Eu virei homem!: a construção das masculinidades para adolescentes participantes de um projeto de promoção de saúde sexual e reprodutiva

I became a man!: the construction of masculinities for adolescent participants of a project for the promotion of sexual and reproductive health

Anna Carolina de Sena e Vasconcelos Rosana Juliet Silva Monteiro Vera Lúcia Dutra Facundes Maria de Fátima Cordeiro Trajano Daniela Tavares Gontijo Sobre os autores

Resumo

Este estudo teve por objetivo discutir a construção sobre as masculinidades no discurso de adoles centes participantes de um projeto de promoção de saúde sexual e reprodutiva, realizado em uma escola pública em Recife (PE) com 24 adolescentes homens matriculados no 8° e 9° ano do ensino fundamental. Em uma abordagem qualitativa, os dados coletados por meio da gravação de áudio em equipamento digital e pela técnica da observação participante, com a utilização de registro em diário de campo, foram submetidos à análise de conteúdo temática. A análise dos dados resultou em três ca tegorias temáticas. Na categoria "Percepções sobre o corpo masculino", observou-se que os adolescen tes necessitavam de aspectos concretos e visíveis para assimilar a transformação do corpo, havendo dificuldade e resistência inicial para discutir sobre o próprio corpo. Na categoria "Gênero e masculini dades", observou-se a limitação dos adolescentes na compreensão das relações de gênero e na con cepção sobre a sexualidade, fundamentando-se nas experiências divergentes para homens e mulheres, permeadas pelas construções culturais. Na catego ria "Paternidade e masculinidades", os adolescentes apontaram que as concepções de paternidade têm se transformado, envolvendo diferentes modelos de paternidade. A partir do exposto, infere-se que as diferentes construções acerca das masculinidades estão relacionadas às experiência de vida dos adolescentes e que podem ter implicações significativas no modo de vivenciar a saúde sexual e reprodutiva, tornando relevante a desmistificação dessas cons truções, bem como a participação dos profissionais de saúde para contextualizar ações de promoção e educação em saúde.

Palavras-chave:
Adolescente; Identidade de Gênero; Pesquisa Qualitativa; Saúde Coletiva; Saúde Sexual e Reprodutiva

Abstract

This study aimed to discuss the construction of "masculinities" in the discourse of adolescents participating in a sexual and reproductive health promotion project, carried out in a public school in Recife (PE) with 24 male adolescents enrolled in the 8th and 9th years of the Middle School. Through a qualitative approach, data collected through audio recording on digital equipment and with the par ticipant observation technique, with the use of a field journal, underwent thematic content analysis. Data analysis resulted in three thematic categories. In the category "Perceptions of the male body", we observed that adolescents needed concrete and visible aspects to assimilate the transformation of the body, with difficulty and initial resistance to discuss their own body. In the category "Gender and masculinities", the adolescents had a limitation in the understanding of gender relations and the conception of sexuality, basing themselves in dif ferent experiences for men and women, permeated by cultural constructions. In the category "Parent hood and masculinities", adolescents indicated that paternity conceptions have been transformed and involve different models of fatherhood. From this, it is inferred that the different constructions concern ing masculinities are related to the life experiences of adolescents and can have significant implications in the way of experiencing sexual and reproductive health. It has become relevant the demystification of these constructions, as well as the participation of health professionals to contextualize the actions of health promotion and education.

Keywords:
Adolescents; Gender Identity; Qualitative Research; Public Health; Sexual and Reproductive Health

Introdução

A adolescência, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é o período que compreende a faixa etária entre 10 e 19 anos de idade (Bechara et al., 2013BECHARA, A. M. D. et al. Na brincadeira a gente foi aprendendo: promoção de saúde sexual e reprodutiva com homens adolescentes. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 25-33, 2013.). Nessa fase, caracterizada por intensas trans formações anatômicas, fisiológicas, psicológicas e sociais, o adolescente constrói a sua identidade, descobrindo e vivenciando o que é ser e sentir-se adolescente, além de deparar-se com diversas no vas experiências em relação à sexualidade. Esse processo, contextualizado social e culturamente, é influenciado pelo estabelecimento de relações sociais, com base nas relações de gênero que são construídas desde a infância (Foucault, 2009FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. 19. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009. ; Brêtas et al., 2011BRÊTAS, J. R. S. et al. Aspectos da sexualidade na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3221-3228, 2011.; Heilborn, 2012HEILBORN, M. L. Por uma agenda positiva dos direitos sexuais da adolescência. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 57-68, 2012.; Emerich et al., 2012EMERICH, D. R. et al. Diferenças quanto ao gênero entre escolares brasileiros avaliados pelo inventário de comportamentos para crianças e adolescentes (CBCL/6-18). Psico, Porto Alegre, v. 43, n. 3, p. 380-387, 2012.; Altmann; Mariano; Uchoga, 2012ALTMANN, H.; MARIANO, M.; UCHOGA, L. A. R. Corpo e movimento: produzindo diferenças de gênero na educação infantil. Pensar a Prática, Goiânia, v. 15, n. 2, p. 272-550, 2012..

De acordo com (Gomes, 2008GOMES R. Sexualidade masculina, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.), o gênero pode ser compreendido como:

[...] uma construção cultural sobre a organização social da relação entre os sexos, traduzida por dispositivos e ações materiais e simbólicos, físicos e mentais [...] refere-se a papéis socialmente cons truídos e a definições e expectativas - consideradas apropriadas por uma sociedade - o ser homem e o ser mulher (p. 65).

