Resumos
A formação daquilo que o geógrafo Milton Santos denominou meio técnico-científico-informacional é marcada pela profunda interação entre ciência e técnica, ambas sob a égide do mercado. Nesse meio, vemos surgirem novos objetos técnicos, cujo conteúdo é dado pela ciência. Quando tratamos especificamente da medicina, essa característica é ainda mais marcante, o que fica manifesto, por exemplo, quando analisamos os atuais sistemas técnicos de diagnóstico, que acabam configurando segmentos econômicos especializados com produção de alto valor agregado. Neste artigo, buscou-se tratar da economia da saúde e do complexo industrial que a envolve discutindo como um conjunto significativo de empresas voltadas ao diagnóstico concorre para um novo tipo de urbanização no território brasileiro. Marcada pelo uso corporativo do território, essa urbanização se conforma pelo estabelecimento de circuitos espaciais produtivos, dos quais focaremos aqui os da saúde e seus respectivos círculos de cooperação no espaço. Veremos, então, que entre suas principais características estão a concentração e a centralização do capital.
Circuito Espacial Produtivo; Círculos de Cooperação no Espaço; Uso Corporativo do Território; Geografia Humana; Espaço Geográfico
Introdução
Um dos aspectos mais característicos da medicina no período atual tem sido as excepcionais invenções e inovações tecnológicas especializadas no combate a diferentes enfermidades e sua rápida, senão imediata, aceitação e incorporação às práticas médicas. Nesse processo, constatamos claramente uma relação entre a atual estrutura produtiva e o sistema de saúde, este último frequentemente pautado na medicina curativa, que tem ditado os parâmetros para a definição de mal e cura e, portanto, para o tratamento das doenças. Assim, majoritariamente constituída sobre intervenções cirúrgicas e o levantamento de diagnósticos sobre os corpos, essa medicina participa da estruturação de complexos industriais voltados para a pesquisa e a produção de insumos médicos, bem como de uma ampla rede de atendimento de saúde nos territórios nacionais (Almeida; Antas Jr., 2011ALMEIDA, E. P.; ANTAS JR., R. M. Os serviços de saúde no estado de São Paulo: seletividades geográficas e fragmentação territorial. In: MOTA, A.; MARINHO, M. G. (Org.). Práticas médicas e de saúde nos municípios paulistas: a história e suas interfaces. São Paulo: CDG, 2011. p. 281-295.; Antas Jr., 2014ANTAS JR., R. M. O complexo industrial da saúde no Brasil: uma abordagem a partir dos conceitos de circuito espacial produtivo e círculos de cooperação no espaço. GEOgraphia, Rio de Janeiro, v. 16, n. 32, p. 38-67, 2014.).
Especializados na oferta de uma variada gama de produtos, esses complexos industriais tiveram suas primeiras formações nos Estados Unidos e na Europa - especialmente França, Reino Unido e Alemanha - e se caracterizavam como circuitos regionais produtivos, sendo as indústrias químicas e eletrônicas motrizes de todo o complexo (Perroux, 1975PERROUX, F. O conceito de polo produtivo. In: FAISSOL, S. Urbanização e regionalização. Rio de Janeiro: IBGE, 1975. p. 98-100.). Com a instauração do que Santos (2008)SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-cientifico-informacional. São Paulo: EDUSP, 2008. denominou meio técnico-científico-informacional, base material do processo de globalização, e conformando o período técnico-científico-informacional (Santos, 2008SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-cientifico-informacional. São Paulo: EDUSP, 2008.), vemos esses complexos, dedicados a fomentar uma medicina de forte componente tecnológico, passarem de dinâmicas regionais para uma integração planetária. Essa cooperação estendida entre indústrias e outras formas produtivas que integram diferentes países num único sistema técnico é o que chamamos aqui de circuito espacial produtivo, conforme a proposição de (Santos 1986SANTOS, M. Circuitos espaciais da produção: um comentário. In:; SANTOS, M. SOUZA, M. A. (Org.). A construção do espaço. São Paulo: Nobel, 1986. p. 121-134., 1988SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.).
No território brasileiro, observa-se a existência de um complexo industrial voltado à saúde pelo menos desde a década de 1980 (Cordeiro, 1980CORDEIRO, H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980.), mas, a partir dos anos 2000, podemos apontar a integração desse complexo industrial com os demais, de outros países, para a formação de circuitos espaciais produtivos da saúde. Um marco desse processo data de 2008, quando o Estado brasileiro cria o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS), inaugurando uma série de incentivos ao fortalecimento da base produtiva voltada à saúde, tais como linhas de crédito específicas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), integração entre os ministérios da Saúde, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e da Ciência, Tecnologia e Inovação, como também a criação de leis específicas fomentando ações para o setor.
Nesse sentido, cabe destacar o papel central da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) ao implementar linhas de investimento para inovação, fomentando a criação e expansão de empresas do setor, e, em especial, as ações do Departamento de Ciência e Tecnologia (DECIT) no desenvolvimento de tecnologias na área da saúde, estabelecendo nexos de cooperação entre diferentes agentes produtivos.
Assim, essa Secretaria tem o papel de conduzir um "sistema nacional de inovação em saúde", cuja importância já era apontada por Gadelha, Quental e Fialho (2003)GADELHA, C. A. G.; QUENTAL, C.; FIALHO, B. C. Saúde e inovação: uma abordagem sistêmica das indústrias da saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 47-59, fev. 2003. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2003000100006>. Acesso em: 8 jul. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2003... , empreendendo a consolidação de um complexo industrial da saúde no território brasileiro. Ela coordena os processos de inovação integrando diferentes agentes da produção industrial, dos serviços de alta complexidade e também da produção científica. Homma et al. (2011)HOMMA, A. et al. Atualização em vacinas, imunizações e inovação tecnológica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 445-458, 2011. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011000200008>. Acesso em: 8 jul. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011... apontam esse papel estratégico quando tratam especificamente de vacinas e imunobiológicos, e ele pode ser estendido à produção de reagentes para diagnóstico (Gadelha; Quental; Fialho, 2003GADELHA, C. A. G.; QUENTAL, C.; FIALHO, B. C. Saúde e inovação: uma abordagem sistêmica das indústrias da saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 47-59, fev. 2003. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2003000100006>. Acesso em: 8 jul. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2003... ). A criação da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde (ANPPS), que orienta temas e linhas de pesquisa necessários às diferentes fases de que se constitui o complexo industrial da saúde, é outra mostra desse papel coordenador da SCTIE.
