O protagonismo de jovens com doença renal crônica e a dádiva na construção da atenção à saúde

Daniele Borges de Mello Martha Cristina Nunes Moreira Sobre os autores

Resumo

Esta pesquisa discute o adoecimento crônico na juventude no contexto das trocas sociais baseadas na teoria da dádiva. O objetivo é analisar os signi ficados de ser jovem com doença renal crônica no universo das trocas sociais de bens de cuidado. De natureza qualitativa, a pesquisa foi realizada em um serviço de saúde especializado no atendimento aos jovens com doença renal crônica na cidade do Rio de Janeiro. Participaram do estudo 11 usuários com idades entre 12 e 20 anos e quatro profissionais de saúde envolvidos no cuidado a esse grupo. Como referencial teórico-metodológico nos guiamos pela Sociologia Compreensiva de Schütz, que permite explorar as relações sociais a partir da experiência do sujeito. Os resultados apontam para a impor tância da troca simbólica entre o jovem e o serviço na constituição e vivência plena da juventude, e a relevância da perspectiva do jovem na construção do cuidado e da prática profissional dos cuidadores. A partir desse estudo, ficou evidente a importância de refletirmos sobre a ampliação do protagonismo juvenil desses jovens e, estimulados pelo serviço de saúde, tentarmos reconhecer esse grupo como potencial agente de sua própria saúde, bem como de outros sujeitos que compartilham o universo da doença crônica.

Palavras-chave:
Protagonismo Juvenil; Doença Re nal Crônica; Teoria da Dádiva

Introdução

A doença renal crônica (DRC) é considerada um problema global de saúde pública e vem aumen tando significativamente. Os fatores de risco mais comuns associados à doença são a diabetes mellitus e a hipertensão arterial, duas enfermidades que se destacam no panorama mundial da doença crôni ca. Estima-se que até 2030, nos Estados Unidos, o número de indivíduos que serão submetidos à terapia renal substitutiva (TRS) - também conhe cida como diálise - ultrapassará dois milhões de norte-americanos (Araújo et al., 2014ARAÚJO, S. M. H. A. et al. Investigation of urinary abnormalities and risk factors for kidney disease in the World Kidney Day campaigns in the Northeast Brazil. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 60, n. 5, p. 479-483, 2014.). Para se ter uma ideia, no Brasil, a porcentagem de indivíduos acometidos pela hipertensão arterial foi de 21,4% em 2013, o que corresponde a 31,3 milhões de pessoas no país que apresentam um dos fatores de risco para desenvolvimento da DRC (IBGE, 2013IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saúde 2013. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. Disponível em: <Disponível em: www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/pns/2013 >. Acesso em: 3 maio 2015.
www.ibge.gov.br/home/estatistica/populac...
). No que se refere à doença renal crônica, especificamente, dados do último censo da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) de 2013 apontam para a existência de 50.961 pacientes em diálise no país. O intervalo de idade de 5,6% dos pacientes é de 13 a 18 anos. Em bora a princípio possa não representar um número significativo, cabe destacar que esse percentual vem aumentando gradativamente. Em 2011, por exemplo, a SBN registrou 1,2% de jovens em diálise, o que nos revelou dois aspectos importantes: o avanço da cole ta de dados referente à parcela jovem da população e o fato de que a DRC está acometendo mais pessoas nessa faixa etária11SBN - SOCIEDADE BRASILEIRA DE NEFROLOGIA. Censo 2013. Disponível em: <http://www.sbn.org.br/>. Acesso em: 17 maio 2015..

A definição da DRC preconizada pela Kidney Disease Outcome Quality Initiative (KDOQI) funda menta-se em três componentes: (1) um componente anatômico ou estrutural (marcadores de dano renal); (2) um componente funcional (baseado na taxa de filtração glomerular - TFG) e (3) um componente temporal. De acordo com essa concepção, considera -se como portador de DRC qualquer indivíduo que, independentemente da causa, apresente TFG < 60 mL/min/1,73m2 ou TFG > 60 mL/min/1,73m2 as sociada a pelo menos um marcador de dano renal (por exemplo, proteinúria) durante um período de três meses ou mais (Bastos; Kirsztajn, 2011BASTOS, M. G.; KIRSZTAJN, G. M. DRC: diagnóstico precoce, encaminhamento imediato e a abordagem interdisciplinar em pacientes não submetidos à diálise. Jornal Brasileiro de Nefrologia, São Paulo, v. 33, n. 1, p. 93-108, 2011.).

Cabe destacar que a DRC é uma doença silenciosa e assintomática na maior parte do tempo, o que dificulta seu diagnóstico precoce. Quando seus sintomas aparecem, geralmente a função renal já está comprometida. Por isso, a DRC afeta diferen tes dimensões do ser humano - física, psicológica, econômica e social -, sendo agravadas quando se trata da população jovem, que depende de cuidados específicos e necessita de suporte familiar efetivo na escolha e aderência ao tratamento (Ramos; Quei roz; Jorge, 2008RAMOS, I. C.; QUEIROZ, M. V. O.; JORGE, M. S. B. Cuidado em situação de doença renal crônica: representações sociais elaboradas por adolescentes. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 61, n. 2, p. 193-200, 2008.).

