A produção do espaço e sua relação no processo de saúde - doença familiar

Space production and its relation in the health process - family disease

Juliana Maria Damelines Pareja Francismara Fernandes Guerra Sidnea Ribeiro Vieira Karla Maria Damiano Teixeira Sobre os autores

Resumo

Este artigo tem como objetivo propor uma forma de análise social do processo saúde-doença na família, desenvolvendo o conceito de espaço sob a perspectiva da teoria ecossistêmica e conceptual da determinação social em saúde. Primeiramente, uma discussão do conceito de "família" é feita, considerando as vertentes social e ecológica do princípio de ordem e reprodução. Em seguida, discute-se sobre nutrição e trabalho como formas de adaptação, estratégias e administração de recursos das famílias, para que se organizem saudavelmente no ecossistema e como ecossistema, assim como para produzir o espaço. Nesse contexto, procura-se estabelecer que a produção social do espaço e sua organização estruturam as condições de vida de seus ecossistemas, bem como das formas de relacio namentos entre as pessoas e o ambiente, que podem desencadear o processo saúde-doença familiar. Fi nalmente, procura-se estabelecer como se abordar socialmente o processo saúde-doença na família, segundo sua relação na produção social do espaço.

Palavras-chave:
Processo Saúde-Doença; Sistema; Ambiente; Produção Social do Espaço; Família

Abstract

This article aims to propose a social analysis of the process of health-illness in the family, developing the concept of space from the perspective of eco system theory and concept of social determinants of health. First, it is a discussion on the concept of "family", considering the social and ecological aspects of the order and reproduction principle. Then, a discussion on nutrition and work as forms of adaptation, strategies and administration of families' resources, to organize themselves in an ecosystem and as ecosystem, as to produce space. In this context, we tried to establish that the social production of space and its organization structure the living conditions of their ecosystems and forms of relationships between people and their environ ment, which can trigger the process health-disease.

Keywords:
Process of Health-Illness; System; Envi ronment; Social Production of the Space; Family

Introdução

Quando a doença aparece na unidade familiar, acarreta-se uma possível desvantagem ecológica e uma diferenciação social nesse sistema. Como resultado dos processos de produção e reprodução social, a doença mostra identificáveis diferenças e distribuições de pessoas e classes. Os processos de produção e reprodução do espaço acontecem em escalas, como na família ou no lar. Por isso, é necessário entender como se dão ou como podem aparecer os processos de saúde e enfermidade nestes grupos humanos. Para tanto, propõe-se uma reflexão conceitual de como se dão os processos de saúde e enfermidade nas unidades familiares sob a perspectiva da determinação social da saúde, tendo como eixo de ação a compreensão do espaço, associada à teoria ecossistêmica.

A teoria ecossistêmica desenvolve o conceito de espaço, necessário ao entendimento de família, como algo físico que envolve troca de informação, matéria e energia. No entanto, a família cria e reproduz o es paço, que não é necessariamente físico, mas também social, que é mais amplo do que o conceito empregado pela ecologia. Dessa forma, o espaço define-se, por exemplo, nas práticas sociais e no corpo, e implica, ainda, em normas de produção e de reprodução de informação, matéria e energia no tempo.

O espaço e a forma de sua produção geram con dições de exposição e vulnerabilidade nos diferentes ambientes e sistemas, desenvolvendo uma dialética entre indivíduos, espaço, e saúde-doença. A família e o espaço estabelecem relações para seu desenvol vimento e sua adaptação através da interação com os sistemas materiais e simbólicos, conforme as práticas, habitus e estilos de vida, que estruturam suas condições de vida. Igualmente, os indivíduos e as famílias estão em interdependência e inter-relação com sistemas de ordem geral e proximal que podem delimitar ou impulsionar as formas de agir. Dessa forma, uma unidade familiar saudável tem mais oportunidades de adaptar-se na sociedade, tal como uma sociedade marcada pela exclusão pode afetar essa salubridade.

Marco teórico

Para construir um objeto que permita uma avaliação contextualizada e biopsicossocial do processo, é necessário gerar conhecimento sobre o caráter social dos processos saúde-doença que permita ir além do objeto direto da medicina clínica e da epidemiologia (que leva em conta, apenas, as pectos biológicos da enfermidade). As investigações sobre os padrões de desgaste da saúde e do perfil patológico devem incluir os agravos à saúde e os membros dos grupos humanos envolvidos no pro cesso de saúde-doença (por exemplo, comunidades, cidades, bairros ou famílias) e suas características comuns. A coletividade social e sua história deter minam características e probabilidades na variação biológica individual que geram as doenças; assim a relação entre o processo de saúde-doença se dá de forma coletiva e individual (Laurell, 1981LAURELL, A. C. La salud enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, México, DF, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1981.).

Para tanto, apresentamos uma discussão que se inicia na conceituação de família, perpassa a organização do sistema familiar sob a ótica da Teoria Ecossistêmica, e o processo saúde-doença, sob a ótica da Teoria da Determinação Social da Saúde, para, então, propormos uma abordagem do caráter social das doenças que se desenvolvem no núcleo familiar.

O que é família?

A família é um conceito crucial de análise, tanto para as ciências sociais quanto ecológicas, porque define a estrutura inicial e básica da inter-relação entre os indivíduos com seu espaço e o ambiente social. O conceito de família nas ciências sociais diz respeito a um sistema social organizado, enquanto na ecologia trata-se de um ecossistema humano. Mas, ambas as áreas concordam em afirmar que família é um princípio de ordem, de um conjunto de indivíduos inter-relacionados.

