Que desejo é esse? Decisões reprodutivas entre mulheres vivendo com HIV/Aids sob o olhar da psicanálise11 Zihlmann, K. F. recebeu bolsa de mestrado pelo CNPq para a realização desta pesquisa.

Karina Franco Zihlmann Augusta Thereza de Alvarenga Sobre os autores

Resumos

Realizou-se um estudo qualitativo para conhecer como mulheres vivendo com HIV/Aids atribuem sentido às suas decisões reprodutivas, bem como caracterizar seu desejo inconsciente. Foram realizadas entrevistas em profundidade com 15 mulheres adultas, atendidas em um hospital especializado em doenças infecciosas e em uma organização não-governamental. Foi construído um relato sobre a trajetória de vida das entrevistadas com base na técnica da história oral do tipo temática e na perspectiva teórica psicanalítica. Referiu-se aos conceitos de identificação imaginária e identificação simbólica para explicitar aspectos do desejo inconsciente. As falas das entrevistadas mostraram contradições e suas decisões reprodutivas são pautadas por uma lógica inconsciente, sendo que a gravidez, nesse contexto, tem a função de restauração narcísica cujo objetivo é gerar um rebento soronegativo. Outra contradição é que as entrevistadas avaliam as decisões reprodutivas de outras mulheres soropositivas como uma "loucura" ou "irresponsabilidade", enquanto justificam suas próprias decisões procurando se desresponsabilizar por seu desejo inconsciente. Assim, uma contribuição da Psicanálise para o campo da saúde pública é a inclusão das idiossincrasias na relação do sujeito com o outro e, deste modo, viabilizar o resgate da singularidade do desejo inconsciente dos sujeitos, além de permitir uma reflexão sobre a interferência dessas questões no cuidado integral, o que, afinal, pode interferir no acolhimento das necessidades complexas de mulheres vivendo com HIV/Aids.

HIV/Aids; Saúde Sexual e Reprodutiva; Psicanálise Lacaniana; Saúde Pública


Sobre a pesquisa, seus objetivos e procedimentos metodológicos: caminhos percorridos para a problematização do desejo como questão investigativa

A partir da pandemia da HIV/Aids foi possível compreender que questões sobre sexualidade e reprodução humana são problemas complexos que merecem ações e intervenções específicas em termos de políticas públicas de enfrentamento (WHO, 2006WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Sexual and reproductive health of women living with HIV/AIDS: guidelines on care, treatment and support for women living with HIV/AIDS and their children in resource-constrained settings. Geneva, 2006. Disponível em: <http://www.who.int/hiv/pub/guidelines/sexualreproductivehealth.pdf> Acesso em: 10 ago. 2013.
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; Kennedy et al., 2010KENNEDY, C. E. et al. Linking sexual and reproductive health and HIV interventions: a systematic review. Journal of the International AIDS Society, Geneve, v. 13, n. 26, p. 1-10, 2010.; Gay et al., 2011GAY, J. et al. What works to meet the sexual and reproductive health needs of women living with HIV/AIDS. Journal of the International AIDS Society, Geneve, v. 14, n. 56, p. 1-10, 2011.).

No princípio da epidemia de HIV/Aids, as poucas as mulheres infectadas pelo HIV foram desencorajadas a engravidar e, quando o faziam, eram fortemente censuradas pela equipe de saúde, o que muitas vezes as levava ao abortamento ou abandono do tratamento médico (Berer; Ray, 1997BERER, M.; RAY, S. Mulheres e HIV/AIDS: um livro sobre recursos internacionais: informação, ação e recursos relativos às mulheres HIV/AIDS, saúde reprodutiva e relações sexuais. São Paulo: Brasiliense, 1997.). Diante do fenômeno de feminização da epidemia de HIV/Aids, o foco do trabalho em saúde pública mudou e, assim, as decisões reprodutivas dessas mulheres tornaram-se cruciais, pois têm como consequência lógica o risco da transmissão materno-infantil (TMI) do HIV e a expansão da epidemia em nosso meio (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST/Aids. Recomendações para a profilaxia da transmissão vertical do HIV e terapia anti-retroviral em gestantes. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestante2.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2013.
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; Myer; Morroni; El-Sadr, 2005MYER, L.; MORRONI, C.; EL-SADR, W. M. Reproductive decisions in HIV-infected individuals. The Lancet, Oxford, v. 366, n. 9487, p. 698-700, 2005.; Gonçalves et al., 2009GONÇALVES, T. R. et al. Vida reprodutiva de pessoas vivendo com HIV/AIDS: revisando a literatura. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 21, n. 2, p. 223-232, 2009.).

