Resumos
Os mecanismos de poder tomaram de assalto a vida em suas várias dimensões, dos genes à produção onírica. Teóricos oriundos da autonomia operaista, impregnados de suas leituras de Espinosa, Foucault, Deleuze, ressignificaram esse contexto de expropriação fazendo ver seu avesso, a positividade ontológica que está na sua base. Assim, chegaram a formular a ideia de que ao biopoder se contrapõe a biopotência da Multidão Ao articular as noções de biopolítica, produção do comum, trabalho imaterial e singularidade, ofereceram uma nova inteligibilidade aos processos contemporâneos, bem como às formas de resistência que neles emergem, ali onde reversibilidades e reversões nas mais diversas escalas anunciam recomposições ainda incertas.
Biopoder; Biopolíticas; Produção do Comum; Vida; Multidão
Introdução
Queria agradecer este honroso convite. Eu vou falar da vida. Não da vida em geral, mas da vida no contexto contemporâneo frente a duas tendências contrapostas que nos obrigam a repensar esse tema tão antigo e a cada dia mais invocado.
A primeira dessas tendências pode ser formulada como segue: o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou em todas as esferas da existência e as mobilizou e as pôs para trabalhar em proveito próprio. Desde os genes, o corpo, a afetividade, o psiquismo até a inteligência, a imaginação, a criatividade, tudo isso foi violado e invadido, mobilizado e colonizado, quando não diretamente expropriado pelos poderes. Mas o que são os poderes? Digamos, para ir rápido, correndo todos os riscos de simplificação: as ciências, o capital, o Estado, a mídia etc. Mas essa é uma resposta muito geral e molar, pois o poder é muito mais esparramado, disperso, infinitesimal, molecular do que essa frase deixa supor. Em todo caso, o que talvez seja relativamente novo é que esses poderes se exercem de maneira positiva, isto é, investindo a vitalidade social de cabo a rabo, intensificando-a, mobilizando-a, otimizando-a e ao mesmo tempo monitorando-a por dentro, pilotando-a e integrando seus elementos.
Pequeno exemplo: o trabalho dito imaterial, hoje em dia, ao invés de apenas sapatos e geladeiras, produz sobretudo imagens, informações, serviços. Ele requer dos trabalhadores não só força bruta, nem seus músculos, mas sua inteligência, sua imaginação, sua criatividade, inclusive sua afetividade, a sua conectividade, em suma sua alma, sua vida. Se antes essas dimensões vitais e a sua inventividade pertenciam, sobretudo, à esfera subjetiva e privada, no máximo ao campo das artes, elas são hoje o elemento essencial da produção e até mesmo a principal fonte de valor. Ao mesmo tempo o que nós consumimos, hoje, mais do que sapatos e geladeiras, são estilo de ser, maneira de viver, formas de vida, sentidos, toneladas de subjetividade.
Assim, de uma ponta a outra do circuito econômico, da produção ao consumo, o que nos é ora extorquido e sequestrado, ora investido e intensificado, ora reformatado e revendido, é a vida. Não há como deixar de surpreender-se com isso. A vampirização e a comercialização de formas de vida talvez explique uma parte de nossa claustrofobia atual. Se antes ainda tínhamos espaços preservados da ingerência direta dos poderes ou, como diriam os marxistas, se antes estávamos diante de uma subsunção formal da sociedade ao capital, hoje estamos diante de uma subsunção real, isto é, integral da vida concreta ao capital abstrato. Ou, como se diria, do trabalho vivo ao trabalho morto. Se antes o inconsciente ou a natureza ainda pareciam domínios invioláveis para o capital, como notou, por exemplo, Frederic (Jameson 1996JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. ), hoje mesmo eles, o inconsciente e a natureza, foram incorporados e postos para trabalhar. Se numa sociedade disciplinar ainda tínhamos a ilusão de transitar de uma esfera institucional a outra com uma margem de manobra e respiro, numa sociedade de controle essa margem parece ter se esvaído. Em suma, o corpo, o psiquismo, a linguagem, a comunicação, a vida, mesmo a fé, nada disso preserva já qualquer exterioridade em relação aos poderes, não podendo, portanto, servir-lhes de contrapeso ou de âncora crítica na resistência a eles. Os poderes operam de maneira imanente, não mais de fora nem de cima, mas como que por dentro, incorporando, integralizando, monitorando, investindo de maneira antecipatória até mesmo os possíveis que se forem engendrando, portanto colonizando até mesmo o futuro.
