Doenças e práticas terapêuticas entre os Teréna de Mato Grosso do Sul1 O presente artigo é produto do relatório de Pós-Doutorado de Dulce L. B. Ribas, desenvolvido na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, na área de Ciências Humanas e subárea de Antropologia da Saúde.

Dulce Lopes Barboza Ribas Maria Helena Vilas Boas Concone Renata Palópoli Pícoli Sobre os autores

Resumo

Este artigo propõe-se a descrever as visões sobre saúde e doença, enfatizando a identificação, as interpretações diagnósticas e as práticas tera pêuticas relacionadas à doença crônica entre os Teréna da Terra Indígena Buriti de Mato Grosso do Sul. Realizou-se um estudo qualitativo por meio de entrevista semiestruturada com 24 indígenas e de observação participante, com registro em diário de campo, entre março e agosto de 2010. Para os Teréna, o entendimento de saúde e doença compõe questões de sua vida cotidiana: redução na disponi bilidade de terra, mudanças climáticas, influências do meio urbano e quebra de regras. Quanto aos processos terapêuticos, observou-se a busca pelo aconselhamento e pelo cuidado familiar e religioso, e o atendimento biomédico obtido no posto de saúde, sendo estes vistos como complementares. Os es quemas interpretativos mencionados pelos Teréna para a causalidade da hipertensão arterial indicam relação com as condições de vida, contaminações do meio ambiente, mudanças na dieta alimentar, feitiços e desobediência aos mais velhos. As expe riências vivenciadas pelos Teréna no entendimento de suas doenças e na busca pela cura são processos resultantes dos saberes locais, da participação de diversos atores envolvidos e dos recursos e tecno logias disponíveis, todos inscritos em um contexto cultural e social dinâmico.

Palavras-chave:
Saúde dos Povos Indígenas; Índios Sul-Americanos; Itinerários Terapêuticos

Introdução

A partir do contato com a sociedade não indí gena e em meio às relações interétnicas, os povos indígenas passam por mudanças em seus modos de vida, transformações sociais e econômicas que invariavelmente afetam, ao longo do tempo, sua subsistência e sua maneira de compreender a saúde e de lidar com as enfermidades.

De acordo com Concone (2003)CONCONE, M. H. V. B. Cura e visão de mundo. Revista Kairós-Gerontologia, São Paulo, v. 6, p. 45-60, dez. 2003., para lidar com a enfermidade, todas as culturas (qualquer cultura) pro duzem um saber em saúde. Assim, a doença faz parte dos processos simbólicos e não é considerada uma entidade percebida e vivenciada universalmente da mesma forma (Langdon, 1994LANGDON, E. J. M. A negociação do oculto: xamanismo, família e medicina entre os Siona no contexto pluri-étnico. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1994.). Soma-se a isso o fato de que a doença é percebida não como um estado estático, mas como um processo que requer interpretação e ação no meio sociocultural, o que implica em negociação de significados na busca da cura (Staiano, 1981STAIANO, K. V. Alternative therapeutic systems in Belize: a semiotic framework. Social Science and Medicine, London, v. 15, n. 3, p. 317-332, 1981.).

Reforçando essa ideia, Souza (1998)SOUZA, I. M. A. Um retrato de Rose: considerações sobre processos interpretativos e elaboração de história de vida. In: DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (Org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 151-168. destaca que definir e explicar uma experiência de aflição e dotá-la de sentido envolve atos de interpretação, que não são redutíveis à mera projeção de significados subjetivos, nem à reprodução dos significados já da dos na cultura, na qual tentar conferir uma ordem à ameaça de desordem que acompanha a doença é um processo que se desenvolve em um mundo comparti lhado com outros, compostos de uma pluralidade de vozes com as quais se dialoga, negocia, debate, para produzir definições e modos de manejar a doença.

A partir dessas considerações e com o objetivo de pontuar o posicionamento teórico neste estudo, a cultura segue o conceito apresentado por Geertz (1989)GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989., que a concebe como um sistema de símbo los que fornece um modelo de e um modelo para a realidade, no qual a cultura significa ação humana, a vivência no cotidiano pelas pessoas, as diversas interpretações que formulam, dia após dia, as for mas como estas se reproduzem, de acordo com os significados de vida, morte e do universo.

Dessa forma, as reflexões presentes neste artigo propõem descrever as visões sobre saúde e doença, enfatizando a identificação, as interpretações diag nósticas e as práticas terapêuticas relacionadas à doença crônica entre os Teréna residentes nas ter ras indígenas Buriti de Mato Grosso do Sul, Brasil.

Metodologia

O estudo foi de abordagem qualitativa desen volvido nas aldeias Teréna pertencentes à Terra Indígena (TI) Buriti, com 2.613 pessoas (IBGE, 2010IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: características gerais dos indígenas - resultados do universo. Rio de Janeiro, 2010.). A TI Buriti tem 2.090 hectares e encontra-se dividida em nove aldeias - Buriti, Água Azul, Recanto, Oli veiras, Olho D'Água, Barreirinho e Nova Buriti, per tencentes ao município Dois Irmãos do Buriti e às aldeias Córrego do Meio e Lagoinha, pertencentes ao município de Sidrolândia.