Várias ações de reconhecimento internacional quanto ao enfrentamento dessa epidemia foram implantadas no Brasil (Barreto et al., 2011BARRETO, M. et al. Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: social and environmental context, policies, interventions, and research needs. Lancet, London, v. 377, n. 9780, p. 1877-1889, 2011.), como por exemplo, o acesso universal aos medicamentos antirretrovirais a todos os pacientes com HIV/Aids (Berkman et al., 2005BERKMAN, A. et al. A critical analysis of the Brazilian response to HIV/Aids: lessons for controlling and mitigating the epidemic in developing countries. American Journal of Public Health, Washington, DC, v. 95, n. 7, p. 1162-1172, 2005.), bem como protocolos para a diminuição do risco da TMI do HIV (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST/Aids. Recomendações para a profilaxia da transmissão vertical do HIV e terapia anti-retroviral em gestantes. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestante2.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2013.
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).

Apesar desse cenário favorável, alguns trabalhos revelaram que havia, por parte das equipes de saúde, indicações de violação de direitos reprodutivos como, por exemplo, a facilitação do acesso à esterilização (laqueadura) em mulheres vivendo com HIV/Aids (Hopkins et al., 2005HOPKINS, K. et al. The impact of health care providers on female sterilization among HIV-positive women in Brazil. Social Science & Medicine, Oxford, v. 61, n. 3, p. 541-554, 2005.), ou ainda, um estigma antifamília que explicitaria uma tendência por parte da equipe de saúde à crítica de pacientes que decidiam ter filhos (Oliveira; França-Junior, 2003OLIVEIRA, L.; FRANÇA-JUNIOR, I. Reproductive demands and health care for people living with HIV/Aids: limits and possibilities within the context of specialized health care. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, p. 315-323, 2003. Supplement 2.). Essas pesquisas revelam que esse assunto é, ainda, controverso entre os profissionais da saúde e que as decisões reprodutivas dessas mulheres podem envolver questões que não foram completamente investigadas.

As primeiras pesquisas sobre decisões reprodutivas entre mulheres vivendo com HIV/Aids abordaram a decisão de ter ou não filhos sob um ponto de vista objetivo do desejo manifesto, procurando investigar se haveria a vontade de ter filhos por parte dessas mulheres. Observou-se que a condição sorológica das mulheres, ou, mesmo, o fato de terem desenvolvido Aids, não as impedia de engravidar ou desejar ter um filho (Sowell et al., 2002SOWELL, R. L. et al. Factors influencing intent to get pregnant in HIV-infected women living in the southern USA. Aids Care, London, v. 14; n. 2, p. 181-191, 2002.; Santos et al., 2002SANTOS, N. J. S. et al. Mulheres HIV positivas, reprodução e sexualidade. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, p. 4-11, 2002. Suplemento 4.; Silva; Alvarenga; Ayres, 2006SILVA, N. E. K.;; ALVARENGA, A. T. AYRES, J. R. C. M. Aids e gravidez: os sentidos do risco e o desafio do cuidado. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 3, p. 474-481, 2006.). O trabalho de Sowell et al. (2002)SOWELL, R. L. et al. Factors influencing intent to get pregnant in HIV-infected women living in the southern USA. Aids Care, London, v. 14; n. 2, p. 181-191, 2002. refere que as decisões reprodutivas das mulheres são baseadas em vários fatores relacionados com circunstâncias de vida, mas destaca que as mulheres parecem ter maior orientação para adotar papéis de gênero tradicionais. Santos et al. (2002)SANTOS, N. J. S. et al. Mulheres HIV positivas, reprodução e sexualidade. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, p. 4-11, 2002. Suplemento 4. também observaram uma associação positiva entre pensar em ter filhos e ter motivação para lutar pela vida e engajar-se no tratamento.

Diante do diagnóstico da infecção pelo HIV, a mulher pode se ver diante de constrangimentos como, por exemplo, enfrentar desaprovação social e de profissionais em caso de gravidez; impossibilidade de amamentar como um primeiro "sintoma" que evidencia o HIV ao olhar do outro (Campos, 1998CAMPOS, R. Aids: trajetórias afetivo-sexuais das mulheres. In: BRUSCHINI, C. Horizontes plurais: novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 85-109.); a incerteza de que o(s) filho(s) gerado(s) esteja(m) infectado(s) (Tunala, 2002TUNALA, L. Fontes cotidianas de estresse entre mulheres portadoras do HIV. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, p. 24-31, 2002. Suplemento 4.), entre outros. Por outro lado, tanto Campos (1998)CAMPOS, R. Aids: trajetórias afetivo-sexuais das mulheres. In: BRUSCHINI, C. Horizontes plurais: novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 85-109. quanto Knauth (1999)KNAUTH, D. R. Subjetividade feminina e soropositividade. In: BARBOSA, R.; PARKER, R. (Org). Sexualidades brasileiras: direitos, identidades e poder. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 121-136. destacam que o status de mãe parece restaurar a identidade dessas mulheres como "mulheres de respeito" ou "vítimas da epidemia".