A vida: sua positividade indomável e primeira
É onde intervém o segundo eixo que eu gostaria de desenvolver, sobretudo em autores provenientes da autonomia italiana que, a partir do seu espinozismo e marxismo singulares, mesclaram sua bagagem de lutas a uma apropriação original da filosofia de Foucault e Deleuze. Eu resumo esse eixo da seguinte maneira: quando parece que "tá tudo dominado", como dizia o funk, no extremo da linha se insinua uma reviravolta que ressignifica a própria dominação como segunda. Aquilo que parecia submetido, subsumido, controlado, dominado, isto é, a vida, revela num processo mesmo de expropriação a sua positividade indomável e primeira. Não se trata de romantizar uma capacidade de revide e de resistência, mas sim de repensar a relação entre os poderes e a vitalidade social na chave da imanência. Poderíamos resumir esse movimento do seguinte modo: ao poder sobre a vida, biopoder, responde a potência da vida, biopotência. Ao biopoder responde a biopotência, ao poder sobre a vida responde a potência da vida. Mas esse "responde" não quer dizer uma reação, já que a potência se revela como o avesso mais íntimo, imanente e coextensivo ao próprio poder. Daí a dificuldade hoje de separar o joio do trigo, de saber de que lado estamos. Isso significa, talvez, que a própria vitalidade social, quando dominada pelos poderes que a vampirizam, aparece subitamente como uma potência que já estava lá desde sempre, potência primeira que o poder persegue e sobre a qual ele se constrói e se ancora. Potência primeira, esta da vida, que goza virtualmente de uma força soberana, constitutiva, inaugural e indomável. Aquilo que parecia inteiramente submetido ao capital ou reduzido à mera passividade, ou seja, a vida, aparece nessa segunda leitura como um capital, como a fonte maior de valor, como reservatório inesgotável de sentido, de formas de existência, de direções que extrapolam as estruturas de comando e os cálculos dos poderes constituídos que pensavam pilotá-la, mesmo quando esses poderes se exercem nas suas modalidades mais acentradas, rizomáticas, imanentes.
As forças vivas presentes na rede social deixam, assim, de ser meras reservas passivas à mercê de um monstro insaciável, para se tornarem positividade imanente e expansiva que os poderes se esforçam em regular, em modular ou controlar. Nessa perspectiva, a produção do novo já não aparece como exclusivamente subordinada aos ditames do capital nem como proveniente dele, muito menos dependente da sua valorização. A produção do novo está disseminada por toda parte e constitui uma potência psíquica e política de todos e de cada um. Como diz Maurizio (Lazzarato 2002LAZZARATO, M. Puissances de l´invention. Paris: Editora, 2002. (Collection les empêcheurs de penser en rond).), baseado em Gabriel Tarde: todos e qualquer um inventam na densidade social da cidade novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Eis uma maneira original de ler a vitalidade social, que exige um olhar menos reificado sobre os modos de dominação, como que os escovando a contrapelo e reencontrando a potência de variação e a força-invenção de que eles pretendem apropriar-se e que não emana deles. Força-invenção, eis uma expressão chave que poderia definir certa dimensão da vida hoje. Eu disse: a vida mesmo se tornou o capital; em outros termos: se as maneiras de ver, de sentir, de pensar, de perceber, de morar, de vestir, tornam-se objetos de interesse e de investimento do capital, elas mesmas passam a ser fontes de valor e podem elas mesmas tornarem-se um vetor de valorização.