A discussão das questões relacionadas a gênero suscita a consideração de que as desigualdades observadas entre homens e mulheres não se restrin gem às características biológicas e naturais, mas resultam de longos processos históricos e culturais que permeiam essas relações. Assim, entende-se que a construção da história dos homens não pode ser analisada de forma distinta da história das mulhe res, tal como os discursos sobre masculinidades e feminilidade (Gontijo; Medeiros, 2009GONTIJO, D. T.; MEDEIROS, M. Adolescência, gênero e processo de vulnerabilidade/desfiliação social: compreendendo as relações de gênero para adolescentes em situação de rua. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 33, n. 4, p. 605-617, 2009.).

Homens e mulheres, desde o nascimento, são chamados e preparados para responder às expectativas sociais referentes aos papéis que devem desempenhar, sendo estes demarcados por relações desiguais de gênero e hierarquias sexuais fundamentadas em questões biológicas. Esses pressupostos manifestam-se na prática dos adolescentes quando reproduzem os padrões da sociedade da qual fazem parte (Oliveira, 2011OLIVEIRA, Q. B. M. Dialogando sobre algumas questões de gênero e prevenção à violência e promoção da saúde na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 10, p. 3985-3991, 2011.; Wiese; Saldanha, 2011WIESE, I. R. B.; SALDANHA, A. A. W. Vulnerabilidade dos adolescentes às DST/AIDS: ainda uma questão de gênero? Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, v. 12, n. 1, p. 105-118, 2011.).

Especificamente em relação aos homens, se gundo (Gomes, 2008GOMES R. Sexualidade masculina, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.), a masculinidade pode ser entendida:

[...] como um espaço simbólico que serve para es truturar a identidade de ser homem, modelando atitudes, comportamentos e emoções a serem adotados. [...] a masculinidade - situada no âmbito de gênero - representa um conjunto de atributos, valores, funções e condutas que se espera que um homem tenha numa determinada cultura (p. 70).

É importante considerar que a masculinidade não pode ser compreendida a partir de uma única perspectiva, pois as concepções referentes a ela relacionam-se a diferentes dimensões sociais, econômicas, geracionais e culturais contextualizadas historicamente, o que justifica a utilização do termo "masculinidades" para abranger essa pluralidade (Gomes, 2008GOMES R. Sexualidade masculina, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008., 2010GOMES R. A saúde do homem em foco. São Paulo: UNESP, 2010.; Connel; Mes serchmidt, 2013CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 241-282, 2013.; Separavich; Canesqui, 2013SEPARAVICH, M. A.; CANESQUI, A. M. Saúde do homem e masculinidades na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: uma revisão bibliográfica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 415-428, 2013.).

No entanto, existem modelos de masculinidade que adquirem maior legitimidade social, caracte rizando-se como hegemônicos e orientadores de valores, comportamentos e atitudes (Connel; Mes serchmidt, 2013CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 241-282, 2013.). Sendo assim, em nossa cultura, de uma forma geral, valorizam-se as construções sobre o ser homem sustentadas pelo antagonismo ao ser mulher, e em discursos que delimitam o universo masculino a características como virilidade, hete rossexualidade, força, fonte de sustento material e moral da família e vivência da sexualidade sem limites (Connel; Messerchmidt, 2013CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 241-282, 2013.; Separavich; Canesqui, 2013SEPARAVICH, M. A.; CANESQUI, A. M. Saúde do homem e masculinidades na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: uma revisão bibliográfica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 415-428, 2013.).

A sexualidade é um aspecto relevante do de senvolvimento humano, caracterizada como uma construção histórica, cultural e social e alterada pelas relações sociais. Apesar de abranger práticas e desejos relacionados à satisfação, à afetividade, ao prazer, aos sentimentos, ao exercício da liber dade e à saúde, no contexto social a sua vivência é cerceada por tabus, mitos, preconceitos, interdi ções e relações de poder (Foucault, 2009FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. 19. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009. ; Bechara et al., 2013BECHARA, A. M. D. et al. Na brincadeira a gente foi aprendendo: promoção de saúde sexual e reprodutiva com homens adolescentes. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 25-33, 2013.).

Na adolescência, a sexualidade é demarcada por curiosidades, descobertas e experimentações, assim como pela capacitação para a tomada de decisões, de escolhas, de responsabilidades e de afirmação de identidades (Altmann; Mariano; Uchoga, 2012ALTMANN, H.; MARIANO, M.; UCHOGA, L. A. R. Corpo e movimento: produzindo diferenças de gênero na educação infantil. Pensar a Prática, Goiânia, v. 15, n. 2, p. 272-550, 2012.).

Ainda que a sexualidade humana seja uma cons trução social que envolve uma articulação entre ati vidades mentais e corporais, para os adolescentes, a relação sexual pode não pressupor um vínculo afe tivo imprescindível, mas a afirmação da virilidade e status perante os outros, principalmente entre seus pares. Tais comportamentos de afirmação expõem essa população a uma série de riscos (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde do homem: princípios e diretrizes. Brasília, DF, 2008.; Oliveira, 2011OLIVEIRA, Q. B. M. Dialogando sobre algumas questões de gênero e prevenção à violência e promoção da saúde na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 10, p. 3985-3991, 2011.; Wiese; Saldanha, 2011WIESE, I. R. B.; SALDANHA, A. A. W. Vulnerabilidade dos adolescentes às DST/AIDS: ainda uma questão de gênero? Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, v. 12, n. 1, p. 105-118, 2011.).

