Resumo
A corrente de pensamento denominada principialismo teve caráter hegemônico no desenvolvimento da bioética desde a publicação do livro Principles of biomedical ethics em 1979. Essa hegemonia se fragilizou com os primeiros estudos críticos realizados por autores norte-americanos e europeus no início dos anos 1990. Logo após, bioeticistas latino-americanos também produziram críticas ao caráter hegemônico e pretensamente universal dessa teoria principialista. Inspirada nos referenciais da colonialidade descritos por Aníbal Quijano, o presente estudo procura sistematizar essas críticas em dois grupos: aquelas vindas de autores do Hemisfério Norte e aquelas provenientes de autores do Hemisfério Sul. As críticas vindas do Norte analisaram conceitualmente o principialismo, explorando seus aspectos filosóficos e sua validade como teoria. Aquelas vindas do Sul, por sua vez, focalizaram a crítica na aplicação dos princípios à realidade concreta de desigualdade existente entre países centrais e periféricos, mostrando como esse discurso pretensamente universal contribui para a manutenção das assimetrias verificadas entre países ricos e pobres. Os estudos sobre a colonialidade contribuem para a análise desse contexto na medida em que desvelam o interesse dos países centrais em monopolizar as formas de controle da subjetividade, da cultura e da produção de conhecimento do mundo ocidental.
Palavras-chave:
Bioética; Conceitos; Princípios; Desigualdade Social
Abstract
The principlism had a hegemonic character in the development of the bioethics since the publication of the book Principles of biomedical ethics, of Beauchamp and Childress, in 1979. This hegemony began to weaken with the first critical studies by authors from the United States and Europe in the 1990s. Immediately, however, bioethicists of Latin America also began to criticize the hegemonic and allegedly universal principlism. This article aims to systematize the criticisms of principlism and drawing on references of coloniality, described by Aníbal Quijano, present two distinct groups of critics: those who make their criticisms from the North and those who make them from the South. The northern group conceptually analyzes the principialism exploring the philosophical aspects and checking its validity as a moral theory. The southern group emphasizes that the application of principialism in poor countries intensifies inequality since this theory ignores the ethical nature of social problems. The prospect of coloniality is useful when shows how Northern countries monopolize the forms of control of subjectivity, culture and knowledge production in the Western world.
Keywords:
Bioethics; Concepts; Principles; Social Inequalities
Introdução
O neologismo "bioética" tornou-se conhecido no início de 1971 a partir da publicação da obra Bioethics: bridge to the future (Potter, 1971POTTER, V. R. Bioethics: bridge to the future. 1. ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1971.), de autoria do cancerologista norte americano Van Ressenlaer Potter, da Universidade de Wisconsin. Poucos meses depois a mesma palavra passou também a ser utilizada pelo ginecólogo-obstetra holandês Andre Hellegers, do Instituto Kennedy de Ética da Universidade de Baltimore/Georgetown, mas com conotação diferente. Segundo (Abel, 2007ABEL, F. De Cambridge a Harvard y Georgetown, pasando por V. R. Potter. Bioética & Debat, Barcelona, v. 13, n. 50, p. 1-5, 2007.), Hellegers não teve conhecimento prévio do neologismo proposto por Potter ou, se teve, não o utilizou de forma consciente. A verdade é que ambos o usaram na mesma época, mas com significados variados: enquanto Potter deu-lhe um sentido mais amplo relacionando-o como uma nova ciência da sobrevivência humana e ambiental, Hellegers o utilizou direcionado exclusivamente ao campo biomédico (Patrão-Neves, 1996PATRÃO-NEVES, M. C. A fundamentação antropológica da Bioética. Bioética, Brasília, DF, v. 4, n. 1, p. 7-16, 1996.).
Entretanto, outros estudiosos da história da bioética têm atribuído a origem do termo ao alemão Fritz Jahr, que em 1927 já havia escrito um artigo sobre o relacionamento ético entre o homem, os animais e as plantas, valendo-se do termo bio-ethik (Pessini; Hossne, 2008PESSINI, L.; HOSSNE, W. S. Fritz Jahar: "O imperativo bioético" - nas origens da palavra bioética. Bioethikos, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 7-9, 2008.; Muzur; Rinčić, 2011MUZUR, A.; RINČIĆ, I. Fritz Jahr (1895-1953): a life story of the "inventor" of bioethics and a tentative reconstruction of the chronology of the discovery of his work. JAHR, Rijeka, v. 2, n. 4, p. 385-394, 2011.).