Ao conjunto das ações que fomentam todo tipo de produção, como as citadas acima, Santos (1986)SANTOS, M. Circuitos espaciais da produção: um comentário. In:; SANTOS, M. SOUZA, M. A. (Org.). A construção do espaço. São Paulo: Nobel, 1986. p. 121-134. denominou círculos de cooperação no espaço, conceito indissociável do circuito espacial produtivo. De fato, foi pelo fortalecimento, pela expansão e institucionalização dos círculos de cooperação no espaço (que podem partir do Estado, mas também do mercado e/ou da sociedade organizada) que os circuitos regionais passaram a circuitos espaciais em diferentes setores da economia capitalista.
É importante ressaltar, entretanto, que a rede de serviços e o complexo industrial da saúde têm se expandido e se concentrado apenas nas partes mais dinâmicas do território brasileiro, principalmente na metrópole paulistana, que é o centro de comando da "formação socioespacial" (Santos, 1977SANTOS, M. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e como método. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 54, p. 81-99, jun. 1977.; Santos; Silveira, 2010SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2010.). A concentração espacial dos serviços de saúde e do complexo industrial, bem como a centralização de capital que algumas empresas do setor estabelecem na atualidade, vem configurando um novo processo de urbanização, marcado pelo uso corporativo do território, em que "cada empresa utiliza o território em função de seus fins próprios e exclusivamente em função desses fins" (Santos, 2009bSANTOS, M. Por uma economia política da cidade. São Paulo: EDUSP, 2009b., p. 85), procurando pontos ou áreas específicas que tenham uma densa base técnica para promover a produção, a circulação e o consumo de seus produtos.
No caso específico das indústrias produtoras de reagentes para diagnóstico e dos laboratórios consumidores desses reagentes, vemos o estabelecimento de lógicas próprias ao setor e, em conformidade com a atual dinâmica do sistema capitalista, funcionalizado por fluxos de abrangência planetária e sequioso por uma acumulação ainda maior. Atendendo a esses reclamos do modo de produção é que se estabelecem os circuitos espaciais produtivos e seus círculos de cooperação no espaço, consolidando novas dinâmicas produtivas voltadas à saúde essenciais ao desenvolvimento técnico-científico da medicina contemporânea.
Como o estado e a cidade de São Paulo têm sido o locus privilegiado da ação dessas empresas, focalizamos aqui as dinâmicas espaciais que esse novo uso do território tem configurado, chamando atenção para o processo de concentração espacial e centralização do capital engendrado por algumas empresas do circuito espacial produtivo dos reagentes para diagnóstico. Procuramos, assim, considerar a rede de fluxos materiais e imateriais das empresas desse circuito, destacando os serviços de análise laboratorial no setor da saúde.
O diagnóstico no período técnico-científico-informacional
Desde que August Von Wasserman inventou o exame de sangue, em 1906, a triagem diagnóstica mudou radicalmente. De fato, a chamada medicina moderna vem lançando mão do desenvolvimento científico-tecnológico há muito tempo, e esse dado fica mais evidente quando tratamos do diagnóstico a partir de exames laboratoriais. A preferência pelo uso da tecnologia nos processos de cura se deve, entre outros motivos, ao fato de que, pelo menos desde o início do século XIX, as sociedades modernas vêm sendo crescentemente convencidas pela comunidade de cientistas, inclusive com grandes apresentações públicas sobre as descobertas científicas (Latour, 2000LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.), de que os saberes desenvolvidos em laboratório são capazes de debelar todos os males, de sorte que tais saberes se foram afirmando e legitimando pelo coletivo da sociedade (Stengers, 2006STENGERS, I. Para além da grande separação, tornarmo-nos civilizados? In: SANTOS, B. S. (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisado. São Paulo: Cortez, 2006. p. 131-149., p. 140). Esse processo transcorreu de tal modo que é possível afirmar que os médicos que se valiam dos meios modernos de diagnóstico, no começo do século XX, conseguiam não só bons honorários e informações de teor técnico-científico sobre o estado do paciente, como também uma boa reputação e maior respeito profissional entre seus pares (e pacientes) (Porter, 2004PORTER, R. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 59-60). Assim, passaram a se mobilizar não apenas os humanos, mas também os não humanos para a confirmação dos diagnósticos clínicos (Latour, 2000LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000., p. 28-30).
A passagem do século XIX para o XX foi um importante marco para o desenvolvimento do diagnóstico por imagem e dos reagentes para diagnóstico.22O mercado brasileiro utiliza "reagentes para diagnóstico in vitro" ou "kit para diagnóstico", mas a Agência Nacional de vigilância Sanitária (ANVISA) dá como correta a expressão "produtos para diagnóstico in vitro", o que inclui reagentes e kits (Brasil, 2006). Aqui, dizemos apenas "reagentes para diagnóstico". Observou-se a proliferação de um sem-número de tecnologias, que vão desde simples exames de sangue, nos primórdios do processo, até a ressonância nuclear magnética, de poucas décadas atrás. Essas tecnologias não só possibilitaram uma melhor triagem diagnóstica como deram uma importante legitimidade ao diagnóstico clínico dos médicos. Segundo Lilia Blima Schraiber, a difusão de serviços diagnósticos e o maior uso de medicamentos "mudaria a própria concepção da prática médica, redefinida a partir das especialidades, que, por sua vez, refletiam a tendência estrutural da divisão técnica do trabalho" (Schraiber, 2008SCHRAIBER, L. B. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec, 2008., p. 66).
