serviços públicos e privados e a respectiva rede de serviços disponíveis. E, no terceiro, a necessidade é influenciada pela existência de autopercepção de problemas de saúde ou diagnósticos preexistentes que possam motivar o indivíduo a buscar atenção à saúde.
Considerando-se a regionalização como novo princípio e diretriz do processo de descentralização da saúde, este artigo procurará identificar transformações no processo, que anteriormente apontava para a municipalização, de fortalecimento de uma perspectiva regional e intermunicipal para a assistência à saúde.
Material e métodos
O estudo foi realizado através do processamento e análise de dados do Sistema de Internações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS), particularmente os registros gerados a partir das Autorizações de Internação Hospitalar (AIH), sistematizados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus). Este sistema registra dados sobre a totalidade das internações realizadas e financiadas pelo SUS, em hospitais públicos (federais, estaduais e municipais) e privados (com fins lucrativos ou filantrópicos).
Para operacionalizar o processamento dos dados, foi instalado, localmente, o programa informático TaBWin, desenvolvido pelo Ministério da Saúde e de disseminação livre e gratuita, o que permite ampla autonomia para exploração dos bancos e realização de diversos cruzamentos, que não são exequíveis pela internet. Para viabilizar o uso do TabWin, foi feito download, no website do Datasus,22Disponível em: <http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0901&item=1&acao=25>. Acesso em: 10 ago. 2014. dos arquivos reduzidos de AIH do estado do Espírito Santo, do período de 2011 a 2013. Foi feito um estudo de coorte desse período, com o intuito de atingir uma quantidade significativa de internações que suporte as desagregações necessárias para o estudo. Os arquivos reduzidos de AIH são mensais e trazem as informações completas sobre a rede física (originárias do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES) e sobre a produção (internações, do SIH-SUS), realizada no âmbito do Sistema Único de Saúde. O estudo não abrange, portanto, as internações realizadas na rede privada não conveniada com o sistema, para as quais não há dados disponíveis.
No processamento dos dados, foi selecionado o número de internações realizadas (que exclui as autorizações de prorrogação de internações), com cruzamento entre os municípios de realização da internação versus residência do paciente, o que foi viável com a utilização do software TabWin. Com isso, foi possível mapear os fluxos intermunicipais de internações e quantificar: i) a atração que municípios exercem sobre moradores de outras cidades; e ii) os deslocamentos entre cidades necessários para efetivar as internações. Para uma análise mais acurada desses movimentos, foram selecionados os seguintes atributos: idade, sexo e complexidade da internação.
Resultados e discussão
A Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV), no Espírito Santo, é composta por 1.884.096 habitantes,33Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Estimativas de população 2014. nos municípios de Cariacica (378.915 habitantes), Fundão (19.585), Guarapari (118.056), Serra (476.428), Viana (73.318), Vila Velha (465.690) e Vitória (352.104). Perante sua complexidade, porte populacional e relevância econômica e política no estado, os fluxos intermunicipais de internações demonstraram uma dinâmica típica dos grandes aglomerados populacionais. Na coorte temporal de três anos observada neste estudo (2011-2013), os hospitais localizados na RMGV realizaram 298.963 internações, nenhuma delas nas cidades de Fundão e Viana, nas quais não há hospitais conveniados com o Sistema Único de Saúde. As internações são assim distribuídas, conforme a Tabela 1: Vitória (159.46 internações, 53,3%), Vila Velha (85.346, 28,6%); Serra (23,978, 8,0%), Cariacica (20.122, 6,7%) e Guarapari (9.869, 3,3%).
De pronto, observa-se que mais de 92 mil habitantes, cômputo das populações de Fundão e Viana, não contam com hospital conveniado ao SUS no seu território e o atendimento sempre ocorrerá nos limites extramunicipais, o que necessita ser organizado pela atenção básica e pelo sistema de referência secundária e terciária. Quando comparada a distribuição populacional e a das internações, sobressai-se a capital Vitória que concentra 18,7% da população e mais de 53% das internações. Essa atração, conforme será analisado posteriormente, deve-se à presença do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) no município, estabelecimento universitário gerido pelo Governo Federal, voltado ao atendimento regional e especializado de parcela significativa da população do Espírito Santo. As cidades de Serra, Cariacica e Guarapari concentram internações em proporção inferior à populacional.