A DRC afeta também a rotina de vida do adoecido e o obriga a desenvolver estratégias para conviver com a dimensão crônica da doença. Sendo assim, diversos estudos valorizam a experiência do adoeci mento crônico sob a ótica de crianças e adolescentes (Moreira; Macedo, 2003MOREIRA, M. C. N.; MACEDO, A. D. A construção da subjetividade infantil a partir da vivência com o adoecimento: a questão do estigma. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 55, n. 1, p. 31-41, 2003.; Ramos; Queiroz; Jorge, 2008RAMOS, I. C.; QUEIROZ, M. V. O.; JORGE, M. S. B. Cuidado em situação de doença renal crônica: representações sociais elaboradas por adolescentes. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 61, n. 2, p. 193-200, 2008.; William et. al., 2009WILLIAMS, B. et al. I've never not had it so I don't really know what it's like not to: nondifference and biographical disruption among children and young people with cystic fibrosis. Qualitative Health Research, Salt Lake City, v. 19, p. 1443-1455, out. 2009.; Moreira; Macedo, 2009MOREIRA, M. C. N.; MACEDO, A. D. O protagonismo da criança no cenário hospitalar: um ensaio sobre estratégias de sociabilidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 645-652, 2009.; Protudjer et al., 2009PROTUDJER, J. L. et al. Normalization strategies of children with Asthma. Qualitative Health Research, Salt Lake City, v. 19, n. 1, p. 94-104, 2009.; Vieira; Dupas; Ferreira, 2009VIEIRA, S. S.; DUPAS, G.; FERREIRA, N. M. L. A. Doença renal crônica: conhecendo a experiência da criança. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 74-83, 2009.; Mello; Moreira, 2010MELLO, D. B.; MOREIRA, M. C. N. A hospitalização e o adoecimento pela perspectiva de crianças e jovens portadores de fibrose cística e osteogênese imperfeita. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 453-461, 2010.; Carvalho, 2012CARVALHO, M. F.; MOREIRA, M. R. C.; NUNES, C. M. Estágios do pesar nos discursos de jovens em tratamento renal substitutivo. Revista Enfermagem da UERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 203-208, 2012.; Moreira; Sou za; Corsaro 2015MOREIRA, M. C. N.; SOUZA, W. S.; CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 299-300, 2015.). Visando enriquecer e ampliar as discussões nesse campo de conhecimento, o artigo enfoca a participação do jovem no processo de convi vência e administração da DRC, e de que maneira são estabelecidas as relações entre ele e os profissionais de saúde, identificados neste estudo como atores fundamentais tanto no tratamento da DRC como no reconhecimento do jovem como protagonista de sua condição de adoecido. O termo "protagonismo juvenil" vem sendo discutido no âmbito das políticas públicas voltadas para o público jovem (Boghossian; Minayo, 2009BOGHOSSIAN, C. O.; MINAYO, M. C. S. Revisão sistemática sobre juventude e participação nos últimos 10 anos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 411-423, 2009.). A Política Nacional de Atenção à Saúde de Adolescentes e Jovens (Brasil, 2008) define protagonismo juvenil como a participação ativa do jovem nos processos sociais que regem sua vida. (Costa, 2000COSTA, A. C. G. Protagonismo juvenil: adolescência, educação e participação democrática. Salvador: Fundação Odebrecht, 2000.) concebe o protagonismo juvenil como um processo pedagógico que incentiva o estabele cimento de um relacionamento democrático entre jovens e adultos, alicerçado na solidariedade. O protagonismo também pode ser compreendido como uma forma de conduzir o jovem ao exercício de sua cidadania (Meirelles; Ruzany, 2008MEIRELLES, Z. V.; RUZANY, M. H. Promoção de saúde e protagonismo infantil. In: BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde do adolescente: competências e habilidades. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2008. p. 35-39.).

Na perspectiva das trocas sociais ilustrada pela dádiva (Mauss, 2003MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.), a pesquisa aqui recortada se interessa em analisar as relações entre o jovem, assumindo a posição de protagonista de sua vida e experiência com a doença renal crônica, e o serviço de saúde que o acolhe, representado pelos profis sionais que estabelecem vínculos de cuidado com esses pacientes.

Referencial teórico

Este trabalho está assentado na teoria da dádiva (Mauss, 2003MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.) e no conceito de bens de cura (Mar tins, 2003MARTINS, P. H. (Org.). Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Petrópolis: Vozes, 2003.). Marcel Mauss (1872-1950), antropólogo e sociólogo francês, estudou sociedades tradicionais - ditas primitivas - com o objetivo de identificar e compreender como se davam as relações sociais, em particular os rituais de trocas. Em seus acha dos, Mauss percebe que em muitas civilizações estudadas as trocas e contratos eram selados com presentes. Os vínculos estabelecidos através dessas transações eram permeados pela obrigação, teorica mente voluntária, de dar, receber e retribuir.

Trazendo o conceito de dádiva para o campo da saúde, (Martins, 2003MARTINS, P. H. (Org.). Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Petrópolis: Vozes, 2003.) propõe a circulação de um sistema de trocas simbólicas entre curadores e pa cientes. O paradigma do dom associado ao campo médico seria expresso através da troca dos bens de cura (dons fornecidos pelo curador) oferecidos na interação do curador com seu paciente. Os bens de cura consistem em elementos de ordem material e simbólica que engendram o sistema de interações constituinte das relações entre profissionais de saúde e o sujeito adoecido. Na dimensão material dos bens de cura situam-se, por exemplo, os remédios, os exa mes, a técnica profissional e as consultas médicas. Já o campo simbólico abrange a dimensão afetiva como a atenção, a confiança e a segurança transmitidas ao paciente durante a circulação da dádiva médica.

Traduzindo a dádiva dos bens de cura para a situação de atenção ao adoecimento crônico na ju ventude, tomamos a liberdade de considerar os bens de cura como bens de cuidado (Moreira, 2005MOREIRA, M. C. N. Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 780-781, 2005.), já que a condição de cronicidade imposta pela doença demanda um cuidado contínuo. Aqui, não estaremos mais interessados nos elementos oferecidos pelo serviço de saúde que visam à cura do paciente. Pelo contrário, nosso interesse recai, principalmente, nos dons que representam a interação social es tabelecida por meio da rede de cuidado oferecida a esses jovens. Preocupamo-nos, essencialmente, com a natureza dos dons circulantes no âmbito do cuidado e como os vínculos entre os cuidadores e jovens são estabelecidos.