Entre as possíveis consequências de compor tamentos de risco, destacam-se a gravidez não planejada e o risco de acometimento pelas Infec ções Sexualmente Transmissíveis (IST`s)/Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Ainda que os jovens brasileiros possuam conhecimentos acerca dos modos de transmissão de IST`s/HIV, quando comparados com outras faixas etárias, a literatura evidencia práticas de risco associadas à transmis são de patógenos relacionados às IST`s, como o uso não contínuo do preservativo (Fontanella; Gomes, 2012FONTANELLA, B. J. B.; GOMES, R. Prevenção da AIDS no período de iniciação sexual: aspectos da dimensão simbólica das condutas de homens jovens. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 12, p. 3311-3322, 2012.; Tronco; Dell'aglio, 2012TRONCO, C. B.; DELL'AGLIO, D. D. Caracterização do comportamento sexual de adolescentes: iniciação sexual e gênero. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, Juiz de Fora, v. 5, n. 2, p. 254-269, 2012.; Taquette, 2013TAQUETTE, S. R. Epidemia de HIV/Aids em adolescentes no Brasil e na França: semelhanças e diferenças. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 618-628, 2013.).

Para (Cunha, Rebello e Gomes, 2012CUNHA, R. B.; REBELLO, L. E. F. S.; GOMES, R. Como nossos pais? Gerações, sexualidade masculina e autocuidado. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1419-1437, 2012.) e (Pinheiro, Couto e Silva, 2012PINHEIRO, T. F.; COUTO, M. T.; SILVA, G. S. N. Homens e cuidado: construções de masculinidade na saúde pública brasileira. Psicología, Conocimiento y Sociedad, Montevidéu, v. 2, n. 2, p. 177-195, 2012.), características valorizadas no modelo hegemônico de masculinidade, como a viri lidade, a força e a percepção de invulnerabilidade, associadas à identificação do cuidado como atribui ção do universo feminino, têm se constituído como algumas das barreiras entre os homens e as práticas preventivas de doenças e promotoras de saúde.

Assim, compreende-se que o conhecimento por si só não é responsável pela mudança de atitude e adoção de comportamentos saudáveis, uma vez que diversos fatores como pressão de grupos, crenças, valores sociais e individuais interferem na tomada de decisão (Trajano; Quirino; Gonçalves, 2012TRAJANO, M. F. C.; QUIRINO, G. S.; GONÇALVES, G. A. A. Consequências da maternidade na adolescência. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 17, n. 3, p. 430-436, 2012.). Entender a adolescência e suas transformações como um perío do que pode ter diferentes significações é importante para o planejamento e sistematização de ações para os profissionais de saúde, a fim de alcançar a integra lidade do atendimento. Quanto aos adolescentes ho mens, essas ações tornam-se imprescindíveis, tendo em vista que geralmente os homens não frequentam os serviços de saúde. Portanto, torna-se necessário relacionar as experiências dos adolescentes para contextualizar ações pertinentes ao seu universo, promovendo formas específicas de cuidar em saúde para essa população (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília, DF, 2010.).

Considerando esse contexto, aponta-se a ne cessidade de ações qualificadas e específicas para atender à demanda dos homens adolescentes. Essas ações devem considerar a problematização das concepções sobre as masculinidades e dos estereótipos de gênero. (Sampaio e Garcia, 2010SAMPAIO, R. S.; GARCIA, C. A. Dissecando a masculinidade na encruzilhada entre a psicanálise e os estudos de gênero. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 81-102, 2010.), afirmam que "o momento contemporâneo pode ser benéfico para os homens por permitir-lhe uma reinvenção mais livre dos estereótipos de gênero aprisionadores por tanto tempo propagados pelas sociedades ocidentais" (p. 98).

A partir da relevância do tema em questão, este trabalho se propôs a compreender e discutir as construções sobre as masculinidades no discurso de adolescentes participantes de um projeto de promoção de saúde sexual e reprodutiva.

Percurso metodológico

Estudo exploratório com abordagem qualita tiva, integrante do projeto de pesquisa "Análise da utilização de recursos lúdicos na promoção de saúde sexual e reprodutiva de adolescentes". A pes quisa articulou-se com um projeto de extensão de promoção de saúde sexual e reprodutiva com ado lescentes que contemplou temas relacionados aos corpos masculino e feminino, relações de gênero e de sexualidade, IST`s, gravidez na adolescência e sexualidade segura, além de outros assuntos sugeridos pelos adolescentes. As discussões fo ram mediadas pela utilização de jogos educativos desenvolvidos e adaptados pela equipe (docentes e acadêmicos) responsáveis pela condução do projeto. As temáticas de cada encontro foram sub sidiadas por materiais educativos do Ministério da Saúde e Ministério da Educação, assim como com base na experiência de estudo anteriormente realizado (Bechara et al., 2013BECHARA, A. M. D. et al. Na brincadeira a gente foi aprendendo: promoção de saúde sexual e reprodutiva com homens adolescentes. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 25-33, 2013.).

As ações foram realizadas semanalmente em uma escola pública do ensino fundamental, coordenadas por docentes e acadêmicos do curso de Terapia Ocupacional, em grupos com 10/12 par ticipantes, no período de agosto a outubro de 2012.

Neste artigo, foram incluídos os dados referentes aos adolescentes homens matriculados no 8º ou 9º ano do ensino fundamental, que participaram da proposta de intervenção e que obtiveram autoriza ção de seus responsáveis legais. Foram excluídos da pesquisa os jovens com frequência inferior a 75% dos encontros.

Os dados foram coletados por meio de gravação de áudio em equipamento digital durante as inter venções e pela técnica da observação participante, com a utilização de registro em diário de campo pelos pesquisadores.

As gravações foram transcritas, e, junto com as anotações em diário de campo, foram submetidas a uma adaptação da técnica de Análise de Conteúdo Temática para pesquisas qualitativas proposta por (Gomes, 2007GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO M. C. S.; DESLANDES, S. F.; GOMES, R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 79-108.).