A coleta de dados foi realizada entre março e agosto de 2010, quando foram realizadas entrevistas semiestruturadas com vinte e quatro pessoas (sen do indivíduos adultos que receberam o diagnóstico de serem portadores de uma doença crônica e com fami liares que vivenciaram a doença, a fim de conhecer as experiências individuais e coletivas do adoecimento, independentemente de estarem ou não realizando tratamento) e líderes religiosos com atuação signi ficativa em situações de adoecimento - aliadas ao método de observação participante e registro em diário de campo. As entrevistas foram realizadas nos domicílios para buscar a proximidade e a privacidade das informações, sendo gravadas quando permitidas; os participantes do estudo foram apresentados por algarismos arábicos, e os registros do diário de campo e as transcrições são escritos em itálico.

O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, recebendo parecer favorável e enca minhado à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, com a solicitação de anuência e autorização da Admi nistração Executiva Regional e Nacional da Fundação Nacional do Índio (Funai), para então dar início ao contato com as lideranças dos Conselhos Locais e lideranças familiares quando foram apresentados os objetivos, métodos e procedimentos do estudo.

Os Teréna: organização social, política e econômica

Os Teréna são identificados como integrantes do tronco linguístico Aruak, vivem em pequenas áreas nos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, São Paulo e Paraná, com uma longa história de contato com a sociedade não indígena.

Constitui o segundo grupo indígena de Mato Grosso do Sul, distribuídos em dez terras indígenas e em duas outras áreas, junto aos Kadiwéu, no muni cípio de Porto Murtinho, e entre os Guarani/Kaiowá, em Dourados, além dos Teréna que migraram para áreas urbanas, especialmente para Campo Grande, capital do estado.

Ao descrever elementos da cultura Teréna, Aza nha (2005)AZANHA, G. As terras indígenas Teréna no Mato Grosso do Sul. Revista de Estudos e Pesquisas, Brasília, DF, v. 2, n. 1, p. 61-111, 2005. destaca a estrutura social patrilinear, na qual os papéis masculinos e femininos são bem defi nidos. Cada aldeia é formada por um grupo de troncos familiares, que estabelecem uma rede de alianças matrimoniais, econômicas, políticas e religiosas. Para cada aldeia existe um líder (cacique) e um con selho (conselho de homens), que atuam diretamente nas questões políticas e econômicas da comunidade.

Em geral, do cacique é esperado o acompanha mento dos diversos acontecimentos da comunidade, a capacidade de captar recursos, exercer influência positiva na mediação de conflitos, a distribuição de informações estratégicas e de bens materiais, especialmente os obtidos em negociações com ins tituições externas. Sua atuação é constantemente avaliada sob os parâmetros de comportamento socialmente valorizados na cultura Teréna, como a serenidade, a reciprocidade e a ponderação no exercício do poder. Por esse motivo que, atualmente, a escolha do cacique é realizada pela comunidade de cada aldeia, que define por meio do voto os seus líderes, diferentemente da imposição ou influencia do órgão governamental, em anos anteriores.

Além desses representantes políticos, a Funai mantém o chefe de Posto Indígena na Aldeia Buriti (PNI Buriti), que atualmente é um representante indígena. Há ainda as lideranças familiares (líderes de tronco), religiosas (igrejas protestantes, evangé licas pentecostais, católica, espíritas e xamânicas), as profissionais (grupos de trabalhadores indígenas nas áreas da educação e da saúde) e as associações (organizações indígenas) dentro de cada aldeia.

Com relação às atividades produtivas, a maioria é de agricultores, reforçando o modo de vida tradi cional que os liga diretamente a terra e à produção das roças familiares de cultivo permanente desti nada ao consumo familiar e em caso de excedentes, para a comercialização, além de garantir sementes para a próxima safra, alimentos para os animais domésticos e possibilitar trocas intra e interfami liares. Utilizam a mecanização (trator) e técnicas tradicionais de preparo e uso da terra (roças de toco, plantio e colheita conforme as fases da lua e indicações da natureza) (Ribas, 2011RIBAS, D. L. B. Doenças e práticas terapêuticas entre os Teréna. 2011. Relatório (Pós-Doutorado em Ciências Humanas) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.).

A vida destas famílias está condicionada à possibilidade da sua capacidade produtiva de conjunto na área disponível (roças familiares), atendendo às necessidades de subsistência dos seus membros, à renovação dos meios de produção e bens de consumo e ao exercício das atividades sociais e políticas.

Deste modo, a disponibilidade de alimentos para partilhar sempre teve grande importância e fortalece o princípio da reciprocidade, portanto, está intrinsecamente relacionada à identidade social Teréna.

