Atenção em saúde reprodutiva no Brasil: eventuais diferenciais étnico-raciais11Projeto financiado pela Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Convênio 006/2009 − Termo aditivo nº 01/2009. Processo nº 001/0001/000.722/2009.

Reproductive health care in Brazil: searching for ethnic differentials

Resumo

Este estudo teve por objetivo comparar indicadores da atenção à saúde reprodutiva das mulheres negras e brancas. São utilizadas informações obtidas no âmbito da Pesquisa Nacional de Demografia, Saúde da Criança e da Mulher (PNDS 2006PNDS − PESQUISA NACIONAL DE DEMOGRAFIA E SAÚDE DA CRIANÇA E DA MULHER. Banco de dados. 2006. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/banco_dados.php >. Acesso em: 03 ago. 2016.
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). Trata-se de uma pesquisa domiciliar por amostragem probabilística complexa com representatividade nacional. Permite inferência para cinco macrorregiões, incluindo o contexto urbano e rural. Foram estudadas 14.625 mulheres brancas e negras de 15 a 49 anos de idade, que representam, respectivamente, 40% e 54% da amostra total da pesquisa. Para análise da assistência à gestação, ao parto e ao puerpério avaliaram-se as gestações dos filhos nascidos vivos nos cinco anos anteriores à entrevista segundo seis variáveis: ter feito pelo menos uma consulta de pré-natal; ter realizado no mínimo seis consultas; o tipo de parto; ter tido a dor no parto normal aliviada; ter contado com presença de acompanhante no parto e ter feito consulta no puerpério. Além da cor, constituíram-se em variáveis independentes para cada um desses desfechos: idade da mulher na data da entrevista, macrorregião de moradia, residência urbana ou rural, estar ou não casada/unida, anos de estudo, religião atual, classificação econômica (critério Brasil) e posse ou não de convênio/plano de saúde. Na análise bivariada, mulheres negras, com menor escolaridade, pior classe econômica e não portadoras de plano de saúde apresentaram desfechos mais desfavoráveis. No entanto, após análise multivariada, as diferença entre brancas e negras perderam significância estatística. Desigualdades sociais e econômicas mantêm-se determinantes das iniquidades na atenção em saúde reprodutiva.

Palavras-chave:
Desigualdades em Saúde; Saúde Reprodutiva; Atenção Obstétrica; Raça/Etnia; PNDS

Abstract

This study intended to compare reproductive health care indicators between white and black women in Brazil. Data collected at the 2006 Demographic and Health Survey (DHS) were analyzed. The sample allows inferences for the country's five great regions and rural/urban residence. Among 14.625 females aged 15 to 49, white and black women accounted respectively for 40% and 54% of the total sample. Health care during pregnancy and child bearing were assessed by six indicators: attendance to at least one antenatal care visit, having attended to at least six antenatal care visits, attendance to at least one health care visit after child bearing, type of delivery, having received pain relief during a vaginal birth and having someone (relative or friend) with her during delivery. Besides skin color, the following independent variables were considered: age, region of residence, urban/rural residence, religion, marital status, schooling, economic status and having or not private health insurance. At bivariate analysis, all outcomes were unfavorable for black women, for those with low both educational level and economic status, as well for those without health private insurance. However, after multivariate analysis results showed no statistical differences between black and white women. On the other hand, social and economic inequalities remained important determinants of inequities on reproductive health services access.

Keywords:
Health Inequalities; Reproductive Health; Obstetric Care; Race; DHS

Introdução

Atualmente a informação sobre raça/cor da população brasileira faz parte das grandes bases de dados de âmbito nacional.

Em que pesem as mudanças ocorridas na categorização da variável e na forma de coleta da informação, raça/cor esteve presente em oito dos onze censos demográficos realizados no país, a partir de 187222Deixou de figurar nos censos de 1900, 1920 e 1970. (Cunha, 2009CUNHA, E. M. G. de P. da. Ítem raza/color: inclusión en las bases de datos brasileñas. In: JORNADAS ARGENTINAS DE POBLACIÓN, 10., 2009, Catamarca. Anais... Catamarca, Argentina: Asociación de Estudios de Población de la Argentina (AEPA), 2009.). Também as Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNAD) passaram a incorporar esta informação, ora em seu corpo básico ora em seus Suplementos.

