Avaliação de resultados da atenção aos agravos cardiovasculares como traçador do princípio de integralidade11 Projeto financiado pela Fapesp, processo número 2010/16682-5

Lucieli Dias Pedreschi Chaves Braz José de Jesus Janise Braga Barros Ferreira Priscila Balderrama Oswaldo Yoshimi Tanaka Sobre os autores

Resumos

Avaliar a articulação dos níveis de atenção aos agravos cardiovasculares na região de Ribeirão Preto-SP-BR. Pesquisa avaliativa utilizando dados secundários do Ministério da Saúde-BR. Foram analisados todos os procedimentos ambulatoriais e hospitalares relativos aos agravos cardiovasculares, atendidos da atenção básica até hospitalar, em 26 municípios, no período de 2000-2010. Para análise foram utilizadas séries temporais tendo como pressuposto organização regional de sistemas de saúde. A produção varia no período, com incremento na atenção ambulatorial e internações cirúrgicas, diminuição de internações clínicas. Há oferta desigual de serviços nos municípios, os menores concentram eletrocardiogramas e internações clínicas. Exames diagnósticos de maior complexidade e internações cirúrgicas são realizados predominantemente no município-polo. A avaliação de serviços de saúde utilizando agravos cardiovasculares como condição traçadora mostrou-se adequada, evidenciou articulação entre os níveis de atenção no sistema regional de saúde, que permite inferir nesse cenário a regionalização e favorece a integralidade da atenção em sua dimensão horizontal.

Avaliação em Saúde; Gestão em Saúde; Assistência Integral à Saúde


Contextualizando o problema

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política pública prevista na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.). Estabelece o reordenamento dos serviços e ações de saúde, embasado em princípios filosóficos e organizativos.

A conquista dos princípios da universalidade, integralidade e equidade tem sido dificultada porque a implantação da regionalização ainda é precária, havendo o risco de o sistema descentralizado atingir a universalidade sem integralidade, ou seja, viabilizar o atendimento básico universal a todo cidadão sem estruturar cobertura suficiente e adequada de serviços especializados (Barata; Tanaka; Mendes, 2004BARATA, L. R. B.; TANAKA, O. Y.; MENDES, J. D. V. Por um processo de descentralização que consolide os princípios do Sistema Único de Saúde. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 15-24, 2004.).

A integralidade pode ser analisada em duas dimensões: vertical, que inclui a visão do ser humano como um todo, único, indivisível e, horizontal, que se constitui em um conjunto de ações, em diferentes campos e níveis de atenção, do primário ao quaternário; é um norteador da mudança do modelo de atenção à saúde, principalmente nos grandes conglomerados urbanos (Carvalho, 2006CARVALHO, G. Os governos trincam e truncam o conceito da integralidade. RADIS Comunicação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 49, p. 16, set. 2006.). Esse princípio também pode ser abordado em duas outras dimensões: uma macro que inclui o conjunto de serviços ofertados pelos sistemas públicos de saúde aos cidadãos e uma micro, englobando a articulação entre ações preventivas e assistenciais possibilitando uma apreensão e resolução das necessidades das pessoas (Viegas; Penna, 2013VIEGAS, S. M. F.; PENNA, C. M. M. O SUS é universal, mas vivemos de cotas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 181-190, 2013.).

A abrangência de concepções atribuídas à integralidade caracteriza a sua relevância na operacionalização do SUS, parece convergir para a integralidade do cuidado, considerando aspectos de oferta, organização e articulação de diferentes atores e serviços de saúde (Brito-Silva; Bezerra; Tanaka, 2012BRITO-SILVA, K.; BEZERRA, A. F. B.; TANAKA, O. Y. Direito à saúde e integralidade: uma discussão sobre os desafios e caminhos para sua efetivação. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 249-260, 2012.). Tal situação, remete à ideia de redes assistenciais e, nesse contexto, a regionalização favorece a organização das ações e serviços de saúde, em uma região, visando promover a integralidade da atenção, a racionalização dos gastos, a otimização dos recursos e a equidade, na perspectiva de garantia do direito universal à saúde (Ferreira et al., 2011FERREIRA, J. B. B. et al. O processo de descentralização e regionalização da saúde no estado de São Paulo. In: IBAÑEZ, N.; ELIAS, P. E. M.; SEIXAS, P. H. D. (Org.). Política e gestão pública em saúde. São Paulo: Hucitec, 2011. p. 731-761.).