O desenvolvimento técnico-científico e a formação de uma indústria dos reagentes para diagnóstico propriamente dita começam na Segunda Guerra Mundial e refletem as primeiras preocupações com o risco de infecções virais, motivadas por incidentes de transmissão de hepatite por transfusão de sangue, embora os estudos para a medida mais exata do risco transfusional só tenham começado na década de 1970 (Busch, 2006BUSCH, M. Transfusion-transmitted viral infections: building bridges to transfusion medicine to reduce risks and understand epidemiology and pathogenesis. Transfusion, Arlington, v. 46, n. 9, p. 1624-1640, 2006., p. 1624). E é justamente a partir do final dessa década, com o estabelecimento do meio técnico-científico-informacional, que a afirmação da técnica se torna um elemento central na prática médica.
[O] meio técnico-científico-informacional é o meio geográfico do período atual, onde os objetos técnicos são elaborados a partir dos mandamentos da ciência e se servem de uma técnica informacional da qual lhes vem o alto coeficiente de intencionalidade com que servem às diversas modalidades e às diversas etapas da produção (Santos, 2009cSANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2009c., p. 187).
Numa medicina assim, ancorada na inovação tecnológica, observam-se os elementos próprios da constituição da ciência moderna. Segundo Latour (2000)LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000., a ciência tal como a conhecemos hoje estaria sedimentada na divisão antagônica entre natureza e sociedade e, desse modo, só se poderia entender o mundo a partir dos objetos (polo da natureza) ou a partir dos sujeitos (polo da sociedade e da cultura). Essa separação em duas zonas ontológicas estaria abalada pela emergência cada vez maior de objetos que não estão inteiramente nem no domínio do sujeito, nem no dos objetos. Estes seriam os híbridos, ou seja, mesclas indissociáveis entre natureza e cultura (Latour, 2000LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.).
Com o advento da globalização,33Assume-se aqui a definição de globalização a partir do quadro teórico mobilizado, isto é, "como o estádio supremo da internacionalização, a amplificação em 'sistema mundo' de todos os lugares e de todos os indivíduos, embora em graus diversos [...] podemos, pois, admitir que a globalização constitui um paradigma para a compreensão dos diferentes aspectos da realidade contemporânea" (Santos, 2008, p. 45). Assim, globalização corresponderia ao que Santos denomina período técnico-científico-informacional e seu correlato espacial, que é o meio técnico-científico-informacional, com demarcação geral a partir da década de 1970, com o advento das novas tecnologias da informação e comunicação e a emergência da ubiquidade como exercício de poder. Para o autor, as instâncias econômica, política e cultural são todas indissociavelmente constituintes desse processo. fica evidente na medicina, e particularmente no diagnóstico clínico, um processo de multiplicação dos híbridos, que se deve justamente à afirmação da separação ontológica entre sujeito e objeto. (Le Breton 2011Le BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 294) afirma que, em busca de uma objetivação do conhecimento médico, a medicina ocidental estabeleceu, ao longo da história, "a separação absoluta entre o sujeito e o objeto de seu conhecimento, ela se separa do doente e de sua doença para estabelecer esta última como saber".
A medicina corporativa e indutora da inovação tecnológica, levada a cabo pelos setores produtivos, opera com base nessa separação entre o doente e a doença, ou entre o sujeito e o objeto. Se para as empresas médicas esse mecanismo é promissor, o mesmo não se aplica ao profissional e muito menos à saúde pública, cuja crise já se estende há algum tempo, pois "quanto maior o conhecimento e o poder científico, quanto maior a capacidade de realização dos aparelhos de diagnóstico e de terapia, tanto mais difícil será encontrar um bom médico, ou até muito simplesmente um médico" (Jaspers, 1998JASPERS, K. O médico na era da técnica. Lisboa: Edições 70, 1998., p. 42). Ao lado do maior desenvolvimento de técnicas diagnósticas, verifica-se uma concomitante queda do "prestígio dos profissionais da medicina, e com o crescimento das queixas dos pacientes em relação a eles" (Lopes, 2008LOPES, J. A. O médico e a tecnologia: reflexões com enfoque na cardiologia. Revista Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p. 108-115, 2008. Disponível em: <http://rmmg.medicina.ufmg.br/index.php/rmmg/article/viewFile/9/8>. Acesso em: 18 dez. 2012.
http://rmmg.medicina.ufmg.br/index.php/r... , p. 110). Sendo assim, "percebe-se uma menor valorização do exame clínico. Por um lado, investe-se menos na aquisição das habilidades a ele necessárias, pois, imagina-se, as máquinas podem dar o diagnóstico" (Lopes, 2008LOPES, J. A. O médico e a tecnologia: reflexões com enfoque na cardiologia. Revista Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p. 108-115, 2008. Disponível em: <http://rmmg.medicina.ufmg.br/index.php/rmmg/article/viewFile/9/8>. Acesso em: 18 dez. 2012.
http://rmmg.medicina.ufmg.br/index.php/r... , p. 110). O médico, por sua vez, "contenta-se em tornar-se o decifrador hiper-especializado dos utensílios de diagnóstico que utiliza, o médico afasta-se do doente, objetiva mais a doença, desconectando-se da aventura singular e dos parâmetros próprios do paciente" (Le Breton, 2011Le BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 341).
Essa característica é agora tão marcante que os reagentes para diagnóstico passaram a ser componentes essenciais para a avaliação e a melhoria da saúde global e "contribuem com até 94% das informações no preenchimento dos objetivos dos registros clínicos, e mais de 70% das decisões médicas - do diagnóstico à terapia - são baseadas nos resultados dos ensaios laboratoriais" (Paiva, 2009PAIVA, L. B. Análise estratégica da indústria brasileira de reagentes para diagnóstico e das potencialidades de atuação do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos frente aos desafios da saúde no Brasil. 2009. Dissertação (Mestrado em Tecnologia de Imunobiológicos) - Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009., p. 25). A grande importância dos reagentes para diagnóstico na economia da saúde fica patente nos números apresentados pelas principais indústrias químicas e de biotecnologia responsáveis pela produção dos mais diferentes tipos de reagentes disponíveis no mercado atualmente; elas movimentam, anualmente, cifras em torno de US$ 28 bilhões, com um crescimento anual "estimado em 5% em geral e entre 4 e 10% dentro do seu próprio segmento" (Paiva, 2009PAIVA, L. B. Análise estratégica da indústria brasileira de reagentes para diagnóstico e das potencialidades de atuação do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos frente aos desafios da saúde no Brasil. 2009. Dissertação (Mestrado em Tecnologia de Imunobiológicos) - Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009., p. 55).