Os dados da Tabela 2 permitem analisar a distribuição das internações segundo a natureza do prestador de serviço, importante indicador de gestão de rede de atenção à saúde. Os prestadores estadual e filantrópico foram os responsáveis pelas maiores parcelas das internações realizadas na RMGV, e deve-se também registrar que quase 10% das internações foram realizadas pelo prestador federal. A rede filantrópica é também a maior prestadora de serviços de internação no Brasil e na Região Sudeste, em que é responsável por mais das metades dos atendimentos hospitalares do SUS, o que reitera a importância das Santas Casas e hospitais de benemerência, no sistema público.
As proporções de internações realizadas em hospitais estaduais e federais, na região, apresentam patamares superiores aos verificados para o total do Brasil (22,1% e 4%, respectivamente) e da Região Sudeste, (20,9% e 3,7%, respectivamente),44Fonte: Ministério da Saúde/Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde - Datasus. Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS). Disponível em: < http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0202>. Acesso em: 20, ago., 2014. Foram tabulados dados para o período de 2011 a 2013, idêntico ao deste estudo. o que sugere algumas atipicidades da RMGV, frente ao processo de descentralização da atenção à saúde, desencadeado a partir da década de 1990. A significativa participação do prestador federal, na região, se deve ao Hospital das Clínicas da UFES, em Vitória, hospital universitário, que oferece atendimento geral e especializado, e se configura como o principal serviço de saúde regional do estado do Espírito Santo.
Quanto ao deslocamento de moradores para obtenção de internações fora do seu município de residência, objeto principal desde artigo, a Tabela 3 permite identificar, a partir do cruzamento entre os dados de município de internação e município de residência, a proporção populacional que não obteve atendimento hospitalar na sua própria cidade, necessitando deslocar-se entre as cidades da RMGV. Vitória e Vila Velha foram as que apresentaram as maiores proporções de atendimento dos munícipes dentro dos limites do seu próprio território, principalmente a primeira, capital do estado do Espírito Santo. São as cidades mais ricas da região e que concentram serviços públicos e privados de saúde, educação e cultura, entre outros. Além disso, segundo os dados do SUS, Vitória foi a cidade que atraiu a maior proporção de moradores para internação de toda a RMGV, seguida por Vila Velha. Ainda tratando-se dessas cidades, no triênio 2011-2013, foram realizadas 48.480 internações de moradores situados fora da Região Metropolitana de Vila Velha, certamente pelo caráter regional e especializado dos seus hospitais do SUS.
Já foi salientado, anteriormente, que as cidades de Fundão e Viana não possuem nenhum hospital que presta serviços pelo SUS. Entre as cidades restantes, são destacadas as seguintes situações: entre os moradores de Cariacica, quase 80% foram internados em Vitória e Vila Velha. Dois terços da população de Serra, que necessitou de internação, foi atendido fora da cidade, situação que ocorre para quase metade dos moradores de Guarapari.
Nessa lógica analítica, que almeja compreender a formação da rede regional de atendimento hospitalar na RMGV, devem ser acrescidos os dados da Tabela 4, que permitem conhecer dois importantes indicadores dessa dinâmica. A referida tabela apresenta as taxas de evasão e invasão de internações. Conceitualmente, a taxa de evasão expressa, para um determinado município, qual a proporção dos seus moradores que foram atendidos em hospitais localizados fora do seu território. Esse indicador tem a finalidade de analisar a necessidade de deslocamentos intermunicipais para a obtenção de internações e reveste-se de grande importância no planejamento da atenção à saúde. Em consonância com os dados analisados anteriormente, as maiores taxas de evasão foram verificadas nas cidades de Viana e Fundão (100%), Cariacica (79,0%), Serra (65,8%) e Guarapari (47,28%). Em sentido oposto, o grande polo de atendimento hospitalar na região, Vitória, registrou a menor taxa (11,9%), seguida de Vila Velha (38,3%).
Ainda de acordo com a tabela 4, são apresentadas as taxas de invasão. Este indicador expressa, no âmbito das internações realizadas em determinado município, a proporção de atendimentos oferecidos a moradores de outras cidades. É um importante referencial no âmbito do SUS, pois os repasses do Ministério da Saúde, para cada um dos municípios, são submetidos a uma quantidade limite, determinada pelo próprio ministério, de internações que serão remuneradas por ano. São os denominados tetos de AIHs. Em decorrência dessa limitação, demonstra-se a relevância das regulamentações ministeriais que promoveram, nos últimos anos, a repactuação desses tetos, ao propor a Programação Pactuada e Integrada (PPI) e o Plano Diretor de Regionalização.55Para reorganizar a atenção regional em sistemas de saúde não necessariamente confinados aos territórios municipais e, portanto, sob responsabilidade coordenadora dos governos estaduais, o Ministério da Saúde editou, em 2002, a Norma Operacional de Assistência à Saúde - NOAS SUS 01/2002. Seus principais objetivos foram ampliar a responsabilidade dos municípios na atenção básica; estabelecer o processo de regionalização como estratégia de hierarquização dos serviços de saúde e de busca de maior equidade; criar mecanismos para o fortalecimento da capacidade de gestão do SUS e atualizar critérios de habilitação dos estados e municípios, Barreto Jr. (2005b). Os grandes centros de referência são, naturalmente, aqueles que atraem os maiores contingentes populacionais, o que foi verificado nas cidades de Vitória e Vila Velha, que apresentaram, respectivamente, taxas de invasão de 66,1% e 48,7%.