Eu vou dar um exemplo muitíssimo concreto: um grupo de presidiários do Brasil ficou famoso ao compor e gravar sua música. O que seus integrantes estavam mostrando e vendendo era não só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas também seu estilo, a sua singularidade, a sua percepção, a sua revolta, a sua causticidade, a sua maneira de se vestir, inclusive de morar na prisão, de gesticular, de protestar, em suma, sua vida. Seu único capital sendo sua vida no seu estado extremo de sobrevida e de resistência, é disso que eles fizeram um vetor de valorização, é essa vida que eles capitalizaram e que, assim, se autovalorizou e produziu valor. Nas periferias das grandes cidades brasileiras isso se amplia a cada instante: uma economia paralela, libidinal, axiológica, grupal ou de gangue, estética, monetária, política, feita dessas vidas extremas. É claro que num regime de entropia cultural essa "mercadoria" interessa aos poderes pela sua estranheza, aspereza, diferença, visceralidade, ainda que facilmente também ela possa ser transformada num mero exotismo de consumo descartável. É o caso do meu segundo exemplo, quase um contraexemplo. Há alguns anos eu fui contatado por uma ONG de índios para ajudar na vinda a São Paulo de duas tribos do Xingu, que queriam marcar presença na comemoração dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil, porém, a seu modo, apresentando a força de seu ritual e oferecendo ao presidente da época uma carta aberta em que declaravam nada ter a comemorar. Eu acompanhei a viagem das duas tribos, Xavante e Mehinaku, que não se conheciam - uma tribo mais guerreira a outra mais espiritual. Viemos num ônibus desde o Xingu até São Paulo por dois dias inteiros; muitos deles nunca haviam visto uma cidade e na minha qualidade de "testemunha" acompanhei o seu olhar de espanto, de medo, de fascínio nas suas andanças por São Paulo. Eles queriam que a sua apresentação para os brancos fosse um gesto de afirmação cultural, uma aposta em sua sobrevivência no futuro. Mas como evitar que o sentido ritual e político daquela demonstração, uma vez levada a um palco iluminado, não se diluísse na mera espetacularização, inclusive televisiva? A forma de vida que queria salvaguardar-se e se autovalorizar corria o risco óbvio de ser deglutida como folclore. Foi o que aconteceu com a maior exposição de arte indígena que tive o privilégio de visitar junto com esses mesmos índios, na Oca, no Ibirapuera. Na saída o cacique me desabafou, num rompante de nitzscheanismo tropical: "Tudo isso é pra mostrar a vaidade de conhecimento do homem branco, não a vida dos índios". Nunca ficou tão claro pra mim o quanto a assepsia de um museu encobre a violência e o genocídio; as paredes brancas, as superfícies lisas, as curvas elegantes dos corrimões metálicos, a luminosidade cuidada, tudo ali ocultava o quanto cada objeto exposto era espólio de uma guerra, não havia uma gota de sangue em toda a exposição, a morte fora expurgada dali, mas também a vida. Nessa museologização da cultura indígena reencontramos o nosso vampirismo insaciável. Acrescento um último exemplo. Artur Bispo Rosário é um dos mais destacados artistas da atualidade no Brasil, se é que se pode chamar o seu trabalho feito todo ele ao longo de dezenas de anos de internação no hospício, de artístico; ele que tinha uma única obsessão na vida, registrar sua passagem pela terra para o dia de sua ascensão ao céu, momento para o qual preparou seu majestoso manto da apresentação, onde está inscrita parte da história universal. Os museus, críticos de arte, pesquisadores, colecionadores, psicanalistas, o mercado tomou de assalto essa sua vida singular e também o seu diálogo direto com Deus e com todas as regiões da terra, de modo que essa missão celestial se tornou objeto de contemplação estética, como era de se esperar, embora tenha semeado nos modos de se conceber a relação entre arte e vida sua dose de estranheza.