Nessa perspectiva, justifica-se a utilização da avaliação em saúde como instrumento da gestão que tem potencial de propiciar uma análise mais objetiva e subsidiar os tomadores de decisão visando identificar alternativas mais efetivas de articulação dos diferentes níveis de atenção do sistema de saúde.

Os traçadores constituem-se em referencial utilizado na avaliação da qualidade e de acesso a um serviço ou rede de serviços de saúde. A técnica de traçadores, preconizada por Kessner, está fundamentada na ideia de que a partir da avaliação da assistência prestada a um conjunto de determinadas patologias, em que se conhece a evolução do processo saúde-doença e se disponha de tecnologia de intervenção comprovada, pode-se inferir a qualidade da atenção à saúde em geral, incluindo o acesso a níveis mais complexos do sistema. Os critérios propostos para a seleção de traçadores são: evento de alta frequência, com diagnóstico e evolução conhecida, medidas preventivas e terapias eficazes e bem definidas (Kessner et al., 1992KESSNER, D. M. et al. Evaluación de la calidad de la salud por el método de los procesos trazadores. In: ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. Investigaciónes sobre servicios de salud: una antología. Washington, DC, 1992. p. 555-563. (OPS. Publicación Científica, 534).).

Para (Silva et al. 2010SILVA, K. L. et al. Home care as change of the technical-assistance model. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 166-176, 2010.), pode-se considerar traçadores casos representativos do perfil de um serviço, que permitem analisar os modos como se efetivam, na prática, processos de trabalho complexos. Nesse sentido, mostra-se um referencial pertinente considerando a complexidade de sistemas de saúde. Para (Samico et al. 2010SAMICO, I. et al. (Org.). Avaliação em saúde: bases conceituais e operacionais. Rio de Janeiro: MedBook, 2010.), é possível adaptar a utilização dessa técnica para avaliação de programas e sistemas de saúde mediante a seleção de marcadores que podem refletir o funcionamento deles.

Cabe destacar a opção por fazer uma aproximação da avaliação da integralidade utilizando a complementaridade tecnológica, na perspectiva do acesso a diferentes níveis do sistema de saúde como possibilidade de aumentar a capacidade de diagnóstico e tratamento, assim, esse estudo não tem a abordagem de avaliação da qualidade, que pode vir a ser objeto de continuidade dessa investigação, no futuro.

O emprego da abordagem de Donabedian de estrutura-processo e resultado tem sido aprimorada no sentido de uma utilização mais objetiva e direcionadora da tomada de decisão. Neste sentido adota-se a proposta de priorizar a análise no processo que representa a interação com o usuário que permite relacionar diretamente com os resultados e, em realidade, retrata de forma clara o uso da estrutura existente, o que potencializa a utilização de traçadoras na avaliação de serviços e sistemas de saúde.

Com base nesses critérios, foi selecionado para este estudo, como traçador, os agravos cardiovasculares que representam problema mundial e requerem acesso à assistência integral.

Na Região das Américas, ocorrem 3,9 milhões de mortes anualmente, sendo que 75% do total de mortes na Região são decorrentes de agravos cardiovasculares. Nos Estados Unidos, uma em cada cinco pessoas apresenta uma doença crônica não transmissível, incluindo os agravos cardiovasculares e a previsão do aumento para toda a América é de 42,4% até o ano 2030, se o aumento do número de casos continuar na proporção atual (OPAS, 2011OPAS - ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. Enfermedades no transmissibilies en las Américas: construyamos un futuro más saludable. Washington, DC, 2011.). A doença cardíaca isquêmica e o acidente vascular cerebral são as duas principais causas de mortalidade em todo o mundo, correspondendo, respectivamente, a 12,9 e 11,4% do total de óbitos no mundo, no ano de 2011 (WHO, 2013WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The 10 leading causes of death in the world, 2000 and 2011. Fact sheet nº 310, Updately July 2013. Disponível em: <http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs310/en/>. Acesso em: 12 maio 2014.
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).