Além do plantio de roças, algumas famílias criam gado em pequena escala, no sistema extensivo em regime de pastagens, com baixa produtividade em função dos poucos recursos viáveis e da reduzida disponibilidade de campos e pastos para a criação. Trabalham também como campeiros, roçadores de pastos, cortadores de cana-de-açúcar nas usinas da região, tratoristas, mecânicos de trator, domadores de cavalos, tiradores de postes, fazedores de cercas, fazedores de laços e aperos, carneadores e outras ocupações próprias do trabalho em áreas rurais.

Na TI existem ainda as ocupações em serviços públicos nas áreas de educação (diretor da escola, professores e secretário) e saúde (técnico de en fermagem, técnico em higiene bucal, auxiliar de enfermagem, agente indígena de saúde e agente indígena de saneamento), que exigem escolaridade e são muito valorizadas e disputadas.

De acordo com as lideranças Teréna, a extensão territorial da TI Buriti é insuficiente para satis fazer a necessidade de reprodução da população existente, em decorrência da reduzida extensão territorial destinada às roças familiares (0,87 hectare/per capita), do empobrecimento do solo, das poucas reservas de mata e do crescimento demográfico Teréna.

Analisando a situação das terras indígenas no estado de Mato Grosso do Sul, em razão do cresci mento demográfico, da degradação e empobrecimen to das áreas, o tamanho médio das roças familiares decresceu, havendo uma tendência ao rebaixamento dos padrões territoriais estabelecidos inicialmente pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e que ficam distantes dos padrões da Fundação Nacional do Índio (Funai) para a região norte do país (Ferreira, 2007FERREIRA, A. C. Tutela e resistência indígena: etnografia e história das relações de poder entre os Teréna e o estado brasileiro. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.).

Explicações para as doenças

Em todas as sociedades há modelos interpreta tivos de saúde e doença que são construídos, teori zados e reelaborados cotidianamente por diferentes culturas (Kleinman, 1980KLEINMAN, A. Patients and healers in the context of culture: an exploration of the borderland between anthropology, medicine, and psychiatry. Los Angeles: University of California Press, 1980.; Menéndez, 2003MENÉNDEZ, E. L. Modelos de atención de los padecimentos: de exclusiones teóricas y articulaciones práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 185-208, 2003.).

Em termos gerais, um episódio da doença é caracterizado pelo reconhecimento dos sintomas, pelo diagnóstico, tratamento e avaliação. Em casos graves ou prolongados, os episódios frequentemente se tornam crises que ameaçam a vida e desafiam o significado da existência (Langdon, 1994LANGDON, E. J. M. A negociação do oculto: xamanismo, família e medicina entre os Siona no contexto pluri-étnico. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1994.).

Segundo as narrativas colhidas, na concepção do processo saúde-doença, os aspectos biológicos, socioculturais e psíquicos estão presentes dentro do contexto em que estão inseridos.

Embora singular para quem os expresse, os significados de saúde e de doença para os Teréna indicaram possibilidade de conjugação de diferentes fatores recorrentes que, de certa forma, compõem questões de sua vida cotidiana e que em outras épocas não existiam na comunidade: redução na disponibi lidade de terra, mudanças climáticas, alterações no estilo de vida, quebra de regras, influências do meio urbano e a presença de alimentos industrializados.

O povo preocupa muito com crianças e os jovens, devido aos espaços, não temos mais espaços suficientes para trabalhar e extrair, nem morada temos mais [...]. De repente vai contribuindo com a possibilidade de se transformar em doença. A pressão alta é por causa do calor [...] e as coisas que ingerimos [...] isso tudo contribuiu. Em rela ção à doença, pode ser pela quebra de regras com a alimentação. Com o aumento da população, hoje tem mais aproximação com a cidade, vamos mais para a cidade, adquirimos os hábitos dos brancos (Entrevistado 7).

Agora essa geração que está vindo, quanto mais infiltrado nos hábitos purutuy (não índio) parece que é bom. Porém, traz despreparo para o corpo, para combater as doenças. Se pudessem preser var aquelas comidas que são originais, teria mais facilidade do nosso corpo combater as doenças (Entrevistado 8).

Nosso chá era de cana moída, esquentava; não tinha esse açúcar de agora. Fazia o beiju, ralava a mandioca, torcia, tirava o caldo, coava a massa e colocava na panela, queimava um pouquinho [...] só a massa de mandioca [...] e virava; comia com caldo de cana de manhã cedo. No almoço era mandioca com carne de bicho, [...] tatu, queixada [...] não comia sal. Usava graxa de gado e de porco. A carne era bem assada e tinha feijão miúdo. Arroz veio depois. Era novidade [...] depois apareceu também o macarrão [...]. O pessoal chamava de tripa de galinha... comida de purutuy (não índio) (Entrevistado 1).