No sistema informatizado de saúde, Datasus, a inclusão da raça/cor teve início a partir de 1996. Os primeiros de seus sistemas a incluírem esse quesito foram o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Isso se deu em decorrência da criação, em 1995, do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra e de seu subgrupo de saúde, que aprovaram, em 1996, a introdução do quesito cor nos sistemas de informação de mortalidade e de nascidos vivos. Cinco anos mais tarde, ou seja, em 2001, essa informação foi incluída também no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e mais recentemente, em 2007, no Sistema de Informações Hospitalares (SIH). Essa inclusão tem possibilitado ao Ministério da Saúde um permanente monitoramento dos indicadores de saúde e seus diferenciais por raça/cor, elementos básicos para análise de situações e tendências, visando avaliar e aperfeiçoar a gestão do SUS.

No campo da pesquisa, a disponibilização dessas informações tem permitido estudos que possam avaliar as eventuais associações das desigualdades raciais com a situação de saúde da população brasileira. Como passo intermediário para o estudo das variáveis respostas no campo da saúde reprodutiva, procurou-se examinar os dois grupos de mulheres, negras e brancas, segundo um conjunto de características socioeconômicas e demográficas que eventualmente poderiam ser creditadas por possíveis diferenças encontradas na área da reprodução.

Embora esses sistemas de informações contenham elementos para a construção de alguns indicadores básicos para o estudo da saúde reprodutiva da população, por raça/cor, não permitem cobrir todas as dimensões desse campo. Nesse sentido, a PNDS 2006PNDS − PESQUISA NACIONAL DE DEMOGRAFIA E SAÚDE DA CRIANÇA E DA MULHER. Banco de dados. 2006. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/banco_dados.php >. Acesso em: 03 ago. 2016.
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oferece oportunidade única de estudar os diferenciais por cor de aspectos básicos ligados à reprodução das mulheres em idade fértil, por incluir, entre outros tópicos, anticoncepção, assistência à gestação, ao parto e ao puerpério, conjugalidade e atividade sexual, intenções reprodutivas e acesso a medicamentos (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher PNDS 2006: relatório final. Brasília, DF: Decit: Cebrap, 2008. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/img/relatorio_final_pnds2006.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2014.
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). Além disso, a pesquisa permite examinar mulheres, negras e brancas, segundo um conjunto de características socioeconômicas e demográficas que eventualmente poderiam ser creditadas por possíveis diferenças encontradas na área da reprodução.

O estudo cujos resultados serão aqui apresentados teve por objetivo comparar indicadores da atenção à saúde reprodutiva das mulheres negras e brancas, levando em consideração essas características.

Métodos

As informações analisadas neste trabalho são provenientes do banco de dados da PNDS 2006PNDS − PESQUISA NACIONAL DE DEMOGRAFIA E SAÚDE DA CRIANÇA E DA MULHER. Banco de dados. 2006. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/banco_dados.php >. Acesso em: 03 ago. 2016.
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. Trata-se de uma pesquisa domiciliar por amostragem probabilística complexa, com representatividade nacional. Permite inferência para cinco macrorregiões, incluindo o contexto urbano e rural. O universo estudado compreendeu 14.617 domicílios e 15.575 mulheres de 15 a 49 anos de idade, e aproximadamente 5.000 crianças menores de 5 anos.

As variáveis utilizadas para analisar a assistência à gestação, ao parto e ao puerpério referem-se à história dos nascimentos ocorridos nos cinco anos anteriores à data da entrevista. São elas: ter feito alguma consulta de pré-natal; ter realizado no mínimo seis consultas; o tipo de parto; ter tido a dor no parto normal aliviada; ter contado com presença de acompanhante no parto e ter feito consulta no puerpério.

Variáveis explicativas socioeconômicas e demográficas podem influir nas associações de interesse, além de serem, por sua vez, fatores importantes para o conhecimento dos diferenciais étnico-raciais das mulheres. Neste estudo elas compreendem: idade da mulher na data da entrevista, região de moradia, residência urbano ou rural, estar ou não casada/unida, anos de estudo, religião atual, classificação econômica-critério Brasil (ABEP, 2008ABEP − ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. Critério de classificação econômica Brasil. 2008. Disponível em: <http://www.abep.org/Servicos/Download.aspx?id=07>. Acesso em: 03 ago. 2016.
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) e posse ou não de convênio/plano de saúde.