Associados a razões da medicina moderna, esses fatores econômicos conduzem à crescente incorporação de tecnologias às práticas médicas, e isso vai cada vez mais substituindo o "olhar científico do médico" pelo "saber científico-tecnológico", o que leva a uma maior dependência de aparelhagem instrumental e tem intensificado o uso de recursos de terceiros e de novos instrumentos terapêuticos (Almeida, 2005ALMEIDA, E. P. O uso do território brasileiro e a segmentação dos serviços de saúde. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 10., 2005, São Paulo. Anais... São Paulo: AGB-SP: USP, 2005. p. 552-565., p. 552). Esse processo também pode ser considerado a mudança da "medicina liberal" para uma "medicina tecnológica" (Schraiber, 2008SCHRAIBER, L. B. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec, 2008.), caracterizada sobretudo pelo estabelecimento do "complexo industrial da saúde" (Gadelha, 2003GADELHA, C. A. G. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 521-535, 2003. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003000200015>. Acesso em: 10 dez. 2012.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003... ).
Esse complexo industrial é responsável pela produção de insumos médicos hospitalares e tem importantes investimentos na área de equipamentos de diagnóstico de base mecânica e de reagentes para diagnóstico de base biotecnológica. Por isso, as indústrias dessa especialização tecnológica, por meio de novas formas de cooperação, se tornam circuitos espaciais produtivos. Assim, são os círculos de cooperação no espaço que, ao expandir as corporações ao mesmo tempo em que reforçam estendidas alianças interempresas, estabelecem um novo tipo de uso dos territórios - o uso corporativo. O circuito espacial produtivo dos reagentes para diagnóstico concorre, junto aos demais, para esse processo.
A produção de insumos para a saúde no território brasileiro: de estruturas regionais produtivas a circuitos espaciais produtivos
Demarcar o momento histórico a partir do qual se se pode falar de um complexo industrial da saúde no Brasil é uma tarefa pouco óbvia, pois a estruturação, no território, dos diferentes setores industriais do atual complexo não surge concomitantemente e nem com a mesma capacidade técnica e organizacional. Sem dúvida, as primeiras que aqui se instalaram foram as indústrias farmacêuticas. Gabriel F. (Santos 1996SANTOS, G. F. Política de assistência farmacêutica e o setor produtivo estatal farmacêutico: o caso da Fundação para o Remédio Popular de São Paulo - FURP. 1996. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, 1996., p. 10) indica que a primeira a investir no país foi a Bayer, em 1890, e, até 1945, além das muitas de pequeno e médio porte, instalaram-se outras 10 grandes firmas europeias e seis estadunidenses. Entre 1945 e 1975, vieram também muitos novos laboratórios e, frise-se, as 40 maiores empresas europeias e estadunidenses instaladas no Brasil eram multinacionais presentes em grande parte dos países capitalistas.
Esses números revelam a importância do aparato industrial da saúde no território brasileiro já na década de 1970, e também que a passagem dos circuitos regionais para os espaciais (Santos, 1988SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988., p. 50) tem relação com a acelerada integração nos países do norte, que começavam a se coligar com áreas estratégicas de alguns países do sul. Nessa passagem, assiste-se ao fortalecimento, a partir das décadas de 1960 e 1970, de instituições sem fins lucrativos (e à formação de novas) voltadas ao fomento da cooperação entre empresas ligadas à saúde, como é o caso da Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios (ABIMO), fundada em 1962, e do Sindicato da Indústria de Artigos e Equipamentos Odontológicos, Médicos e Hospitalares do Estado de São Paulo (SINAEMO), em 1971, entre outros. Já a fundação do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (SINDUSFARMA), em 1933, bem anterior, e da Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico (ABCFARMA), em 1959, corroboram a afirmação de que os laboratórios farmacêuticos integram o primeiro e o mais forte setor do complexo industrial da saúde. É importante reforçar que, a partir dos anos 1960, essas instituições, ligadas aos laboratórios farmacêuticos e voltadas ao mercado, começam a protagonizar a extensão dos laços de cooperação entre as firmas no território e a integração comercial e produtiva com empresas estrangeiras, especialmente estadunidenses e europeias.
Impulsionada pelo complexo industrial militar, a expansão dos laboratórios farmacêuticos por todo o mundo foi o que levou Dupuy e Karsenty (1980)DUPUY, J. P.; KARSENTY, S. A invasão farmacêutica. Rio de Janeiro: Graal, 1980., em A invasão médica, e Ivan Illich (1984)ILLICH, I. Némesis médica: la expropiación de la salud. Ciudad de México: Joaquín Mortiz, 1984., no célebre Nêmesis médica, a criticar o acelerado processo de medicalização da sociedade e a transformação das práticas médicas, cada vez mais próximas do mercado, pela adoção de novas e avançadas tecnologias, nem sempre tão preocupadas com curas revolucionárias, mas com a economia do tempo despendido por paciente para atingir produtividades bem mais rentáveis (Cordeiro, 1980CORDEIRO, H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980., p. 71).
No Brasil, um dos marcos da análise das consequências sociais de um complexo industrial voltado à produção de insumos médicos são as pesquisas de Hésio Cordeiro, que põem as principais inter-relações estabelecidas entre o setor farmacêutico e o desenvolvimento da prática médica. Assim, embora prefira deixar "de lado a formação dos recursos humanos, as articulações da escola médica com a indústria farmacêutica e as relações com o setor de equipamentos médicos" (Cordeiro, 1980CORDEIRO, H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980., p. 113), o autor não deixa de apontar a formação de um complexo médico-industrial. Esse complexo envolvia a formação profissional, as indústrias e a prestação de serviços médicos, particularmente o processo de produção e consumo de medicamentos, as empresas de equipamentos médicos e odontológicos que se formavam desde os anos 1950-60, além das de assistência médica privada e de setores burocráticos e financeiros. Saliente-se, por fim, que naquele momento havia um conjunto bastante significativo de empresas estatais, especialmente laboratórios oficiais (Santos, 1996SANTOS, G. F. Política de assistência farmacêutica e o setor produtivo estatal farmacêutico: o caso da Fundação para o Remédio Popular de São Paulo - FURP. 1996. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, 1996.), dos quais ainda figuram entre os mais expressivos o Instituto Biomanguinhos (Fiocruz) e o Instituto Butantan. No entanto, a maior parte foi privatizada na década de 1990, com as políticas neoliberais que favoreceram especialmente os grandes laboratórios transnacionais:
o movimento recente da terceira revolução tecnológica e da globalização, acompanhado, no nível das relações de poder, pela clara hegemonia do sistema capitalista no mundo e pela onda de reformas do Estado, que incidiram de forma marcante no setor saúde, esse processo tornou-se um movimento avassalador em todo o planeta (Gadelha, 2003GADELHA, C. A. G. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 521-535, 2003. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003000200015>. Acesso em: 10 dez. 2012.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003... , p. 522).