Eu acredito que pelo fato de usar óleo, pois antes a gente não comia, era apenas gordura. Eu acho que é isso, que começou a subir a pressão [...]. Através disto daí surgiu esse problema. A gente não tinha enfermidade de pressão, de um tempo para cá começou. Acho que esses frangos conge lados que comemos, vai acumulando, acho que foi acumulando esta enfermidade. Esse óleo vem da soja. Da soja com veneno e os frangos que não sabemos o que comem (Entrevistado 7).

O entendimento de saúde e doença e sua causa lidade descrita nos relatos acima evidenciam uma complexa interação entre os elementos de ordem territorial, ambiental e social que são vivenciados co tidianamente sob a ótica da cultura em si e da própria individualidade. Segundo Geertz (1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.), compreender a cultura de um povo expõe sua normalidade, sem reduzir a sua particularidade. Assim, o sofrimento e o adoecer que, embora aflijam as pessoas de forma parecida, nem sempre são percebidos da mesma ma neira pelas pessoas da mesma cultura ou por pessoas de mesmo gênero, idade e papel social que ocupam.

Deve-se ressaltar, ainda, que esses signifi cados dependem da dimensão temporal, pois os conhecimentos de uma pessoa são reformulados e reestruturados continuamente, em decorrência de processos interativos específicos (Alves, 1993ALVES, P. C. A experiência da enfermidade: considerações teóricas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 263-271, 1993.).

Isso não existia. Eu sempre comento que na aldeia indígena não aconteciam esses tipos de doenças, como derrame, pressão alta, diabetes [...]. Essas coisas não eram vistas falando em nossa comunidade, nunca existiu isto aqui. E hoje temos em nossa comunidade. A maioria sofre de pressão alta, uma coisa que não existia no passado aqui (Entrevistado 8).

Nesse relato, observamos a dicotomia passado/presente ao destacar as doenças que desconheciam, mas que agora são frequentes, em razão das mu danças ocorridas na vida e com as quais eles têm que lidar e buscar compreendê-las, a partir de seu entendimento de mundo.

Itinerário terapêutico

A ideia de itinerário terapêutico comporta o re conhecimento da doença, suas etapas - geralmente compostas inicialmente pela avaliação realizada na família ou na comunidade, durante a qual o foco se dirige para o alívio dos sintomas e posteriormente, se for o caso, pela busca da causa última da pertur bação - e as diferentes interpretações que surgiram durante o processo (Buchillet,1991BUCHILLET, D. A antropologia da doença e os sistemas oficiais de saúde. In: BUCHILLET, D. (Org.). Medicinas tradicionais e medicina ocidental na Amazônia. Belém: MPEG; CEJUP; UEP, 1991. p. 21-44.).

Dentro dessa lógica, o itinerário terapêutico deve ser entendido como resultado de negociações entre várias pessoas e grupos com interpretações divergentes ou não sobre a identificação da doença e a escolha da terapia adequada (Langdon, 1994LANGDON, E. J. M. A negociação do oculto: xamanismo, família e medicina entre os Siona no contexto pluri-étnico. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1994.). Estas negociações orientam as decisões que serão tomadas pela pessoa e por seu grupo.

Pode usar os remédios comprados, né? Mas, se a gente vê que não está dando resultado você tem que se lembrar da medicina antiga. Primeiro, nós vamos usar os remédios da medicina, mas se a gente vê que a gente está tomando, tomando e não sara, tem que mudar, né? Voltar pra erva. E a erva resolve. O que o remédio da medicina não resolve, a erva resolve. Por que resolve? Porque as plantas são de Deus. Então, é por isso. Não é artificial (Entrevistado 12).

Tais relatos nos remetem para a existência de práticas simultâneas de seu sistema cultural de saú de e do sistema biomédico. O uso do medicamento está sempre presente e com grande importância, mas acompanhado de outros recursos.

Destaca-se que o entendimento de cura da doen ça esteve atrelado ao preparo do remédio de raiz, isto é, o uso da planta como recurso medicinal poder ser explicado não somente pelas propriedades terapêu ticas que lhe são atribuídas, mas também por uma ordem de elementos mais complexa e inerente ao sistema de saúde que o incorpora (Laplantine, 2004LAPLANTINE, F. Antropologia da doença. São Paulo: Martins, 2004.).

Em muitas narrativas observamos a busca pelo aconselhamento, o cuidado familiar e religioso aliado ao atendimento biomédico obtido no posto de saúde, sendo vistos como complementares.

Eles tomam remédios dos médicos, mas acom panhados de muita oração, além das raízes (Entrevistado 3).

[...] se é necessário eu levo no posto, eu pego algum remedinho, algum xarope, mas a oração [...] melho ra bastante. Às vezes, eu faço chá caseiro pra eles também, alguma folha que eu conheço que é muito bom já pra cortar febre, tosse também [...]. Pra cortar febre, a folha de laranja. Pego nove folhas de laranja, sapeco elas no fogo bem sapecadinho, fervo ela e côa e dá com comprimidinho infantil [...] é o da farmácia, esse desde que eu cuido das minhas crianças quando eram nenezinhos tudo, agora eu estou fazendo pros meus netinhos [...] tem aquele outro infantil, ah, aqueles docinhos que eles gostam. Muito bom (Entrevistado 4).