Metodologia

Este artigo é fruto de um recorte de uma disser tação de mestrado voltada para a análise dos signi ficados de ser jovem com doença renal crônica no contexto das trocas de bens de cuidado (Mello, 2011MELLO, D. B. Os significados de ser jovem com doença renal crônica no contexto das trocas de bens de cuidado. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde da Mulher e da Criança) - Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011.), e foi aprovado pelo Comitê de Ética sob registro nº 2629/2010 em 07/06/2010.

De abordagem qualitativa, é baseado na Sociolo gia Compreensiva de (Schütz, 1979SCHÜTZ, A. A fenomenologia e as relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.). De acordo com essa perspectiva, entende-se que a realidade não é algo objetivo ou exterior ao sujeito humano, mas é construída nas e pelas relações, com ênfase na ex periência e no significado socialmente construído. Esse pressuposto guiou a análise teórica dos dados na interface com a perspectiva maussiana sobre a construção do vínculo social, no qual as trocas e os significados da experiência da tríplice de dar/rece ber/retribuir coloca o sujeito diante do desafio, no caso do cuidado à saúde relacionado às doenças de longa duração, de reconhecer assimetrias nas trocas e desvelá-las para além de uma relação de custo/benefício, essencialmente simbólica.

Consideramos fundamental esclarecer que a teoria da dádiva nos forneceu um modelo interpre tativo para compreender e definir o que é vínculo social e seu estabelecimento como referido às tro cas simbólicas, como bens de cuidado e vínculos criados nesse ambiente de atenção à saúde. Ou seja, como nos lembra (Martins, 2005MARTINS, P. H. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 73, p. 45-66, dez. 2005.), a teoria da dádiva tem sido "resgatada como um modelo interpretativo de grande atualidade para se pen sar os fundamentos da solidariedade e da aliança nas sociedades contemporâneas" (p. 45). O fato de associarmos esse modelo interpretativo, definidor de categorias e conceitos - vínculo social, troca de bens de cuidado - não entra em conflito com a necessidade de complementar seu diálogo com a abordagem de Schütz. Nesse caso, lançamos mão desse autor no desenho qualitativo da pesquisa, como uma perspectiva que nos permite assumir e qualificar como positiva a dimensão da intersub jetividade, no contexto da interação construída em função de algo cujo valor é incalculável: o cuidado à saúde; nesse contexto é fundamental considerar a intencionalidade dos atores envolvidos. Schütz nos ajuda ainda a realizar um diálogo com o campo do adoecimento crônico no recorte do cuidado à do ença renal na juventude. Nesse sentido, importam as trocas simbólicas, os vínculos estabelecidos, a solidariedade acionada, e também a compreensão da dimensão intersubjetiva do encontro entre profissionais de saúde e jovens, mediado pelo compartilhamento de percepções, experiências e conhecimento. Na perspectiva dos adoecimentos de longa duração acabam se estabelecendo relações ao longo do tempo, nas quais a dimensão do "nós" pode ser relevante. Abre-se a possibilidade para a intencionalidade na qual se constrói o encontro, contribuindo para qualificar de forma positiva, no campo da produção de conhecimento, a inter subjetividade que não se reifica no individual, alcançando o coletivo e possibilitando qualificar o singular em universal em termos da experiência e dos significados. Assim, buscamos contextualizar as trocas de bens de cuidado e outros bens mate riais no universo da unidade de saúde, a partir da interação entre os diversos sujeitos que estabe lecem relações mediante o objetivo de cuidado à saúde do jovem.

O campo eleito para a realização da pesquisa foi um ambulatório público focado na atenção à saúde de adolescentes, onde foi possível encon trar jovens com DRC em tratamento. Os sujeitos do estudo correspondem a dois grupos específi cos. O primeiro grupo é composto de jovens com doença renal crônica, entre 12 e 20 anos, que são usuários do serviço ambulatorial de nefrologia de um hospital público. O critério de escolha dessa faixa etária específica baseou-se no perfil de atendimento do serviço. Destacamos que du rante a escolha dos sujeitos não nos preocupa mos em definir o período de permanência dessa clientela no serviço, pois estávamos interessados na experiência situacional do grupo. Os jovens participantes foram escolhidos aleatoriamente no ambulatório durante o período de observação em campo, que foi de quatro meses. O segundo núcleo de pessoas é integrado por funcionários do referido ambulatório que atuam diretamente no cuidado a essa clientela. O campo escolhido refere-se a um hospital universitário que abarca diversos pesquisadores e que, por isso, tem gran de rotatividade de profissionais. Portanto, visan do garantir a participação de atores efetivamente envolvidos no cuidado integral e duradouro a essa clientela, solicitamos que os participantes do primeiro grupo indicassem os profissionais que consideravam seus cuidadores permanen tes. Participaram do estudo 11 jovens e quatro profissionais de saúde, totalizando 15 sujeitos. Foi preservada a identidade da instituição e dos sujeitos, com a utilização de nomes fictícios.

Resultados e discussão

Os resultados são oriundos da investigação rea lizada a respeito do relacionamento dos jovens com o serviço de saúde destinado a eles. Expomos de que forma o serviço estabelece essas relações com o público contemplado, e como a troca simbólica entre eles ocorre baseada no conceito da dádiva (Mauss, 2003MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.). Destacamos a tríplice dar/receber/retribuir e os bens de cura (Martins, 2003MARTINS, P. H. (Org.). Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Petrópolis: Vozes, 2003.), que ampliamos para bens de cuidado, partindo do pres suposto de que nossa clientela exige cuidado pro longado, integral e permanente. Visando realizar a análise aprofundada das interações existentes entre os jovens e o serviço, organizamos essa cate goria em dois blocos. A primeira parte destina-se à perspectiva dos jovens a respeito dos conteúdos recebidos pelo serviço, e de que maneira podem retribuí-los. O segundo bloco abarca a dimensão do serviço representada por alguns profissionais de saúde que mantêm contato direto com esse grupo específico.