Inicialmente, os trechos que se relacionavam ao objetivo deste artigo foram identificados e selecio nados no conjunto dos dados. Em seguida, a partir de um processo de categorização contínuo, foram identificadas as ideias centrais, posteriormente agrupadas em núcleos de sentido e, por conseguinte, em categorias temáticas. Após a análise, esses da dos foram articulados com a revisão da literatura e os objetivos do estudo, resultando em uma síntese interpretativa expressa nas categorias temáticas: "Percepções sobre o corpo masculino"; "Gênero e masculinidades" e "Paternidade e masculinidades".

Os dados foram coletados após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da UFPE (parecer n° 514.709) e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos adoles centes e seus responsáveis legais. Para garantir o anonimato, os participantes foram identificadas pela letra P seguida de um número de identificação.

Resultados e discussão

Participaram do estudo 24 adolescentes, com ida des entre 13 e 17 anos, e média de 14 anos e 6 meses.

Na categoria "Percepções sobre o corpo mascu lino", foram alocados os conteúdos sobre como os jovens compreendem as relações entre as trans formações corporais na adolescência e o tornar-se homem adulto e as observações referentes às suas reações quando o corpo masculino foi colocado em discussão durante as intervenções.

Para os adolescentes, o tornar-se homem estava relacionado à concretude e à visibilidade das trans formações do corpo infantil em corpo "de homem". Dessa forma, mais do que o crescimento da estatu ra, o engrossamento da voz ou o aumento da força, outras estruturas corpóreas que surgem durante a puberdade, como os pelos pubianos, assumem lugar de destaque no discurso dos participantes da pesqui sa como indicativos do processo de transformação característico dessa fase.

Quando eu vi [o surgimento dos pelos pubianos]fiquei tão feliz [...] porque eu virei homem (P1).

As alterações físicas decorrentes da puberdade, ainda que ocorram de modo semelhante em todos os indivíduos, ao envolver transformações orgânicas que tendem à maturação biológica com dimorfismo sexual e capacidade reprodutiva, podem ter diversos significados (Schoen-Ferreira; Aznar-Farias; Silva res, 2010SCHOEN-FERREIRA, T. H.; AZNAR-FARIAS, M.; SILVARES, E. F. M. Adolescência através dos séculos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 26, n. 2, p. 227-234, 2010.; Brêtas et al., 2011BRÊTAS, J. R. S. et al. Aspectos da sexualidade na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3221-3228, 2011.).

Neste estudo, os adolescentes caracterizaram as transformações corporais de forma positiva, simbolizando-as como ritos de passagem para a vida adulta. No entanto, é importante considerar que as mudanças corporais podem produzir reper cussões positivas ou negativas na autoimagem do adolescente (Valença; Germano, 2009VALENÇA, C. N.; GERMANO, R. M. Percepção da auto-imagem e satisfação corporal em adolescentes: perspectiva do cuidado integral na enfermagem. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, Fortaleza, v. 10, n. 4, p. 173-180, 2009.). Estudo realizado com adolescentes apontou que as mu danças físicas, provenientes do desenvolvimento do corpo, ocasionaram para alguns sujeitos o sentimento de insatisfação. Essas novas formas, funções e comportamentos implicam curiosidade entre os sujeitos, dentro e fora do contexto fami liar, que produzem comentários que nem sempre satisfazem aos adolescentes. Esse sentimento de constrangimento, oriundo das repercussões das transformações corporais, pode ocasionar o re traimento dos adolescentes e a ruptura de relações nos ambientes que lhes cercam, como a família e a escola (Brêtas et al, 2008BRÊTAS, J. R. S. et al. Os rituais de passagem segundo adolescentes. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 404-411, 2008.).

Durante o processo da pesquisa, quando se colo cou o corpo masculino e suas transformações na ado lescência em discussão (com utilização de um jogo de quebra cabeças como mediador), os participantes apresentaram uma resistência inicial em falar sobre o tema com seus pares, explicitando que tinham conhecimento suficiente sobre o próprio corpo para o exercício da sexualidade de maneira apropriada.

O objeto dessa intervenção foi apresentado pela coordenadora do grupo - o conhecimento do corpo masculino e suas transformações na puberdade. Entretanto, os participantes relutaram em olhar as imagens e tocar nas peças do jogo (Diário de Campo, 20/08/2012).

Com o decorrer das ações educativas, ainda que envergonhados por expor ou demonstrar desconhe cimento em relação a alguns dos assuntos aborda dos, como por exemplo, se há um tamanho padrão para o pênis ou se as características do esperma podem ser diferentes entre os próprios adolescen tes e suas práticas sexuais, eles foram aos poucos promovendo a discussão desse assunto.

É o corpo da gente [...] todo mundo num tem aqui, pra quê ficar guardando segredo? (P3).

A dificuldade e a resistência dos adolescentes em falar sobre o próprio corpo pode se relacionar às concepções sobre as masculinidades e às relações dessas com o cuidado em saúde. Os adolescentes do estudo demonstraram dificuldades em abordar aspectos do próprio corpo, ao tempo que se julgavam conhecedores das informações necessárias sobre a utilização sexual do corpo, características que podem minimizar as possibilidades desse grupo de participar mais precocemente das ações de saúde. Percebe-se que os homens preferiam retardar ao máximo a busca por assistência à saúde ou buscá -la nos serviços de atenção especializada, referindo à prevenção ou à promoção da saúde como práticas imprescindíveis apenas para as mulheres. Isso cor robora com as concepções tradicionais de gênero, de que as mulheres seriam mais frágeis e mais comple xas em sua saúde e justifica a presença mais rara dos homens na atenção primária (Schraiber et al., 2010SCHRAIBER, L. B. et al. Necessidades de saúde e masculinidades: atenção primária no cuidado aos homens. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 5, p. 961-970, 2010.).