As ciências sociais têm discutido o conceito de que "família" são tipos e estruturas de relações de parentesco de um conjunto de indivíduos ou sujeitos presentes e conviventes num determinado lugar, o qual é construído simbolicamente e apropriado pela linguagem (Lévi-Strauss, 1966LÉVI-STRAUSS, C. A família. In: SHAPIRO, H. L. Homem, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1966. p. 308-333.). A palavra "família" envolve uma ordem e uma organização social, repro duzidas no espaço-tempo, que podem agrupar um conjunto de indivíduos aparentemente ligados entre si pela aliança, afiliação ou adoção, onde a coabita ção pode ser uma de suas características (Bourdieu, 1993BOURDIEU, P. et al. À propos de la famille comme catégorie réalisée. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, v. 100, n. 1, p. 32-36, dez. 1993. Disponível em: <Disponível em: http://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1993_num_100_1_3070 >. Acesso em: 12 fev. 2015.
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). Um conceito próximo e complementar refere-se às famílias como grupos constituídos por pessoas que estabelecem entre si relações de aliança, descendên cia e consanguinidade, mas não são necessariamente as unidades básicas de parentesco (Durham, 1983DURHAM, E. Família e reprodução humana. In: FRANCHETTO, B. Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 13-44.).

Além disso, a família é um sistema real e mate rial, pois se constrói e se reconhece socialmente, agrupando um conjunto tangível de pessoas ou indivíduos. Ademais, é um sistema simbólico, por que é uma ideologia presente nas sociedades e nos grupos humanos, pelo qual se conhece e se constrói a realidade. As suas representações constituem um ponto de vista pessoal ou coletivo, segundo a posi ção social dos agentes ocupantes do espaço social (Bourdieu, 1993BOURDIEU, P. et al. À propos de la famille comme catégorie réalisée. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, v. 100, n. 1, p. 32-36, dez. 1993. Disponível em: <Disponível em: http://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1993_num_100_1_3070 >. Acesso em: 12 fev. 2015.
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O conceito ou a palavra "família", segundo a bio logia, envolve uma unidade sistemática que designa uma ordem e um gênero (Campbell; Reece, 2007CAMPBELL, N. A.; REECE, J. B. Biología. Madrid: Editorial médica panamericana, 2007.). Em particular, para a ecologia aplicada aos animais humanos, é uma ordem orgânica de relações que agrupa um conjunto organizado e interdependente de indivíduos em constante interação através de comportamentos e papéis, regulados por regras e funções dinâmicas que existem no interior (am biente próximo) e exterior (ambiente distal) desse conjunto, e que definem a identidade e o ambiente familiar e próximo (Bronfenbrenner, 1988BRONFENBRENNER, U. Interacting systems in human development. Research paradigms: present and future. In: BOLGER, N. et al. Persons in context: developmental process. New York: Cambridge University Press, 1988. p. 25-49.; Damia no, 2005DAMIANO, K. A administração de recursos na família: quem? como? por quê? para quê? Viçosa: UFV, 2005.; Minuchin et al., 2009MINUCHIN, S.; FISHMAN, H. C. Family therapy techniques. Cambridge: Harvard University Press, 2009.).

Entendendo, assim, a família como um princípio ecológico, esta concorda com um sistema agregado de indivíduos e objetos justapostos em regular interação ou interdependência: uma totalidade ordenada e ativa (Breilh, 1991BREILH, J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: UNESP, 1991.).

A família estabelece normas e valores, consti tuindo-se como um grupo localizado em um espaço -tempo compartilhado, onde cada um tem rol e papel definidos (sexualidade, reprodução, socialização e cuidado) em função do desenvolvimento da vida social. Assim, conforme as posições dos sujeitos no mundo familiar (mãe, pai, avó, irmã, irmão etc.), social (trabalhador, rico, pobre) e segundo o poder possuído por cada membro da família, vão ser os mo dos de interação entre os mesmos (Bourdieu, 1993BOURDIEU, P. et al. À propos de la famille comme catégorie réalisée. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, v. 100, n. 1, p. 32-36, dez. 1993. Disponível em: <Disponível em: http://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1993_num_100_1_3070 >. Acesso em: 12 fev. 2015.
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A família é um elemento da estrutura da socieda de, responsável pela reprodução biológica e social do ser humano e a manutenção da espécie humana, que sintetiza a produção da saúde numa escala micros social. Nela satisfazem-se as necessidades que estão na base da conservação, fomento e recuperação da saúde (Louro, 2003).

As famílias podem ser grupos sociais que produ zem e reproduzem o espaço, por meio de relações e formas de coexistência com a natureza, capazes de mudar o entorno através do tempo ou da história (Mahecha, 2003MAHECHA, O. D. Debates sobre el espacio en la geografía contemporánea. Bogotá: Universidad Nacional, 2003.; Santos, 1996SANTOS, M. La naturaleza del espacio. Barcelona: Ariel, 1996.). Assim, o espaço é a natureza modificada pela força ou ação humana e, portanto, caracteriza-se como uma construção social (Rojas, 1998ROJAS, L. I. Geografía y salud: temas y perspectivas en América Latina. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 701-711, 1998.). Essa força ou esta ação, que modifica a natureza, denomina-se "trabalho humano".