Assim, um conjunto de inovações técnicas e organizacionais chegou ao Brasil, como nos países que contavam com parque industrial voltado à saúde, pressionando os agentes no território para referenciarem as lógicas de obtenção de competitividade e eficiência econômica, estabelecendo uma nova fase no setor produtivo, configurada pelo complexo industrial da saúde (Gadelha, 2003GADELHA, C. A. G. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 521-535, 2003. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003000200015>. Acesso em: 10 dez. 2012.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003... ), de onde entendemos que tenham emergido os circuitos espaciais produtivos, rompendo a dinâmica meramente regional que os caracterizava até então. Portanto, esse complexo se constitui por empresas especializadas em diferentes insumos, para clínicas e hospitais, cuja produção, bastante específica, requer conhecimento aplicado como pesquisa stricto sensu, o que exige o apoio de instituições públicas e privadas para estabelecer elos com os agentes produtivos.
É necessária também uma logística flexível que possibilite o transporte especializado desses diferentes insumos (Antas Jr., 2011ANTAS JR, R. M. Notas sobre o uso do conceito de circuitos espaciais produtivos para estabelecer o nexo entre a reestruturação urbana e as refuncionalizações do espaço: um estudo sobre os fixos de saúde no estado de São Paulo. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 14., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPUR, 2011. p. 1-15., p. 2). Assim, por estar alicerçado em novos paradigmas científico-tecnológicos e ter forte dinamismo territorial e informacional, esse complexo industrial só pôde ser consolidado no fim da década de 1970. Mas foi com o estabelecimento da globalização e a conformação do meio técnico-científico-informacional (Santos, 2008SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-cientifico-informacional. São Paulo: EDUSP, 2008.) que se observou, de fato, o aprofundamento de uma divisão internacionalizada do trabalho. Essa consolidação do complexo industrial da saúde no território "obedece às leis conjugadas da divisão internacional do trabalho e da divisão interna do trabalho. É assim que se estabelece uma divisão territorial do trabalho que é tanto internacional como interna a cada país" (Santos, 2009bSANTOS, M. Por uma economia política da cidade. São Paulo: EDUSP, 2009b., p. 44).
Portanto, os lugares têm um papel primordial nessa divisão territorial do trabalho, pois ela se instala sobre as divisões antigas, num processo em que "as condições históricas presentes facilitaram o mecanismo de expansão do capital no espaço pelo uso das formas" (Santos, 2003SANTOS, M. Economia espacial: criticas e alternativas. São Paulo: EDUSP, 2003., p. 188). Assim, os lugares são a condição e o condicionante da produção, e podemos acrescentar que esses complexos voltados à "medicina curativa" são indutores da urbanização e da transformação das cidades que os acolhem. Nesse processo, as redes ganham relevância, pois, mesmo estando sobre determinado território, elas conectam diferentes agentes econômicos da saúde, muitas vezes dispersos em vários e distantes pontos no território, e também as diferentes fases do processo produtivo. Assim, as empresas da saúde são como verdadeiras "organizações multilocacionais", com diversas unidades funcionalmente diferentes e espacialmente separadas, mas que operam de maneira integrada (Pred, 1979PRED, A. Sistemas de cidades em economias adiantadas: crescimento passado, processos presentes e opções de desenvolvimento futuro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 12). Pontos com alta densidade técnica e informacional no território se tornam, então, o suporte das redes que transportam as regras e normas utilitárias para as empresas independentemente do lugar onde estão instaladas, manifestando a capacidade de exercício da simultaneidade espaço-tempo pelas redes, instrumentos da nova prática de hegemonia no período.
O circuito espacial produtivo e os círculos de cooperação no espaço dos reagentes para diagnóstico
Para apreender essa nova articulação dos diversos agentes no território e dar conta da totalidade do espaço geográfico, Santos (1986)SANTOS, M. Circuitos espaciais da produção: um comentário. In:; SANTOS, M. SOUZA, M. A. (Org.). A construção do espaço. São Paulo: Nobel, 1986. p. 121-134. e Santos e Silveira (2010)SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2010. propõem os conceitos de circuitos espaciais produtivos e círculos de cooperação no espaço, que se tornam operacionais no estudo das empresas do complexo industrial da saúde por revelar dinâmicas e articulações entre ele e a economia, a política, o direito e a cultura, não se restringindo às relações entre as empresas implicadas estritamente nessa cooperação capitalista, foco privilegiado pelas análises que partem do conceito de cadeia produtiva (Castillo; Frederico, 2010CASTILLO, R.; FREDERICO, S. Espaço geográfico, produção e movimento: uma reflexão sobre o conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade e Natureza, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 461-473, 2010.), tal como se analisa comumente esse complexo. A noção de circuito espacial produtivo:
enfatiza, a um só tempo, a circulação (circuito), no encadeamento das diversas etapas da produção; a condição do espaço (espacial) como variável ativa na reprodução social; e o enfoque centrado no ramo, ou seja, na atividade produtiva dominante (produtivo) (Castillo; Frederico, 2010CASTILLO, R.; FREDERICO, S. Espaço geográfico, produção e movimento: uma reflexão sobre o conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade e Natureza, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 461-473, 2010., p. 463, grifos do original).