Com o intuito de analisar com mais acuidade o fenômeno do atendimento regional em saúde na RMGV, as tabelas 4, 5 e 6 apresentam as taxas de evasão, discriminadas por sexo, faixa etária e complexidade do atendimento (clínicas básicas e cirúrgica).
Os deslocamentos intermunicipais para atendimento hospitalar, com análise distinta para as internações de homens e mulheres (cujos dados são apresentados na Tabela 4), decorrem da oferta de serviços oferecidos nos municípios, das diferentes necessidades de gênero quanto à saúde, e de fatores associados à dinâmica econômica local. A taxa de evasão de internações masculina foi superior à feminina em todas as localidades da RMGV. Na cidade de Cariacica, conhecida cidade dormitório da RMGV, a evasão masculina foi significativamente maior do que a feminina, conforme demonstra a Tabela 4. A rede hospitalar de Cariacica, conveniada ao SUS, registrou movimento em apenas dois hospitais: um hospital de atendimento psiquiátrico, denominado Hospital Adalto Botelho, que atende preponderantemente moradores de outras localidades; e o Hospital Meridional, responsável pelo atendimento geral, com leitos de atendimento médico e cirúrgico. Mais de 90% dos homens de Cariacica, quando necessitaram de internações no âmbito do SUS, o fizeram nas cidades de Vitória e Vila Velha.
A observação desses dados agregados por faixas etárias (a análise definiu os seguintes estratos: até 14 anos; de 15 a 49; 50 anos e mais - vide Tabela 5) auxilia ainda mais na compreensão do fenômeno da taxa de evasão hospitalar. Exceto nas cidades-polo - Vila Velha e Vitória -, as taxas de evasão mais significativas foram registradas nas internações de pessoas com até 14 anos, todas em patamares acima de 70%. Esses porcentuais apontam para a concentração dos leitos pediátricos e sinalizam prováveis gargalos para a internação de crianças e adolescentes na RMGV. Taxas bastante significativas também foram verificadas para as pessoas acima de 50 anos. A transição demográfica e o consequente envelhecimento populacional certamente tornarão esse problema ainda mais agudo e exigirão um novo planejamento das políticas públicas gerais e, especificamente, na área da saúde.
Finalmente, os dados de evasão de internações do SUS agregados entre clínicas básicas (obstetrícia, clínica médica e pediátrica) e cirúrgica revelam taxas bastante elucidativas para a compreensão da lógica intermunicipal da RMGV. A taxa de evasão das clínicas básicas é significativa em Cariacica (69,5%) e Serra (58,7%), mas, em todos os municípios da região, ela é inferior à taxa de evasão da clínica cirúrgica. Mais de 90% das internações em clínica cirúrgica, na RMGV, ocorreu nas cidades de Vitória e Vila Velha, o que atesta a concentração desse tipo de leito nas cidades-polo da região. Em Guarapari e Cariacica, as taxas de evasão para clínicas cirúrgicas foram superiores a 90%.
Conforme os dados assinalam, a dinâmica intermunicipal exerceu impactos nas políticas públicas de saúde locais e intermunicipais. Fez com que a lógica da procura por serviços fosse orientada sem observação das divisas municipais, pela inexistência de hospitais em todas as cidades da RMGV ou do serviço básico/especializado necessário. Comum nos grandes aglomerados urbanos, o estudo desse fenômeno auxilia na compreensão dos gestores das políticas públicas para que adotem medidas atenuantes da dinâmica e que, efetivamente, assegurem a oferta de serviços públicos de saúde no âmbito do SUS.