A perspectiva do jovem sobre as trocas de bens de cuidado com o serviço

No que concerne à perspectiva dos jovens, eles recebem um tratamento que atende às suas ne cessidades, como destaca Michele, de 14 anos, ao se referir aos conteúdos oferecidos pelo serviço:

Normalmente, é bom aqui. Eu acho o tratamen to, que é o melhor (Michele, 14 anos).

De acordo com a fala dessa jovem, o tratamento é considerado como um dos aspectos mais importan tes na troca simbólica com o serviço de saúde. Cabe ainda ressaltar o destaque dado ao "tratamento" como uma categoria empírica que carrega aspectos valiosos em relação a um adoecimento de longa duração (Canesqui, 2013CANESQUI, A. M. (Org.). Adoecimentos e sofrimentos de longa duração. São Paulo: Hucitec, 2013.), como é o caso da doença renal crônica. A troca nesse ambiente é mediada pelo tempo, cuidado prolongado, vindas recorrentes ao serviço e construção de referências pessoais, o que pode contribuir para que esses adolescentes assumam vocabulário, domínio do ambiente e de suas relações.

Outros jovens ressaltam a qualidade do relacio namento que estabelecem com o serviço, salientan do conteúdos como liberdade, segurança e saúde:

Eu acho bom. Eu acho um relacionamento legal. Me dá bastante liberdade (Roberta, 15 anos).

Bom, eu acho que eles me oferecem uma (Cláudio, 18 anos).

Em sintonia com a leitura maussiana, cabe salientar a apropriação e atualização da ideia de trocas de bens de cuidado no contexto da saúde, que a partir dessa discussão podemos referir como bens simbólicos valorizados nesse contexto juvenil do adoecimento crônico: a liberdade, o relacionamento legal e a segurança. Ou seja, o paradoxo entre os valores da juventude/adolescência e algo que se insinua como esforço no tratamento de um quadro de adoecimento de longa duração: compromisso com a não escolha por uma doença que lhe obriga atenção permanente.

A noção de referência construída na relação com o serviço está presente no discurso dos jovens que denota, principalmente, a confiança que o serviço os inspira. Os jovens não recebem apenas tratamento e acolhimento. O serviço, representado pelo vínculo estabelecido com os profissionais, é considerado por eles como um porto seguro que está pronto para suprir suas necessidades sempre que precisarem. Portanto, para eles os profissionais parecem desempe nhar a função de conselheiros e orientadores de saúde, influenciando no manejo com a doença e abrangendo outros campos significativos da vida, como o desen volvimento da autoconfiança e do autocuidado. Um exemplo disso é a situação de Marcos, que até os 12 anos de idade utilizou fraldas devido à incontinência urinária decorrente da insuficiência renal. Ao chegar no serviço de saúde, imediatamente foi orientado a realizar o cateterismo, o que mudou sua relação com a doença e consigo mesmo. Atualmente, Marcos faz esse procedimento sozinho cerca de duas vezes ao dia. O fato de não usar mais fraldas faz dele um autêntico adolescente que, aos poucos, está conquistando sua independência e autonomia. A partir dessa experiên cia, salienta-se a contribuição do serviço no processo de conquista e exercício do protagonismo juvenil.

Um aspecto que merece atenção é a qualidade do oferecimento desse cuidado diferenciado. Os jovens destacam o esforço despendido pelos profissionais em prol da melhoria de sua condição clínica e da conquista de bem-estar, como nos apontam os exemplos a seguir:

Eu diria que eles tentam . E assim, eu posso dizer o possível mesmo pra você se sentir bem, né? (Jussara, 18 anos).

Eu acho que eles querem uma parte melhor pra mim. Porque eles tão sempre me tratando com o melhor (João, 19 anos).

Alguns jovens salientam a mudança de sua condição de saúde e atribuem ao serviço essa trans formação. Nas falas subsequentes eles expõem os re sultados do tratamento, que, devido ao êxito, conta com um alto índice de adesão por parte dos jovens:

Ah, eu ganho bastante. Porque se não fosse eles, eu não estaria melhor. Pelo menos, agora eu estou bem melhor. É isso que eu recebo deles (Lúcia, 13 anos).

Só melhorando cada vez mais. Um degrau por vez. E é isso. É muito bom, o serviço. Tem me ajudado bastante (Marcos, 17 anos).

Aqui se destaca a importância que os jovens atri buem ao tratamento. Em uma visão mais abrangen te, fica evidente que, para aderirem a um tratamento considerado por eles de qualidade, a comunicação entre a equipe de saúde e os jovens ganha destaque, assumindo papel fundamental nesse processo, como nos aponta (Oliveira e Gomes, 2004OLIVEIRA, V. Z.; GOMES, W. B. Comunicação médico-paciente e adesão ao tratamento em adolescentes portadores de doenças orgânicas crônicas. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 9, n. 3, p. 459-69, 2004.).

Um fator interessante que cabe mencionar corresponde aos elementos simbólicos oferecidos também pelo serviço. Ana, 16 anos, destaca os laços de amizade estabelecidos com os profissionais ao longo do tratamento, e Pedro, 13 anos, salienta o motivo que o leva a apreciar as consultas:

Muitas coisas boas. Ah, porque a gente... aqui tam bém tem a amizade dos médicos (Ana, 16 anos).

As doutoras são também meio Assim, não dá aquele clima meio chato (Pedro, 13 anos).