Já os círculos de cooperação no espaço são entendidos como etapas imateriais do processo produtivo, em que se estabelece uma relação entre os lugares e os agentes, conectando as diversas fases da produção, espacialmente separadas, e articulando os diferentes agentes do circuito espacial produtivo (Santos, 1988SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.; Silveira, 2010SILVEIRA, M. L. Região e globalização: pensando um esquema de análise. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 15, n. 1, p. 74-88, 2010.). Assim, os fluxos decorrentes do conjunto de empresas ligadas à produção de reagentes para diagnóstico que vimos observando extrapolam os limites da região e, por isso, os tratamos como circuitos espaciais, já que demonstram uma "circularidade mundial" (Moraes, 1989MORAES, A. C. R. Los circuitos espaciales de la producción y los círculos de cooperación en el espacio. In: YANES, L. A.; LIBERALI, A. M. (Org.). Aportes para el estudio del espacio socio-economico. Buenos Aires: Editorial El Coloquio, 1989. v. 1. p. 151-177.) em que diversas empresas, dispersas em diferentes pontos dos territórios nacionais de todo o planeta, exercem uma importante influência na sua conformação, que passamos agora a analisar.
Na Figura 1, verifica-se essa circularidade dos circuitos espaciais produtivos dos reagentes para diagnóstico por meio de dados, referentes à importação e à exportação, que mostram essas trocas não limitadas a apenas uma formação socioespacial, mas consolidadas por vínculos globais de comercialização de produtos intermediários, isto é, não acabados. Outro dado a considerar na análise desses mapas é a forte expressão das trocas entre o território brasileiro e os dois maiores complexos industriais de saúde (localizados nos EUA e na Alemanha), bem como a desigualdade dos volumes de exportação e importação entre o Brasil e esses mesmos países. Em 2011, importamos U$ 155 milhões dos EUA e U$ 107 milhões da Alemanha e exportamos, respectivamente U$ 615 mil e U$ 14 mil:
trata-se de uma troca extremamente desigual, bem como de uma divisão territorial entre complexos em que não somos apenas consumidores. Esse padrão de trocas também é claro em outros circuitos espaciais do território brasileiro (Antas Jr., 2014ANTAS JR., R. M. O complexo industrial da saúde no Brasil: uma abordagem a partir dos conceitos de circuito espacial produtivo e círculos de cooperação no espaço. GEOgraphia, Rio de Janeiro, v. 16, n. 32, p. 38-67, 2014., p. 7).
Em que pese a concentração das trocas entre os dois complexos mencionados - uma característica nada surpreendente da desigualdade entre agentes econômicos que marca o sistema capitalista em sua fase atual -, é fundamental considerar também o grande número de países que fazem trocas com o complexo industrial da saúde brasileiro, corroborando a existência de um circuito espacial produtivo dos reagentes para diagnóstico e sua abrangência planetária.
Relevante também é a estruturação oligopolizada que controla o setor de reagentes para diagnóstico no mundo, em que se destacam as três maiores empresas (Quadro 2) cuja produção de reagentes são especializações produtivas dos grandes laboratórios farmacêuticos transnacionais. Logo, sobressai uma característica dos circuitos espaciais produtivos da saúde, que é a capacidade de diferentes empresas participarem de especializações técnico-científicas também diferentes mas relacionadas, fato que a observação estrita das cadeias produtivas muitas vezes não leva em conta, tratando da empresa e de seus volumes de produção de modo geral, sem dar conta das ramificações que esses tipos de cooperação estabelecem no meio técnico-científico-informacional e em suas dinâmicas organizacionais.
Em grande medida, podem-se creditar essas especializações em mais de um setor produtivo às conexões entre agentes, antes separados ou em competição, por meio dos círculos de cooperação no espaço de modo a estender uma divisão territorial do trabalho em âmbito planetário e assegurar o abastecimento de vastas regiões. Uma vez mais, esses círculos de cooperação podem ser vistos como os fundamentos imateriais da divisão espacial da produção (Moraes, 1989MORAES, A. C. R. Los circuitos espaciales de la producción y los círculos de cooperación en el espacio. In: YANES, L. A.; LIBERALI, A. M. (Org.). Aportes para el estudio del espacio socio-economico. Buenos Aires: Editorial El Coloquio, 1989. v. 1. p. 151-177., p. 11) que, por meio de uma relação plural, ligam empresas, poderes públicos e instituições sem fins lucrativos, estabelecem parcerias entre empresas, universidades e outros institutos de pesquisa (Antas Jr., 2014ANTAS JR., R. M. O complexo industrial da saúde no Brasil: uma abordagem a partir dos conceitos de circuito espacial produtivo e círculos de cooperação no espaço. GEOgraphia, Rio de Janeiro, v. 16, n. 32, p. 38-67, 2014., p. 11).
Quando a análise muda de escala e se concentra na região e nos lugares onde efetivamente estão instaladas as plantas produtivas, vemos multiplicarem-se as empresas e as especializações necessárias à fabricação da grande diversidade de produtos que compõem o setor, revelando igualmente a diversidade de cooperações a serem estabelecidas, já que se trata de um ramo com um conjunto significativo de empresas voltadas a produtos específicos que serão utilizados por outras, até chegar ao consumo final.
No Quadro 3, vemos as maiores e mais importantes empresas do mercado de sistemas de diagnóstico in vitro, como os designa o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), isto é, as firmas hegemônicas do circuito espacial (particularmente Siemens e Roche) que se relacionam com as demais, mais especializadas e fornecedoras de bens para o consumo produtivo, como as que aparecem na Quadro 4. É importante salientar que apenas 7% de todos os reagentes para diagnóstico vendidos no Brasil são fabricados no país (Quadro 3), e que o mercado dos reagentes é controlado prioritariamente por empresas de importação e comercialização desses reagentes (Quadro 4). Destaque-se ainda que não é possível consumir os reagentes para diagnóstico a preços competitivos no mercado internacional porque, para importar, é preciso ter autorizações que só se outorgam às empresas importadoras, e não ao cliente final, nesse caso, laboratórios, hospitais, ambulatórios etc. A importação direta só acontece em casos especiais e definidos pelos importadores, e geralmente esses casos envolvem grandes fundações ou clientes privados com alto volume de consumo.