Em 2005, no Brasil, as principais causas de morte foram em primeiro lugar as doenças do aparelho circulatório, em segundo lugar as neoplasias e, em terceiro lugar, as causas externas, havendo variações segundo a faixa etária, gênero e regiões do país (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Perfil de mortalidade do brasileiro. Brasília, DF, 2008. (Saúde Brasil 2007: uma análise da situação de saúde).).

No Brasil, esse grupo de doenças é responsável por 72% da mortalidade, além de ser mais prevalentes entre as pessoas de baixa renda, reflete os efeitos negativos da globalização, da urbanização rápida, da vida sedentária e da alimentação com alto teor calórico e do marketing que estimula o uso do tabaco e do álcool (Malta, 2014MALTA, D. C. Doenças crônicas não transmissíveis, um grande desafio da sociedade contemporânea. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 4, 2014.).

Desde 2004, o Ministério da Saúde do Brasil instituiu a Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade. Tal política se operacionaliza, em todo território nacional, por meio da organização e implantação de redes regionalizadas de atenção cardiovascular, com vistas a oferecer condições técnicas, instalações físicas, equipamentos e recursos humanos adequados à prestação de assistência especializada e humanizada a portadores de patologias cardiovasculares, bem como desenvolver forte articulação e integração com o sistema local e regional de atenção à saúde (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1169, de 15 de junho de 2004. Institui a Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 jun. 2004. Seção 1, p. 57. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/portaria_1169_ac.htm>. Acesso em: 9 set. 2012.
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).

Sendo assim, a magnitude dos agravos cardiovasculares no contexto mundial atual e considerando as expectativas de aumento nos próximos anos, torna-se relevante a análise desses em sistemas universalistas, como o brasileiro. As iniciativas implementadas no país, visando o princípio da integralidade, por meio da articulação entre os diferentes níveis de atenção, envolvendo as distintas esferas de governo, permitem aprofundar o estudo de sistemas regionais de saúde. Nesse sentido, embora ainda em consolidação, experiências exitosas do sistema de saúde brasileiro podem trazer subsídios para o contexto de sistema de saúde de outros países, particularmente no tocante à organização de sistemas regionais de saúde, na busca da otimização e racionalização de recursos, com vistas a atingir a integralidade da atenção.

A relevância da atenção aos agravos cardiovasculares nos sistemas de saúde, a importância da utilização de traçadores para avaliação de serviços de saúde e a representação dos agravos cardiovasculares no trabalho dos profissionais de saúde justificam a realização desta investigação.

O presente estudo teve como objetivo avaliar a atenção aos agravos cardiovasculares, como traçador de resultados da articulação dos diferentes níveis de densidade tecnológica existentes no sistema regional de saúde.

Material e método

Trata-se de pesquisa avaliativa que teve como foco a análise da atenção prestada tendo como base a produção de exames diagnósticos e internações aos agravos cardiovasculares na região de abrangência do Departamento Regional de Saúde XIII (DRS-XIII).

O DRS-XIII abrange 26 municípios situados na Região Nordeste do Estado de São Paulo, Brasil, que totalizam aproximadamente 1,3 milhões de habitantes (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. DATASUS: residentes por município. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://www.datasus.gov.br>. Acesso em: 16 jun. 2014.
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). Do ponto de vista de gestão em saúde, os municípios são integralmente responsáveis pela atenção básica, desenvolvendo ações gerenciais, assistenciais, preventivas, de promoção e de recuperação da saúde, tanto individuais quanto coletivas em unidades próprias, complementado pela atenção de nível secundário e terciário. Em cada município, a depender das condições organizacionais e de estrutura dos serviços de saúde, devem garantir acesso a serviços próprios, conveniados e contratados de atenção especializada e de maior complexidade envolvendo os procedimentos diagnósticos, terapêuticos e de internação hospitalar.