A ressignificação das práticas religiosas, assim como a sua aplicação na vida dos Teréna é decor rente do contato interétnico, que inaugura mudan ças nas práticas xamânicas. O xamã tradicional, conhecido como koixomuneti, deixa de existir e reconhece-se a incorporação de novas práticas religiosas, como no caso do catolicismo, de igrejas evangélicas e do espiritismo.

Se por um lado percebe-se a ausência de um koi xomuneti, por outro, reconhece-se que o xamanismo está presente em diversas práticas. Observa-se uma ressignificação dessas práticas, como a adoção de atividades xamânicas que são amplamente referi das pelas mulheres (como bênçãos, cantos, banhos e preparo de ervas, tanto na ingestão de infusões, como em banhos ou massagens), sendo recomendadas con forme o diagnóstico inicial da doença e modificada ao longo do tratamento em função das respostas obtidas.

De uma forma geral, tais práticas são transmiti das dentro do tronco familiar, especialmente entre as mulheres que na família se encarregam direta mente da escolha do recurso terapêutico que será utilizado para si e para seus familiares.

Ah, essa doença dele aí, foi muito difícil, viu? De noite que atacava a doença. Ele não podia urinar, ia ao banheiro e não conseguia urinar, ficava gemendo a noite inteira. Eu pegava o óleo ungido e ungia a barriga dele onde ele sentia dor [...]. Aí, passava um momentinho que ele dormia, ele levantava e conseguia urinar um pouquinho. Foi passando tempo, tempo [...]. Aí, até que veio a chamada pra ele, né? Ele tinha medo de médico, ele fala que eu tenho medo de médico, mas ele é pior. Eu falei pra ele: Você sabe de uma coisa? Essa enfermidade de você vai ter que fazer cirurgia! Você vai ter que passar pela operação do médico! Você tem que perder o medo, você tem que aceitar o convite que é chamado! Aí, ele aceitou porque ele não aguentava mais. Aí, eu falei com a enfermeira que está no posto: Encaminha meu ve lho para o hospital fazer cirurgia porque ele não aguenta mais. E esse problema não é problema de orar por ele. Ele tem que ser passado pela mão do médico. Então foi que ele foi (Entrevistado 11).

A gente que tem que pegar a filha, por exemplo, netos e temos que orientar. Eu peguei muita coi sa da minha avó e tenho que passar para meus netos, que estão crescendo, temos que aconselhar [...] (Entrevistado 17).

Além das mulheres, os pastores indígenas de igrejas evangélicas são figuras importantes nas re comendações de tratamento adequado. Segundo os informantes, nas igrejas evangélicas eles sabem que serão amparados, pois constituem grupos com vínculos estabelecidos na busca da causa da doença e sua cura.

Vou ao pastor. Segundo, vou procurar o médico. Como esse dia que fiquei com dor de estômago. Es tava no monte, fomos orar lá no monte. Lá conta os problemas, treze pessoas, fazemos uma roda. Vai todo mundo junto [...]. Eu estava com dor de estômago [...] o pastor viu que estava mal, aí ele ungiu óleo e colocou na água, e tomei, na mesma hora eu melhorei. Depois fui para casa dele e ele deu outra dose para mim [...]. Cheguei em casa, dormi, depois melhorou. Fui curada e não sinto mais (Entrevistado 2).

Tem muito doente que vem aqui, com todo tipo de problema. Eu rezo, os espíritos me falam que remédio tenho que fazer. E sempre dou conselhos. Conselho sempre é necessário, pois muitas vezes o doente tá desrespeitando (Entrevistado 3).

As experiências de saúde descritas a seguir nos remetem à importância do controle de sentimentos para uma mente saudável e a manutenção do equi líbrio do corpo.

Ter saúde, é ficar tranquilo [...] ter aquela alegria, quando estamos preocupados temos dor, dor de cabeça, coração acelerado (Entrevistado 15).

É, tem que ser mais calma, né? Ficar na tranquilidade, eu acho que não pode ficar, assim, perturbada, nem nervosa. Viver a vida tranquilo, alegre, sorrindo, conversando com as minhas crianças (Entrevistado 16).

Há uma explicação para a produção da saúde e da doença que qualifica de modo diferenciado a forma pelo qual os Teréna determinam seu processo terapêutico. Por isso, a maneira específica e peculiar como um pro blema de saúde é vivenciado e explicado por esse povo não deve ser negligenciada pelos serviços de saúde.

Por outro lado, é importante destacar que a utili zação de outras práticas, em especial as xamânicas, é omitida nos espaços da biomedicina. As longas conversas com os entrevistados permitiram-nos perceber que tais práticas são mencionadas ape nas aos agentes indígenas de saúde, e não para os demais profissionais da equipe (médico, dentista e enfermeiros), por temerem represálias. Tal compor tamento pode estar correlacionado ao processo de incremento e valorização da biomedicina em detri mento do conhecimento e da experiência desse povo, muito comum nos serviços de saúde que os atendem.