Os profissionais procuram falar a linguagem dos jovens para que eles se identifiquem e possam enten der melhor as orientações a respeito dos cuidados com o manejo da doença. Outro aspecto mencionado por eles refere-se ao afeto, como mostra Jussara:

É porque, assim. Eles dão carinho. Me tratam bem (Jussara, 18 anos).

Os relatos acima evidenciam que as práticas profissionais que abrangem as competências téc nicas e afetivas são cruciais no desenvolvimento físico, emocional e social desses jovens. Esses achados vão ao encontro de outros estudos, como em uma pesquisa de (Ramos, Queiroz e Jorge, 2008RAMOS, I. C.; QUEIROZ, M. V. O.; JORGE, M. S. B. Cuidado em situação de doença renal crônica: representações sociais elaboradas por adolescentes. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 61, n. 2, p. 193-200, 2008.) sobre a perspectiva do adolescente a respeito do cuidado a sua saúde, na qual identificaram a presença de elementos afetivos, principalmente confiança, em relação ao estabelecimento do vín culo entre o jovem adoecido e seus cuidadores. De acordo com esses autores, os jovens valorizam os cuidados técnicos oferecidos, mas salientam a importância da comunicação com os profissionais do serviço, que resulta no fortalecimento de laços de amizade.

Quando indagados sobre o que oferecem em troca para o serviço, os jovens demonstraram conceber sua situação de adoecimento como uma oportunidade que os médicos e outros profissionais de saúde pos suem para aprofundar seus conhecimentos. Eles se consideram um instrumento que possibilita o apri moramento de saberes, como ilustram algumas falas:

Pro serviço, eu acho que eu dou... eu dou mais To aqui. Aí, acontece isso e tal. A que eles tiveram comigo. Desde pe queno, iam sabendo de etapa por etapa de mim e tudo, e tal (Marcos, 17 anos).

A oportunidade pros médicos poderem conhecer, né? Mais as doenças mais a vida (Michele, 14 anos).

Na visão desses jovens, os profissionais adquirem mais experiência a partir de sua vivência; conside ram suas trajetórias no serviço relevantes, já que acarretam o aprimoramento profissional de seus cuidadores. Fica evidente, então, que mais do que experiência prática, eles, na condição de portadores de doença renal crônica, oferecem oportunidades de estudo e de aquisição de conhecimento. Cabe men cionar que esse conhecimento não se limita apenas a conteúdos específicos ligados à doença. A fala de Michele evidencia que os jovens proporcionam conhecimento de vida, ou seja, um conhecimento avançado que pode englobar tanto o desenvolvimen to das competências clínicas quanto das emocionais. Aqui destaca-se o papel que os jovens desempenham na construção desse cuidado diferenciado. Na vi são deles, a situação de adoecimento proporciona o aprimoramento de saberes a respeito da doença renal crônica - eles se consideram como agentes de informação. Não é propriamente a doença que media as relações entre esses atores sociais, mas a vivência com ela. É o comportamento e o manejo que o jovem dispõe diante de seu adoecimento que norteia a prática clínica e direciona o serviço de saúde no sentido de contemplar as demandas desse seguimento específico.

Alguns jovens destacam a adesão ao tratamento, o autocuidado e o conhecimento da rotina de consul tas como recursos capazes de retribuir os conteúdos oferecidos pelo serviço. Lúcia, 13 anos, acredita que o cumprimento das recomendações médicas, como a ingestão correta dos medicamentos, por exemplo, é uma forma de retribuir:

Eu retribuo assim, ajudando comigo mesmo. Me ajudando, né? Eu tomo os meus remédios em casa né? Eu acho que isso que eu to retribuindo pra eles (Lúcia, 13 anos).

Seu discurso mostra que seguir as orientações médicas contribui para a obtenção de um cuidado integral e de qualidade. Ampliando a discussão sobre os elementos que circulam na troca entre jovens e o serviço, destaca-se a importância do autocuidado na relação com os profissionais de saúde, visto que contribui não só para o avanço do tratamento como também propicia que o jovem desenvolva um papel de agente promotor de inde pendência e liberdade diante de sua situação de adoecimento. Conforme a perspectiva da dádiva (Mauss, 2003MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.), o sujeito que recebe os dons tem a obrigação de aceitá-los e retribuí-los. De forma análoga, primeiramente os jovens aceitam a sua doença e a dimensão prolongada que ela apresen ta, e depois os cuidados provenientes dessa expe riência de adoecimento são orientados e viabili zados pelos profissionais de saúde. É importante salientar a relevância da vivência e aceitação do jovem em relação a sua doença, o que nos remete à perspectiva fenomenológica de (Schütz, 1979SCHÜTZ, A. A fenomenologia e as relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.), que valoriza a dimensão coletiva das experiências individuais. Quanto à troca simbólica do jovem adoecido com o serviço de saúde, o sujeito oferece sua vivência com a doença como forma obrigatória de retribuição, proporcionando o aprofundamento dos estudos de seus cuidadores. Nesse sentido, o autocuidado também aparece como elemento retribuidor, visto que facilita a adesão ao trata mento e a melhora do quadro clínico do paciente, o que é concebido positivamente pelo profissional de saúde. Seguindo essa direção, (William et al., 2009WILLIAMS, B. et al. I've never not had it so I don't really know what it's like not to: nondifference and biographical disruption among children and young people with cystic fibrosis. Qualitative Health Research, Salt Lake City, v. 19, p. 1443-1455, out. 2009.), em um estudo que aborda o conceito de normalização entre jovens com doença crônica, demonstram que, quando o adolescente consegue manejar o cuidado com a própria saúde, adquire maior autonomia e, consequentemente, isso propicia o aumento de sua qualidade de vida e de uma convivência mais pacífica com sua condição de adoecido.