No território do DRS-XIII, os municípios estão organizados em três regiões de saúde (RS) que contam com seus respectivos Colegiados de Gestão Regional (CGR), a saber: Aquífero Guarani (composto por dez municípios que totalizam 807.106 habitantes e o município de maior porte é Ribeirão Preto), Horizonte Verde (composto por nove municípios que totalizam 393.431 habitantes e o maior município é Sertãozinho) e Vale das Cachoeiras (composto por sete municípios, com o total de 127.452 habitantes e Batatais é o maior município).

A oferta de serviços de atenção aos agravos cardiovasculares é diferenciada em cada RS, sendo que o eletrocardiograma e o ecocardiograma estão disponíveis em todas as regiões, os demais exames diagnósticos são realizados apenas na RS Aquífero Guarani, especificamente no município de Ribeirão Preto. Há uma pactuação entre os gestores, baseado em planejamento e programação assistencial que define mecanismo de referência e contrarreferência, garantindo o acesso regulado aos serviços de saúde de distinta complexidade dentro da RS.

As principais fontes de dados foram os dados secundários disponibilizados pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS), pelo DRS-XIII, particularmente oriundos do Sistema de Informação Ambulatorial (SIA-SUS) e Sistema de Informação Hospitalar (SIH-SUS) bem como os informes técnicos e documentos disponibilizados pelos gestores municipais e estaduais.

Foram analisados os dados referentes ao período compreendido de janeiro de 2000 a dezembro de 2010. Foi analisada a totalidade dos procedimentos ambulatoriais e hospitalares de atenção aos agravos cardiovasculares, produzidos nos municípios do DRS-XIII e registrados SIA-SUS e SIH-SUS, que totalizam 774.463 exames diagnósticos e 74.375 internações.

Foram analisadas variáveis relativas à atenção ambulatorial e hospitalar permitindo focar as ações destinadas especificamente aos agravos cardiovasculares tendo como eixo norteador a integralidade da atenção. As variáveis selecionadas para análise do atendimento ambulatorial foram: local de atendimento, número de procedimentos (eletrocardiograma, ecocardiograma, teste ergométrico, Holter, monitorização ambulatorial da pressão arterial (Mapa), cateterismo cardíaco). As variáveis selecionadas para análise da internação hospitalar foram: local de atendimento, número de internações cirúrgicas em cardiologia e total de internações clínicas em cardiologia.

Os dados foram armazenados em planilhas do programa Microsoft Excel. A produção dos serviços de saúde do DRS-XIII foi agrupada segundo serviços ambulatoriais e de internação. Na análise dos dados foi utilizada estatística descritiva das variáveis estudadas, adotando-se frequências e porcentagens; a comparação entre as internações foi realizada com o teste de qui-quadrado, considerando-se como estatisticamente significativos os valores de p menores que 5% Em todos os procedimentos analisados, foram elaboradas séries temporais para identificação das tendências de cada uma e a relação entre estes procedimentos no período estudado.

Para melhor análise dos procedimentos, a relação entre esses e a racionalidade de utilização das tecnologias disponíveis foram construídas razões entre procedimentos que permitiram inferir a complementaridade da atenção necessária para o provimento da atenção integral aos agravos cardiovasculares e a consequente resposta institucional para o diagnóstico e acompanhamento desses agravos. O desenho de análise permitiu a reconstrução da lógica do cuidado baseado em dados empíricos concretos que possibilitou conhecer a efetividade das ações de saúde em um dado território.

A discussão foi desenvolvida a partir do referencial teórico adotado, qual seja, a organização regional de sistemas de saúde, na perspectiva da integralidade em saúde, em sua dimensão horizontal, com enfoque na avaliação da atenção aos agravos cardiovasculares como traçador de resultados da articulação dos diferentes níveis de atenção (Kessner et al., 1992KESSNER, D. M. et al. Evaluación de la calidad de la salud por el método de los procesos trazadores. In: ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. Investigaciónes sobre servicios de salud: una antología. Washington, DC, 1992. p. 555-563. (OPS. Publicación Científica, 534).).