Especificamente em relação aos adolescentes, além das barreiras culturais, as barreiras institu cionais apresentam-se como impeditivos da busca de informações e ações em saúde (Baggio et al, 2009BAGGIO, M. A. et al. O significado atribuído ao papel masculino e feminino por adolescentes de periferia. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 872-878, 2009.). A princípio, os adolescentes têm em seus familiares e amigos o referencial das informações sobre saúde, deixando de recorrer aos profissionais e equipamentos de saúde, que poderiam assegurar o desenvolvimento de vivências mais apropriadas (Baggio et al, 2009BAGGIO, M. A. et al. O significado atribuído ao papel masculino e feminino por adolescentes de periferia. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 872-878, 2009.; Brêtas et al, 2011BRÊTAS, J. R. S. et al. Aspectos da sexualidade na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3221-3228, 2011.).

Assim, constata-se a relevância em compreender o sentido do cuidado atribuído pelos homens a fim de promover ações que contextualizem as necessidades dessa população e permitam incorporar a importân cia do autocuidado e suas implicações à saúde.

Na categoria "Gênero e masculinidades" foram reunidos os conteúdos sobre a compreensão dos adolescentes a respeito das relações de gênero e das construções sobre o universo feminino, sobre sexo, sexualidades e masculinidades.

Observou-se, durante as intervenções, que quan do estimulados a explicitarem o que compreendiam quanto ao gênero, os adolescentes possuíam uma compreensão restrita do assunto com a classificação relacionada às diferenças dos atributos genitais, em masculino e feminino.

Eu sei que gênero tem masculino e feminino (P7).

Essa visão limitada em relação ao gênero está ligada à compreensão relacional desse conceito. (Korin, 2001KORIN, D. Nuevas perspectivas de género en salud. Revista Adolescencia Latinoameriacana, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 67-79, 2001.) aponta que quando se reflete sobre gênero, deve-se abranger os significados culturais atribuídos a homens e mulheres diante das diferen ças biológicas, sendo que esses significados muitas vezes balizam diferenças nas relações de poder estabelecidas socialmente.

Nessa perspectiva relacional, é possível com preender a sexualidade humana enquanto cons trução social, o que suscita a desnaturalização de condutas e práticas sociais e possibilita a pro blematização de como as relações organizam-se, sejam elas as que se estabelecem entre mulheres -homens, mulheres-mulheres ou homens-homens (Medrado; Lyra, 2008MEDRADO, B.; LYRA, J. Por uma matriz feminista de gênero para os estudos sobre homens e masculinidades. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 809-840, 2008.).

Considerando esse cenário, os adolescentes fo ram convidados a refletir sobre questões relaciona das ao universo feminino. Os participantes disseram que os papéis socialmente construídos, definições e expectativas para as mulheres têm se transfor mado com o passar dos anos, com o surgimento de novas atribuições para a população feminina. Para eles, o papel da mulher atualmente abarca, além das tarefas domésticas e o cuidado com a família, o exercício profissional.

Os tempos de hoje são diferentes. A mulher é trabalhadeira, mãe, pai e família (P9).

Contudo, ainda persistiu entre alguns adolescen tes a percepção de que a mulher deveria ser submissa em suas relações interpessoais, no desempenho de suas funções de mãe ou esposa e em seu contexto profissional, por exemplo, mantendo-se em cargos de pouca representatividade ou não obtendo o mesmo reconhecimento que os homens em cargos iguais. A manutenção da valorização de padrões hegemônicos sobre as atividades pertinentes ao masculino e ao feminino manifestou-se não só na fala, mas também pela linguagem corporal. Em uma intervenção di recionada para a discussão das relações de gênero, foi proposto aos adolescentes, como estratégia de mediação, um jogo de mímicas no qual eles foram so licitados a imitar ações, pessoas ou objetos presentes no cotidiano dos homens e mulheres. Embora essas ações, pessoas ou objetos (por exemplo: mãe, pai, bola, boneca, carrinho etc.) não tenham sido relacionados pela coordenação do grupo especificamente a homens ou mulheres, durante o jogo, os adolescentes fizeram associações que remetem às representações mais comuns em nossa sociedade.

Assim, em situações nas quais deveriam efetuar mímicas sobre aspectos comumente associados ao universo feminino, como por exemplo, flor, boneca e mãe, os participantes demonstraram dificuldades na realização da tarefa, demonstrando posturas sexistas, incorporadas ao longo do seu desenvolvi mento social.

Um homem de verdade nunca brinca com bo neca (P7).

Além disso, os adolescentes referiram que, para se afirmarem como homens, fazem-se necessárias demonstrações de virilidade, com ênfase na relação sexual, ainda que sem a existência de desejo entre os parceiros para a realização do ato.

Até porque se ele rejeitasse a proposta dela [de ter relações sexuais no primeiro encontro, ele seria chamado] de frango, aí ele [...] ia queimar a fama dele (P7).

Por outro lado, quando analisaram o comporta mento e as práticas sexuais das meninas, os par ticipantes do estudo expressaram concepções que valorizam a inexperiência sexual enquanto atributo positivo para elas.

Um menino que fica com várias meninas é pega dor, uma menina que fica com vários meninos é galinha (P9).

Interessante pontuar que, para os adoles centes, a virgindade estava limitada para a mu lher, caracterizando-se pelo não rompimento do hímen, independente de experiências sexuais sem penetração ou de vivências da sexualidade.