A análise estatística levou em conta o fato de se tratar de um planejamento amostral complexo (Cavenaghi, 2009CAVENAGHI, S. Aspectos metodológicos e comparabilidade com pesquisas anteriores. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília, DF: Decit: Cebrap, 2009. p. 13-32.), no qual, cada unidade de análise correspondeu a um peso amostral. Nesse sentido, todas as medidas descritivas (porcentagens, médias e medianas) foram obtidas considerando os pesos de ponderação/expansão informados na base de dados. No entanto, os números de casos (valores de N) não são apresentados nas tabelas na sua forma ponderada. Isso foi feito com o intuito de fornecer parâmetros para informar o leitor sobre o verdadeiro número de casos no qual cada análise foi baseada.

Vale notar, ainda, que eventuais diferenças dos N totais observadas entre análises que avaliam uma mesma variável-resposta devem-se ao fato de serem incluídas, nessas análises, uma ou mais variáveis explicativas que não possuam informações completas para todos os casos.

De uma forma geral, a associação entre duas variáveis categóricas foi avaliada por meio de testes do tipo qui-quadrado. Para as varáveis numéricas, a comparação entre médias foi avaliada via modelo linear geral. As duas técnicas incorporaram as informações dos pesos e do planejamento amostral na análise.

No caso de associações estatisticamente significantes (isto é, com p<0,05) envolvendo as variáveis categóricas relativas à saúde reprodutiva da mulher e a cor da pele, a força da associação foi medida considerando estimativas dos odds ratios obtidos de modelos de regressão logística univariada (ORbruto). Em seguida, foram ajustados modelos de regressão logística multivariada, isto é, considerando, além da cor da pele, outras variáveis de interesse. Esses modelos foram ajustados considerando os pesos e o planejamento amostral, com o auxílio dos pacotes estatísticos Stata v.9 e SPSS v.14.

Resultados

Este estudo considera 14.625 mulheres brancas e negras de 15 a 49 anos de idade, que repre sentam, respectivamente, 40% e 54% da amostra total da PNDS 2006PNDS − PESQUISA NACIONAL DE DEMOGRAFIA E SAÚDE DA CRIANÇA E DA MULHER. Banco de dados. 2006. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/banco_dados.php >. Acesso em: 03 ago. 2016.
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. As distribuições correspondentes às informações sociais, econômicas e demográficas declaradas na data da entrevista constam na Tabela 1.

Diferenças estatisticamente significantes entre negras e brancas são observadas para todas as características consideradas, com exceção da situação conjugal, ou seja, cerca de 64% de ambos os grupos estavam casadas ou unidas (p=0,687). Quanto à idade, as brancas apresentaram idade média (31,6 anos) ligeiramente superior à das negras (30,6 anos), com valores medianos iguais a 30,9 e 29,3 anos, respectivamente. Mas o que chama desde logo a atenção é o fato de que as mulheres negras são mais pobres, isto é, 40,6% pertencem às classes econômicas D e E, situação que corresponde a 19,1% para as brancas e possuem menor nível de instrução, ou seja, enquanto 55,2% das negras chegaram, no máximo, aos oito anos de estudo, 57% das brancas alcançaram nove anos ou mais de instrução. Além disso, plano de saúde é acessado por apenas 20,5% das mulheres negras, em contraste com os 35,9% alcançados pelas brancas.

Tabela 1
Distribuição percentual1 de mulheres negras e brancas segundo variáveis socioeconômicas e demográficas de mudas variáveis socioeconômicas e demográficas (PNDS 2001)

Diante do exposto, a etapa seguinte foi estudar mais detalhadamente a distribuição de brancas e negras, segundo a combinação dessa tríade de variáveis: anos de estudo, classe econômica e plano de saúde (Tabela 2).

Vários resultados contidos na referida tabela chamam a atenção. Em primeiro lugar, em torno de 75% das mulheres das classes D e E, com 0 a 4 anos de estudo e sem plano de saúde, são negras. Cerca de 65% das mulheres das classes A e B, com 9 ou mais anos de estudo, e com plano de saúde são brancas. Ou seja, comparações entre negras e brancas são, na verdade, entre mulheres em situação de vida mais e menos adversa. Em segundo lugar, fixando a classe econômica e a posse ou não de plano de saúde para comparar as diferentes categorias de anos de estudo em relação às porcentagens de negras, a análise não indica diferenças significantes, ou seja, todos os valores de p1 são superiores a 0,05 (ver coluna "Agrupamento 1"). Por exemplo, fixando a classe D e E sem plano, as proporções de mulheres negras 75,9%, 72,8% e 76,4%, correspondentes a 0-4, 5-8 e 9 ou + anos de estudo, respectivamente, não são diferentes entre si (p1=0,330).