Outro estudo que investigou as decisões reprodutivas de pacientes soropositivos mostrou que, ao contrário de outros estudos realizados em países em desenvolvimento, o desejo de ter filhos foi mais frequente entre homens (Paiva et al., 2007PAIVA, V. et al. Desire to have children: gender and reproductive rights of men and women living with HIV: a challenge to health care in Brazil. AIDS Patient care and STDs, Larchmont, v. 21, n. 4, p. 268-277, 2007.), sendo que os fatores independentemente associados ao desejo de ter filhos foram: sexo masculino, menor idade, não ter filhos, viver com um ou dois filhos e ter parceria heterossexual (Paiva et al., 2003PAIVA, V. et al. The right to love: the desire for parenthood among men living with HIV. Reproductive Health Matters, Londres, v. 11, n. 22, p. 91-100, 2003.).

Com o avanço do enfrentamento do problema da TMI do HIV, tornou-se evidente que a questão do desejo de gravidez e maternidade entre essas mulheres envolve mais que uma decisão considerada objetiva, ou seja, essas pesquisas trouxeram avanços para abordar esse problema, mas não o esgotaram. Dessa forma, um problema complexo como a questão do desejo da gravidez em mulheres vivendo com HIV/Aids é, não apenas objeto para um campo de saber, mas envolve um desafio de articulações teórico-práticas que o campo da saúde pública tem sido convocado a responder (Alvarenga, 1994ALVARENGA, A. T. A saúde pública como campo de investigação interdisciplinar e a questão metodológica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 3, n. 2, p. 22-41, 1994.).

Se, num primeiro momento, as pesquisas constataram que, de fato, as mulheres vivendo com HIV/Aids desejam ter um filho, uma questão relevante que se apresenta é o que mobilizaria esse desejo e por fim, que desejo é esse? A questão fundamental que se apresenta é a de saber se é possível equivaler o desejo de gravidez à vontade de engravidar.

Sobre esse assunto, há uma vasta e relevante literatura sobre saúde sexual e reprodutiva na perspectiva de gênero, feminista ou da Psicologia Social. Reconhecendo a importância desse campo, a pesquisa realizada propõe, no entanto, um outro olhar. Nesse sentido, a Psicanálise pode trazer contribuições, pois apresenta uma teoria epistemológica própria para compreender a questão do desejo e, embora haja vários estudos envolvendo a questão da TMI do HIV, pouco se investigou sobre os aspectos inconscientes de mulheres que se veem diante de uma decisão reprodutiva nesse contexto. Considerando esse quadro foram definidos os objetivos da pesquisa. O presente relato é parte de uma investigação mais ampla realizada por Zihlmann (2005)ZIHLMANN, K. F. A questão do desejo da gravidez e da maternidade em mulheres vivendo com HIV/Aids, na perspectiva psicanalítica. 2005. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. e o objetivo do estudo foi conhecer como as mulheres vivendo com HIV/Aids percebem e atribuem sentido às suas decisões reprodutivas, bem como caracterizar diferentes formas de manifestação do desejo inconsciente, a partir da psicanálise lacaniana.

Para compreender uma decisão complexa como a decisão de ter um filho, sobretudo na condição tão particular da mulher vivendo com HIV/Aids, realizou-se um estudo qualitativo com 15 mulheres soropositivas para o HIV, maiores de 18 anos, grávidas ou que tiveram filhos após a descoberta da infecção pelo HIV. Tratam-se de mulheres que fazem seguimento em um ambulatório ou em um hospital especializado em doenças infecciosas e também com mulheres frequentadoras de uma organização não- governamental de apoio a gestantes soropositivas para o HIV, ambas instituições localizadas na cidade de São Paulo. Foram realizadas entrevistas em profundidade com um roteiro do tipo temático (Meihy; Holanda, 2011MEIHY, J. C. S. B.; HOLANDA, F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2011.) incluindo questões sobre caracterização sociodemográfica, percepção da infecção e da doença, questões sobre sexualidade e decisões reprodutivas. As entrevistadas foram selecionadas segundo o critério de conveniência intencional (Turato, 2003TURATO, E. R. Tratado de metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes, 2003.), ou seja, elas atendiam aos objetivos da pesquisa independentemente de seu estadiamento clínico e condição socioeconômica.

Para a análise dos dados foi construído um relato sobre a trajetória de vida de cada uma das entrevistadas tendo como referência a técnica da história oral do tipo temática (Meihy; Holanda, 2011MEIHY, J. C. S. B.; HOLANDA, F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2011.). Além disso, mediante a explicitação do conceito de desejo inconsciente e de feminilidade, no recorte teórico psicanalítico, referiu-se à contribuição de Zizek (1992)ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. sobre a leitura da teoria lacaniana do desejo, procurando reconhecer nos discursos das entrevistadas os conceitos de identificação imaginária [i(a)] e identificação simbólica [I(A)] como operadores lógicos de análise. O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética das instituições envolvidas e os sujeitos assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que obedece fielmente à resolução do CNS 196/96.

Os sujeitos da pesquisa e suas trajetórias de vida

Com o intuito de caracterizar as mulheres entrevistadas, o Quadro 1 apresenta um resumo com os principais dados das entrevistas, ilustrando os discursos dos sujeitos da pesquisa. Os discursos revelaram que, no geral, em função da gravidez, as mulheres reorganizaram sua vida pessoal, obtiveram suportes familiares e institucionais adicionais, além de acolhimento por parte da equipe de atendimento especializado.