Do mesmo modo como se observa um forte domínio sobre a distribuição da produção por parte de empresas com uma logística altamente especializada, com implementação de sistemas de informação no controle de circulação e estoques (Quadro 3), e conformando um setor com empresas ora competindo, ora se coligando, vemos igualmente esses setores se multiplicarem em produções de reagentes baseados em biologia molecular, imunoquímicos, química clínica, hemostasia, hematologia, testes microbiológicos, testes genéticos e moleculares e aluguel de equipamentos médicos. No Quadro 4, observam-se segmentações produtivas, decorrentes de diferentes produtos com as repartições de mercado, isto é, por empresas de cada setor, em que fica destacado como muitas empresas - em geral, transnacionais - se repetem seguidamente, mudando um pouco sua posição, mas figurando como as principais produtoras e fornecedoras do mercado. Esses dados foram organizados pelo CADE justamente para analisar o processo de concentração da Prodimol, que adquiriu as empresas Bioeasy e Medlab:
Nesse mercado, bastante segmentado por diferentes empresas, nota-se também a ação do Estado como um forte círculo de cooperação no espaço no fomento da inovação, incrementando a participação de empresas privadas. Um exemplo disso foi a criação de um novo kit de reagente, de modo a estabelecer diversos vínculos de uma empresa com outros agentes do circuito espacial produtivo. A Lifemed, empresa nacional e com mais de 30 anos de atividade na área de produção de equipamentos e insumos destinados à economia da saúde, começou em 2010 a desenvolver um novo aparelho de diagnóstico capaz de detectar até 20 tipos diferentes de doenças (HIV, rubéola, sífilis, toxoplasmose, hepatites A, B e C, entre outras).
O desenvolvimento desse novo aparelho e de seu respectivo disco reagente está a cargo de uma parceria entre a Lifemed e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sendo esta responsável pela "pesquisa e desenvolvimento de novas aplicações e dispositivos de diagnóstico. E a Lifemed pesquisará e produzirá todos os equipamentos necessários à utilização da plataforma" (Valverde, 2010VALVERDE, R. Seminário anuncia duas parcerias inovadoras em produtos para diagnóstico. Agência Fiocruz de Notícias, Rio de Janeiro, 29 nov. 2010. Disponível em: <http://www.agencia.fiocruz.br/semin%C3%A1rio-anuncia-duas-parcerias-inovadoras-em-produtos-para-diagn%C3%B3stico>. Acesso em: 7 jul. 2014.
http://www.agencia.fiocruz.br/semin%C3%A... ). Segundo dados organizados por Silveira (2012)SILVEIRA, E. Diagnóstico fácil. Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 192, p. 62-65, fev. 2012., com o aprimoramento dessas pesquisas, outros órgãos de pesquisa passaram a integrar o processo de inovação tecnológica; entre eles, o Instituto Carlos Chagas (ICC), a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Universidade Nacional de Ciência e Tecnologia do Paraná (UNCTPR), o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), a agência Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP). Assim, vemos como a criação desse novo disco reagente moveu uma importante cooperação de diferentes agentes (sobretudo públicos), dispersos pelo território nacional, para pesquisa e desenvolvimento desse novo insumo para a economia da saúde. A Lifemed, ainda, contou com significativos investimentos do BNDES que, a partir de 2006, estabeleceu um vínculo de sociedade com ela e investiu cerca de R$ 36 milhões na implantação de uma nova unidade fabril em Pelotas (RS). Atualmente, ela tem três unidades de produção no Rio Grande do Sul e uma matriz comercial em São Paulo44Dados disponíveis no sítio eletrônico da empresa, www.lifemed.com.br, acesso em 20 de maio de 2013..
Por fim, chegamos a outra ponta do processo que conecta todo o circuito produtivo. Para que cada paciente tenha satisfeita sua demanda originada em prescrição médica - elemento essencial de toda essa lógica produtiva estruturada em diversos mercados interligados -, temos a distribuição dos produtos na venda a varejo, setor que também está oligopolizado por duas empresas centrais, no caso brasileiro, que distribuem grande parte dos reagentes produzidos pelo circuito espacial produtivo.
Assim, nos serviços de análises laboratoriais, destacam-se a Diagnósticos da América (DASA), que é a maior empresa da América Latina (e quarta no mundo) e atua no setor com 25 marcas diferentes, tendo apresentado, em 2012, um faturamento bruto de R$ 2,5 bilhões; e o laboratório Fleury, seu maior concorrente, também detendo várias marcas e em franco processo de crescimento por meio de fusões, com faturamento de R$ 485 milhões em 2012. Esses são exemplos relevantes desse mercado na ponta do circuito espacial dos reagentes para diagnóstico, pois, atuando nos segmentos ambulatorial, hospitalar, de suporte e do setor público, têm muitas vezes relação direta com pacientes, além de uma sofisticada logística.
Como se vê na Figura 2, há nas áreas centrais da capital paulista, principal mercado dessas empresas, uma grande concentração espacial de laboratórios ligados a esses grupos. Observe-se ainda que, onde existe essa concentração, temos a presença de outros fixos da saúde: o Complexo do Hospital das Clínicas da USP, a Faculdade de Medicina (FMUSP), a Faculdade de Saúde Pública (FSP-USP), a Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), o Instituto do Coração (INCOR-HCFMUSP), o Instituto do Câncer, o Instituto Adolfo Lutz, o Instituto de Infectologia Emilio Ribas, entre muitos outros, indicando prováveis relações dessas instituições com a DASA e o Fleury.
Assim, a urbanização corporativa se vai impondo à medida que os circuitos espaciais produtivos da saúde - e também os circuitos produtivos em geral - se instalam no território de modo a reorganizar o espaço urbano segundo uma lógica de apropriação privativa das empresas. Na capital paulista, vemos confirmado o que Milton Santos (1990)SANTOS, M. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1990. chamou de "metrópole corporativa e fragmentada", onde serviços de saúde como os diagnósticos passam a ser controlados por grandes empresas oligopolistas que determinam, inclusive, os produtos a serem utilizados por pacientes/clientes e, sobretudo, por hospitais públicos e privados, condicionando também uma série de dinâmicas da saúde pública. Essa concentração espacial "permite esclarecer os mecanismos de administração e controle do capital" (Lencione, 2008LENCIONE, S. Concentração e centralização das atividades urbanas: uma perspectiva multiescalar: reflexões a partir do caso de São Paulo. Revista de Geografia Norte Grande, Santiago, n. 39, p. 7-20, maio 2008., p. 8), que muitas vezes acarretam simultaneamente "a destruição de um capital e o forte aumento da valorização de outro" (Smith, 1988SMITH, N. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produção de espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988., p. 179), culminando na redução do número de empresas que controlam o setor.