A produção social do espaço é também criação em termos de adaptação, já que a humanidade é uma espécie terrestre dotada de capacidades e potências transformadoras, que as utiliza para modificar o meio quando procura o sustento e efetua a repro dução, e, como outras espécies, adapta-se aos meios que ajuda a construir (Harvey, 2009HARVEY, D. Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2009.).

Igualmente, a família estrutura uma forma particular de interação entre indivíduos e ambiente ou natureza, que opera ao longo do tempo, a qual aporta os primeiros mecanismos que produzem o desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1988BRONFENBRENNER, U. Interacting systems in human development. Research paradigms: present and future. In: BOLGER, N. et al. Persons in context: developmental process. New York: Cambridge University Press, 1988. p. 25-49.; Martins et al., 2004MARTINS, E.; SZYMANSKI, H. A abordagem ecológica de Urie Bronfenbrenner em estudos com famílias. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 63-77, 2004.). O desenvolvimento humano é a evolução das pessoas, que sucede durante processos progressivamente mais complexos de interações recíprocas entre um organismo humano, pessoas, objetos e símbolos no ambiente imediato e no tempo, denominado processos proximais (Bronfenbrenner, 1988BRONFENBRENNER, U. Interacting systems in human development. Research paradigms: present and future. In: BOLGER, N. et al. Persons in context: developmental process. New York: Cambridge University Press, 1988. p. 25-49.; Martins et al., 2004MARTINS, E.; SZYMANSKI, H. A abordagem ecológica de Urie Bronfenbrenner em estudos com famílias. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 63-77, 2004.; Tudge, 2008TUDGE, J. A teoria de Urie Bronfenbrenner: uma teoria contextualista? In: MOREIRA, L.; CARVALHO, A. Família e educação: olhares da psicologia. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 211-231.). Em tais interações, efetuam-se processos de produção e reprodução do espaço e de troca de matéria, informa ção e energia (Damiano, 2005DAMIANO, K. A administração de recursos na família: quem? como? por quê? para quê? Viçosa: UFV, 2005.). A troca, por sua vez, é um padrão da relação entre produção e consumo e da adaptação humana ao ambiente e ao espaço social, que envolve princípios da ciência econômica (Ingold, 2001INGOLD, T. El forrajero óptimo y el hombre económico. In: DESCOLA, F.; PÁLSSON, G. Naturaleza y sociedad. México, DF: Siglo XXI, 2001. p. 37-59.).

Na teoria ecossistêmica de Bronfenbrenner (1988)BRONFENBRENNER, U. Interacting systems in human development. Research paradigms: present and future. In: BOLGER, N. et al. Persons in context: developmental process. New York: Cambridge University Press, 1988. p. 25-49., a família é um sistema humano que interatua com o ambiente ou contexto, envolvido em siste mas inter-relacionados (Tudge, 2008TUDGE, J. A teoria de Urie Bronfenbrenner: uma teoria contextualista? In: MOREIRA, L.; CARVALHO, A. Família e educação: olhares da psicologia. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 211-231.). São quatro os sistemas de interações definidos num mapa ecológico: sistema de inter-relações imediato ou mi crossistema , no qual a pessoa em desenvolvimento passa boa parte do tempo engajada em atividades e interações; sistema de inter-relações distantes ou macrossistema , o equivalente à cultura; sistema de inter-relações entre os vários microssistemas ou mesossistemas (tais como: casa, escola, grupos de pares etc.), no qual os indivíduos passam uma quantidade de tempo significativa; e o exossistema , que é sistema de inter-relações com contextos nos quais os indivíduos não estão situados de fato, mas que exercem importante influência indireta sobre o desenvolvimento desses indivíduos (Bronfenbren ner, 1988BRONFENBRENNER, U. Interacting systems in human development. Research paradigms: present and future. In: BOLGER, N. et al. Persons in context: developmental process. New York: Cambridge University Press, 1988. p. 25-49.; Martins et al., 2004MARTINS, E.; SZYMANSKI, H. A abordagem ecológica de Urie Bronfenbrenner em estudos com famílias. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 63-77, 2004.; Tudge, 2008TUDGE, J. A teoria de Urie Bronfenbrenner: uma teoria contextualista? In: MOREIRA, L.; CARVALHO, A. Família e educação: olhares da psicologia. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 211-231.).

Nutrição e trabalho: formas de adaptação, estra tégias, e administração de recursos das famílias

Smith (1972)SMITH, R. L. The ecology of man: an ecosystem approach. New York: Harper and Row, 1972. introduziu o conceito de ecossiste ma como fundamento para ampliar a ecologia huma na, assinalando que a ecologia significa o estudo da economia da natureza e redefinindo sistema como um agregado ou uma união de objetos justapostos em regular interação ou interdependência. Segundo a ecologia aplicada, as pessoas e seus ambientes não devem ser vistos somente em termos econômicos, que entendem a família ou o lar como unidade econô mica ou como agente, esquecendo-se da influência das dinâmicas familiares na resolução e na busca de recursos para a sobrevivência (Canning et al., 1994CANNING, D. et al. The family and economic development. Cambridge: Harvard Institute for International Development, 1994. Disponível em: <Disponível em: http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.194.8310&rep=rep1&type=pdf >. Acesso em: 26 set. 2015.
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).