Quadro 1
Caracterização resumida das entrevistas com mulheres vivendo com HIV/Aids. São Paulo, 2005

Em termos de uma caracterização geral do grupo pesquisado podemos dizer que as mulheres entrevistadas tinham entre 18 e 37 anos de idade (média de 27 anos), a maioria afirmou estar em "união estável" (60% das entrevistadas), sendo que nenhuma das entrevistadas declarou ter se casado oficialmente. Apenas 13% das entrevistadas afirmaram que seu atual relacionamento tinha menos de 12 meses, sendo que a maioria declarou um tempo de relacionamento entre um e cinco anos. A maioria das entrevistadas é natural da região Sudeste (67%), predominando, em termos de escolaridade, o primeiro grau incompleto (40%). Quanto à renda pessoal, 33% das entrevistadas afirmaram que não tinham qualquer renda, e 33% informaram ter uma renda entre um e três salários mínimos. Apenas uma das entrevistadas declarou ter formação superior. As demais entrevistadas declararam trabalhar em casa ou em profissões autônomas.

A maioria das entrevistadas (80%) conhece sua situação sorológica há mais de três anos, sendo que 60% delas iniciaram o tratamento há, pelo menos, três anos. O parceiro, em 47% dos casos, também é soropositivo, sendo que 33% referiram que seu parceiro desconhece seu estado sorológico ou não fez o exame até o momento da entrevista. Quatro das entrevistadas (27%) relataram que o namorado/companheiro falecera em função de complicações decorrentes da Aids. A maioria relatou que a forma de infecção foi no contato sexual, com um companheiro ou namorado (93%), sendo que apenas uma das entrevistadas atribuiu a infecção a uma transfusão sanguínea, durante uma de suas gestações.

Quanto ao número de filhos, duas das entrevistadas estavam grávidas; a maioria tinha mais de um filho (67% das entrevistadas) e uma das entrevistadas declarou que um de seus filhos faleceu, aos quatro meses de idade, em consequência de um quadro de Aids. A maioria das entrevistadas (60%) não descobriu o HIV enquanto estavam grávidas (souberam de sua situação sorológica antes da gravidez ou entre uma gravidez e outra). Cinco das entrevistadas (33%) descobriram o HIV antes de engravidarem e, engravidaram posteriormente. Algumas entrevistadas (27%) já tinham filhos, sabiam-se portadoras do HIV e decidiram ter outro(s) filho(s). Algumas entrevistadas tiveram filhos soropositivos (20%), sendo que a maioria (73%) teve acesso à prevenção da TMI em todas as gravidezes (a entrevistada que estava grávida iniciou o acompanhamento para prevenção da TMI durante no segundo mês de gestação).

A maioria das entrevistadas afirmou que não faz uso consistente de preservativos (67%), sendo que dessas, apenas 20% adotaram esse comportamento, em função de terem decidido engravidar. Algumas entrevistadas (20%) afirmaram que engravidaram por que o preservativo estourou e duas entrevistadas (13%) relataram ter ciência de que engravidaram em função do uso esporádico de preservativo nas relações sexuais.

Construindo um novo olhar sobre o objeto de investigação: o conceito psicanalítico de desejo inconsciente

Para a compreensão dos conceitos psicanalíticos que envolvem o problema do desejo, reconhece-se a necessidade de certa familiaridade com essa teoria, mais especificamente com a abordagem psicanalítica lacaniana. Nesse sentido, remetemos o leitor à obra de Lacan, especificamente a do período de 1957 a 1960, quando o autor trabalha o conceito de desejo a partir do Grafo do desejo, que se trata de um complexo desenvolvimento que articula vários conceitos psicanalíticos (Lacan, 1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In:______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 807-842., 1999LACAN, J. O seminário: livro 5 - as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.).

Para situar a compreensão do sentido do diagnóstico de HIV, a partir da abordagem psicanalítica, cabe lembrar que, nessa leitura, trata-se de uma situação que pode levar à reedição da castração, à medida que remete o sujeito a algo que foi perdido, ou seja, o estado saudável. Trata-se de uma vivência angustiante, que pode fazer com que, a partir da constatação de que algo falta, o sujeito possa perceber que precisa buscar algo. Assim, podemos articular a noção de desejo como algo que remete o sujeito a algo que, afinal, lhe (faz) falta (Kaufmann, 1996KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.).