Independentemente da origem do termo, é a partir da década de 1970 que a bioética passa a crescer como um campo da ética aplicada e a garantir seu espaço no contexto da ciência, academia e sociedade. Possivelmente algumas demandas específicas, como as criadas por (Beecher, 1966BEECHER, H. K. Ethics and clinical research. New England Journal of Medicine, New England, v. 274, n. 24, p. 1354-1360, 1966.) ao denunciar problemas éticos em pesquisas com seres humanos e a resposta do governo norte-americano com a criação da National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, que teve como produto a publicação de um documento intitulado Belmont Report, inclinaram a bioética preferencialmente para uma discussão na área da pesquisa biomédica propondo três princípios fundamentais: respeito à autonomia, beneficência e justiça (Garrafa; Prado, 2001GARRAFA, V.; PRADO, M. M. Mudanças na declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 17, n. 6, p. 1489-1496, 2001.).
Provavelmente por uma percepção da necessidade de discussões éticas também na prática clínica e assistencial, Beauchamp e Childress valeram-se desse contexto e publicaram, em 1979, o livro Principles of biomedical ethics (2013BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Principles of biomedical ethics. 7nd. ed. New York: Oxford University Press, 2013.) utilizando os três princípios acima elencados pelo Relatório Belmont e adicionando um quarto, que chamaram princípio da não maleficência. Estaria, assim, inaugurado o chamado principialismo bioético (Pessini; Barchifontaine, 1998PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Bioética: do principialismo à busca de uma perspectiva latino-americana. In: COSTA, S. I. F.; GARRAFA, V.; OSELKA, G. (Org.). Iniciação à bioética. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 81-98.) ou a bioética principialista ou o principialismo em bioética.
Assim, recomendava-se aos profissionais de saúde ou pesquisadores que durante as suas práticas respeitassem a liberdade particular de cada indivíduo decidir sobre os aspectos de sua condição de vida (autonomia); que não fosse realizado qualquer tipo de intervenção que prejudicasse os indivíduos, abstendo-se das práticas nocivas (não maleficência); que procurassem sempre agir no sentido de fazer o bem (beneficência); que desenvolvessem suas práticas sem discriminação, agindo de modo justo (justiça).
A bioética principialista é amplamente utilizada desde então e possui grande influência sobre os pensadores em saúde. Por exemplo, no Brasil a resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 196/96 (Brasil, 1996BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196/1996. Normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, DF, 1996. Disponível em: <Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/aquivos/resolucoes/23_out_versao_final_196_ENCEP2012.pdf >. Acesso em: 16 mar. 2016.
http://conselho.saude.gov.br/web_comisso... ), que aprovou na época as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos no país, em seu preâmbulo, trata sobre os quatro princípios apresentados como quatro referenciais básicos da bioética. A força desse referencial principialista, construída historicamente, também é percebida quando, não raramente, declarações são proferidas no sentido de garantir a esses princípios o potencial de esgotar as discussões bioéticas, como se essa fosse a única bioética existente ou possível.
Por outro lado, diversos autores já lançaram críticas contra essa corrente de pensamento da bioética (Clouser; Gert, 1990CLOUSER, D.; GERT, B. A critique of priciplism. Journal of Medicine and Philosophy, Chicago, v. 15, n. 2, p. 219-236, 1990.; Holm, 1995HOLM, S. Not just autonomy: the principles of American biomedical ethics. Journal of Medical Ethics, v. 21, London, p. 332-338, 1995.; Gert; Culver; Clouser, 1997GERT, B.; CULVER, C.; CLOUSER, D. Principlism. In: GERT, B. Bioethics: a return to fundamentals. New York; Oxford: Oxford Press, 1997. p. 71-92.; Schramm; Kottow, 2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, M. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.; Garrafa; Porto, 2003GARRAFA, V.; PORTO, D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics, Oxford, v. 17, n. (5-6), p. 399-416, 2003.; Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005.; Tealdi, 2006TEALDI, J. C. Os princípios de Georgetown: análise crítica. In: GARRAFA , V.; SAADA, A.; KOTTOW, M. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo: Gaia, 2006. p. 49-72.; Garrafa; Azambuja, 2007GARRAFA, V.; AZAMBUJA, L. E. O. Epistemología de la bioética: enfoque latino-americano. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, DF, v. 3, n. 3, p. 334-359, 2007.; Tealdi, 2008TEALDI, J. C. Bioética de los derechos humanos. In: ______. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2008. p. 177-180.) utilizando como objeto críticas de diferentes aspectos e origens. A própria expressão "principialismo" nasce no contexto crítico a essa perspectiva bioética (Clouser; Gert, 1990CLOUSER, D.; GERT, B. A critique of priciplism. Journal of Medicine and Philosophy, Chicago, v. 15, n. 2, p. 219-236, 1990.). O presente artigo visa, justamente, sistematizar as principais críticas relacionadas à bioética principialista e, por entender que existem diferenças significativas entre os pontos de crítica apresentados, também se propõe a separar essas críticas em dois grupos: críticas vindas desde o Hemisfério Norte (ou críticas norteadas) e críticas desde o Hemisfério Sul (ou críticas suleadas).