Outro dado a levar em conta é a centralização do capital engendrada pelos diversos agentes do complexo: "faz parte da racionalidade da acumulação capitalista concentrar um grande número de população, renda, indústria de alta tecnologia e trabalho qualificado" (Lencione, 2008LENCIONE, S. Concentração e centralização das atividades urbanas: uma perspectiva multiescalar: reflexões a partir do caso de São Paulo. Revista de Geografia Norte Grande, Santiago, n. 39, p. 7-20, maio 2008., p. 8) em alguns pontos do território. É o que se observa na cidade de São Paulo, na dinâmica econômica dos grandes laboratórios, que conduzem a chamada lógica da "metrópole corporativa e fragmentada" (Santos, 1990SANTOS, M. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1990.).
No processo de centralização, a DASA tem tido um papel de extrema relevância no setor: nos últimos anos, adquiriu cerca de 22 laboratórios e ainda incorporou uma grande empresa de diagnóstico (a MDI Diagnósticos) do grupo de seguro saúde Amil. O Fleury também tem centralizado capitais, incorporando mais de 25 laboratórios de diagnóstico na última década. Juntos, esses dois laboratórios dominam mais de 20% do setor de diagnóstico no Brasil, no concernente a distribuição e comércio. Combinadas com as seletividades espaciais, centralização e concentração geram uma verdadeira segmentação de tarefas no território (Santos, 2009aSANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: EDUSP, 2009a.), onde alguns pontos passaram a se destacar como "especializados" em certos serviços e atividades e/ou concentradores de algumas infraestruturas interessantes à expansão do capital. A concentração dessas atividades nesses pontos e a maneira como as corporações passaram a usar as infraestruturas públicas de saúde - como as citadas acima, que conformam o Quadrilátero da Saúde e o Arco da Paulista55Estamos denominando Quadrilátero da Saúde a área que abrange o complexo do Hospital das Clínicas, o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, o Instituto do Coração (INCOR), o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP), a Faculdade de Medicina (USP), a Faculdade de Saúde Pública (USP), o Instituto Médico Legal e a Secretaria de Saúde, além de instituições públicas e privadas presentes nos bairros adjacentes que estão em relação com as referidas. Arco da Paulista é a denominação que o relatório do SEADE sobre Ciências da vida humana na cidade de São Paulo, de 2010, dá ao cluster de saúde que vai do Quadrilátero até a região do Hospital São Paulo e da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), além de todas as instituições relacionadas, da produção de conhecimento aplicado, ensino e mesmo da produção industrial e de serviços. Esse relatório aponta quatro clusters na cidade, sendo o do Arco da Paulista o mais importante (Seade, 2010). - e a incentivar a construção de outras são mais uma face da chamada urbanização corporativa, isto é, o uso privativo pelas grandes empresas de parcelas do investimento público presente ali para promover serviços de saúde, conhecimento e tecnologias especializadas, o que ocorre desde as primeiras décadas do século XX.
Vê-se, portanto, como é extensa e abrangente a cooperação que envolve o circuito espacial produtivo dos reagentes para diagnóstico - com relações entre agentes que vão desde ações em escala planetária, passando pelo complexo industrial da saúde de estruturação regional, e atingindo a dimensão local, no cotidiano dos indivíduos, implicados na concepção dominante de medicina curativa, fortemente ancorada na inovação tecnológica -, e como ela é capaz de induzir profundas transformações na dinâmica espacial das sociedades envolvidas.
Considerações finais
O exercício da medicina ocidental em todo o século XX, e até hoje, revela um saber muito atrelado aos interesses corporativos, pois, ao se concentrar num pensamento único sobre o que sejam a "doença" e a forma de combatê-la - que é a essência da chamada "medicina curativa", em detrimento da "medicina preventiva" -, vemos historicamente o desenvolvimento tecnológico respondendo às demandas de tal concepção. Controladas por empresas hegemônicas, as estruturas técnico-científicas altamente especializadas apresentam, no período atual, tendência a uma forte cooperação que se estende planetariamente e de onde emergem os circuitos espaciais produtivos da saúde, dos quais tomamos aqui apenas o de reagentes para diagnóstico. Além disso, a maneira como as empresas do complexo estão distribuídas no território demonstra claramente o processo de intensa concentração espacial dessas empresas e dos laboratórios.
No começo do século XX, Camille (Vallaux 1914VALLAUX, C. El suelo y el Estado. Madri: Daniel Jorro, 1914., p. 164) já advertia que "quando se controlam certas estradas, não se pode deixar de ter influência nos países que elas religam. Assim, a política e a economia se emaranham nas engrenagens da circulação". Logo, é possível estabelecer uma importante ligação entre a circulação e questões políticas e econômicas da formação socioespacial brasileira, pois as empresas do complexo fazem grande uso das redes que moldam e dominam o território.
Para atenuar as consequências deletérias desse tipo de uso do território, é preciso considerá-lo como um todo, e não apenas como um suporte das redes que transportam os vetores de modernização alheios aos anseios dos lugares. A criação de grandes sistemas de engenharia, como demanda o circuito dos reagentes para diagnóstico, deve levar em conta os diversos usos possíveis que eles podem oferecer à saúde pública no seu território de atuação. Uma política pública regulatória que favoreça o ordenamento da legislação nacional - segundo a qual a saúde é direito de todos e dever do Estado - impõe a reversão dessa lógica atual, que concentra os serviços e os profissionais altamente especializados do território em apenas alguns pontos centrais.
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- 1O presente artigo é resultado de pesquisa fomentada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, processo 2010/18.750-8.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2015
Histórico
- Recebido
18 Nov 2013 - Revisado
24 Jun 2014 - Aceito
11 Jul 2014