Por isso, é importante diferenciar a definição de ecologia da definição de ecologia humana. A ecologia estuda a relação entre os seres vivos e seu ambiente, sua distribuição e abundância, bem como a interação entre os organismos e seu ambiente. O ambiente inclui as propriedades físicas que podem ser descritas como a soma de fatores abióticos locais e os demais organismos que compartilham esse habitat (Begon; Towsend; Harper, 2006BEGON, M.; TOWSEND, C.; HARPER, J. Ecology: from individuals to ecosystems. Victoria: Blackwell Publishing, 2006.). Já o ecossistema estrutura-se a partir de um sistema formado por uma comunidade natural de seres vivos em interação com componentes bióticos (conjunto de seres vivos: flora e fauna) e abióticos (seu am biente físico) (Campbell; Reece, 2007CAMPBELL, N. A.; REECE, J. B. Biología. Madrid: Editorial médica panamericana, 2007.). Em particu lar, sistemas que incluem seres humanos também devem considerar a constituição de relações sociais (Damiano, 2005DAMIANO, K. A administração de recursos na família: quem? como? por quê? para quê? Viçosa: UFV, 2005.).

Apesar de a ecologia humana se basear em con ceitos oriundos da ecologia, não é propriamente uma das ramificações da ecologia. Para muitos, estudar a "relação do homem com o ambiente" inclui fatores econômicos, sociais e psicológicos. Para outros, a ecologia humana tem objetivos e metodologias mais específicos, que incluem entender o comportamento humano sob variáveis ambientais (Begossi, 1993BEGOSSI, A. Ecologia humana: um enfoque das relações homem-ambiente. Interciencia, Caracas, v. 18, n. 3, p. 121-132, 1993.).

Para entender a família na teoria ecossistêmica, pode-se começar observando como são organizados os comportamentos e as relações da família em termos econômicos e ecológicos. Segundo Ingold (2001)INGOLD, T. El forrajero óptimo y el hombre económico. In: DESCOLA, F.; PÁLSSON, G. Naturaleza y sociedad. México, DF: Siglo XXI, 2001. p. 37-59., em condições racionais de adaptação, a de cisão dos grupos humanos na procura de alimentos toma como base a teoria do "forrageamento ótimo". Essa teoria considera o comportamento do forra geiro (indivíduo ou grupos de indivíduos), como um balanço entre os benefícios da nutrição e dos custos para obter os alimentos, assim como o gasto de energia ou o risco de morrer no processo de pro cura alimentar. De acordo com a seleção natural, o forrageiro tem que diminuir os custos e aumentar ao máximo os benefícios (Campbell; Reece, 2007CAMPBELL, N. A.; REECE, J. B. Biología. Madrid: Editorial médica panamericana, 2007.).

A incorporação dessa teoria aos grupos humanos ou à ecologia humana remete ao forrageiro como homem econômico, que precisa aplicar regras de de cisão para maximizar os benefícios dos recursos ob tidos e os custos energéticos investidos na aquisição de dito recurso, com a finalidade de se desenvolver em contextos ambientais ou espaços sociais espe cíficos (por exemplo: família, lugar ou território) (Ingold, 2001INGOLD, T. El forrajero óptimo y el hombre económico. In: DESCOLA, F.; PÁLSSON, G. Naturaleza y sociedad. México, DF: Siglo XXI, 2001. p. 37-59.; Cuenca, 2006CUENCA, J V. R. Las enfermedades en las condiciones de vida prehispánica de Colombia. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2006.). Complementarmente, o ambiente, segundo a teoria do forrageamento, condiciona a adaptação e a seleção natural ao prover recursos úteis para a sobrevivência humana e impõe limites ao conferir riscos e perigos (Cuenca, 2006CUENCA, J V. R. Las enfermedades en las condiciones de vida prehispánica de Colombia. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2006.).

Nesse contexto, também, podemos entender dois aspectos complementários das regras de deci são e dos recursos investidos. O primeiro aspecto considera a alimentação como a base de um bom desenvolvimento corporal e orgânico, fundamento da imunidade e da saúde, fonte de energia, que gera uma resistência orgânica à infecção para os indivíduos e grupos de indivíduos. Esse aspecto também incorpora os conflitos relacionados com a nutrição e a alimentação, influenciados por tra dições, valores culturais, normas sociais, políticas estatais e do comércio (Barona, 2012BARONA, J. L. La construcción del problema de la nutrición en el periodo entre guerras. In: GARCÍA, M. Alimentación, salud y cultura: encuentros interdisciplinares. Catalunya: Publicacions Universitat Rovira I Virgili, 2012. p. 495-515.), ao dizer que o desenvolvimento corporal encontra-se estritamente relacionado com o estabelecimento social e as rela ções que ali são desenvolvidas.

O segundo aspecto considera a busca dos meios para satisfazer as demandas e necessidades de alimentos, condicionada ao desenvolvimento do trabalho. O trabalho é uma atividade orientada para um fim que envolve um objeto, meios e um proces so, mediante os quais as pessoas se transformam e transformam a natureza para a satisfação de suas necessidades (Marx, 1980MARX, K. El capital. México, DF: Siglo XXI, 1980.). Mediante o trabalho, as pessoas produzem o espaço e transformam a natureza criando ambientes sociais, em procura da satisfação de necessidades vitais.

Nutrição e trabalho são formas de adaptação ao espaço porque implicam relacionamentos com pes soas e ambientes que podem virar modos de vida e habitus . Adaptação é um conceito que tenta explicar como organismos, indivíduos ou pessoas respondem às mudanças ambientais mediante ajustes morfoló gicos e funcionais, como a regulação, aclimatação, acoplamento ou feedback, direcionadas a manter uma relação estável entre pessoa e entorno. A adap tação é um processo no qual tempo e ambiente são necessários para que os grupos humanos se ajustem com as mudanças ambientais. O grau de adaptação de uma população é medido segundo seu nível nu tricional, sua condição de saúde-doença e a efetivi dade dos mecanismos que controlam o crescimento demográfico nos períodos de flutuações ambientais (Cuenca, 2006CUENCA, J V. R. Las enfermedades en las condiciones de vida prehispánica de Colombia. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2006.).