Críticas desde o Norte
As principais críticas desde o Norte apresentadas à bioética principialista e que foram aqui consideradas são aquelas realizadas a partir dos textos produzidos por (Clouser e Gert, 1990CLOUSER, D.; GERT, B. A critique of priciplism. Journal of Medicine and Philosophy, Chicago, v. 15, n. 2, p. 219-236, 1990.), (Holm, 1995HOLM, S. Not just autonomy: the principles of American biomedical ethics. Journal of Medical Ethics, v. 21, London, p. 332-338, 1995.) e (Gert, Culver e Clouser, 1997GERT, B.; CULVER, C.; CLOUSER, D. Principlism. In: GERT, B. Bioethics: a return to fundamentals. New York; Oxford: Oxford Press, 1997. p. 71-92.). Para sistematizar e apresentar estas críticas, opta-se por dividi-las em cinco diferentes categorias: o sequestro semântico; a questão do protocolo; regras morais versus ideais morais; de cada princípio; a situação de fronteira.
O sequestro semântico
Nesta categoria pode-se identificar que a crítica apresentada à bioética principialista está relacionada à utilização equivocada do termo "princípio". Para os críticos, um princípio deve incorporar a teoria que o originou, deve ser um enunciado significativo para uma ação diretiva. Seu impulso deve ser claro e seu objetivo (ou intenção) não pode ser ambíguo. Assim, a bioética principialista não traz uma teoria clara que apresente os princípios. Aos críticos, parece que houve um esforço para se juntar quatro importantes e diferentes teorias éticas, a saber: autonomia, de Kant; beneficência, de Mill; justiça, de Rawls; e não maleficência, de Gert.
Criticam ainda que esses princípios são conflitantes entre si e que para uma teoria possuir tal carga semântica deveria deixar clara a maneira que os "princípios" se relacionam, e não deixar à escolha do operador da teoria a combinação a ser feita. Essa inexistência de sistematização compromete a possibilidade de existência de uma teoria e de princípios apropriadamente fundamentados.
A questão do protocolo
Os críticos queixam-se de uma ausência de protocolo que possa guiar os profissionais em situações concretas. Para eles, Beauchamp e Childress desenvolvem descrições de várias maneiras de se entender cada "princípio", mas não estabelecem uma ação diretiva específica e, assim sendo, não há possibilidade de aplicá-los.
O texto se aproximaria de uma situação de orientação. Seria como se Beauchamp e Childress recomendassem aos leitores que pensassem sobre o princípio da beneficência e descrevessem várias páginas sobre distinções e deliberações sobre a beneficência (Clouser; Gert, 1990CLOUSER, D.; GERT, B. A critique of priciplism. Journal of Medicine and Philosophy, Chicago, v. 15, n. 2, p. 219-236, 1990.). Assim, como não há uma teoria moral que amarre os princípios, não há um guia de ação que seja coerente, claro, compreensivo e que especifique ações e nem justificativas para essas regras. Quando muito, operam como um checklist inicial nomeando problemas morais em um contexto biomédico. Muito embora seus autores tenham adotado o caráter prima facie como defesa dos princípios, a falta de diretivas impede posicionamentos organizados sobre que princípios priorizar, o que resulta na primazia do respeito à autonomia em detrimento dos demais.
Regras morais versus ideais morais
Aqui se identifica o realce dos críticos na não distinção dos autores entre regras morais - princípios que devem ser seguidos a todo o tempo sob o risco de punição - e ideais morais -princípios que estimulam a prevenção e o alívio do mal, mas não requerem obrigação de segui-los.
Entendem que, de modo geral, os quatro princípios são apresentados como deveres, porém, esses princípios ora são tratados como regras, ora como ideais. Por exemplo, ao tratarem do princípio do respeito à autonomia, Beauchamp e Childress trazem a dimensão do dever em respeitar a decisão autônoma do outro, mas também do ideal moral em promover situações que favoreçam a decisão autônoma.
Em determinadas orientações, os críticos também apontam que entender todos os princípios como regras morais cria um problema prático: é impossível que alguém os execute a todo tempo ou que seja executado por todos. Para ilustrarem o argumento, trazem questionamentos em relação ao princípio da beneficência em sua proposta de promover o bem: como alguém seria capaz de fazê-lo a todo tempo e a todos? Quando alguém não aplica esse princípio o tempo todo ou a todos, esse agente deve ser punido? Para os críticos, neste caso, a beneficência obrigatoriamente perde a característica de imparcialidade do dever moral - proposta pela bioética principialista - e ganha a parcialidade do ideal moral.