O estudo foi desenvolvido de modo a garantir o cumprimento dos preceitos da Resolução 196/96 sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Foi aprovado Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo, sob o protocolo 1116/2010 e registrado no Sistema Nacional de Informação sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (Sisnep) sob n. 5730.0.000.153-09.

Resultados

No período estudado, a produção de exames diagnósticos apresentou tendência a crescimento que se intensificou a partir de 2008, no entanto foi possivel observar que as internações apresentaram maior crescimento entre os anos 2001 e 2004, portanto em periodo anterior ao incremento de exames diagnósticos na região.

Todos os exames realizados tiveram crescimento de 137% no período, passando de 52.467 em 2000 a 124.681, em 2010. Esse incremento foi observado desde aquele de menor complexidade - eletrocardiograma, até o cateterismo cardíaco, que é um exame complexo, indicando que houve ampliação da oferta de serviços (Tabela 1).

Tabela 1
Percentual de exames diagnósticos pelo SUS, em cardiologia, no DRS-XIII, segundo tipo de exame e ano, Ribeirão Preto, SP, 2000-2010

O incremento observado na atenção ambulatorial (Tabela 1) representa expressiva parcela do atendimento aos agravos cardiovasculares, no entanto, nem todas as demandas podem ser atendidas nessa modalidade de serviço de saúde. Esta maior oferta pode resultar a curto prazo em maior necessidade de suporte de atenção hospitalar tanto para casos de urgências quanto eletivos, em internações clínicas e cirúrgicas, na especialidade cardiologia.

No sentido de entender essa relação entre o atendimento ambulatorial e a internação hospitalar, na RS, no período, ocorreram 74.387 internações na especialidade cardiologia, sendo 19,8% em internações cirúrgicas e 80,2% de internações clínicas.

Para melhor análise das internações, foi estudado o incremento anual por tipo de internação. As internações clínicas tiveram maiores incrementos anuais principalmente na primeira metade da década, enquanto as internações cirúrgicas apresentaram tendência de incrementos durante todo o período estudado.

As internações foram analisadas em relação à população residente para uma análise mais apropriada desta oferta. Para tal fim, foram utilizados os dados populacionais dos censos de 2000 quando a população do DRS-XIII totalizava 1.134.864 habitantes, e de 2010, que somava 1.327.989 habitantes, desmembrando as internações em cardiologia clínica e cirúrgica.

A análise da relação entre população e internações clínicas e cirúrgicas (Tabela 2) evidencia que houve diminuição do percentual da população com internações clínicas e crescimento percentual da população com internações cirúrgicas, sendo esta diferença estatisticamente significativa com p=0,0000.

Tabela 2
Percentual da população com internações clínicas e internações cirúrgicas, em cardiologia, pelo SUS, no DRS-XIII, segundo ano. Ribeirão Preto, SP, 2000-2010

Considerando que a construção de redes deve favorecer a integralidade contemplando a assistência em todos os seus níveis de atenção, apresenta-se, aqui, a proporção entre exames diagnósticos e internações em cardiologia, realizada no período. Observa-se expressivo incremento na proporção de exames, evidenciando ampliação da atenção ambulatorial com apoio diagnóstico, desde os exames mais simples aos mais complexos. Tal situação pode indicar possíveis mudanças no modelo de atenção com oferta e utilização de procedimentos preventivos e diagnósticos. Por outro lado, é preciso enfatizar que a crescente incorporação tecnológica tem impacto na organização dos serviços de saúde e na produção de procedimentos, com consequente incremento de exames diagnósticos.

Comparando-se a proporção entre exames diagnósticos e o total de internações (Tabela 3) evidencia-se, no período, incremento da produção de exames em relação às internações; trata-se de situação que permite inferir que os usuários em atendimento ambulatorial estão tendo mais acesso a exames. Essa situação fica evidenciada ao se analisar os eletrocardiogramas que no ano 2000, correspondiam a 6,86 exames para uma internação e essa proporção avançou para 16,51 eletrocardiogramas para uma internação em 2010.