Nas aldeias, há postos de saúde com equipe mul tidisciplinar de saúde indígena. Os atendimentos são realizados pela demanda espontânea dos pacientes e a presença da equipe de saúde em cada aldeia varia de um a três dias por semana, a depender da aldeia. Isto faz que sempre haja elevada demanda por con sultas na unidade de saúde, levando os profissionais a priorizarem o atendimento no modelo curativo.

Lidando com a hipertensão arterial

Os esquemas interpretativos mencionados pelos Teréna para a causalidade da hipertensão arterial indicam diferentes representações acerca da origem e podem estar relacionados às condições de vida, alterações climáticas, contaminações do meio am biente, mudanças na dieta alimentar, quebra de re gras, feitiços e desobediência aos mais velhos, cuja lógica está embasada nos conhecimentos coletivos e nas experiências individuais.

Eu acho que é por causa também do calor, porque o sol está mais quente agora, né? Porque muitas vezes, o sol, antigamente, não era assim, agora tá mais quente, né? (Entrevistado 18).

Ah, eu acho que é por causa da poluição demais, né? Eu acho que é por causa também do calor, porque o sol está mais quente agora, né? Porque muitas vezes, o sol, antigamente, não era assim, agora está mais quente. Aí vem o frio, muitas vezes aqueles que têm hipertensão às vezes não aguentam né? Ficam sufocados (Entrevistado 7).

Nas explicações de causalidade da hipertensão ar terial descritas anteriormente, percebe-se que a pessoa mantém uma relação de exterioridade com a causa da doença, isto é, por questões alheias as suas vontades. É importante sublinhar que o indivíduo produz mais de um tipo de explicação sobre a sua doença, uma vez que seu conhecimento é processual (Young, 1982YOUNG, A. The anthropologies of illness and sickness. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, v. 11, p. 257-285, dez. 1982.).

Outra explicação para a causalidade da doença esteve correlacionada ao feitiço e quando a pessoa se torna alvo de inveja, porque acumula bens e nega-se a partilhar com os outros.

Tem doença que pode vir por um tipo de inveja ou feitiço. Tem também quando a pessoa só quer as coisas para ela, não reparte, não pensa nos outros e então fica doente (Entrevistado 3).

Assim, cada indivíduo entende a doença de dife rentes maneiras e de forma variável. Para elaborar suas hipóteses, apoiam-se numa multiplicidade de elementos disponíveis em seu contexto sociocul tural, mas que serão apropriados diferentemente devido à distribuição desigual e às singularidades da trajetória pessoal (Adam; Herzlich, 2001ADAM, P.; HERZLICH, C. Saúde, doença e suas interpretações culturais e sociais. In: ADAM, P.; HERZLICH, C. (Org.). Sociologia da doença e da medicina. Bauru: EDUSC, 2001. p. 69-86.).

Nos relatos dos idosos com diagnóstico de hi pertensão arterial identificamos outra forma de compreender os fatores causais da própria doença e do envelhecimento. Eles fazem referência aos de sequilíbrios dos filhos e à não observância de regras por não "escutarem os mais velhos".

O que deixa a gente ficar velho e doente é a preocupação com os filhos que bebem; não ia ficar velho rápido se não tivesse a preocupação com os filhos; hoje os filhos não procuram mais conversar com o velho; o mais novo segue o que ele pensa, não ouve mais a ideia do velho [...] eu morei com minha sogra e ela levava a gente para trabalhar na roça, limpar, colher milho e empilhar arroz; era trabalho pesado, mas era bom e acho que não é isso que faz a gente envelhecer, mas a preocupação com os filhos (Entrevistado 20).

Questão de velhice é só pressão alta que é a pre ocupação. A pressão alta só começou quando meus filhos começaram a beber. Quando estão todos juntos, tomando tereré numa tarde[...] Aí controla, né! A pressão fica boa e envelhecer não tem problema (Entrevistado 21).

Hoje em dia tem muita coisa [...] e os jovens não escutam os mais velhos (Entrevistado 22).

É possível reconhecer, nos relatos, a dissonância entre o comportamento dos idosos e dos jovens, especialmente por esses últimos não darem impor tância aos conselhos de seus familiares.

Quanto às restrições ao uso de sal e gordura na dieta, reconhecem a necessidade do controle, mas afir mam ser impossível o cumprimento das recomenda ções médicas recebidas, porque contrariam a própria "natureza", isto é, seu modo de ser. A gordura é ainda considerada como um alimento de valor simbólico pelo que representa ao prover força para o trabalho diário nas roças, fundamental na economia Teréna.