A perspectiva dos profissionais sobre as trocas de bens de cuidado com os jovens

Na perspectiva dos profissionais, a retribuição dos jovens está pautada no retorno do tratamento oferecido. Eles assumem a posição de eco da pro posta terapêutica administrada pelos responsáveis do cuidado. Dr. Guilherme, nefrologista que atua diretamente com eles, afirma:

Eu acho que eles oferecem. Porque eles é que trazem. Eles é que enriquecem. E de certa ma neira é um feedback, né? Constante (Guilherme, nefrologista).

A fala desse profissional ressalta a importância do papel do jovem no processo de cuidado. A questão do feedback aparece como um elemento importante retribuído pelo jovem, já que contribui constan temente para o aprimoramento profissional dos cuidadores. Segundo o discurso dos profissionais entrevistados, os jovens oferecem muitas oportu nidades de aquisição de conhecimento ao serviço, principalmente no que diz respeito ao aprendizado referente às doenças:

Eu acho que o jovem sempre oferece muito pro Até aquela condição de você tá se re ciclando e aprendendo. Sabe sobre as doenças. Porque as doenças, elas vão se modificando. O comportamento também (Júlia, técnica de enfer magem e assistente social).

Sob a perspectiva maussiana, o feedback pode ser compreendido como um dom que assume um papel duplo, implicando tanto no elemento retri buído pelos jovens, ao receberem obrigatoriamente o tratamento, quanto no elemento oferecido pelos médicos em forma de cuidado.

No que concerne à dimensão dos profissionais, a qualidade do aprendizado oferecido pelos jovens não se restringe apenas aos aspectos relacionados ao adoecimento em si. De acordo com os profissionais, os jovens são exemplos de superação dos limites impostos pela doença. Isto é, a retribuição dos ado lescentes está assentada principalmente no retorno do cuidado oferecido. Os jovens assumem o papel de promotores do conhecimento à medida que ofere cem um feedback constante e valioso para a prática clínica de seus cuidadores. Pode-se afirmar, através dos resultados da pesquisa, que a prática desses profissionais está em perfeita consonância com os preceitos preconizados pela Política Nacional de Atenção à Saúde de Adolescentes e Jovens (Brasil, 2007BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Política nacional de atenção integral à saúde de adolescentes e jovens. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2007.), que defende o cuidado integral à saúde dos jo vens e respeita todas as dimensões do adoecimento, sejam elas físicas, emocionais, sociais e culturais, sendo condição primordial para a promoção de uma assistência de qualidade a essa clientela.

Os ensinamentos também influenciam a própria prática cotidiana desses cuidadores, como aponta a fala a seguir:

Eles ensinam pra gente, que é possível viver. Adolescer. Entrar nesse tal desse mundo adulto com essa doença, né? Então, eu acho que mais do que ensinar isso, né? Pra eles serem verdadeiros, a gente tem que ser mais verdadeiro do que eles. Ensinam isso. Não adianta. Ensinam pra gente que essa postura de donos do saber funciona pra eles, né (Dra. Joana, médica de adolescentes).

O trecho aponta uma possível equivalência de relações entre cuidadores e pacientes, na medida em que o discurso desse profissional potenciali za uma posição juvenil ativa representada pela possibilidade de proporcionar ensinamentos aos cuidadores. Quanto ao empoderamento do jovem como ator central do gerenciamento de sua doença, (Ruzany, 2008RUZANY, M. H. Atenção à saúde do adolescente: mudança de paradigma. In: BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde do adolescente: competências e habilidades. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2008. p. 21-24.) aponta os principais aspectos para a construção de uma atenção inte gral ao adolescente, destacando a importância do estabelecimento de uma relação horizontal entre profissionais de saúde e o usuário adoles cente. Assim, o serviço parece cumprir o papel de promotor de saúde ao valorizar a participação ativa dos jovens. Ressaltamos também a recipro cidade de perspectivas em relação à dimensão maussiana - reciprocidade reconhecida como base da dádiva -, através da qual a dádiva se manifesta e rege as relações sociais.

Em relação aos elementos oferecidos pelo ser viço, as respostas dos profissionais de saúde que trabalham no local estão em sintonia com a opinião dos jovens. O serviço busca oferecer um tratamento eficiente realizado por funcionários devidamente qualificados que dispõem de uma técnica compe tente e constroem uma relação com seus pacientes fundamentada no afeto, conforme nos relata a Dra. Joana:

Eu acho que a gente oferece, é o nosso conhe cimento e o nosso afeto. Acho que isso. E a nossa disposição em ajudá-los

A dádiva também atua na possibilidade de fortalecer o reconhecimento profissional dos cui dadores por parte da clientela jovem, já que media a circulação do dom da afetividade e do conheci mento, dois elementos importantes no processo do estabelecimento do vínculo social. O conhecimento resulta tanto do tratamento oferecido quanto do retorno do jovem que convive com a DRC. O profis sional adquire maior confiança em suas técnicas profissionais utilizadas no cuidado, e diante da melhora de sua condição clínica, os jovens passam a reconhecer o serviço como referência, o que propicia o estabelecimento do vínculo afetivo. Na visão do Dr. Guilherme, nefrologista, os jovens encontram referência no tratamento de sua condição crônica. Vale destacar que a expressão "liberdade" também foi mencionada no que se refere ao relacionamento entre o serviço e os jovens:

Eu acho que o serivço é bem satisfatório, sabe? São adolescentes que a qualquer momento que a doença ou a dúvida surja, eles têm liberdade de vir aqui. Eles sempre encontram profissionais, seja um médico, seja psicólogo, assistente social, nutricio nista para atendê-los (Dr. Guilherme, nefrologista).