Tabela 3
Proporção entre exames diagnósticos e total de internações, em cardiologia, no DRS-XIII, pelo SUS, segundo exame e ano. Ribeirão Preto, SP, 2000-2010

O crescimento observado na proporção entre exames diagnósticos em relação às internações permite inferir que está sendo favorecido o acesso a procedimentos diagnósticos tornando potencialmente mais resolutiva e qualificada a atenção aos agravos cardiovasculares em nível ambulatorial.

Discussão

Avaliando-se a produção de exames diagnósticos e internações, na área de abrangência do DRS-XIII, utilizando como condição traçadora os agravos cardiovasculares, evidenciou-se a existência de articulação entre os níveis de atenção no sistema regional de saúde, permitindo inferir que, nesse cenário regional, a atenção à saúde é ofertada em uma perspectiva que favorece a integralidade, em sua dimensão horizontal. Cabe destacar que, considerando o acesso universal, a ampliação da oferta e cobertura de ações e serviços de saúde é essencial. Para (Brito-Silva, Bezerra e Tanaka 2012BRITO-SILVA, K.; BEZERRA, A. F. B.; TANAKA, O. Y. Direito à saúde e integralidade: uma discussão sobre os desafios e caminhos para sua efetivação. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 249-260, 2012.), as diferentes concepções acerca da integralidade contemplam, dentre outros, aspectos de oferta, organização e articulação entre serviços de saúde. Nesse sentido, a análise da produção de exames diagnósticos e internações pode ser considerada indicador de resultado da articulação entre os níveis de atenção. Entretanto, há que se avançar na perspectiva na construção da integralidade em sua dimensão vertical e da equidade.

A alta prevalência dos agravos cardiovasculares ao comprometer uma parcela significativa da população brasileira, ao ser utilizada como traçadora de resultados, mostra-se como uma estratégia metodológica adequada para avaliar a articulação dos diferentes níveis de atenção do sistema de saúde.

A utilização de traçadores, apesar de ainda ser incipiente, pode ser considerada uma das abordagens mais úteis para avaliar a atenção em saúde, por permitir a análise horizontal e sequencial do atendimento prestado, possibilitando a avaliação de serviços de saúde de forma integral (Tanaka; Espírito-Santo, 2008TANAKA, O. Y.; ESPÍRITO SANTO, A. C. G. Avaliação da qualidade da atenção básica utilizando a doença respiratória da infância como traçador, em um distrito sanitário do município de São Paulo. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 8, n. 3, p. 325-332, 2008.).

A realidade atual, e a perspectiva futura, é que os agravos cardiovasculares representem expressiva parcela da atenção à saúde nos próximos anos, justificando a necessidade de se analisar a organização do sistema locorregional de saúde para que as ações realizadas contemplem desde a promoção de saúde, prevenção das doenças, diagnóstico precoce, tratamento ambulatorial e hospitalar, bem como o acompanhamento adequado de casos.

Os resultados deste estudo, expresso pelas ações de atenção à saúde que permitem inferir acerca da articulação dos diferentes níveis de complexidade, evidenciam expressivo crescimento da produção de exames diagnósticos, indicando aumento da oferta de serviços que permitem o diagnóstico precoce e o monitoramento de usuários que já manifestam problemas cardiovasculares. Cabe destacar o importante crescimento da produção de eletrocardiogramas, exame de menor complexidade, que é capaz de diagnosticar/monitorar os problemas mais comuns na comunidade, indicando a melhoria de qualidade da atenção primária em saúde. Essa mesma preocupação é observada na Europa, em que há forte tendência à constituição de redes regionais de atenção, com o fortalecimento da atenção primária à saúde que funciona como porta de entrada dos sistemas de saúde. Essa função o legitima e fortalece na coordenação da atenção especializada, bem como de reversão de modelos hospitalocêntricos encontrados em alguns países (Erskine, 2006ERSKINE, J. Future vision of regional healthcare. In: KEKOMÄKI, M. et al. European Union, network for future regional healthcare. Durham: Durham University, 2006. p. 1.).