Tabela 2
Porcentagens1 de mulheres negras segundo as categorias formadas pelas combinações entre classe econômica, plano de saúde e anos de estudo

Além disso, fixando apenas a classe econômica, a comparação entre as porcentagens de negras nas seis categorias formadas pelas combinações de plano de saúde e anos de estudo, também não indica diferenças significantes para mulheres das classes D e E (p2=0,268), C (p2=0,093) ou A e B (p2=0,053).

Diante destes resultados, as informações apresentadas na Tabela 1 foram recalculadas considerando apenas dois grupos extremos: "classe D+E sem plano" e "classe A+B com plano", conforme mostra a Tabela 3. Dessa tabela conclui-se agora que, sob as mesmas condições de vida, traduzidas por essas duas variáveis, mulheres negras e brancas não apresentam diferenças significantes em relação à idade, local de residência, religião atual, situação conjugal e anos de estudo (todos com p>0,05). Mantêm-se apenas as diferenças relacionadas à macrorregião de residência.

Tabela 3
Distribuição das variáveis sociodemográficas segundo classes D+E sem plano e A+B com plano, para mulheres brancas e negras

Assistência à gestação, ao parto e ao puerpério

Os resultados da análise da assistência à gestação, ao parto e ao puerpério, segundo a cor da pele, são apresentados na Tabela 4.

O acesso ao pré-natal foi igualmente elevado tanto para mulheres negras quanto para brancas, ambas com cobertura próxima a 99%. O mesmo não se verificou quando se considera um mínimo de seis consultas de pré-natal, situação que desfavorece as negras (78,5%) quando comparadas às brancas (86,2%).

As mulheres negras apresentaram percentagens significantemente menores de cesáreas (39,9%), em contraste com os 48,8% registrados para as brancas. A presença de acompanhante no parto foi relativamente baixa, da ordem de 17%, desfavorecendo mais as negras, com 14,3%, quando comparada com os 20,5%, correspondentes às brancas. Quanto ao alívio da dor no parto normal, não houve diferença estatisticamente significante para negras e brancas, com baixa cobertura no geral, em torno de 30%.

Consultas de puerpério - tão importantes dentro da perspectiva da assistência à maternidade - foram realizadas por apenas 39,1% do total de mulheres e significativamente mais elevada para as brancas, 46,6%. (OR 1,63 IC95% 1,26-2,11).

Quando se observam esses resultados por macrorregião (dados não apresentados em tabela), no Sul as negras estão em desvantagem no que se refere às variáveis: mínimo de seis consultas de pré-natal (81,4% versus 89,9% para brancas), presença de acompanhante no parto (13,5% versus 22,8% para brancas) e consulta de puerpério (40,9% versus 53,3% para brancas). No Norte, a porcentagem de parto cesáreo é estatisticamente maior para brancas (40,0%) do que para negras (29,3%). O mesmo sucede com a porcentagem sobre a consulta no puerpério, igual a 27,6% e 18,0%, respectivamente, para mulheres brancas e negras.

Tabela 4
Distribuição de negras e brancas segundo variáveis relacionadas à assistência à gestação, ao parto e ao puerpério

O passo seguinte foi proceder a uma análise multivariada (baseada em modelos de regressão logística), separadamente para cada uma das variáveis do núcleo assistência à gestação, ao parto e ao puerpério, que foram significantemente associadas com a cor da pele, com p<0,05 (fez mínimo de seis consultas de pré-natal, parto cesáreo, parto com a presença de acompanhante e fez consulta no puerpério). Para esse núcleo, as variáveis consideradas simultaneamente no modelo foram: cor da pele, classe econômica, plano de saúde e anos de estudo.

É importante observar que, antes de serem incluídas na análise multivariada, as três variáveis socioeconômicas se mostraram significantemente associadas a todas as variáveis respostas do referido núcleo, conforme mostra a Tabela 5. De acordo com essa tabela, as porcentagens de realização do mínimo de seis consultas de pré-natal, parto cesáreo, parto com presença de acompanhante e de consulta no puerpério, aumentaram com a melhora da classe econômica, com a posse de plano de saúde e também com o aumento nos anos de estudo.