Por outro lado, as estratégias adaptativas na produção do espaço social desenvolvem formas de administração de recursos nos grupos humanos, nas quais os recursos são os meios para satisfazer as demandas crescentes do indivíduo (necessidades e desejos). Assim, o principal objetivo da adminis tração de recursos na família é o uso efetivo dos recursos familiares (os quais são escassos) para satisfazer necessidades e criar um meio ambien te propício para o desenvolvimento do potencial humano (Damiano, 2005DAMIANO, K. A administração de recursos na família: quem? como? por quê? para quê? Viçosa: UFV, 2005.). Nos grupos familiares, a administração dos recursos tem uma estreita re lação com os modos de vida, pois são as formas de agir internamente na família para desenvolver-se na sociedade ou ambiente social (Bourdieu, 1993BOURDIEU, P. et al. À propos de la famille comme catégorie réalisée. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, v. 100, n. 1, p. 32-36, dez. 1993. Disponível em: <Disponível em: http://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1993_num_100_1_3070 >. Acesso em: 12 fev. 2015.
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).

A situação de saúde de um espaço populacio nal particular, como a família, em um momento específico, está influenciada pela economia, pelo ambiente natural (clima, solos, relevo e outras), pela experiência biológica da população em contato com diversos agentes patogênicos, segundo os estilos e as condições de vida, assim como pela estrutura política da atenção em saúde. A conjugação dessas diferentes influências vai gerar o processo saúde -doença (Rojas, 1998ROJAS, L. I. Geografía y salud: temas y perspectivas en América Latina. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 701-711, 1998.).

A determinação social em saúde: como a produção social do espaço cria ambientes que incidem no processo saúde-doença

A Determinação Social em Saúde afirma que, o processo saúde-enfermidade é resultante da produção social do espaço. O indivíduo, ou grupo de indivíduos, transforma, interatua e desenvolve ambientes naturais, biológicos, culturais, políticos e econômicos, que serão determinantes no processo saúde-enfermidade. Igualmente, o processo saúde -enfermidade ocorre em uma área e em um momento determinados, onde as interações e a produção do ambiente sofrem a influência de fatores diversos (Laurell, 1983LAURELL, A. C. La salud enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, México, DF, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1981.; Breilh, 2010BREILH, J. Las tres "s" de la determinación de la vida 10 tesis hacia una visión crítica de la determinación social de la vida y la salud. In: PASSOS, N. R. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010. p 87-125.; Rojas, 1998ROJAS, L. I. Geografía y salud: temas y perspectivas en América Latina. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 701-711, 1998.; Aquino et al., 2012AQUINO, R. et al. Estudos ecológicos (desenhos de dados agregados). In: BARRETO, M. L.; ALMEIDA FILHO, N. B. Epidemiologia & saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012. p. 175-185.).

Para entender o processo saúde-enfermidade no mundo moderno, segundo uma abordagem ecológica, é preciso entender o conceito de espaço relacionado com o tempo (história) e o contexto (sistemas) (Bronfenbrenner, 1988BRONFENBRENNER, U. Interacting systems in human development. Research paradigms: present and future. In: BOLGER, N. et al. Persons in context: developmental process. New York: Cambridge University Press, 1988. p. 25-49.). E não apenas como o local físico onde ações, eventos e processos acontecem e no qual matéria e energia existem (Damiano, 2005DAMIANO, K. A administração de recursos na família: quem? como? por quê? para quê? Viçosa: UFV, 2005.). Deve-se tentar entender o espaço como uma categoria de análise, como um conjunto inseparável de sistemas de objetos e ações que al berga uma produção histórica da realidade (política, econômica e cultural), intermediando nos determi nantes estruturais da sociedade e da situação de saúde da população (Aquino et al., 2012AQUINO, R. et al. Estudos ecológicos (desenhos de dados agregados). In: BARRETO, M. L.; ALMEIDA FILHO, N. B. Epidemiologia & saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012. p. 175-185.). O espaço é uma totalidade cujos componentes são as pessoas, as instituições, o meio ecológico, as infraestruturas etc. (Santos, 1996SANTOS, M. La naturaleza del espacio. Barcelona: Ariel, 1996.).

As diferenças espaciais e ecológicas são proporcionais às diferenças na mortalidade e morbidade

Na produção social do espaço, formam-se orga nizações e grupos sociais de maneira desigual, de acordo com a natureza dos processos socioeconômi cos e político-econômicos, que definem diferenças espaciais e ecológicas (Harvey, 2009HARVEY, D. Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2009.). As diferenças espaciais no mundo moderno são determinadas por: práticas sociais de acumulação de capital em um contexto de trabalho e mercados competitivos; técnicas de transformação da natureza; e vigilância ou controle da informação e supervisão social (Gid dens, 1990GIDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1990.). Paralelamente, as diferenças ecológicas que são definidas em dita produção decorrem das interações entre indivíduos ou organismos e os ambientes natural, físico-biológico, sociocultural e construído (ecossistema humano) (Damiano, 2005DAMIANO, K. A administração de recursos na família: quem? como? por quê? para quê? Viçosa: UFV, 2005.).