A articulação entre a atenção básica, a média e a alta complexidade são um importante desafio a ser vencido no Brasil. A criação do SUS impulsionou expressiva ampliação da cobertura de serviços com ênfase da oferta de atenção básica, que pressiona por ações de média e alta complexidade, ambulatorial e hospitalar. Estas constituem-se em expressivo elenco de ações e procedimentos relevantes e necessários para complementar a atenção básica, com vistas à garantia da resolubilidade e integralidade da atenção (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. DATASUS: residentes por município. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://www.datasus.gov.br>. Acesso em: 16 jun. 2014.
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).

O incremento observado da produção de exames diagnósticos pode decorrer da adoção de estratégias para favorecer o acesso dos usuários, promovendo o diagnóstico precoce de problemas. Além disso, pode refletir a oferta de serviços mais estruturados para atenção aos agravos cardiovasculares. A expansão da cobertura e acesso a serviços de saúde representam etapa importante na construção de sistemas de saúde. A garantia do acesso é a primeira resposta que deve ser dada pelo sistema de saúde, quando da sua busca pelo usuário e requer a implantação de estruturas sólidas de gestão envolvendo o planejamento, o controle, a regulação e a avaliação da assistência.

A expansão de estratégias de fortalecimento da atenção primária no SUS tem melhorado o acesso à atenção integral e contínua, constituindo-se em uma plataforma para a prevenção e gestão de doenças crônicas (Schmidt et al., 2011SCHMIDT, M. I. et al. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. The Lancet, Londres, v. 377, n. 9781, p. 1949-1961, 2011.). No entanto, a garantia de acesso pressupõe a remoção de obstáculos físicos, financeiros e outros para a utilização dos serviços disponíveis (Viacava et al., 2012VIACAVA, F. et al. Avaliação de desempenho de sistemas de saúde: um modelo de análise. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 921-934, 2012.).

Os resultados evidenciam que também houve crescimento na produção de exames de maior complexidade, dentre eles, o Holter, o Mapa e o cateterismo cardíaco, apontando que houve uma expansão da oferta de recursos para confirmação diagnóstica e\ou acompanhamento de casos. Esses exames requerem recursos humanos, materiais e equipamentos especializados. O fato de estarem disponíveis, em apenas um município da região, parece ser a condição adequada na perspectiva da economia de escala, com racionalização de recursos, mas que requer articulação regional que favoreça o acesso regulado, equitativo e oportuno, evitando-se a demanda reprimida. Esses exames de maior complexidade requerem a adoção de protocolos de indicação que deverão ser pactuados no sistema locorregional, na perspectiva de ordenar o acesso e de minimizar a realização de múltiplos exames diagnósticos sem adequada indicação clínica. Cabe destacar que, no Brasil, esses exames de alto custo e complexidade, na maioria das vezes, são realizados por prestadores privados conveniados/contratados que prestam serviços ao SUS.

A centralização de exames de maior complexidade em um município, observado no presente estudo, tem como vantagens: a racionalização de recursos humanos e materiais, o incremento do uso de equipamentos e materiais, em contrapartida requer a organização de fluxos de referência e contrarreferência que garantam o acesso do usuário aos exames. Cabe realçar que a otimização resultante da oferta de serviços de saúde de maior complexidade, em um município específico pode acarretar custo adicional ao usuário para acessar o serviço que nem sempre é contabilizado pelo sistema regional de saúde.

Dependendo do porte populacional do município, não é possível disponibilizar recursos que atendam todas as demandas de usuários. Nesse sentido, a construção de redes de atenção com abrangência regional contribui para o alcance da integralidade, continuidade do atendimento, equidade, eficácia clínica e sanitária e eficiência do sistema de serviços de saúde.

No processo de regionalização, é importante que sejam consideradas as diversas realidades dos territórios que têm desenhos bastante diferenciados do ponto de vista de necessidades e de disponibilidade de recursos, resultando, muitas vezes, em acessos difíceis e iníquos, com comprometimento da integralidade e da humanização do atendimento.

A constituição de redes regionalizadas e integradas de atenção é fator indispensável para a qualificação e a continuidade do cuidado à saúde, tem grande importância na superação de lacunas assistenciais, bem como na racionalização e otimização dos recursos assistenciais disponíveis (Silva, 2011SILVA, K. L. et al. Home care as change of the technical-assistance model. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 166-176, 2010.).