A virgindade é o não rompimento do hímen (P11)

A análise das percepções sobre o universo femi nino apontou que mesmo reconhecendo os avanços da mulher na esfera profissional, os participantes do estudo expressaram uma concepção hegemônica de submissão das mulheres em relação aos homens. Apesar das modificações históricas acerca das questões de gênero processadas na sociedade em relação ao papel da mulher nesse cenário, tais como o crescimento da inserção das mulheres no mercado de trabalho e sua participação nos processos socio políticos cotidianos, as concepções das diferenças entre os gêneros persistem com grande impacto. O acesso restrito à informação pode comprometer a formação dos adolescentes no efetivo exercício da cidadania, restringindo-os a reproduzir os valores e concepções tradicionais, nos quais as mulheres estão reduzidas à execução de trabalhos domésticos e de cuidado, enquanto os homens desenvolvem atividades laborais mais "complexas", fora do am biente domiciliar (Barreto; Ribeiro; Oliveira, 2010BARRETO, T. A.; RIBEIRO, C. V.; OLIVEIRA, M. A. S. Educação e saúde: problematizando gênero e sexualidade em uma escola municipal de Juazeiro - BA. Revista de Educação do Vale do São Francisco, Petrolina, v. 1, n. 1, p. 50-57, 2010.; Figueiredo; Schraiber, 2011FIGUEIREDO, W. S.; SCHRAIBER, L. B. Concepções de gênero de homens usuários e profissionais de saúde de serviços de atenção primária e os possíveis impactos na saúde da população masculina, São Paulo, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, p. 935-944, out. 2011. Suplemento 1.).

Foi encontrada no estudo uma valorização da atividade sexual para os meninos, em contraponto à inexperiência sexual para as meninas. O discurso dos participantes corrobora os achados na literatura ao evidenciar que para os homens a identidade mas culina está vinculada a um padrão de comportamen to sexual caracterizado por práticas sexuais com diversas parceiras simultaneamente, em relações fixas ou eventuais, e pela impulsividade dos dese jos sexuais (Figueiredo; Schraiber, 2011FIGUEIREDO, W. S.; SCHRAIBER, L. B. Concepções de gênero de homens usuários e profissionais de saúde de serviços de atenção primária e os possíveis impactos na saúde da população masculina, São Paulo, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, p. 935-944, out. 2011. Suplemento 1.; Rebello; Gomes, 2012REBELLO, L. E. F. S.; GOMES, R. Qual é a sua Atitude? Narrativas de homens jovens universitários sobre os cuidados preventivos com a AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 916-927, 2012.; Separavich; Canesqui, 2013SEPARAVICH, M. A.; CANESQUI, A. M. Saúde do homem e masculinidades na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: uma revisão bibliográfica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 415-428, 2013.). Por outro lado, a concepção de virgindade indicada pelos ado lescentes ratifica a forte valorização da virgindade feminina e a interdição social das relações sexuais antes do matrimônio. Essa constatação reforça as construções desiguais quanto ao comportamento e às vivências de sexualidade entre os sexos, como forma de definir e diferenciar os papéis masculinos e femininos na sociedade (Martins et al, 2012MARTINS, C. B. G. et al. Sexualidade na adolescência: mitos e tabus. Ciencia y enfermería, Concepcion, v. 18, n. 3, p. 25-37, 2012.).

Ainda no contexto das discussões de gênero, os participantes refletiram sobre aspectos relaciona dos à orientação sexual e demonstraram dificuldade na aceitação de uma orientação sexual que não lhes fosse tradicionalmente compatível com os papéis masculinos, incluindo o de pai. Entre os vários motivos de frustração nas relações com futuros filhos, a orientação homoafetiva caracterizou-se como um ponto nevrálgico no discurso dos adoles centes.

A pessoa ter um filho e ele se tornar homossexual é algo abominável (P11).

Destaca-se que essa dificuldade de aceitação em relação à orientação homoafetiva tem intensidade diferente para os adolescentes quando se reflete sobre a sexualidade de homens e mulheres, uma vez que a homossexualidade feminina é considerada como mais aceita em contraposição à masculina.

Uma menina [homossexual] está tudo bem, mas um menino não. Porque um menino não vai ter vergonha de andar com uma lésbica, mas com um gay o povo vai ficar falando (P12).

É relevante ressaltar que a visão dos adolescentes acerca da orientação sexual evidenciou conceitos arraigados de tabu quanto à homossexualidade. As concepções das masculinidade ou a formação do homem estão atreladas a um conjunto de valores, funções e condutas determinadas pela sociedade. A discussão sobre as vivências da sexualidade na ado lescência permanece cercada de interdições e tabus, principalmente quando se fala da orientação sexual, a qual remete à direção do desejo do sujeito para com quem ele possa ter prazer, seja por uma pessoa do mesmo sexo, por uma do sexo diferente do seu ou pelos dois sexos (Brêtas et al, 2011BRÊTAS, J. R. S. et al. Aspectos da sexualidade na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3221-3228, 2011.; Heilborn, 2012HEILBORN, M. L. Por uma agenda positiva dos direitos sexuais da adolescência. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 57-68, 2012.).

As construções sociais explicitadas pelos ado lescentes sobre a relação entre a masculinidade e a orientação sexual apontam para a heterossexuali dade como uma marca identitária. Essa marca, com ponente do modelo hegemônico de masculinidade (discutido anteriormente), reflete a compreensão de que ser "homem" perpassa necessariamente pelo interesse sexual por uma mulher e pela afirmação de sua virilidade. Considerando esse aspecto, em situações nas quais o adolescente ou o homem não adota condutas heterossexuais, o sujeito pode se sentir inseguro e não ser reconhecido na sua condi ção de pertencimento ao universo masculino (Korin, 2001KORIN, D. Nuevas perspectivas de género en salud. Revista Adolescencia Latinoameriacana, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 67-79, 2001.; Marques Junior; Gomes; Nascimento, 2012MARQUES JUNIOR, J. S.; GOMES, R.; NASCIMENTO, E. F. Masculinidade hegemônica, vulnerabilidade e prevenção ao HIV/AIDS. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 511-520, 2012.).