Para a Psicanálise, a noção de desejo vai além do aspecto biológico e insere-se no campo das relações entre os humanos. Para Freud (1996)FREUD, S. As teorias sexuais infantis. In:______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 9, p. 117-229. 11Originalmente publicado em 1905., podemos traduzir o desejo por "desejos" ou por um determinado desejo particularizado em um objeto empírico. Por sua vez, Lacan (1998)LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In:______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 807-842. estabeleceu uma trilogia, para explicitar que a dimensão do humano vai além do biológico e está inserida em um sistema de relações, o que, em última instância, diz respeito à Linguagem. A construção teórica lacaniana, que visa explicitar a diferença entre a noção de necessidade, de demanda e de desejo, é fundamental para o processo que instaura o sujeito na sua relação com o Inconsciente. Nessa trilogia, o termo necessidade tem relação com a ordem do instintual, para sempre perdida no sujeito falante (ou seja, inserido no campo da Linguagem). O termo demanda refere-se ao sujeito falante, que ao demandar (pedir) depara-se com o "mal-entendido" da Linguagem, e assim, o sujeito nunca obtém o objeto que almeja (a satisfação plena). Ao demandar, o sujeito depara-se com o equívoco estrutural da Linguagem e, assim, o desejo inconsciente permanece (e permanecerá) insatisfeito, pois sempre haverá um "mal-entendido", na medida em que a palavra nunca abarcará a satisfação plena.

A principal contribuição dessa articulação teórica é a explicitação da complexidade da questão do desejo nos sujeitos, ou seja, de fato, afirmar "querer" algo (como sinônimo de vontade consciente e objetiva) é muito distinto de "desejar" algo (como algo inconsciente), pois do ponto de vista do sujeito, o problema do desejo causa-lhe, muitas vezes, um verdadeiro estranhamento em que ele mesmo pode não se reconhecer no que ele pensava desejar. Nesse sentido, o desejo inconsciente situa-se a partir do estatuto paradoxal da pulsão, que responde tanto aos aspectos construtivos (pulsão de vida), quanto aos aspectos destrutivos (pulsão de morte). Por isso não podemos estabelecer uma relação direta entre "vontade de ter filhos" com algo de positivo ou construtivo, pois o que parece estar em questão é o desejo inconsciente, o que pode pôr em causa outros fatores para além dos moralmente aceitos socialmente.

O desejo de ter um filho e o desejo feminino22Ressaltamos que nos baseamos na concepção psicanalítica lacaniana sobre o feminino, ou seja, a partir de um ponto de vista específico. Reconhecemos que outras teorias relevantes discutem amplamente sobre feminilidade, feminino e feminismo, mas as mesmas não fazem parte do escopo do presente trabalho.: o que a psicanálise tem a dizer sobre isso?

Na visão freudiana, o desejo próprio do feminino não pode deixar de passar pela questão da produção de um "filho-falo", que seria, então, uma tentativa de restauração narcísica possível para uma mulher. Entretanto, ficou evidente, para Freud, após certo percurso como analista, que a questão da sexualidade feminina não se esgotava com a reprodução, apontando para um "enigma (Prates, 2001PRATES, A. L. Feminilidade e experiência psicanalítica. São Paulo: Hacker, 2001.).

Pesquisas embasadas na teoria de gênero também mostraram que, para a mulher soropositiva para o HIV, a maternidade adquire um sentido de reasseguramento narcísico, bem como o papel de garantia de sobrevivência, colocando-a na dependência do parceiro. Nesse sentido, o lugar da mulher, em nossa sociedade, ainda é visto como "passivo", como um objeto de desejo do outro. Observa-se que, ainda hoje, na economia de trocas simbólicas, as mulheres adotam uma postura de "cumplicidade consentida" em relação ao suposto desejo masculino (Barbosa; Villela, 1996BARBOSA, R. M.; VILLELA, W. A trajetória feminina da Aids. In: PARKER, R.; GALVÃO, J. (Org). Quebrando o silêncio: mulheres e Aids no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. p. 17-32.; Ventura-Filipe et al., 2000VENTURA-FILIPE, E. M. et al. Risk perception and counseling among HIV-positive women in São Paulo, Brazil. International Journal of STD & Aids, Thousand Oaks, v. 11, n. 2, p. 112-114, 2000.).

Sem desconsiderar essa abordagem e tomando outro caminho de análise, a perspectiva lacaniana enfatizou que "não há uma essência feminina" e isso significa que não há um "instinto natural" que explique ou justifique o desejo de ter um filho. Lacan (1985) observou que, muitas vezes a mulher "produz um filho" como uma tentativa de "agarrar-se ao falo", como um "artifício" para negar a castração e a inexistência de uma resposta final sobre o que seja o "tornar-se mulher" (Prates, 2001PRATES, A. L. Feminilidade e experiência psicanalítica. São Paulo: Hacker, 2001.). Se Freud termina sua vida se perguntando "o que quer uma mulher?", cabe compreender que ele não se pergunta "o que quer uma mãe?", pois para ele, é evidente que uma mãe quer um filho. Baseado nessa questão, Lacan avança e destaca que a questão da feminilidade se impõe aos sujeitos como um enigma incontornável e que, embora as mulheres tentem muitas vezes responder a esse enigma com uma gravidez, ao final de tudo, a grande questão - a questão da feminilidade - não se esgota com a maternidade (Prates, 2001PRATES, A. L. Feminilidade e experiência psicanalítica. São Paulo: Hacker, 2001.).