O relato reforça o fenômeno de referência já destacado pelos jovens no que concerne ao serviço, ressaltando a congruência de pensamentos entre os sujeitos da pesquisa. Tanto para os jovens quanto para a equipe de profissionais, o serviço estabelece relações com esse grupo baseadas principalmente no sentimento de confiança.

Outro ponto refere-se à disponibilidade que o serviço apresenta ao buscar novas performances de atendimento, incorporando novidades:

E acho também que o serviço se preocupa em, vamos dizer, aprimorar isso sempre. Tem sempre gente procurando novas maneiras de atender ou de tratar etc. (Dr. Guilherme, nefrologista).

Júlia, técnica de enfermagem e assistente social corrobora a opinião do Dr. Guilherme no que diz respeito à ideia de novidade. O serviço parece estar sempre pronto para atuar de forma inovadora e experimentar novas práticas incentivadas pelos avanços tecnológicos. Além disso, Júlia destaca o estímulo à pesquisa, já que o serviço está situado dentro de um hospital escola:

Por exemplo, tem pesquisas. É uma coisa de vanguarda. Chegou alguma novidade, ofere cido (Júlia, técnica de enfermagem e assistente social).

Em relação à prática profissional, um fator importante refere-se à questão de não se restringir apenas à condição clínica do adolescente. O cuidado destinado aos pacientes renais crônicos é cons truído em conjunto com as necessidades globais do adolescente. Isso quer dizer que os cuidadores não levam em consideração apenas as condições clínicas que apresentam, mas também se baseiam no contexto emocional, social e cultural da clientela assistida. Ao ministrar uma determinada medica ção, os cuidadores dirigem sua atenção aos efeitos físicos, emocionais e sociais provocados por seu uso. O discurso do Dr. Guilherme exemplifica esse fenômeno:

Eu acho que não é só você se dar por satisfeito porque obteve uma resposta... vamos dizer assim, laboratorial, clinicamente muito boa. Enquanto o restante dele péssimo. quer usar aquele medicamento. Ele passa a não querer usar, e se você não levar isso em conta, você vai insistir com ele que ele tem que usar. Não vai resolver nada. Ele vai continuar doente de outra maneira. Não dos rins, mas de outra maneira, entendeu?

Portanto, os profissionais de saúde evidencia ram que sua prática está pautada nas necessidades primordiais do paciente que abarcam não só as con dições físicas, mas atingem o universo emocional e social desses indivíduos. O serviço está sempre atento às mudanças na demanda e busca oferecer um cuidado compatível e atualizado. A Dra. Joana cita um exemplo que ilustra essa adaptação do cui dado às demandas do jovem:

A gente tentou o protocolo 1, só que ela tem uma vida familiar completamente conturbada e n"o aderir a isso. Porque ela fica sozinha em casa. E ela não tomava a medicação. A forma de a gente assegurar, e que ela ta ótima agora, era esse mensal . Então, os proto colos s"o adapt·veis.

Devido à profundidade que delimita a construção do vínculo entre esses jovens e o serviço, o inves timento afetivo e a aposta na melhora do quadro clínico se configuram como elementos essenciais que consolidam e sustentam a troca simbólica existente entre esses dois grupos. (Martins, 2002MARTINS, P. H. (Org.). A dádiva entre os modernos: discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Petrópolis: Vozes, 2002.) afirma que o surgimento das relações sociais acon tece principalmente sob condições particulares de doação, confiança e solidariedade, sentimentos que circulam nesse sistema de trocas particular e que não podem ser explicados pela perspectiva do interesse individual e pela burocracia estatal, mas que encontram campo fértil no paradoxo do dom. Esses bens gerados na relação desses jovens com o serviço são de ordem simbólica e transcendem a lógica mercantil. A dádiva exercida entre esses dois segmentos proporciona a consolidação de um cuidado integral e satisfatório e, mais do que isso, implica a construção da clínica da vida.

Os achados mencionados anteriormente nos re metem às trocas ocorridas entre o serviço de saúde e jovens com doença renal crônica, e o cerne das interações abarca determinados bens que circulam no âmbito do cuidado integral.

Considerações finais

A pesquisa se propôs a analisar os significados de ser jovem com doença renal crônica no universo das trocas sociais de bens de cuidado - um contexto delimitado pela dádiva explicitada pela troca de dons no âmbito do cuidado. O jovem constrói sua identidade, sua independência e sua existência por intermédio do estabelecimento de vínculos afetivos com o serviço de saúde que o acolhe.

Através das relações estabelecidas com os pro fissionais que integram o serviço de saúde e com os demais atores envolvidos no cenário de suas vidas, a dádiva não só media esses contatos como propor ciona que os jovens sejam reconhecidos enquanto sujeitos. Pode-se afirmar que tanto o serviço propicia a atuação do protagonismo dessa clientela quanto os próprios jovens se colocam nessa posição. Con tudo, propõe-se que essa atuação protagonista seja ampliada para outras direções que transcendam a relação entre cuidador e paciente. O jovem adoecido crônico apresenta plena capacidade de participar e até de promover o protagonismo de outros jovens que, assim como ele, têm relação com o serviço. Levando em consideração o reconhecimento desse jovem como protagonista de seu cuidado, o estudo sugere que a dádiva perpassa não só as relações entre esses jovens e a equipe de cuidadores, mas abarca outros atores sociais presentes nesse contexto de troca.

É muito importante que a experiência de ado ecimento crônico desses jovens possa servir de parâmetro para a produção e concretização de medidas que beneficiem a saúde integral de outros jovens que compartilham a mesma condição clíni ca. Espera-se que quando os jovens forem buscar o serviço possam receber, além dos bens de cuidados já mencionados e reconhecidos, a experiência com partilhada de outros sujeitos que já passaram por aquele momento no qual eles se encontram agora. Dessa forma, efetivamente, pode-se atribuir o devido valor à experiência de uma juventude marcada pelo adoecimento crônico.