De cada princípio
Os críticos ainda estabelecem observações específicas a cada um dos quatro princípios da bioética principialista. Em relação à autonomia, entendida como centro do principialismo, citam como exemplo o dever de promover situações que favoreçam a decisão autônoma. Além do fato de entenderem como um ideal e não um dever moral, os críticos ainda questionam a quem caberia o papel de promover a ação pedagógica de fortalecimento da autonomia. Afinal, haveria uma possibilidade de influência imoral para inclinar a decisão do outro, podendo se aproximar de uma abordagem paternalista ou autoritária. Ainda sobre a autonomia, evidenciam a falta de clareza de aplicação do princípio, o que poderia trazer possibilidades de posições flexíveis diante da capacidade de exercer autonomia. Por exemplo, no caso de um pedido para se realizar um suicídio assistido, poder-se-ia decidir em fazê-lo por entender que o paciente possui capacidade de decisão autônoma ou não fazê-lo por entender o contrário.
Em relação à beneficência, reforçam a crítica de ser tratada como um dever moral e não como um ideal moral.
Sobre o princípio da justiça, insistem que não se parece com nenhuma regra moral, e, para os críticos, os autores nem mesmo teriam procurado fingir a tentativa em construir algo do tipo. Para os críticos aqui trabalhados, a justiça é um capítulo com discussões sofisticadas de várias teorias de justiça conjuntamente. Para eles, o leitor pode ficar mais informado e sensível para diferenciar teorias da justiça, mas não para aplicar o princípio da justiça em uma ação concreta.
O princípio da não maleficência é o único que não faz a confusão entre dever e ideal moral: a expressão "não faça o mal" deve ser aplicada a todos em todos os momentos, sendo um ponto de acordo entre os críticos e os autores do principialismo.
A situação de fronteira
As quatro categorias de crítica anteriormente descritas possuem em comum o fato de criticarem a teoria principialista em seu interior, ou seja, fazem críticas em um nível filosófico e formal. Um dos críticos aqui estudados, entretanto, possui um ponto de crítica que se desloca um pouco desta tendência de observação. (Holm, 1995HOLM, S. Not just autonomy: the principles of American biomedical ethics. Journal of Medical Ethics, v. 21, London, p. 332-338, 1995.) identifica que a bioética principialista, ao declarar princípios universais, erra por deixar de reconhecer que há dificuldade em transferir os princípios de uma cultura para outra e que para que sejam válidos, devem ser flexibilizados e adaptados a diferentes culturas. Ao se falar em autonomia, deve-se questionar a que tipo de autonomia se está referindo: se àquela empregada nos Estados Unidos ou na Dinamarca, país de origem do crítico, por exemplo.
A presente categoria é entendida como uma situação de fronteira porque as críticas apresentadas se esforçam para perceber o principialismo de modo mais contextualizado; entretanto, se limitam a entender como a bioética principialista deve realizar "correções" para ser aplicada a contextos além daqueles nos quais foi criada.
Outra crítica sobre a universalidade da bioética principialista foi apresentada por (Patrão-Neves, 1996PATRÃO-NEVES, M. C. A fundamentação antropológica da Bioética. Bioética, Brasília, DF, v. 4, n. 1, p. 7-16, 1996.) ao afirmar que o principialismo não seria representativo da bioética continental europeia, que se baseia em outros elementos fundamentais, como "a pessoa" e "dignidade" humanas, elementos pouco articulados na bioética principialista.
Deste modo, a pretensa universalidade estaria comprometida e a disciplina deveria incorporar outros parâmetros de avaliação, pois os apresentados por Beauchamp e Childress abririam espaço para algum tipo de relativismo (Patrão-Neves, 1996PATRÃO-NEVES, M. C. A fundamentação antropológica da Bioética. Bioética, Brasília, DF, v. 4, n. 1, p. 7-16, 1996.).
Colonialidade e a bioética principialista
A colonialidade do poder é uma categoria elaborada pelo sociólogo peruano (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.) e está ancorada na ideia de que, desde a conquista da chamada América, o mundo histórico modificou seu modo de se relacionar com o trabalho, com a autoridade coletiva, com os modos de produção de conhecimento e com a vida, inaugurando um novo padrão de poder mundial baseado em uma racionalidade eurocêntrica. Com uso de uma construção mental que expressa as relações de dominação do período colonial - principalmente a ideia de raça, forjada sob a égide do racismo -, essa ferramenta se perpetua pelo tempo legitimando a ideia de superioridade do Norte sobre o Sul.