Para abordar o desejo em mulheres vivendo com HIV/Aids: o desejo como uma resposta na relação com o outro

Baseados na leitura de Zizek (1992)ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. do grafo do desejo (Lacan, 1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In:______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 807-842.), destacaram-se certos significantes a partir dos discursos das entrevistadas sobre o desejo inconsciente: a feminilidade e a constituição do sujeito no laço social. Disso, pudemos perceber como ocorre o processo de identificação imaginária [i(a)], bem como a identificação simbólica [I(A)] entre esses sujeitos (Quadro 2).

Quadro 2
Esquema de apresentação dos resultados da pesquisa quanto à identificação imaginária e simbólica das mulheres entrevistadas. São Paulo, 2005

Na leitura de Zizek (1992)ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. sobre o processo de identificação imaginária [i(a)], temos os traços descritivos que representam o sujeito e esse autor comenta que isso seria esquematicamente algo "como o sujeito se vê". A identidade imaginária relaciona-se com o eu ideal, sendo que o sujeito identifica-se com uma imagem que representa "o que ele gostaria de ser". Nesse processo de identificação imaginária imitamos o outro no nível da semelhança, ou seja, identificamo-nos com a imagem do outro de forma a "ser como ele", com uma função idealizada.

No caso das entrevistadas, a imagem que as mulheres entrevistadas têm de si mesmas indica que elas identificam-se com a imagem de mulheres marcadas pela revelação do diagnóstico do HIV. Significantes que aparecem no discurso de todas as entrevistadas são "ser soropositiva", "ser mãe ou estar grávida e desorientada", "necessitar de acolhimento e apoio", entre outros. As entrevistadas revelaram que, mediante o diagnóstico de HIV, tornam-se "vítimas que precisam de apoio e orientação e se sentem culpadas". A fala de Mariana ilustra esse aspecto: estar grávida e ter Aids é algo que deixa a gente desorientada. A gente precisa de apoio, mas isso nem sempre acontece. Eu perdi meu filho por causa da Aids e eu sinto que isso foi minha culpa.

Nesse nível de identificação imaginária, as mulheres assumem o papel idealizado de suposta "boa paciente" que, ao adotar as recomendações da equipe de saúde sem queixas ou questionamentos, seriam supostamente acolhidas e aceitas. Ilustram tais significantes as falas de Flavia, Miriam, Bianca, Dia e Débora.

Quanto à identificação simbólica [I(A)], (Zizek 1992ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992., p.107) a refere como "o lugar de onde o sujeito observa-se como sendo digno de ser amado". Isso diz respeito à forma como o sujeito olha para o outro, o que indica, afinal, a forma como ele olha para si mesmo (Zizek exemplifica esse processo como "o ser para o outro é o ser para si"). A identificação simbólica [I(A)] depende da relação do sujeito com a ordem simbólica, ou seja, o sujeito busca um "traço" que o represente, e nesse sentido, ele adota uma "missão", que pode não ser consciente para o sujeito.

No nível de identificação simbólica [I(A)], observamos que as mulheres entrevistadas percebem mulheres soropositivas que decidem ter um filho como aquelas que cometem uma "loucura" ou uma "irresponsabilidade". Porém, quando avaliam sua própria decisão de ter um filho, surge uma compreensão contraditória, pois justificam suas próprias decisões reprodutivas responsabilizando um outro. No discurso das entrevistadas, sua própria gravidez foi "um acidente", "foi meu marido quem quis", "toda mulher quer um filho e eu não queria ser diferente", "foi um descuido". O traço que as caracteriza é sua posição subjetiva de desresponsabilização perante o próprio desejo, pois tentam culpabilizar a um outro. Elas tentam justificar seus atos a partir de uma "imposição" do outro, como uma "missão" que elas assumiram na tentativa de serem aceitas pelo outro.

Observamos, portanto, que as mulheres entrevistadas apegam-se à identificação imaginária, assumindo uma identidade de "vítimas" como uma tentativa de serem aceitas (e amadas) pelo outro, mas não conseguem com essa estratégia evitar a questão da castração como um "resto" que persiste, presentificando-se na dimensão do desejo. O desejo, tomado dessa forma, tira o sujeito do conforto da identificação imaginária, e, ao tentar corresponder ao que ele "supõe ser o desejo do outro", o sujeito depara-se como um enigma indecifrável (o enigma da feminilidade, que não se restringe à questão da maternidade) e, assim, angustiado, tenta lançar mão de artifícios para lidar com a insatisfação: o sujeito oferece-se ao outro, como objeto de seu desejo. A "missão" relatada pelas entrevistadas é uma espécie de sacrifício, em que o sujeito se oferece ao desejo suposto do outro, e assim, ter um filho transforma-se em uma provação cujo objetivo é gerar um rebento soronegativo para o HIV. Esse aspecto fica explicitado pelas falas de Rita, Flávia, Mariana, Bianca, Dia e Débora.