Assim como percebido neste estudo, (Teixeira-Fi lho e Rondini, 2012TEIXEIRA FILHO, F. S.; RONDINI, C. A. Ideações e tentativas de suicídio em adolescentes com práticas sexuais hetero e homoeróticas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 651-667, 2012.) destacam que o espaço escolar pode se configurar como um lócus de construção, consolidação e expressão de discursos e atitudes discriminatórias e homofóbicas, o que suscita o planejamento de ações intersetoriais destinadas ao enfrentamento de tais atitudes e discursos.

Essas ações nas escolas, inclusive quando efe tivadas no âmbito do Programa Saúde na Escola, devem visar à promoção da equidade de gênero, iden tidade de gênero e orientação sexual, para otimizar o enfrentamento ao sexismo e à homofobia, contri buindo para a emancipação dos sujeitos e grupos e para o respeito à diversidade sexual (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Educação. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília, DF, 2009.; Schraiber et al., 2010SCHRAIBER, L. B. et al. Necessidades de saúde e masculinidades: atenção primária no cuidado aos homens. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 5, p. 961-970, 2010.; Barreto; Ribeiro; Oliveira, 2010BARRETO, T. A.; RIBEIRO, C. V.; OLIVEIRA, M. A. S. Educação e saúde: problematizando gênero e sexualidade em uma escola municipal de Juazeiro - BA. Revista de Educação do Vale do São Francisco, Petrolina, v. 1, n. 1, p. 50-57, 2010.; Teixeira-Filho; Rondini, 2012).

Na categoria "Paternidade e masculinidades" foram agrupadas as considerações dos adolescentes sobre a figura paterna ideal e sobre a parentalidade para homens e mulheres.

Inicialmente é importante considerar que a pa ternidade estabeleceu-se, no discurso dos adolescen tes, como um dos principais atributos do ser homem, sendo construída a partir de diferentes concepções.

Quando solicitados a refletirem sobre como seria a figura paterna ideal, os adolescentes apontaram que o pai ideal era diferente daquele que tiveram a oportu nidade de ter, revelando vivências atuais e pregressas nas quais foram identificadas diversas situações de vulnerabilização familiar e social em seus cotidianos.

Meu pai morreu cedo [...] por causa da bebida. Aí eu já não tinha um pai. Minha mãe teve que sair e trabalhar pra [nos] sustentar, minha irmã e eu, aí tipo, mesmo ela me dando amor, ela não pôde es tar presente. Aí o que eu passei, eu não quero que meu filho passe, né? Eu quero ter a vida feita, ter meu filho e ensinar tudo o que eu queria [...] (P7).

Observou-se que, para alguns dos adolescentes, o exercício da paternidade abarcou uma série de responsabilidades e direitos, constituindo práticas de cuidado, afetividade e educação contínuas.

Assumir um filho é compartilhar. Da mesma for ma que a mulher troca a fralda dele, a gente tam bém tem que trocar. Lavar prato, dar a comida[...] não deixar para ela fazer tudo sozinha (P14).

Porém, para outros adolescentes, todas as res ponsabilidades para crescimento e desenvolvimento da criança são de obrigação materna, cabendo ao pai prioritariamente o provimento financeiro: "Quando questionados sobre como um pai assume seu filho, eles responderam enfaticamente: com aspectos financeiros" (Diário de Campo, 12/09/2012).

Corroborando a percepção do pai como man tenedor econômico, observou-se no discurso dos adolescentes que o momento em que eles se encon travam, de investimento educacional, passava a ser um motivo pelo qual não seria prudente vivenciar a paternidade.

Acho que o negócio é não ser pai agora não, mas assim, na faixa de uns vinte e cinco anos, depois que eu tivesse com a vida feita. Com minha mu lher, minha casa, meu carro [...] e tinha um filho [...] ou um time de futebol (P3).

As diferenças relacionadas a gênero também apareceram em seus discursos, quando os adoles centes refletiram sobre o impacto da parentalidade para homens e mulheres. De uma forma geral, os adolescentes compreenderam que ter um filho na adolescência teria consequências maiores para as mulheres, uma vez que elas vivenciam a maternida de de forma distinta desde a descoberta da gestação, com as alterações físicas decorrentes do processo gestacional e os cuidados implícitos à mulher, como a amamentação e os cuidados ao recém-nascido. Por outro lado, os homens, ao vivenciarem a paternida de, conforme explicitado anteriormente, deveriam manter financeiramente o filho, porém com um impacto menor em outras dimensões da vida quando comparado às mulheres.

Acaba a liberdade, pra menina é mais difícil, porque o marido, assim, vai trabalhar e ele ainda vai ter tempo de se divertir, e ela não (P3).

Sobre a parentalidade, os participantes do estu do expressaram duas concepções, uma em que a pa ternidade envolvia afetividade e cuidado contínuo, e outra cuja visão restringia-se à responsabilidade financeira com o filho. Assim, compreende-se que a ideia da paternidade abarca diferentes sentidos nas diversas sociedades e culturas e passa por im portantes mudanças ao longo dos tempos. Pode-se afirmar que o aprendizado a respeito do que é ser pai vai além da família e das relações de parentesco, incluindo os múltiplos contextos em que há intera ção, e que as ações, valores e sentimentos presentes nesses espaços são sempre mediados por questões culturais. Assim, o lar e a maternidade, assim como as tarefas domésticas e o cuidado infantil, apesar de não pertencerem às esferas masculinas, poderiam tornar-se campos possíveis para o exercício da pa ternidade. Contudo, apesar da mudança no cenário doméstico, observa-se que o modelo de família sustentado por uma visão mais igualitária quanto à divisão do trabalho ainda é bastante restrito, de maneira que a maioria das famílias permanece organizando-se em bases tradicionais (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Educação. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília, DF, 2009.).