Em outras palavras, a colonialidade do poder seria
esse regime de poder que, fundado em uma ideia de desenvolvimento, impõe padrões econômicos, políticos, morais e epistemológicos sobre outros povos não apenas para estabelecer um mecanismo de expansão dos Estados-Nação desenvolvidos, mas para a própria criação da identidade europeia (e estadunidense) (Nascimento; Garrafa, 2011NASCIMENTO, W. F.; GARRAFA, V. Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 287-299, 2011., p. 291).
A colonialidade do poder, assim, favoreceu a Europa - e suas projeções nos chamados "países desenvolvidos" ou, geopoliticamente, os "países do Norte", como é o caso dos Estados Unidos - no sentido de monopolizar as formas de controle da subjetividade, da cultura e da produção de conhecimento do mundo ocidental (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.). O que sustenta e legitima epistemicamente a colonialidade do poder é este modo característico de produzir conhecimento, uma epistemologia que está relacionada a um modo específico de utilizar os conhecimentos como um exercício de poder - a colonialidade do saber (Nascimento; Garrafa, 2011NASCIMENTO, W. F.; GARRAFA, V. Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 287-299, 2011.). Há, na colonialidade do saber, a afirmação da perspectiva epistêmica eurocêntrica, legitimada como a mais adequada para ler a realidade do mundo, sendo, ainda, vinculada às manutenções do padrão de poder moderno fundado na lógica colonial.
Em termos práticos, o que se observa é que a produção de conhecimento realizada nos países do Norte possui maior legitimidade em ser reconhecida como uma produção racional e moderna justamente porque a modernidade e a racionalidade foram pensadas como experiências e produtos exclusivamente europeus. Assim, essas relações intersubjetivas e culturais entre os países do Norte e o restante do mundo inauguraram categorias "naturalmente" hierárquicas como: primitivo-civilizado, mítico-científico, irracional-racional e tradicional-moderno (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.).
Assim, nesta discussão, a bioética principialista é tratada como uma produção racional orientada pelo pensamento eurocêntrico. Criada pelo Norte, para o Norte, a partir do Norte. Utilizando-se dessa lente de observação da realidade, é notório que os primeiros textos que apontaram críticas ao principialismo o fizeram também na perspectiva "desde o Norte" sem um ponto de crítica histórico e político localizado. A visão dessas críticas, portanto, é "interna".
Deste modo, para os críticos que pensam desde o Norte, a bioética principialista é passível de críticas apenas enquanto uma pretensa teoria, isto é, centram a discussão nos aspectos formais necessários às teorias morais, evidenciando aqueles que não estão presentes na produção de Beauchamp e Childress, como a ausência de um guia de ação objetivo para o uso dos princípios bem como a falta de critério para definir o que são deveres e ideais morais. Ou seja, apontam as falhas da estruturação da argumentação do ponto de vista teórico, fazendo uso de algumas situações individuais hipotéticas para demonstrar os vícios de aplicação da teoria. Entretanto, questões importantes como as limitações da teoria em relação à sua aplicabilidade a contextos plurais ou até mesmo os prejuízos sociais frente à hegemonia desse pensamento não integram o corpo da crítica.
A ausência dessas preocupações reflete de certa maneira a colonialidade do saber, isto é, quando se está convencido que a produção intelectual dos países desenvolvidos é naturalmente superior; para que se verifiquem "novas teorias", tal qual poderia ser considerada a bioética principialista, bastaria apenas um sistema de validação teórica também produzida por esses países. Neste sentido, qualquer possibilidade de verificação ou crítica da teoria que seja externa a esse sistema, sendo inferior, é irrelevante, ou pior, é invisível.
Por isso é imperativo que o conhecimento produzido nos países desenvolvidos não seja avaliado criticamente apenas a partir do olhar naturalizado dos críticos do Norte. Assim, outros pensadores, com destaque àqueles que pensam a partir da América Latina, realizam leitura sobre este tema de uma perspectiva que reconhece a desigualdade na distribuição de poder entre os países centrais e periféricos, realizando uma crítica "desde o Sul". É essa perspectiva da crítica que será discutida a seguir.