Mas por que ter um filho poderia ser um resgate narcísico? A resposta é que a mulher vivendo com HIV/Aids vive um dano narcísico e, o ato de gerar uma criança "saudável" (soronegativa) lhes proporciona uma breve sensação de completude e negação da falta, pois ao gerar um rebento saudável ela cumpre sua "missão" e realiza o resgate de seu narcisismo ferido. Entretanto, os relatos das mulheres entrevistadas deixam entrever que não bastou engravidar: mesmo quando o filho "produzido" é soronegativo, ainda resta o HIV em si mesmas, enquanto representante do desconcerto do sujeito perante a falta, que afinal é estrutural. Quando o filho gerado é soropositivo, tal sacrifício, diferentemente de tamponar a falta, acaba por desnudá-la, de forma brutal, o problema da infecção pelo HIV, como representante de toda a angústia e da falta estrutural (Quadro 3).

Quadro 3
Quadro esquemático sobre o desejo inconsciente de ter um filho e as expectativas inconscientes subjacentes entre as mulheres entrevistadas. São Paulo, 2005

Essa posição de desresponsabilização das mulheres aparece nas relações conjugal e afetivas e tende a repetir-se na relação com a equipe de saúde. Isso significa que a forma como elas tratam a doença varia em função do que a equipe lhes apresenta como referência, em uma relação especular e imaginária. Os profissionais da equipe de saúde passam a ser "o outro a ser culpabilizado ou responsabilizado" e, quando a situação da gravidez mostra-se angustiante, há o risco de que a paciente passe ao ato. Isso aparece nas situações em que as pacientes abandonam ou apresentam baixa adesão ao tratamento, ou ainda, não seguem as recomendações médicas, gerando grande desconforto na equipe de saúde. Assim, cabe lembrar que seria importante a equipe de saúde estar ciente e compreender que, quando a mulher soropositiva engravida, ela se engaja nessa espécie de "missão" e tem expectativas - em relação à gravidez, bem como nas suas relações com parceiros e com a própria equipe de saúde - que nem sempre estão claras para elas mesmas, pois tratam-se de questões inconscientes.

Devemos, ainda, esclarecer que quando afirmamos que as mulheres "desresponsabilizam-se" pelo seu desejo inconsciente, não estamos fazendo nenhum juízo de ordem moral, pois não se trata de dizer que elas são "irresponsáveis". A concepção do desejo como inconsciente permite compreender que essas questões e dinâmicas de mulheres vivendo com HIV/Aids são inconscientes e podem interferir direta ou indiretamente na relação com a equipe e, consequentemente, concretamente no atendimento em saúde.

Contribuições da Psicanálise ao campo da Saúde Pública: afinal, que desejo é esse?

Uma contribuição do campo da Psicanálise torna-se possível quando situamos o campo do desejo em um registro distinto do âmbito natural e/ou biológico, colocando-o no campo do simbólico. Nesse sentido, podemos afirmar que se tornar mãe é diferente de tornar-se mulher. A Psicanálise não pretende caracterizar o desejo da mulher soropositiva como "um desejo natural de ter filhos", bem como não caracteriza a maternidade e a gravidez como insígnias do feminino. Assim, não importa se o sujeito vai ter filhos ou não, pois a Psicanálise preocupa-se em saber que posição ele ocupa em relação ao desejo inconsciente.

As falas das entrevistadas mostraram contradições, angustias e idiossincrasias, o que evidencia que suas decisões reprodutivas são pautadas por uma lógica inconsciente particular que as colocam, em sua singularidade perante a possibilidade de engravidar, sem que tenham, necessariamente, consciência dessas contradições, pois, evidentemente, trata-se de algo inconsciente. Podemos afirmar que a gravidez da mulher soropositiva é uma tentativa de restauração narcísica e, quando ocorre a gravidez, ela se torna uma "provação", cujo objetivo é gerar um rebento soronegativo.

O discurso dessas mulheres apresentou uma contradição: elas avaliam as decisões reprodutivas de outras mulheres soropositivas como uma "loucura" ou "irresponsabilidade", enquanto procuram se desresponsabilizar por suas próprias decisões reprodutivas. Do ponto de vista da psicanálise, quando dizemos que as entrevistadas se desresponsabilizam por seu desejo não se pretende fazer julgamento de ordem moral. A psicanálise permite compreender que, quando essas mulheres procedem assim, elas o fazem por um "bom motivo". A questão do desejo inconsciente é algo que incide sobre o sujeito de forma incontornável e, muitas vezes, quanto mais ele tenta fugir disso, mais se depara com sua falta estruturante e com a insatisfação do desejo. Na tentativa de lidar com a falta e a castração, as entrevistadas parecem engajar-se em um projeto intempestivo que, afinal, não as protege de vivenciarem angústias. Nesse sentido, a gravidez pode tornar-se algo que explicita uma passagem ao ato (Kaufmann, 1996KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.) que não permite a elaboração da angústia, muito ao contrário, explicita-a. Quando o sujeito tenta desresponsabilizar-se perante seu desejo, a psicanálise considera que isso tem consequências e, no caso das entrevistadas, observa-se a angústia de castração explicitada em seu discurso. Cabe lembrar ainda que, ao tornar-se mãe, elas estão longe de responder ou elaborar a questão do enigma da feminilidade.