Bem, desses três exemplos saíram destinos variados: um bandido vira pop star dentro da cadeia, um outro recusa justamente o mercado com o qual ele mantém uma distância crítica, o louco é catapultado para esfera museológica, o índio se indigna com o modo pelo qual os brancos empalham os signos de sua vida. Muito grosseiramente eu diria: em todos eles o que está em jogo são formas de vida ou a vida. Mas ora a vida funciona como um capital, quer dizer ela produz valor, ora ela é vampirizada pelo capital, chame-se ele mercado, mídia ou sistema da arte. Quando a vida funciona como um capital, ela reinventa suas coordenadas de enunciação e faz variar suas formas; quando ela é vampirizada pelo capital, é rebatida sobre a sua dimensão nua, como diz Giorgio (Agamben 2000AGAMBEN, G. A imanência absoluta. In: ALLIEZ, E. (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: 34 Letras, 2000.). Isto é, de mera vida, de sobrevida, com que nos transformamos, por exemplo, em gado cibernético ou em cyber zumbis, como diz Gilles Châtelet (1998) em seu livro Pensar e viver como porcos.
A multidão
Seria o caso de percorrer essas duas vias maiores que eu acabei de apresentar como numa fita de Möebius:22Uma fita de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta numa delas. Suas propriedades: é uma superfície com uma componente de fronteira; não é orientável; possui apenas um lado e uma borda; representa um caminho sem fim nem início, infinito, onde se pode percorrer toda a superfície da fita que aparenta ter dois lados, mas só tem um. o biopoder, a biopotência, o poder sobre a vida, as potências da vida. Essa reversibilidade entre vida e capital e a ausência de qualquer determinação entre os dois termos é uma maneira de deixar entre eles a relação indeterminada, como de fato ela se apresenta aos nossos olhos hoje em dia - daí também a nossa aflição, não há nada de decidido de antemão. O próprio termo biopolítica que circula cada vez mais entre nós tem um sentido duplo: ora designa certas formas de dominação sobre a vida, tal como definidas por (Foucault 1994FOUCAULT, M. La naissance de la médecine sociale. In: DEFERT, D.; EWALD, F. (Org.). Dits et écrits. v. 3. Paris: Gallimard, 1994.), ora justamente o contrário ou o mesmo visto debaixo, a saber a vitalidade social e a sua potência constituinte tal como Toni (Negri 2000NEGRI, A. Kairós, Alma Venus, multitude. Paris: Calmann-Lévy, 2000.), em parte inspirado em Deleuze, subverteu-lhe o sentido original em Foucault. Alguns autores, para diferenciar os dois sentidos, chamam a primeira, a da dominação, de biopolítica maior e a segunda, a da resistência, de biopolítica menor. Sei que parece confuso, mas é porque essas duas dimensões, embora distintas conceitualmente, misturam-se inteiramente no cotidiano de nossa existência. Por isso, às vezes, me parece até preferível tirar proveito dessa ambiguidade e, ao invés de fixar um conceito unívoco de biopolítica, tratar de instalar-se de chofre nesse paradoxo reabrindo um leque de sentidos em que a noção de vida, até ali utilizada de maneira clara, pulveriza-se e se decompõe para combinações infinitas. Com isso a vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos, incluindo a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva, o intelecto geral. O biós é remetido intensivamente a uma espécie de caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico, sendo pensado de maneira espinosista como o poder de afetar e de ser afetado no contexto de um agenciamento muito complexo.