Críticas desde o Sul
As críticas aqui descritas são aquelas apresentadas principalmente por bioeticistas da América Latina (Schramm; Kottow, 2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, M. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.; Garrafa; Porto, 2003GARRAFA, V.; PORTO, D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics, Oxford, v. 17, n. (5-6), p. 399-416, 2003.; Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005.; Tealdi, 2006TEALDI, J. C. Os princípios de Georgetown: análise crítica. In: GARRAFA , V.; SAADA, A.; KOTTOW, M. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo: Gaia, 2006. p. 49-72.; Garrafa; Azambuja, 2007GARRAFA, V.; AZAMBUJA, L. E. O. Epistemología de la bioética: enfoque latino-americano. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, DF, v. 3, n. 3, p. 334-359, 2007.; Tealdi, 2008TEALDI, J. C. Bioética de los derechos humanos. In: ______. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2008. p. 177-180.) que incorporaram a percepção histórica na discussão sobre o principialismo. Essas críticas se aproximam da ideia de que "pensar desde o Sul implica em dialogar com os conceitos produzidos pelo Norte, atentos ao risco de subordinação a eles" (Nascimento; Garrafa, 2011NASCIMENTO, W. F.; GARRAFA, V. Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 287-299, 2011., p. 291).
Portanto, as críticas apresentadas por esses textos, em geral, partem da compreensão de que a produção racional apresentada pela bioética principialista possui um sentido político na medida em que defende uma subjetividade específica e, assim, possui um discurso de poder que legitima determinados padrões de pensamento em detrimento de outros. Com isso, aceitar essa produção de conhecimento de maneira acrítica seria também um modo de manter a subordinação.
Para sistematizar e apresentar essas críticas, opta-se por dividi-las em quatro diferentes categorias: a) crítica em perspectiva histórica; b) princípios desproporcionais - a "super" autonomia; c) universalismo; d) a retomada conceitual e política - pilotem suas próprias cabeças.
Crítica em perspectiva histórica
Para se apresentar os pontos de crítica "suleados", faz-se necessária uma avaliação histórica do processo de evolução da bioética. O primeiro aspecto a ser mencionado é o da percepção da apropriação e redução do termo bioética. Na década de 1970, inicialmente pensada por (Potter, 1971POTTER, V. R. Bioethics: bridge to the future. 1. ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1971.) como uma ciência capaz de discutir as questões relativas à sobrevivência da humanidade, aproximando os conhecimentos biológicos dos valores humanos, o termo teria sofrido apropriações reducionistas que limitaram a discussão de questões da bioética à pesquisa científica e à assistência em saúde. Assim, a proposta de uma bioética interdisciplinar, preocupada com amplas questões ambientais e de consumo, por exemplo, teria sido substituída por uma bioética médica ou uma ética biomédica.
Do ponto de vista histórico, (Schramm e Kottow, 2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, M. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.) evidenciam que, tendo nascido de um contexto de aplicação à relação de pesquisadores e pesquisados e da relação profissional-paciente, ficaria clara a aplicação da ética a contextos individuais. Por esse motivo é inusitado perceber que após a popularização dos quatro princípios da bioética principialista a influência dessa corrente de pensamento era tão presente que frequentemente pensadores buscavam adaptar esses princípios mesmo quando a discussão bioética se relacionava a contextos coletivos (Schramm; Kottow, 2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, M. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.).
Princípios desproporcionais - a "super" autonomia
A aplicação prática dos princípios em contextos da América do Norte, apesar de basear-se em princípios prima facie - isto é, princípios "provisórios", que devem ser respeitados até que seja mais importante o respeito a um segundo princípio - produziram uma teoria que superestimou o princípio da autonomia (Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005.). Embora, segundo defesa dos criadores do principialismo, (Beauchamp e Childress, 2013BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Principles of biomedical ethics. 7nd. ed. New York: Oxford University Press, 2013.), a autonomia não estaria sendo tratada por eles como uma espécie de super princípio, na prática concreta foi isso que aconteceu desde seus primórdios no início dos anos 1980.
A supervalorização da autonomia despertou outros pontos de crítica, pois se percebia o risco de, em um discurso sobre o respeito à individualidade dos sujeitos humanos, exageros na utilização do termo em direção a um individualismo exacerbado que poderia chegar até mesmo a um egoísmo "capaz de anular qualquer visão inversa, coletiva e indispensável ao enfrentamento das tremendas injustiças relacionadas com a exclusão social" (Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005., p. 128).
Além disso, ao se evidenciar a excessiva visibilidade e aplicação da autonomia em nível individual, o princípio de justiça - coletivo e que deveria significar um referencial de amplo apelo social - era pouco estudado ou praticado, e os princípios de beneficência e não maleficência discutidos em dimensões exclusivamente deontológicas (Garrafa; Porto, 2003GARRAFA, V.; PORTO, D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics, Oxford, v. 17, n. (5-6), p. 399-416, 2003.; Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005.; Garrafa; Azambuja, 2007GARRAFA, V.; AZAMBUJA, L. E. O. Epistemología de la bioética: enfoque latino-americano. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, DF, v. 3, n. 3, p. 334-359, 2007.). Preocupação também apresentada por (Tealdi, 2006TEALDI, J. C. Os princípios de Georgetown: análise crítica. In: GARRAFA , V.; SAADA, A.; KOTTOW, M. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo: Gaia, 2006. p. 49-72., p. 59), que entendia haver uma "exaltação da moral individualista com uma minimização da ideia de justiça".