Tabela 5
Distribuição das variáveis relacionadas à assistência à gestação, ao parto e ao puerpério, segundo variáveis socioeconômicas

Os resultados das análises multivariadas (Tabela 6) mostram que, para cada uma das quatro variáveis do referido núcleo, a cor da pele perde a significância após o controle pelas variáveis socioeconômicas.

Por exemplo, os resultados da Tabela 4 mostravam que uma mulher branca tinha 71% mais chance (ORbruto=1,71) de ter feito no mínimo 6 consultas de pré-natal, quando comparada a uma mulher negra. No entanto, esse valor cai para 30% e passa a não ser significante (ORajustado=1,30, ver Tabela 6) quando fatores socioeconômicos são usados para corrigir essa associação.

Tabela 6
Valores de p referentes aos testes de significância para os fatores do modelo de regressão logística referentes à assistência à gestação, ao parto e ao puerpério, e estimativas do odds ratios para cor da pele

Discussão

O cuidado ao longo da gestação, do parto e do puerpério tem papel fundamental na redução da morbimortalidade materna e neonatal. Sua finalidade essencial é assegurar a saúde e a vida das mulheres no momento da reprodução, bem como garantir que as condições que cercam os nascimentos não venham a limitar as novas vidas que aí se iniciam (Lago; Lima, 2009LAGO, T. D. G.; LIMA, L. P. Assistência à gestação, ao parto e ao puerpério: diferenças regionais e desigualdades socioeconômicas. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília, DF: Decit: Cebrap, 2009. p. 151-170.). Evidentemente, é preciso considerar o papel determinante do contexto social e econômico sobre o estado de saúde das mulheres e no acesso a serviços de saúde.

Nesse sentido, antes de comentar os resultados relativos ao desempenho da atenção em saúde reprodutiva entre mulheres negras e brancas, vale observar as diferenças socioeconômicas a que estão sujeitas. Na amostra, há um predomínio de mulheres negras; elas são maioria no estrato que vive em situação econômica mais precária e sem acesso a plano de saúde. Há baixa presença desse segmento nas classes A e B com plano de saúde. Por outro lado, a análise da situação de mulheres brancas e negras no interior de cada um desses estratos não identificou diferenças significantes no que se refere à composição etária, escolaridade, religião, situação conjugal e residência urbano-rural. Manteve-se apenas o diferencial da região de residência, com uma tendência a maior frequência relativa de brancas nas regiões Sudeste e Sul nos dois estratos extremos analisados.

Isso posto, o estudo da assistência à gestação indicou, inicialmente, diferenças desfavorecendo as mulheres negras, no que se refere à realização de no mínimo 6 consultas no pré-natal, de parto cesáreo, parto com presença de acompanhante e realização de consulta no puerpério. Entretanto, quando as comparações entre negras e brancas são realizadas, separadamente, dentro de cada um dos dois estratos socioeconômicos, as diferenças perdem significância para todos os indicadores considerados.

Por outro lado, cada um desses indicadores está altamente associado às variáveis de classe econômica, anos de estudo e acesso a plano de saúde, ou seja, apresenta melhores resultados na medida em que as condições de vida das mulheres tornam-se mais favoráveis.

(Barata et al., 2007BARATA, R. B. et al. Health Inequalities based on ethnicity in individuals aged 15-64, Brazil, 1998. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 305-313, 2007.), analisando diferenças entre a população branca e negra na utilização de serviços de saúde, segundo dados da PNAD 1998, identificaram frequência 10% maior de população branca tendo realizado pelo menos uma consulta nos 12 meses precedentes. Após ajuste para a percepção do estado de saúde, idade e renda familiar, as diferenças desapareceram entre os maiores de 25 anos nos estratos de menor renda (até cinco salários mínimos/mês) que se consideravam saudáveis e entre aqueles que consideravam seu estado de saúde regular ou ruim, independentemente da idade (Barata et al., 2007BARATA, R. B. et al. Health Inequalities based on ethnicity in individuals aged 15-64, Brazil, 1998. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 305-313, 2007.). Conforme sugerem as autoras, é possível que diante da percepção de um problema de saúde, as diferenças tendam a perder importância. Nesse sentido, poderia haver um paralelo com os dados encontrados na PNDS. A gravidez não é um problema de saúde, mas é uma demanda por cuidado em saúde. Diante dela, os dados sugerem que mulheres com igual escolaridade, situação econômica e de posse (ou não) de plano de saúde tem chances similares de realizar o número mínimo de consultas de pré-natal, uma consulta de puerpério e ter acompanhante no trabalho de parto, independentemente de cor.