Esses dados podem ser articulados ao resultado da pesquisa de Paiva et al. (2007)PAIVA, V. et al. Desire to have children: gender and reproductive rights of men and women living with HIV: a challenge to health care in Brazil. AIDS Patient care and STDs, Larchmont, v. 21, n. 4, p. 268-277, 2007., que refere que o desejo de ter filhos foi mais expressivo entre os homens vivendo com HIV/Aids. A respeito dessa questão a abordagem de gênero apresenta contribuições ao colocar foco sobre a relação homem-mulher no contexto social (Scott, 1989SCOTT, J. Gender: a useful category of historical analyses: gender and the politics of history. New York: Columbia University, 1989. Disponível em: <http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/SCOTTJoanGenero.pdf>. Acesso em: 1 nov. 2013
http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/F...
). Nesse sentido, a leitura psicanalítica e de gênero aproximam-se, pois as falas das entrevistadas permitem compreender que as mulheres tendem a assumir o desejo do outro - no caso o homem - como sendo o seu, algo que se apresenta como a própria estruturação do desejo inconsciente. Além disso, elas estabelecem uma relação de cumplicidade com seus parceiros e se engajam no projeto de ter um filho para, afinal, tentar tamponar sua falta. Essa relação gera um tipo de vínculo com o parceiro que não necessariamente passa pela questão do afeto e nem é consciente, o que pode ser explicitado nas chamadas "clássicas" gravidezes "não planejadas".

Observamos que essa posição de desresponsabilização também se evidencia nas relações conjugais-afetivas e tende a se repetir na relação com a equipe de saúde. O discurso das mulheres mostrou que seu comportamento não é, necessariamente, determinado pelas orientações recebidas da equipe, mas, foi possível identificar a necessidade de mostrarem-se como "boas pacientes" aderentes ao tratamento e, sobretudo, gratas pelo suporte institucional recebido. Além disso, como também salientaram Campos (1998)CAMPOS, R. Aids: trajetórias afetivo-sexuais das mulheres. In: BRUSCHINI, C. Horizontes plurais: novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 85-109. e Knauth (1999)KNAUTH, D. R. Subjetividade feminina e soropositividade. In: BARBOSA, R.; PARKER, R. (Org). Sexualidades brasileiras: direitos, identidades e poder. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 121-136., a condição de gestante parece demandar (isso atualmente, pois houve avanços na busca dos direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids) um acolhimento especial por parte da equipe, além de lhes proporcionar acesso a certos benefícios para si e para o bebê (como, por exemplo, acesso facilitado a consultas de pré-natal em instituições preparadas para lidar com esse contexto, recebem leite - fórmula - para substituir a amamentação, em alguns casos recebem enxovais, podem participar de grupos de apoio, entre outros). As entrevistadas revelaram que, a partir da gravidez, puderam se inserir (ou se reinserir) em um grupo, obter ajuda e apoio de ordem objetiva e subjetiva. Essa relação ocorre, inclusive, com as participantes do próprio grupo, na forma de um laço, no qual a troca de informações e experiência as ajuda a construir (ou, ainda, reconstruir) uma formação profissional e também sua cidadania.

Contudo, embora tenhamos observado grandes avanços nas últimas décadas quanto ao acesso e nos direitos dessas pacientes, vemos que nas relações médico-paciente ainda ocorrem conflitos, ou seja, o comportamento dessas mulheres de tentarem se mostrar "gratas" e "boas pacientes", muitas vezes, serve de anteparo a uma série de conflitos inconscientes que podem vir a prejudicar o próprio atendimento em saúde. Observa-se que o desconcerto do (des)encontro entre o profissional da saúde e as pacientes revela que há necessidade de um olhar que aprofunde a compreensão dos fenômenos ali envolvidos. Um olhar a partir da Psicanálise é, nesse âmbito, um convite para que o sujeito possa tomar consciência de suas idiossincrasias e, então, assumir uma posição responsável por seu comportamento. Da mesma forma, a Psicanálise pode contribuir para o campo da saúde pública, a partir dessa inclusão das idiossincrasias dos sujeitos. Desse modo, viabilizar o resgate da singularidade do desejo inconsciente do sujeito, além de permitir uma reflexão sobre a interferência dessas questões no cuidado integral, o que, afinal, pode interferir no acolhimento das necessidades complexas de mulheres vivendo com HIV/Aids.

Agradecimentos

À Dra. Carla Vasquez, médica infectologista, por encaminhar pacientes de seu ambulatório para participarem da pesquisa. Às mulheres entrevistadas pela generosidade em compartilhar suas histórias de vida, vislumbrando o campo do desejo com coragem e delicadeza.

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  • 1
    Zihlmann, K. F. recebeu bolsa de mestrado pelo CNPq para a realização desta pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2013
  • Revisado
    05 Maio 2014
  • Aceito
    23 Maio 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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