A partir daí surge uma pergunta: dada essa potência de vida disseminada por toda parte, dada essa biopotência presente em cada canto, dada essa força-invenção presente em cada lugar, que novas redes de vida são possíveis? Que novas possibilidades de se criar laço e também distância surgem em cada dia e em cada contexto? Que tipo de comunidades se desenha no horizonte? Em que sentido, por exemplo, um conceito como o de multidão proposto por (Negri 2000NEGRI, A. Kairós, Alma Venus, multitude. Paris: Calmann-Lévy, 2000.) a partir de (Spinoza 2007SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autentica, 2007.) poderia ajudar a pensar essas sociabilidades emergentes? A massa é homogênea, compacta, segue um líder que a representa, tem um único rumo, uma única palavra de ordem. Ao contrário disso, a multidão é heterogênea, plural, ela é desprovida de centro, de líder, de hierarquia, inclusive é desprovida de uma direção unívoca, como se viu nas manifestações de junho de 2013: era multidão, não massa. Ora, o que é comum na multidão tão heterogênea? Será esse biós social, essa vitalidade constituída de linguagem, de inteligência, de inventividade, de afetação recíproca, de sensorialidade alargada? Isso é que é comum, isso é o comum da multidão, isso é o que nós vimos nas manifestações? E o que quer a multidão? Foi o que se perguntou logo em seguida. A multidão quer, claro, mais saúde, mais educação, mais serviços, menos corrupção, mais transparência, talvez uma reforma no sistema político. Mas será só isso ou algo muito mais radical do que isso? Menos quantificável, talvez justamente por isso mesmo menos negociável, talvez menos traduzível imediatamente numa bateria de propostas concretas. Talvez o que a multidão queira também sejam novas maneiras de exercer sua potência, de fazer valer o seu desejo, de pôr para funcionar sua libido coletiva, de redesenhar a lógica da cidade, da coexistência, inclusive da ruptura, do dissenso, da dissidência, da irrupção do novo.
Volto um segundo a Antonio (Negri 2000NEGRI, A. Kairós, Alma Venus, multitude. Paris: Calmann-Lévy, 2000.). Ele diz, mas não é só ele, que existe uma crise do comum hoje em dia, que alguns ditos pós-modernos entendem como sendo o fim do comum, como quando se diz: "Bom, o espaço público foi totalmente privatizado ou a linguagem foi totalmente expropriada pelo espetáculo, pela mídia etc." Sim, é perfeitamente plausível dizer que cada vez mais o espaço público está sendo privatizado; que cada vez mais a linguagem, que é o que nós temos em comum, está sendo expropriada por certos meios, mecanismos de comunicação. No entanto, eu diria que nas condições atuais é que o comum está apto a aparecer na sua inteireza e de maneira imanente, dado precisamente o novo contexto produtivo e biopolítico atual. Eu me explico: há algumas décadas o comum era aquele espaço abstrato que conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como espaço público, seja como política, nação, essas grandes palavras compostas que representavam o comum. Hoje em dia o comum é o espaço produtivo por excelência. Por exemplo, a produção contemporânea hoje é impensável sem o intelecto geral, o conjunto de cérebros em cooperação, a linguagem daí resultante. Inclusive essa hibridação homem-máquina, uma sensorialidade alargada, essa circulação ininterrupta de fluxos, essa sinergia coletiva, essa pluralidade afetiva, essa subjetividade coletiva, tudo isso faz parte do comum. Afinal, o que é esse comum senão um conjunto das singularidades em variação contínua? A multidão é um conceito que tenta expressar exatamente essa conjunção entre o comum e o singular. Jamais o comum se sobrepõe ao singular; é a multiplicidade e a variação, é a desmedida de potência da multidão que o poder tenta controlar, tenta conter, tenta regular, tenta modular. Como se vê, nessa acepção o comum nada tem a ver com unidade, com medida, com soberania no sentido clássico da palavra, e tem muito menos a ver com as figuras todas que pretendem representar ou falar em nome do comum, a mídia, os políticos, os impérios, daí porque a resistência às vezes passa, hoje, por um êxodo em relação a certas instâncias que tentam falar em nome do comum. Talvez a resistência passe hoje cada vez mais por uma experimentação imanente desse comum, pela constituição a partir desse comum, de novos espaços e novos tempos, pela invenção de novas formas de cooperação e novas formas de associação, de novos desejos e de novas crenças, como dizia (Tarde 1999TARDE, G. Monadologie et sociologie. Paris: Synthélabo, 1999. (Collection les empêcheurs de penser en rond).) em sua obra ainda no século 19. Ora, nada disso é simples.
Novos desejos, que mistério é esse?