Se na vida cotidiana, com a alimentação habitual, as recomendações restritivas já contrariam o que eles entendem como alimento adequado e essencial para se ter força na realização do trabalho, nas festas Teréna as recomendações comprometem a partici pação e a sociabilidade, pois o principal alimento compartilhado é a carne salgada em forma de man tas com espessa camada de gordura. Enquanto os convidados esperam pelas mantas de carne assada e mandioca cozida, são servidas cumbucas com puche ro (caldo com tutano, aparas de gorduras, mandioca e sal) que são preparados em grandes tachos e com partilhados até o fim com todos os presentes, motivo de grande alegria e prestígio para o organizador da festa. Assim, aqueles que porventura estejam seguin do alguma dieta com restrição de sal e gordura, não teriam o que comer durante as festividades.

As mulheres que receberam orientações sobre a necessidade de restringir o sal e a gordura da dieta, com indicação dos alimentos que não poderiam ser consumidos (café, carne gorda e alimentos muito salgados), relataram que, apesar de entenderem o que foi solicitado, têm dificuldades para cumprir, pois é difícil preparar dois tipos de alimentos (alimentos com sal e sem sal), até pela falta de vasilhas (panelas) e que os alimentos indicados como proibidos eram os mais desejados na dieta, dando o exemplo da carne, predominantemente gorda e salgada. Além disso, o fato de ter carne gorda e café no domicílio significa fartura e poder, pelo prestígio que é conferido às famílias que consomem tais alimentos.

Os médicos falam que não posso comer sal, graxa [...] eu entendo, tem que regular, mas é da nossa natureza comer com gordura (Entrevistado 1).

Nos relatos, os Teréna questionam o consumo de alimentos que sempre representaram saúde e força e que hoje são apresentados como causadores de doenças. É necessário lembrar a importância da experiência empírica e o valor simbólico desses alimentos para os entrevistados, diante de novos conceitos e recomendações.

Antigamente os parentes comiam carne gorda, salgada e frita e não tinha essas doenças de hoje. Não entendo como essas comidas agora fazem mal (Entrevistado 2).

Além disso, o momento das refeições é sempre relatado como um encontro com toda a família no "re dondo" (varanda circular onde realizam as refeições) para comer a mesma comida. Assim ter uma comida diferente era como se não fizesse parte daquela refei ção por ser excluída da partilha familiar. Em tom de de sabafo falavam que comer "sem sal e sem gordura, era melhor não comer, pois a comida deixa de ser comida".

Nesse caso, é preciso considerar que o alimento preparado com sal e gordura está inserido em um contexto cultural, em que os elementos simbólicos e sociais têm forte expressão para os Teréna.

Outra questão, que emergiu nos relatos de mu lheres portadoras de hipertensão arterial, refere-se à medicalização dos atendimentos nos postos de saúde, centrados na aferição da pressão arterial e na prescrição de anti-hipertensivo, e sem referência ou interesse nas condições de vida dessas mesmas mulheres e em suas interpretações sobre a doença.

Fui no posto, mediram minha pressão, falaram que tava muito alta. Aí o doutor só passou remédio. Era pra tomar três vezes ao dia. O difícil é lembrar de tomar todo dia e ainda no horário (Entrevistado 13).

Tem o meu pai que é hipertenso. Ele tem problema no coração. É aquele velhinho que mora ali, ele não tem diabetes [...] ele vem se tratando. E tem vezes que está acelerado o coração dele, aí eles levam nós pro médico. É assim, só que depois normaliza tudo. E quando ele se sente mal, ele vai no postinho, me dir a pressão [...] às vezes é a pressão, né? Ou eles vêm ali, quando está muito alta a pressão dele [...] aí eles dão remédio ou aumenta a dose do remédio dele pra normalizar (Entrevistado 5).

Os recursos da biomedicina são utilizados am plamente pelos entrevistados e de forma significa tiva, mas sem que isso evidencie que outras práticas e outros agentes não sejam acionados.

Outro aspecto a ser destacado refere-se à forma como o profissional de saúde faz suas orientações, na maioria das vezes, desconsiderando o contexto de vida da pessoa.

O médico falou para caminhar para baixar a pres são. Eu não paro, ando o dia todo, acordo, dou milho para as galinhas, já vou varrer o quintal, catar as folhas secas, faço comida, lavo roupa de todo mundo e é muita roupa suja, roupa de roça, sabe. À tarde vou catar lenha com as crianças, passo na roça, arranco mandioca, carrego nas costas e na cabeça até chegar em casa. Vou ver minha mãe que tá doente. Lavo uma loucinha e trago a roupa dela para lavar. Aí já tá na hora de molhar as plantas, esquentar a janta, limpar a cozinha, tomar banho e ir dormir. Que horas que vou caminhar? (Entrevistado 24).

Nessa fala, ela reivindica, sobretudo, o reconhe cimento pelo profissional de saúde de que nas suas atividades cotidianas já realiza inúmeras atividades que movimentam o corpo e que mesmo assim tem pressão alta. Assim, a recomendação da prática de atividade física como uma ação positiva na redução do nível da pressão arterial pode parecer contradi tória para uma pessoa que entende manter-se ativa em sua rotina diária.