Referências

  • ARAÚJO, S. M. H. A. et al. Investigation of urinary abnormalities and risk factors for kidney disease in the World Kidney Day campaigns in the Northeast Brazil. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 60, n. 5, p. 479-483, 2014.
  • BASTOS, M. G.; KIRSZTAJN, G. M. DRC: diagnóstico precoce, encaminhamento imediato e a abordagem interdisciplinar em pacientes não submetidos à diálise. Jornal Brasileiro de Nefrologia, São Paulo, v. 33, n. 1, p. 93-108, 2011.
  • BOGHOSSIAN, C. O.; MINAYO, M. C. S. Revisão sistemática sobre juventude e participação nos últimos 10 anos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 411-423, 2009.
  • BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Política nacional de atenção integral à saúde de adolescentes e jovens. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2007.
  • CANESQUI, A. M. (Org.). Adoecimentos e sofrimentos de longa duração. São Paulo: Hucitec, 2013.
  • CARVALHO, M. F.; MOREIRA, M. R. C.; NUNES, C. M. Estágios do pesar nos discursos de jovens em tratamento renal substitutivo. Revista Enfermagem da UERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 203-208, 2012.
  • COSTA, A. C. G. Protagonismo juvenil: adolescência, educação e participação democrática. Salvador: Fundação Odebrecht, 2000.
  • IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saúde 2013. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. Disponível em: <Disponível em: www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/pns/2013 >. Acesso em: 3 maio 2015.
    » www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/pns/2013
  • MARTINS, P. H. (Org.). A dádiva entre os modernos: discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Petrópolis: Vozes, 2002.
  • MARTINS, P. H. (Org.). Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Petrópolis: Vozes, 2003.
  • MARTINS, P. H. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 73, p. 45-66, dez. 2005.
  • MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  • MEIRELLES, Z. V.; RUZANY, M. H. Promoção de saúde e protagonismo infantil. In: BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde do adolescente: competências e habilidades. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2008. p. 35-39.
  • MELLO, D. B. Os significados de ser jovem com doença renal crônica no contexto das trocas de bens de cuidado. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde da Mulher e da Criança) - Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011.
  • MELLO, D. B.; MOREIRA, M. C. N. A hospitalização e o adoecimento pela perspectiva de crianças e jovens portadores de fibrose cística e osteogênese imperfeita. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 453-461, 2010.
  • MOREIRA, M. C. N. Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 780-781, 2005.
  • MOREIRA, M. C. N.; MACEDO, A. D. A construção da subjetividade infantil a partir da vivência com o adoecimento: a questão do estigma. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 55, n. 1, p. 31-41, 2003.
  • MOREIRA, M. C. N.; MACEDO, A. D. O protagonismo da criança no cenário hospitalar: um ensaio sobre estratégias de sociabilidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 645-652, 2009.
  • MOREIRA, M. C. N.; SOUZA, W. S.; CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 299-300, 2015.
  • OLIVEIRA, V. Z.; GOMES, W. B. Comunicação médico-paciente e adesão ao tratamento em adolescentes portadores de doenças orgânicas crônicas. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 9, n. 3, p. 459-69, 2004.
  • PROTUDJER, J. L. et al. Normalization strategies of children with Asthma. Qualitative Health Research, Salt Lake City, v. 19, n. 1, p. 94-104, 2009.
  • RAMOS, I. C.; QUEIROZ, M. V. O.; JORGE, M. S. B. Cuidado em situação de doença renal crônica: representações sociais elaboradas por adolescentes. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 61, n. 2, p. 193-200, 2008.
  • RUZANY, M. H. Atenção à saúde do adolescente: mudança de paradigma. In: BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde do adolescente: competências e habilidades. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2008. p. 21-24.
  • SCHÜTZ, A. A fenomenologia e as relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
  • VIEIRA, S. S.; DUPAS, G.; FERREIRA, N. M. L. A. Doença renal crônica: conhecendo a experiência da criança. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 74-83, 2009.
  • WILLIAMS, B. et al. I've never not had it so I don't really know what it's like not to: nondifference and biographical disruption among children and young people with cystic fibrosis. Qualitative Health Research, Salt Lake City, v. 19, p. 1443-1455, out. 2009.

  • 1
    SBN - SOCIEDADE BRASILEIRA DE NEFROLOGIA. Censo 2013. Disponível em: <http://www.sbn.org.br/>. Acesso em: 17 maio 2015.
  • 2
    SBN - SOCIEDADE BRASILEIRA DE NEFROLOGIA. Censo 2013. Available at: <http://www.sbn.org.br/>. Ac cessed: May 17, 2015.
  • Erratum

    No artigo "O protagonismo de jovens com doença renal crônica e a dádiva na construção da atenção à saúde" publicado no volume 25, número 1, 2016.
    Onde se lê:
    Daniele Borges de Mello
    Fundação Oswaldo Cruz. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
    E-mail: daniele.mello2012@gmail.com
    Martha Cristina Nunes Moreira
    Fundação Oswaldo Cruz. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
    E-mail: marthacnmoreira@gmail.com
    Luís Eduardo Batista
    Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Instituto de Saúde. São Paulo, SP, Brasil.
    E-mail: lebatista@saude.sp.gov.br
    Leia-se:
    Daniele Borges de Mello
    Fundação Oswaldo Cruz. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
    E-mail: daniele.mello2012@gmail.com
    Martha Cristina Nunes Moreira
    Fundação Oswaldo Cruz. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
    E-mail: marthacnmoreira@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2014
  • Revisado
    04 Maio 2015
  • Aceito
    27 Maio 2015
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br