Por fim, as críticas à autonomia se relacionam também ao fato de a mesma ter contribuído para criar uma indústria do Termo de Consentimento Informado (TCI), legalista e deontológica, instrumentalizando na prática o pretenso exercício da autonomia. Ou seja, por ser tratada como um "superprincípio" e ter sua maturação em solo e cultura norte-americanos, o que se notou foi uma extensa preocupação dos atores que lidam com saúde e pesquisa em se munirem de documentos - leia-se, contratos - que pudessem isentá-los de qualquer culpa caso algo saísse errado no desenvolvimento de suas práticas. O TCI deixaria de ter uma preocupação genuína e comprometida em informar, interagir e decidir com o outro e passaria a servir como uma prova de isenção de culpa dos profissionais em relação à decisão individual do sujeito (Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005.). Ou seja, inversamente aos propósitos originais da bioética historicamente proposta por Potter, em vez de garantir ou pelo menos representar os interesses das pessoas e comunidades verdadeiramente vulneráveis, apenas reforça o lado mais forte da equação social, vulnerabilizando a banda mais frágil (os pacientes) ainda mais.
Universalismo
Outro problema apresentado pela perspectiva crítica dos países do Sul é o da pretensão de universalidade da bioética principialista, discutida de forma explícita no primeiro capítulo da sétima edição da obra de (Beauchamp e Childress, 2013BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Principles of biomedical ethics. 7nd. ed. New York: Oxford University Press, 2013.), que faz referência à teoria da "moralidade comum" (tomada como fundamentação conceitual do principialismo a partir da quarta edição do livro, de 1994) como "moralidade universal". Afinal, como se pode falar em uso de ferramentas bioéticas universais se, por exemplo, existem comunidades que nem chegam a construir socialmente um entendimento de autonomia dos indivíduos, como no caso de comunidades indígenas? (Garrafa; Porto, 2003GARRAFA, V.; PORTO, D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics, Oxford, v. 17, n. (5-6), p. 399-416, 2003.; Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005.; Garrafa; Azambuja, 2007GARRAFA, V.; AZAMBUJA, L. E. O. Epistemología de la bioética: enfoque latino-americano. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, DF, v. 3, n. 3, p. 334-359, 2007.). Assim, os críticos desde o Sul também apresentam a percepção de que a autonomia deve ser entendida de acordo com a cultura; em vez de um esforço para adaptá-la e formatá-la em uma aproximação com o principialismo, deve ser vista como um esforço para a busca de compreensão conjunta dos valores de determinado grupo diverso, podendo, inclusive, nem mesmo existir como um princípio a ser considerado.
A retomada conceitual e política - pilotem suas próprias cabeças
O grande problema apresentado pelos críticos do Sul é que foi justamente essa bioética de significado reduzido (que embandeira quatro princípios pretensamente universais, tendo como carro-chefe a autonomia) que ficou conhecida internacionalmente como "a" bioética. Assim, com o reconhecimento de que o principialismo seria insuficiente e/ou impotente para analisar problemas de saúde pública (Schramm; Kottow, 2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, M. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.), os macroproblemas éticos persistentes (ou cotidianos) verificados na realidade concreta (Garrafa; Porto, 2003GARRAFA, V.; PORTO, D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics, Oxford, v. 17, n. (5-6), p. 399-416, 2003.; Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005.; Garrafa; Azambuja, 2007GARRAFA, V.; AZAMBUJA, L. E. O. Epistemología de la bioética: enfoque latino-americano. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, DF, v. 3, n. 3, p. 334-359, 2007.) é que se lutou por uma retomada conceitual e política do papel da bioética na história da humanidade.
Para obter resultados satisfatórios, essa retomada deveria acontecer em proporções globais, inclusive incluindo a ampliação da agenda da discussão da bioética em eventos científicos internacionais, uma ampliação que ultrapassasse os conflitos biomédicos e individuais e alcançasse os problemas globais e coletivos. Assim, com a realização do Quarto Congresso Mundial de Bioética, realizado no Japão, em 1998 (tema central: bioética global) é que se conseguiu reinserir temas sobre a qualidade de vida, biodiversidade, recursos naturais, racismo e acesso a sistemas públicos de saúde e medicamentos nas pautas de discussão da área. Já em 2002, com o Sexto Congresso Mundial tendo acontecido no Brasil (tema central: bioética, poder e injustiça), grupos de estudo de pesquisa e pós-graduação foram se fortalecendo pela América Latina e cobrando cada vez mais o papel de uma bioética mais politizada e comprometida com a resolução dos problemas de desigualdade no mundo (Garrafa; Pessini, 2003GARRAFA, V.; PESSINI, L. (Org.). Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Loyola, 2003.).