Aplicando este conhecimento ao processo saúde -doença, podemos dizer que na realidade social existem diferenças no espaço que vão gerar van tagens e desvantagens para o desenvolvimento do ser humano e para sua atuação. Estas vantagens e desvantagens explicam as variações na morbidade e mortalidade, podendo ser entendidas como recursos sociais e materiais. Como exemplo, podemos citar o acesso e a utilização diferenciados de recursos relacionados à nutrição, aos serviços de saúde, à in formação, às oportunidades de trabalho, à renda, às oportunidades de educação, à moradia, à qualidade ambiental, ao cuidado parental, entre outros (Laure ll, 1981LAURELL, A. C. La salud enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, México, DF, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1981.; Bronfenbrenner, 1988BRONFENBRENNER, U. Interacting systems in human development. Research paradigms: present and future. In: BOLGER, N. et al. Persons in context: developmental process. New York: Cambridge University Press, 1988. p. 25-49.; Breilh, 1991BREILH, J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: UNESP, 1991.).

Por exemplo, existe uma probabilidade dife rencial de morrer na temporã infância (segundo a classe social), porque o risco de morrer durante os dois primeiros anos está diretamente relacionado à ocupação do pai, ou seja, ao modo como este se insere na produção. Assim, a probabilidade de que um filho do proletariado morra antes dos dois anos de idade é quatro vezes maior que um filho da alta ou média burguesia; o risco do menino de área rural, cinco vezes maior (Laurell, 1981LAURELL, A. C. La salud enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, México, DF, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1981.).

O acesso diferenciado encontra-se determinado pela forma como as estruturas política, cultural e econômica são definidas nos territórios. No momen to atual, o peso da acumulação acelerada de capital e de uma cultura voltada ao modelo civilizador domi nante têm moldado espaços institucionais, políticos e técnicos (Breilh, 2010BREILH, J. Las tres "s" de la determinación de la vida 10 tesis hacia una visión crítica de la determinación social de la vida y la salud. In: PASSOS, N. R. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010. p 87-125.), que podem criar ambientes que interferem na saúde das pessoas.

O ambiente se refere à área de acontecimentos e condições que influem sobre o comportamento de um sistema (Arnold, 1998ARNOLD, M.; OSORIO, F. Introducción a los conceptos básicos de la teoría general de sistemas. Cinta Moebio: Revista de Epistemología de Ciencias Sociales, Santiago de Chile, v. 0, n. 3, p. 40-49, abr. 1998.). Consiste na totalidade dos arredores do ser humano, fornecendo o con texto para seu comportamento e desenvolvimento, e relacionando-se, direta ou indiretamente, com o sistema. Os sistemas humanos estão inseridos em seu ambiente, inter-relacionando-se intensa mente com ele (Damiano, 2005DAMIANO, K. A administração de recursos na família: quem? como? por quê? para quê? Viçosa: UFV, 2005.). Assim, além de ser entendido como uma área circundante ao ser humano, o ambiente também representa a resposta e o resultado da produção e reprodução do espaço. É a natureza humanizada, chamada por muitos de ambiente humano.

Como se estrutura o ambiente humano onde acon tece o processo saúde-doença?

O ambiente humano é estruturado de maneira diferenciada por atores reconhecidos (agentes) que operam dentro de um contexto social específico cha mado estrutura. As relações entre estrutura e agen tes são mediadas por uma série de instituições que permitem construir a ação; igualmente, o ambiente humano encontra-se baseado na interdependência entre a intencionalidade da conduta individual, os sistemas e as estruturas sociais (Knox, 1994KNOX, P. L. Urbanization: an introduction to urban geography. Upper Saddle River: Prentice-Hall, 1994.). A forma como se estrutura o ambiente humano em interdependência com agentes e instituições irá determinar a forma como acontece o processo saúde -doença. Assim, podemos propor três categorias de análise aplicáveis ao entendimento desta relação.

Por exemplo, o comportamento de destinação adequada dos dejetos humanos depende da con duta individual de um agente (indivíduo ou grupo familiar), que reconhece esta prática ou ação como determinante à manutenção de sua saúde e qualidade de vida. Porém, para a concretização deste comportamento, é necessária a existência de uma rede de captação destes mesmos dejetos que, para que esteja disponível, depende da iniciativa da estrutura pública institucional. Igualmente, a ausência de uma adequada destinação de dejetos, favorece ambientes focais propícios ao desenvol vimento de doenças e indica uma incapacidade do Estado no controle das condições de vida dos cidadãos.

Figura 1
Categorias de análise na estruturação do espaço aplicáveis à análise social do processo saúde-doença

Os fluxos de interdependência entre inten cionalidades individuais, sistemas e estruturas sociais do ambiente humano determinam, de forma diferenciada, a estruturação da vida social (Knox, 1994KNOX, P. L. Urbanization: an introduction to urban geography. Upper Saddle River: Prentice-Hall, 1994.) e das condições de vida no espaço (Laurell, 1981LAURELL, A. C. La salud enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, México, DF, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1981.), que podem desencadear o processo saúde -doença.

Como aproximar a estruturação do ambiente hu mano da análise da determinação social?

A estruturação diferenciada do ambiente huma no define as condições de vida da sociedade e seus grupos, que reproduzem as ideologias e modos de agir. As estruturas no processo saúde-doença são de dois tipos: geral e proximal. A estrutura de escala geral, na qual transcorre a vida das pessoas, é repre sentada pelas leis e regras econômicas, culturais e políticas. Tais regras, principalmente no mundo moderno, são influenciadas pela lógica de acumula ção de capital e geram as condições macrossociais do ambiente humano (Breilh, 1991BREILH, J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: UNESP, 1991.).