Considerações Finais
Há aproximadamente uma década surgem os sinais de esgotamento do modelo de municipalização das políticas públicas de saúde. Preconizado pela Constituição Federal de 1988, esse modelo foi importante na primeira década de estruturação do SUS. Porém a própria dinâmica do atendimento e as reais necessidades da população, no que se refere ao atendimento hospitalar, forçaram a inclusão do tema da regionalização na agenda da organização das políticas públicas. De acordo com (Barreto Jr. 2005bBARRETO JR., I. F. Aspectos históricos e normativos da política pública de saúde no Brasil. FMU: Direito, São Paulo, v. 20, n. 28, p. 126-135, 2005b.), foi possível verificar que o processo de regulação do sistema de saúde brasileiro - entre a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e o final da década de 1990 - foi fortemente orientado para a descentralização da política através da municipalização das ações e dos serviços de saúde. Exitoso em princípio, o processo de municipalização passou a apresentar alguns limites e restrições, ao final da década, em especial naquilo que se refere à organização da atenção dos serviços regionais, de referência intermunicipal e de alta complexidade. Monika Dowbor também aborda aspectos do esgotamento do modelo de municipalização das políticas de saúde, ao salientar que:
Em resumo, a implementação do SUS, que se processou primordialmente pela municipalização da atenção básica marcada fortemente pela adoção de programas federais desse nível de atenção, foi conduzida no nível federal pelo MS em processo de negociação com a instância de negociação intergovernamental na qual estavam presentes as organizações de secretários municipais e estaduais de saúde. [...] O jogo de barganhas incluiu o desenho factível e os incentivos financeiros para adoção da atenção básica pelos municípios que o fizeram, adotando maciçamente programas federais desse nível de atenção. Se a demanda pela municipalização do SUS englobava diversos atores do setor, a adoção e massificação dos programas federais de atenção básica não absorveram muitas energias dos participantes nas Conferências Nacionais de Saúde e no Conselho Nacional de Saúde. [...] As duas conferências realizadas na década de 2000 (nona e décima) avaliaram o Pasf e o Pacs como uma alternativa de atenção básica e detalharam com mais cuidado as recomendações, sem, no entanto, refutar ou endossar de forma decisiva a estratégia. A atenção dedicada pelo Conselho Nacional de Saúde aos programas é quase inexistente quando se analisam as principais resoluções no intervalo de 1992 a 2007: a questão do PSF aparece uma única vez, referindo-se ao apoio do CNS para a implementação do PSF e Pacs no distrito federal (CNS, 2007). Para o setor privado tradicional, por sua vez, fornecedor dos serviços hospitalares, a discussão da atenção básica não representou a priori possibilidades de atuação. (Dowbor, 2009DOWBOR, M. Da inflexão pré-constitucional ao SUS municipalizado. Lua Nova, São Paulo, n. 78, p. 185-222, set. 2009., p. 212-214).
Dentre os principais aspectos e inovações advindas do processo de descentralização das políticas públicas, destaca-se a regionalização dos sistemas como estratégia de hierarquização dos serviços de saúde e de busca de maior equidade, que se fundamenta na configuração de sistemas funcionais e resolutivos de assistência à saúde, por meio da organização dos territórios estaduais em regiões/microrregiões e módulos assistenciais; a conformação de redes hierarquizadas de serviços; o estabelecimento de mecanismos e fluxos de referência e contrarreferência intermunicipais, objetivando garantir a integralidade da assistência e o acesso da população aos serviços e ações de saúde de acordo com suas necessidades.
O que se verificou, neste artigo, foi a formação de uma rede determinada pela oferta dos serviços de saúde concentrada nos municípios-polo de Vitória e Vila Velha, e não pautada por uma racionalidade que distribua os hospitais de forma mais equânime entre os municípios da RMGV. Essa hipótese é corroborada pelo fato de o maior deslocamento estar concentrado nas cidades com grandes contingentes populacionais e escassez de serviços públicos. A lógica de organização dos serviços de saúde não exige, necessariamente, a existência de hospitais em todas as cidades, desde que as referências regionais sejam acessíveis e claramente definidas. Mas no caso da RMGV, há um provável desequilíbrio na acentuada evasão de internações de crianças, adolescentes e pessoas com mais de 50 anos. Para os primeiros grupos, parte das internações exige equipamentos mais sofisticados, como os tratamentos oncológicos ou transplantes, e a oferta poderia ser mais bem distribuída. No último grupo, a transformação nos perfis de morbidade, provocada pelo envelhecimento populacional, exigirá um aumento da oferta pública de leitos para responder à elevação esperada da demanda. E, em todas as situações, a estrutura da atenção básica deverá estar organizada para servir como porta de entrada do sistema de saúde, referenciar o atendimento e atenuar as desigualdades intermunicipais.
- BARRETO JR, I. F. Poder local e política: uma análise: a saúde como lócus de embate na cidade de Santos - SP. 2005. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2005a.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2015
Histórico
- Recebido
09 Fev 2015 - Aceito
13 Mar 2015