Eu vou me permitir um pequeno desvio a respeito dessa expressão enigmática, mesmo que ele soe deslocado nesse contexto.
Beatriz (Preciado 2008PRECIADO, B. Testo Yonqui. Espanha: Espasa, 2008.), autora espanhola, define o capitalismo contemporâneo como um regime fármacopornográfico. Ela mostra como durante o século XX o psiquismo, a libido, a consciência, a heterosexualidade, a homossexualidade, tudo isso foi sendo transformado em realidades tangíveis, isto é, em substâncias químicas, em moléculas comercializáveis, em corpos, em biotipos humanos, em intercâmbio gestionável pelas multinacionais farmacêuticas. Então o êxito da ciência, segundo ela, estaria em transformar a depressão em Prozac, a masculinidade em testosterona, a ereção em Viagra. É uma molecularização do biopoder, mas no sentido típico da palavra. Sobre Toni Negri e os demais italianos, que ela valoriza, ainda assim considera que eles se detêm quando chegam à cintura. Ela quer ir da cintura para baixo para poder pensar a multidão: "[...] mas se fossem na realidade os corpos insaciáveis da multidão, seus paus e seus clitóris, seus ânus, seus hormônios, suas sinapses neurosexuais, se o desejo, a excitação, a sexualidade, a sedução e o prazer da multidão fossem os motores de criação de valor na economia contemporânea, se a cooperação fosse uma cooperação masturbatória e não simplesmente uma cooperação de cérebros". E aí vem a frase mais ampla:
Ousemos a hipótese: as verdadeiras matérias-primas do processo produtivo atual são a excitação, a ereção, a ejaculação, o prazer e o sentimento de autocomplacência e de controle onipotente, o verdadeiro motor do capitalismo atual é o controle fármacopornográfico da subjetividade, cujos produtos são a serotonina, a testosterona, os antiácidos, a cortisona, os antibióticos, o estradiol, o álcool e o tabaco, a morfina, a insulina, a cocaína, o viagra e todo esse complexo material-virtual que pode ajudar na produção de estados mentais e psicossométicos de excitação, de relaxamento e de descarga, de onipotência, de controle total. O corpo adicto e sexual, o sexo e todos os seus derivados semióticos e técnicos, são hoje o principal recurso do capitalismo pós- fordista."33Preciado, B. Testo Yonqui. A sair pela n-1edições.
Dificilmente se encontrará descrição mais provocativa do niilismo biopolítico e capitalístico contemporâneo, não por acaso rigorosamente fiel à lógica de Möebius que eu destaquei desde o início. A autora, ao mesmo tempo, chama atenção pra essa matéria que está sendo monitorada e vampirizada hoje em dia, a força orgásmica, ou no latim que ela aprendeu quando estudou no colégio de freiras onde paquerava todas as coleguinhas, potentia gaudendi, uma espécie de potência de excitação global de cada molécula viva. Se a pensarmos radicalmente, ela tende a uma ampliação crescente enquanto acontecimento, enquanto relação, enquanto prática, enquanto devires, mas também ela pode sim ser vítima de uma espécie de apropriação como objeto privado ou comercializável, apesar da sua natureza expansiva e comum. Então, diz a autora, se o biopoder se acaparar de algo não é da vida, mas desse corpo tecnovivo, desse tecnoeros... assim, o que estaria em jogo nessa força, nesse embate, diz ela, é a força orgásmica que justamente não pode ser pensada como matéria inerte ou passiva, a não ser nessa sua redução fármacopornográfica, ali onde ela é inteiramente expropriada como vida nua, diria (Agamben 2000AGAMBEN, G. A imanência absoluta. In: ALLIEZ, E. (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: 34 Letras, 2000.).