Outro tipo de estruturas são aquelas que vão garantir tipos de ordem e organização numa escala menor como a proximal, onde as pessoas desen volvem sua vida, como a família, a comunidade, o trabalho, entre outros. E onde são transmitidas e incorporadas as tradições, as crenças, o valor, ou seja, onde é incorporado parte do sistema ideológico, e onde se estabelecem os modos de viver e as formas de adaptação no mundo social.

Individualmente, a modificação do contexto pode ocorrer de três maneiras: de forma passiva, quando o indivíduo influencia o comportamento de outros apenas com a sua presença no ambiente; de forma ativa, quando o indivíduo utiliza suas capacidades físicas, mentais e emocionais para mudar o ambien te; e, de forma mais ativa ainda, quando utiliza seu esforço e vontade para conseguir alterar o contexto em que está inserido. As formas de conjugação entre estruturas, agentes e instituições vão condicionar os aspectos sociais da exposição e da vulnerabilidade das pessoas a processos de adoecimento.

Um exemplo dessas escalas - geral, proximal e individual - é o caso da dengue, uma enfermidade transmitida pelo mosquito Aedes aegypti. O de senvolvimento do vetor ocorre em águas paradas, acumuladas nos resíduos provenientes do uso e consumo dos cidadãos e que são deixados em lo cais impróprios do ambiente (domínio proximal), gerando nichos favoráveis ao seu crescimento. Esse desenvolvimento também pode ocorrer dentro dos domicílios (domínios proximal e individual) construídos pelos indivíduos e pelas instituições públicas ou privadas, em lugares como vasos de plantas, calhas de recolhimento de água da chuva e vasos sanitários em desuso.

Uma vez infectado, o indivíduo irá necessitar de cuidados que, dependendo da estrutura do sistema de saúde ao qual tem acesso, estarão ou não disponí veis de forma adequada. O tipo de cuidado também irá depender das decisões pessoais do indivíduo, da influência do seu grupo familiar e do seu sistema de crenças (domínio geral). Por exemplo, o indivíduo doente pode preferir o cuidado através de práticas alternativas em vez da medicina tradicional. É ele quem está decidindo seu agir no cuidado, mas essa decisão vai depender do aparelho do Estado (domí nio geral), atuando como divulgador de informações sobre a prevenção, o tratamento da enfermidade e suas complicações. Além disso, o grupo familiar deverá buscar novas estratégias de funcionamento e organização que garantam a obtenção de recursos e a manutenção de sua funcionalidade dentro deste novo cenário de saúde.

Como se estrutura o processo saúde-doença na família?

A família desenvolve práticas sociais ou estilos de vida, que resultam da interação entre um habitus e situações da vida cotidiana e que, com o decorrer do tempo, vão reproduzir e produzir o espaço social próximo, em uma escala microssocial (lar, vizinhan ça, comunidade etc.) (Silva, 2010SILVA, L. M. V. da. Saúde e espaço social. In: PASSOS, R. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010. p. 180-200.). Assim, estilos de vida, habitus e situações da vida cotidiana das famílias também irão influenciar o processo saúde -doença no microssistema.

Os condicionantes sociais do processo saúde -doença são os habitus ou esquemas de percepção, estruturados e interiorizados pela sociedade na produção histórica dos grupos humanos. Tais ha bitus são modificados pela trajetória individual, familiar, social e profissional, de acordo com os sistemas com os quais os indivíduos interagem. O habitus corresponde também a disposições estruturantes, ou seja, intenções que orientam as escolhas práticas e que estruturam a realidade social (González, 2004GONZÁLEZ, L. E. Cambios del modo y estilo de vida; su influencia en el proceso salud-enfermedad. Revista Cubana de Estomatología, Havana, v. 41, n. 3, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-75072004000300009&lng=es&nrm=iso >. Acesso em: 23 jul. 2015.
http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=s...
).

Os habitus são práticas que estão definidas, em parte, dentro dos microssistemas familiares, onde se desenvolvem papéis, atividades e relações cara a cara com os membros que os compõem, os quais possuem elementos que influem no desenvolvi mento psicológico e também de saúde das pessoas, agentes ou indivíduos.

O estilo de vida está representado no conjunto de propriedades que cercam os indivíduos ou grupos: casa, móveis, quadros, livros, bebidas, perfumes, roupas, entre outros. Igualmente, os estilos de vida estão representados nas práticas em que se manifestam suas distinções, por exemplo, as dis trações culturais e sociais como o gosto, propensão e aptidão à propriedade material e/ou simbólica de uma categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras (Bourdieu, 1976BOURDIEU, P. Gostos de classe e estilos de vida. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, n. 5, p. 18-43, Out.1976. Disponível em: <Disponível em: http://www.unifra.br/professores/arquivos/8547/89602/gostos%20de%20classe%20e%20estilos%20de%20vida%20(pierre%20bourdieu).pdf >. Acesso em: 7 mar. 2015.
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)