Em 2005, com a aprovação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO11Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf>. Acesso em: 14 maio 2013. (DUBDH), fica definitivamente confirmado o caráter pluralista da bioética. Essa declaração representa um divisor de águas na agenda bioética internacional por ampliá-la para além da temática biomédica/biotecnológica, para os campos social, sanitário e ambiental (Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005.).
É nesse contexto que surgem alternativas à bioética principialista, como a bioética de intervenção, que defende como moralmente justificável a
[...] priorização de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número de pessoas, pelo maior espaço de tempo e que resultem nas melhores consequências [...] com a busca de soluções viáveis e práticas para conflitos identificados com o próprio contexto onde acontecem" (Garrafa, 2005GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasília, DF, v. 13, n. 1, p. 125-134, 2005., p. 130-131).
Dar atenção específica aos problemas persistentes no Sul implica ter uma percepção crítica do cenário político, econômico e social do Sul na busca de elementos suficientes à avaliação dos conflitos éticos que envolvam a vida dos diversos grupos populacionais em seus mais variados aspectos. Nesse cenário, as críticas à bioética principialista, advindas do Sul, não apenas se atentam aos contextos nos quais as situações persistentes ocorrem, mas também devem observar com cuidado as ferramentas teóricas que se utilizam para avaliar e buscar soluções para as questões, situando-as frente às geopolíticas do conhecimento que organizam as teorias e as distribuem pelo mundo (Nascimento; Garrafa, 2011NASCIMENTO, W. F.; GARRAFA, V. Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 287-299, 2011.).
As críticas apresentadas neste tópico também podem ser entendidas como um chamamento aos bioeticistas dos países do Sul para que reflitam sobre a incorporação acrítica de teorias eurocêntricas da bioética. Ainda que essas teorias desenvolvam um papel importante, não podem ser coroadas como as únicas referências desse campo, principalmente por não contribuírem para a discussão e resolução dos graves problemas sociais enfrentados pelos países do Sul. Assim, estas críticas também são convocação aos países do Sul: pilotem suas próprias cabeças.
Considerações finais
A bioética principialista recebeu críticas de diversos autores em diferentes momentos e por distintas razões. Neste artigo se buscou evidenciar algumas dessas críticas e realizar uma separação entre os principais grupos de críticos, fundamentada na perspectiva da colonialidade, tomando como referencial de diferenciação justamente os pontos centrais de argumentação apresentados pelos diferentes críticos. As críticas dos autores que analisaram o principialismo em sua forma conceitual, explorando seus aspectos filosóficos e sua validade como teoria, ou seja, um aspecto de avaliação interna da teoria principialista, denominou-se aqui como sendo críticas desde o Norte.
Convencionou-se aqui chamar de críticas desde o Sul aquelas sobre a aplicação dos princípios a uma realidade concreta de desigualdade entre países centrais e periféricos e que evidenciavam também mostrar como esse discurso pretensamente universal contribui para a manutenção das assimetrias entre os países ricos e pobres.
Para (Nascimento e Garrafa, 2011NASCIMENTO, W. F.; GARRAFA, V. Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 287-299, 2011.), quando se trata das produções racionais do eixo eurocêntrico-estadunidense "devemos estar atentos às armadilhas que essas teorias podem trazer, ainda mais quando são feitas na égide da colonialidade que domina sob a égide do desenvolvimento, do progresso e, por que não, em nome de um suposto benefício para as sociedades menos favorecidas (vale lembrar que as missões catequizadoras, por exemplo, se aproximaram dos povos indígenas brasileiros para salvá-los, reaproximá-los do único caminho de salvação que eles julgavam existente)" (Nascimento; Garrafa, 2011NASCIMENTO, W. F.; GARRAFA, V. Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 287-299, 2011., p. 291).
Vale ressaltar que estas críticas, apesar de divididas em críticas vindas desde o Norte e desde o Sul, não necessariamente representam o pensamento de todo o grupo de bioeticistas desses países. É certo, por exemplo, que podem ser encontrados bioeticistas latino-americanos com pensamentos desde o Norte e norte-americanos ou europeus com pensamentos desde o Sul.
Referências
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- 1Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf>. Acesso em: 14 maio 2013.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2016
Histórico
- Recebido
11 Jun 2015 - Revisado
12 Fev 2016 - Aceito
25 Fev 2016