O relato dos adolescentes corrobora o discurso de que existem papéis definidos em relação à família. À mulher cabe a função de responsável, que trabalha e que renuncia a si própria e aos seus direitos para cuidar da família. Ao homem pode ser incumbido ora o papel de responsável pela sua família, cuidando da mulher e assumindo o filho nos aspectos emo cionais e financeiros, a fim de garantir seu pleno desenvolvimento, ora como sujeito sem vínculos em relação à sua família, abandonando-a ou não a ajudando financeiramente (Silva et al., 2012SILVA, E. L. C. et al. Paternidade em tempos de mudança: uma breve revisão da literatura. Revista de Pesquisa em Saúde, São Luís, v. 13, n. 2, p. 54-59, 2012.). Dessa forma, a ausência do pai pode ser simbolizada pelo não envolvimento na atenção e nos cuidados neces sários ao desenvolvimento do filho, mostrando-se ausente do ponto de vista afetivo, mantendo uma distância emocional ou afetiva, ainda que este pai seja o provedor e ofereça suporte emocional à mãe e exerça um modelo de poder e autoridade perante os filhos (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Educação. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília, DF, 2009.).

Portanto, é necessário superar, na vida coti diana, a restrição da responsabilidade sobre as práticas contraceptivas às mulheres, assegurando aos homens efetivação do direito à participação no planejamento reprodutivo, reconhecido pelas polí ticas públicas (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde do homem: princípios e diretrizes. Brasília, DF, 2008.). Essa participação tem como pressuposto o exercício e o reconhecimento da paternidade enquanto um direito do homem de participar de todo o processo, desde a decisão de ter ou não filhos até a educação da criança. Esse direito abrange os adolescentes e jovens masculinos em relação aos quais deve ser resguardada a autono mia e a assistência diante de suas necessidades e projetos de vida. Além disso, ações de promoção de saúde sexual e reprodutiva devem ser realizadas a fim de facilitar e assegurar as condições da vivência de uma paternidade consciente (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde do homem: princípios e diretrizes. Brasília, DF, 2008.).

A partir do exposto, pode-se entender que o exer cício da paternidade está relacionado às percepções das masculinidades, no que se referem aos papéis e responsabilidades atribuídos ao homem enquanto pai. As diversas formas de exercer a paternidade implicam diferentes impactos sobre as masculini dades, tornando-se relevante a observação e o estudo das construções e implicações das relações entre a paternidade e a masculinidade para os profissionais de saúde.

Considerações finais

A construção das masculinidades na adoles cência abarca uma série de espaços simbólicos que mediam a formação identitária do homem sob moldes, atribuições e funções cultural e socialmente definidas. Considerando esse aspecto, o desenvol vimento de estudos direcionados ao modo como as compreensões relacionadas às masculinidades são estabelecidas e valorizadas e como podem impactar a saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes deve abranger os processos vivenciados por essa popula ção dentro dos espaços de promoção de saúde.

A análise dos resultados permite inferir que a construção das masculinidades está diretamente relacionada à percepção da feminilidade, uma vez que os sujeitos compreenderam-se como homens a partir da contraposição com a figura da mulher. Para os participantes do estudo, as masculinidades foram construídas pela forma como eles percebe ram o corpo, da interação com as mulheres e com o universo feminino e da representação e consti tuição dos modelos de paternidade. Entretanto, é necessário problematizar as diferenças entre os sexos, observadas no discurso dos adolescentes, a fim de não reproduzir questões de desigualdade nas relações de gênero.

As percepções dos adolescentes sobre o corpo masculino apontaram que os adolescentes ne cessitavam de aspectos concretos e visíveis para assimilar a transformação do corpo. Além disso, observou-se a dificuldade e a resistência inicial dos participantes em discutirem sobre o próprio corpo, o que pode ser uma reprodução das concepções de que o cuidado com o homem é limitado diante dos estereótipos de gênero.

Os dados sobre gênero e masculinidades aponta ram a limitação dos adolescentes na compreensão das relações de gênero. Indicou-se que os papéis femininos e masculinos estão em contínua transfor mação e não são vivenciados de maneira uniforme mesmo em condições sociais semelhantes. Pode-se observar que as construções culturais permeiam a compreensão da sexualidade e que há uma forma divergente de experiências para homens e mulheres.

As concepções de paternidade têm se transfor mado com base no processo de vulnerabilidade social dessa população, e os profissionais e equi pamentos de saúde precisam corresponder a essa demanda, a fim de propiciar o exercício adequado para os diferentes modelos de paternidade.

Este estudo teve como principal limitação a análise das masculinidades, restrita aos conteúdos pertinentes à saúde sexual e reprodutiva e com pou co aprofundamento na compreensão dos contextos sociais, culturais e econômicos dos participantes. Diante disso, sugere-se a realização de estudos dire cionados ao debate sobre a percepção das masculini dades com adolescentes, inserindo-se, na análise, os contextos que envolvem essa população, tais como a família, a escola e a comunidade.

As diferentes construções acerca das masculini dades, com a coexistência de concepções tradicio nais e contemporâneas no modelo de ser homem, estão relacionadas às experiências de vida dos adolescentes e podem ter implicações significativas no modo de vivenciar a saúde sexual e reprodutiva, sendo relevante a discussão, compreensão e atuação dos profissionais de saúde em ações de promoção e educação em saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2015
  • Revisado
    17 Jun 2015
  • Aceito
    14 Ago 2015
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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