Tendência diferente foi encontrada por (Leal et al., 2005LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N.; CUNHA, C. B. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 100-107, 2005.) em uma amostra de puérperas na cidade do Rio de Janeiro entre 1999 e 2001. A adequação do número de consultas de pré-natal segundo idade gestacional permaneceu mais favorável às brancas do que às pardas e do que às negras, após controle da escolaridade. O mesmo ocorreu quanto ao relato de anestesia no parto vaginal: a porcentagem de mulheres que não a receberam foi significantemente maior entre pardas e pretas do que entre brancas. Teria sido interessante saber se tais associações se manteriam, caso controlada a natureza da instituição hospitalar nos três segmentos do estudo em que a amostra foi estratificada: hospitais municipais e federais, conveniados com o SUS e privados. Tal estratificação dos resultados, se houvesse, permitiria uma melhor comparação com os encontrados em nosso estudo.

Estudo realizado a partir de dados dos suplementos de saúde das PNADS 2003 e 2008 indicou que a população negra tende a se utilizar do SUS 1,4 vezes mais do que a branca (Silva et al., 2011SILVA, Z. P. et al. Perfil sociodemográfico e padrão de utilização dos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), 2003-2008. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 9, p. 3807-3816, 2011.). Além disso, análise dos dados da PNDS 2006PNDS − PESQUISA NACIONAL DE DEMOGRAFIA E SAÚDE DA CRIANÇA E DA MULHER. Banco de dados. 2006. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/banco_dados.php >. Acesso em: 03 ago. 2016.
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anteriormente publicados indicou maior frequência de realização de pelo menos seis consultas de pré-natal e de realização de consulta de puerpério em mulheres que utilizaram serviços por meio de planos de saúde ou pagamento direto do que entre as que se utilizaram do SUS, mesmo após controle da idade e de variáveis sociais econômicas e étnicas. O mesmo se verificou com relação ao alívio da dor no momento do parto e a presença do acompanhante, quando a natureza do financiamento do parto foi considerada. Por outro lado, a frequência de cesarianas foi ainda mais alta entre as usuárias do sistema de saúde suplementar de que do SUS indicando que maior acesso a serviços obstétricos privados no Brasil também pode expor as mulheres ao recurso excessivo a práticas intervencionistas desnecessárias.

Considerando o cenário da atenção obstétrica no país, vale a pena destacar que os resultados de 2006 são positivos quando confirmam o acesso universal a pelo menos uma consulta de pré-natal, observado em análise de dados secundários, que indica tendência crescente da cobertura pré-natal, que passou de 95%, em 2000, para 97% em 2004 (Brasil, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Indicadores e dados básicos para a saúde - 2007 (IDB-2007): tema do ano: nascimentos no Brasil. 2007. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2007/tema.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2008.
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).

Em relação à assistência ao parto, a proporção de cesarianas, estimada em 43,1%, reflete uma escala ascendente se comparada aos 39% registrados em 2000, 40%, em 2002 e 42,7%, em 2004, todos acima de padrões internacionais (Brasil, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Indicadores e dados básicos para a saúde - 2007 (IDB-2007): tema do ano: nascimentos no Brasil. 2007. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2007/tema.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2008.
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). Da mesma forma, o fato de que a maioria das mulheres brasileiras não recebe medidas para alívio da dor no parto normal e não conta com acompanhante no parto indica que a prática obstétrica dominante no país não valoriza estes direitos legítimos das mulheres. Por fim, cabe ainda ressaltar a incapacidade dos sistemas público e privado de saúde em concluir o acompanhamento das mulheres que empreendem o transcurso da gestação e do parto, ao deixar de atendê-las no período puerperal, quando, entre outras questões importantes, é fundamental apoiá-las na adoção de práticas para o planejamento reprodutivo.

Referências

  • ABEP − ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. Critério de classificação econômica Brasil. 2008. Disponível em: <http://www.abep.org/Servicos/Download.aspx?id=07>. Acesso em: 03 ago. 2016.
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  • BARATA, R. B. et al. Health Inequalities based on ethnicity in individuals aged 15-64, Brazil, 1998. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 305-313, 2007.
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  • 1
    Projeto financiado pela Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Convênio 006/2009 − Termo aditivo nº 01/2009. Processo nº 001/0001/000.722/2009.
  • 2
    Deixou de figurar nos censos de 1900, 1920 e 1970.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2014
  • Aceito
    03 Jul 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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