Entretanto, para (Lima et al. 2012LIMA, L. D. et al. Regionalização da saúde no Brasil. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012. p. 823-852. v. 1.), a fim de avançar nas questões relativas à regionalização, é preciso considerar questões e características territoriais/geográficas, o desenvolvimento econômico, as condições de organização e disponibilização de sistemas e serviços locais de saúde, a articulação/organização dos atores envolvidos, na perspectiva de estabelecer consensos.

O atual desafio do SUS reside em mapear as singularidades, avaliar potenciais e fragilidades desses cenários e, de um modo cooperativo e integrador de fazer a gestão, propor soluções locorregionais que contemplem as necessidades dos usuários, viabilizando e qualificando as regiões de saúde conforme preconizado pelo Decreto 7.508\11.

As iniciativas governamentais no sentido de avaliar o impacto dessas mudanças no sistema como um todo ainda são raras. Um sistema de avaliação de desempenho do SUS deveria considerar a sua concepção legal, a forma de sua implantação e os problemas de saúde priorizados, além de possibilitar avaliar em que medida seus objetivos estão sendo cumpridos (Viacava et al., 2004VIACAVA, F. et al. Uma metodologia de avaliação do desempenho do sistema de saúde brasileiro. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 711-724, 2004.).

A performance dos serviços de saúde está relacionada à estrutura do sistema de saúde, entendendo que seu funcionamento deveria garantir o atendimento das necessidades de saúde, considerados seus múltiplos determinantes. No processo de avaliação do desempenho desses sistemas, é preciso ponderar como condicionante fundamental o contexto político, social e econômico que permeia o funcionamento desses sistemas (Viacava et al., 2012VIACAVA, F. et al. Avaliação de desempenho de sistemas de saúde: um modelo de análise. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 921-934, 2012.).

O incremento da produção de exames em relação às internações, observado no presente estudo, sugere a necessidade de desenvolver novas investigações que possibilitem identificar a real repercussão no processo saúde doença dos agravos cardiovasculares. Será importante identificar se está centrado apenas na diagnose e terapia, ou se está havendo ampliação de intervenções de promoção de saúde e prevenção de comorbidades.

O incremento observado de internações cirúrgicas poderia estar retratando condições do paciente clínico com resposta inadequada à terapêutica medicamentosa, ou mesmo ao agravamento da patologia com necessidade de correção cirúrgica. Quanto à diminuição da internação clínica, poderia ser decorrência do fortalecimento da atenção ambulatorial especializada e resolutiva, diminuindo a necessidade de internação.

Por outro lado, há que se monitorar a atenção hospitalar para evitar a seleção da demanda por internações, uma vez que, de modo geral, as internações cirúrgicas são mais bem remuneradas que as internações clínicas.

Na Europa, a diminuição observada das internações hospitalares foi o resultado decorrente da conformação de redes de atenção à saúde, envolvendo o hospital, os serviços de atenção primária à saúde e os cuidados especializados secundários. O centro dessa mudança está na expansão do escopo das ações da atenção primária à saúde, em função do desenvolvimento de tecnologias de menor densidade e com preços relativamente menores (Edwards; Hensher; Werneke, 1998EDWARDS, N.; HENSHER, M.; WERNEKE, U. Changing hospital systems. In: SALTMAN, R. B.; FIGUERAS, J.; SAKELLARIDES, C. (Ed.). Critical challenges for health care reform in Europe. Buckingham: Open University Press, 1998. p. 236-260.).

A concepção de redes de atenção com foco nos agravos cardiovasculares requer garantia do acesso aos serviços de saúde desde a atenção básica até as intervenções de alta complexidade, realizadas em nível ambulatorial e/ou hospitalar. A expansão do acesso a serviços diagnósticos tem implicações para o cuidado do usuário e para o próprio sistema de saúde, modificando o perfil de utilização dos serviços de saúde, abrangendo as dimensões vertical e horizontal da integralidade.

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    » http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs310/en/

  • 1
    Projeto financiado pela Fapesp, processo número 2010/16682-5

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2013
  • Revisado
    10 Jun 2014
  • Aceito
    30 Jun 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br