O estilo de vida é o modo de vida individual, é a forma de viver das pessoas. Relaciona-se com a esfera comportamental e motivacional do ser humano, que alude à forma particular de reali zação das pessoas como seres sociais, em condi ções concretas e específicas. Da mesma forma, a família, como grupo particular com condições de vida similares, possui um estilo de vida próprio, que determina a saúde do grupo familiar e seus membros, conhecido como estilo de vida familiar. Dentro do estudo social do processo saúde-enfer midade, é preciso entender o modo e estilo de vida da população, porque eles dependem diretamente do sistema socioeconômico. Assim, as variações ou mudanças desse sistema, podem mudar também o modo, o estilo e a qualidade de vida da popula ção. Da mesma maneira, as mudanças do modo e estilos de vida determinam também mudanças nas condições e na qualidade de vida das pessoas (González, 2004GONZÁLEZ, L. E. Cambios del modo y estilo de vida; su influencia en el proceso salud-enfermedad. Revista Cubana de Estomatología, Havana, v. 41, n. 3, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-75072004000300009&lng=es&nrm=iso >. Acesso em: 23 jul. 2015.
http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=s...
).

O processo saúde-enfermidade acontece em corpos biológicos, como a família ou os indivíduos, que têm uma autonomia relativa de regular seu ambiente interno. Mas essa autonomia depende do grupo no qual se desenvolvem os potenciais genéti cos, sociais e de posição no espaço social.

Figura 2
Aspectos presentes na estruturação das condições de vida nas famílias

Neste caso, o potencial genético é uma expressão fenomênica que depende das interações sociais para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, utili zando recursos sociais, como oportunidades edu cacionais e laborais (Bronfenbrenner 1988BRONFENBRENNER, U. Interacting systems in human development. Research paradigms: present and future. In: BOLGER, N. et al. Persons in context: developmental process. New York: Cambridge University Press, 1988. p. 25-49.; Silva, 2010SILVA, L. M. V. da. Saúde e espaço social. In: PASSOS, R. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010. p. 180-200.;). O potencial social é influenciado por um ha bitus , que orienta as tomadas de posição referentes ao estilo de vida, ou seja, as escolhas alimentares, o tipo de lazer, a incorporação ou prática da atividade física como rotina. Desta forma, o potencial social tem relação com a produção e desfecho de várias enfermidades.

Finalmente, a posição ocupada pelas famílias no espaço social está relacionada à valorização dos bens materiais e simbólicos (como, por exemplo, o trabalho), que definem as condições gerais de exis tência, permitindo o acesso à boa alimentação, à moradia e a serviços de saúde. Ou seja, o estado de saúde das famílias está influenciado pelo conjunto de recursos materiais e simbólicos, dos quais elas se apropriam nos diferentes sistemas e estruturas sociais, e que potencializam sua bagagem genética (Silva, 2010SILVA, L. M. V. da. Saúde e espaço social. In: PASSOS, R. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010. p. 180-200.).

Considerações finais

O espaço é constituído de sistemas materiais e simbólicos, nos quais se estabelecem relações de domínio indivisíveis entre pessoas e natureza que configuram e conjugam os grupos sociais e suas formas de agir. Esses grupos sociais, conforme seja sua localização e inter-relação com os diferentes sis temas, vão estruturar ordens e ambientes diversos, de forma hierárquicos.

Um exemplo de ordem e de ambiente é a famí lia, porque ali se formam e reproduzem práticas materiais e simbólicas (como o trabalho, a cultura, os estilos de vida, o habitus ) para a adaptação, o desenvolvimento, e a sobrevivência dos grupos sociais. Essas práticas familiares estão inseridas e comunicadas com outros ambientes estruturantes do espaço e seus sistemas no tempo. A conjugação das particularidades dos sistemas do espaço (estru turas, agentes e instituições) demarcam ambientes de exposição e vulnerabilidade das famílias, porque naqueles sistemas acontecem de maneira desigual fluxos de troca de matéria, energia e informação que podem carregar ou estar presentes no processo saúde-doença.

Para entender o processo saúde-doença das famí lias, é preciso perceber como é dada a organização e o funcionamento dos microssistemas particulares com os quais as famílias interagem para se adaptar e se desenvolver nos diferentes sistemas do espaço social (sistemas macro, exo e meso), assim como definir quais são os hábitos estabelecidos nas rela ções de trabalho e administração de recursos, nos estilos de vida familiar e nutrição, nas crenças e ideologias, entre outros, que podem estar presentes nos processos de saúde-doença.

Outro aspecto fundamental para entender dentro do processo saúde-doença são os tipos de trabalho que efetuam as famílias, que são influenciados pelo domínio geral, e representam as formas adaptativas que as famílias desenvolvem para tentar alcançar alimentação e suprir necessidades tanto corporais como culturais. Ao desenvolvimento do trabalho são aplicadas técnicas e tecnologias que modificam a natureza e incidem nas condições de saúde ou doença das famílias e seus integrantes. Igualmente, uma relação fundamental para entender o processo saúde-doença nas famílias, é a divisão do trabalho, das tarefas e dos papéis na unidade familiar, que vão promover o tipo de desenvolvimento e satisfação das necessidades do grupo. Em um microssistema fami liar, tal divisão destina-se a construir o espaço social, transformando a natureza e sua própria natureza, em procura do sustento e manutenção de seu estilo de vida, conforme sua interação e sua localização nos diferentes sistemas do espaço. Finalmente, é importante ter em conta que, quando em uma família acontece a enfermidade, a adaptação e a divisão do trabalho, das tarefas e dos papéis podem modificar -se para garantir a superação da enfermidade e continuar garantindo a sustentabilidade da família.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2015
  • Aceito
    22 Set 2015
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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