Sobre esse assunto, Rozemberg e Minayo (2001)ROZEMBERG, B.; MINAYO, M. C. S. A experiência complexa e os olhares reducionistas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, p. 115-123, 2001. destacam que nos serviços de saúde, recomendações médicas para as mudanças de comportamento das pessoas são tratadas desconsiderando o meio em que vivem. Vê-se, portanto, que o desconhecimento do cotidiano da vida da pessoa e o não acolhimento de suas aflições dificultam a abordagem e os resul tados do tratamento proposto.

Apesar das dificuldades referidas sobre a com preensão do tratamento recebido, a maioria dos entrevistados relatava o uso regular da medicação e recursos que julgavam importantes, e não contra ditórios aos tratamentos propostos pelo médico.

Portanto, é possível afirmar que os Teréna re alizam inúmeros arranjos e negociações entre o seu sistema de saúde e o biomédico na condução do processo terapêutico. Em outras palavras, eles fazem uma leitura do aparato da biomedicina segundo sua perspectiva e utilizam-na em seu próprio benefício.

Como exemplo dessa negociação, destaca-se a utilização pelos Teréna da erva-mate com certas raízes e folhas adicionadas à água do mate (chimar rão) como recursos para baixar o nível da pressão arterial. Embora a recomendação médica fosse para a restrição do consumo de erva-mate, sua utilização é entendida como uma representação terapêutica similar a determinados medicamentos recomenda dos no controle da pressão arterial.

Eu tomo raiz... aquela folha de lima... Ponho três folhas dentro pra tomar no chimarrão. Porque daí, não deixa subir, né? Eu tomo de manhã [o mate], daí depois do almoço eu tomo esse remédio [do posto de saúde] (Entrevistado 13).

[...] junto com o mate, tomo folha da amora, todos os dias. Acredito nos dois [remédios]. Não tem diferença, tudo é remédio (Entrevistado 14).

De manhã cedo eu peço pra Deus. Aí eu levanto e sempre na chaleira tem raiz. Eu tomo o mate cedo e na água do mate tem raiz. Difícil usar comprimido (Entrevistado 15).

Gallois (1991)GALLOIS, D. T. A. Categoria "doença de branco": ruptura ou adaptação de um modelo etiológico indígena? In: BUCHILLET, D. (Org.). Medicinas tradicionais e medicina ocidental na Amazônia. Belém: MPEG; CNPq; SCT; CEJUP; UEP, 1991. p. 175-206. defende o pressuposto de que a do ença deve ser analisada situando-a num nível mais abrangente, que esteja inter-relacionada à realidade social e cultural de determinado povo.

Considerações finais

Apesar das mudanças e novas ideologias, o xama nismo continua presente e sendo importante no coti diano Teréna. A crença na necessidade de harmonia entre o ambiente, os espíritos que o habitam e o corpo das pessoas é identificado nas narrativas colhidas.

Entendemos que as experiências vivenciadas pelos Teréna no entendimento de suas doenças e na busca pela cura são processos resultantes dos saberes locais, da participação de diversos atores envolvidos, dos recursos e tecnologias disponíveis, todos inscritos em um contexto cultural e social dinâmico.

As orientações recebidas por profissionais de saúde fazem parte de um conhecimento paralelo e hierarquizado, pois transparecem um reconheci mento da legitimidade das prescrições do médico, que estudou e tem autoridade pelos conhecimentos que possui. Porém, nem sempre as instruções são seguidas, pois o médico muitas vezes desconhece o cotidiano e não leva em conta particularidades e riscos a que só quem ali vive está sujeito. Isso de alguma maneira delimita a distância existente entre o saber biomédico e os saberes locais.

Foram observadas aproximações e reinterpre tações das recomendações recebidas pela equipe médica, como no caso da restrição do consumo da erva-mate (chimarrão), que continua sendo utilizada pelos Teréna com hipertensão.

Se, na atual configuração do sistema de atenção à saúde indígena, o conhecimento biomédico se im põe sem levar muito em conta as condições efetivas para o cumprimento das recomendações (restrição de alimentos, realização de atividade física e uso de medicamentos em horários rígidos), outros atores constituem alternativas importantes nos cuidados com a saúde, com base nas experiências individuais e de cada família, sendo utilizados simultaneamente sem que se estabeleçam grandes conflitos. Assim, o uso de diversos recursos disponíveis é orientado pela busca do entendimento e solução do sofrimento vivido, extrapolando o físico e revelando uma visão complexa e ampliada da doença.

Reconhecer as formas pelas quais os Teréna buscam o equilíbrio do corpo e considerar a não passividade das reinterpretações diante das reco mendações e condições adversas que vivenciam é desafio dos que têm por objetivo prevenir e tratar doenças em diferentes grupos sociais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2015
  • Aceito
    26 Jul 2015
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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