É óbvio que a descrição da Beatriz Preciado crava na carne do presente, já que percorre um pouco da latitude do biocorpo às voltas com o que ela chama de lucro ejaculante, do qual estariam excluídas por ora massas inteiras do planeta, para o bem e para o mal. Em todo caso, para além da descrição viva de um contexto que o nosso pudor tem dificuldade em nomear, a autora teve o mérito, entre outros, de oferecer o próprio corpo como um laboratório em que ela experimenta voluntariamente as derivas da sensibilidade e do erotismo, a partir de um protocolo de intoxicação à base do gel de testosterona. Ela esclarece que seu livro a respeito pode ser lido como um manual de bioterrorismo de gênero na escala molecular, ou simplesmente como um exercício de desmontagem e de remontagem da subjetividade.
Concluindo com o desejo...
Como as virtualidades do desejo por vezes são esmagadas por uma megamáquina social? Diz um filósofo: o desejo é o irracional de toda racionalidade, o desejo implica numa ruptura de causalidade, se há eventos que nós não entendemos segundo uma série causal é preciso que tenha havido uma ruptura inexplicável, não porque seja da ordem do mistério, mas porque é da natureza do desejo provocar rupturas na série causal, como se o desejo rompesse por vezes com a lógica das causas e das metas.
Então há uma dimensão subversiva no desejo, explosiva, há acordes libidinais, coletivos, de multidão. E o desejo da multidão ninguém para, vimos como foi difícil, muita polícia, todo mundo assustado, para onde vai levar isso? Ninguém sabe, ninguém sabe; algo no desejo da multidão é da ordem do imponderável, são momentos em que parece que tudo é possível. E é isso que às vezes nos foi sequestrado, a ideia mesma do possível, de que algo seja possível ou de que algo diferente seja possível. Isso nos foi sistematicamente sequestrado. Então, quando há um acontecimento em que se reintroduz essa dimensão, a do "tudo é possível", algo aconteceu, quebrou-se a continuidade do tempo histórico. É a força que (Nietzsche 1987NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 2.) chamou de intempestiva. Agenciamentos de desejo que fazem saltar pelos ares muita coisa, muitas das coisas que nos envenenam a vida.
- AGAMBEN, G. A imanência absoluta. In: ALLIEZ, E. (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: 34 Letras, 2000.
- CHATELET, G. Vivre et penser comme des porcs: de l'incitation à l'envie et à l'ennui dans les démocraties-marchés. Paris: Gallimard, 1998.
- FOUCAULT, M. La naissance de la médecine sociale. In: DEFERT, D.; EWALD, F. (Org.). Dits et écrits. v. 3. Paris: Gallimard, 1994.
- JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
- LAZZARATO, M. Puissances de l´invention. Paris: Editora, 2002. (Collection les empêcheurs de penser en rond).
- NEGRI, A. Kairós, Alma Venus, multitude. Paris: Calmann-Lévy, 2000.
- NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 2.
- PRECIADO, B. Testo Yonqui. Espanha: Espasa, 2008.
- TARDE, G. Monadologie et sociologie. Paris: Synthélabo, 1999. (Collection les empêcheurs de penser en rond).
- SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autentica, 2007.
- 1Texto que resultou da conferência de abertura do 13º Congresso da Associação Paulista de Saúde Pública, proferida pelo autor em 2013.
- 2Uma fita de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta numa delas. Suas propriedades: é uma superfície com uma componente de fronteira; não é orientável; possui apenas um lado e uma borda; representa um caminho sem fim nem início, infinito, onde se pode percorrer toda a superfície da fita que aparenta ter dois lados, mas só tem um.
- 3Preciado, B. Testo Yonqui. A sair pela n-1edições.
- 4Text from the opening conference of the 13th Congress of the Associação Paulista de Saúde Pública (São Paulo's Public Health Association), presented by the author in 2013.
- 5A Möbius strip is a topological space obtained by gluing the two ends of a strip, after turning around one of them. Its properties: it is a surface with a boundary component; it is not adjustable; it only has one side and an edge; it is a path with no end or beginning, infinite, where one can go through the entire surface of the strip that appears to have two sides, but has only one.
- 6Preciado, B. Testo Yonqui. To be published by n-1edições.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2015
Histórico
- Recebido
11 Ago 2014 - Aceito
13 Abr 2015