Resumo
Todos os anos milhares de trabalhadores dos estados nordestinos se deslocam para os canaviais do estado de São Paulo para trabalhar nas usinas de cana-de-açúcar. Os que migram são jovens, com pouca escolaridade e oriundos de famílias camponesas. Dentre outras coisas, pesquisadores chamam atenção para os riscos a que tais trabalhadores estão sujeitos, riscos estes presentes nas condições de transporte, moradia e no ambiente de trabalho. A organização do trabalho está sempre focada no aumento da extração de mais valia, que tem resultado na degradação da força de trabalho, expressa nas várias formas de adoecimento e nas inúmeras mortes de trabalhadores-migrantes. Tencionando a noção de “risco” e relacionando-a aos processos de subjetivação, é nossa intenção, no espaço deste artigo, compreender os sentidos que os trabalhadores-migrantes atribuem aos riscos a que estão expostos durante a viagem e também nos locais de trabalho (os canaviais paulistas). Metodologicamente, lançamos mão de uma abordagem qualitativa. Os dados foram colhidos mediante entrevistas semiestruturadas realizadas com uma amostra de 12 trabalhadores-migrantes oriundos do município de Santa Cruz da Baixa Verde (PE), na microrregião do Pajeú, e também de municípios localizados na microrregião da Serra do Teixeira (PB), especialmente os circunvizinhos à cidade de Princesa Isabel (PB). Os dados permitem-nos afirmar a existência de uma relação intrínseca entre os riscos que se corre e a afirmação da identidade de gênero dos sujeitos investigados.
Palavras-chave:
Agronegócio; Trabalhador Migrante; Risco
Introdução
Os municípios de Tavares e de Santa Cruz da Baixa Verde estão situados em estados diferentes. O primeiro, no sertão da Paraíba (microrregião Serra do Teixeira) e, o segundo, na microrregião do Vale do Pajeú, em Pernambuco. Ambos possuem alguns elementos comuns, dos quais é importante destacar: a configuração populacional; a prevalência e a importância da agricultura familiar; e, por fim, o fato de serem verdadeiros celeiros de migrantes sazonais.
Em termos populacionais, Tavares, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, possuía, por ocasião do Censo de 2000 (IBGE, 2001IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2000: características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2001.), 14.103 habitantes, sendo que 63,07% residiam, no período do referido censo, nas áreas rurais e 36,93% nas zonas urbanas. Em Santa Cruz da Baixa Verde a situação não é muito diferente, como sinalizam a quantidade de habitantes: 11.768, dos quais 61,93% habitavam as áreas rurais e 38,07% as áreas urbanas.
Nesses municípios é possível observar a importância da agricultura familiar. O acesso à terra, por parte das famílias agricultoras, é frágil, haja vista que a maioria dos estabelecimentos agrícolas possui área menor que cinco hectares, o que dificulta a reprodução dos grupos familiares em patamares de dignidade socialmente aceitos.
A dificuldade de acesso à terra aliada às irregularidades das chuvas e a ausência de oportunidades de emprego e renda nos municípios em destaque têm historicamente favorecido a migração de membros dos grupos familiares em busca de trabalho e remuneração. Com efeito, Saturnino e Menezes (2007)SATURNINO, M.; MENEZES, M. A. As migrações sazonais do sertão paraibano para as usinas canavieiras de São Paulo. In: NOVAES, R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Paulo: EdUFSCar, 2007. p. 233-256. observam que a migração de nordestinos em direção ao Sudeste tem como marco a década de 1930, sendo que no período de 1950 a 1970 houve uma intensificação da migração inter-regional Nordeste-Sudeste, quando cerca de 2,7 milhões de pessoas deixaram as áreas rurais do Nordeste rumo à outra região do país.
Mesmo considerando os impactos positivos das recentes políticas públicas voltadas para a população rural - Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), Programa Um Milhão de Cisternas, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) etc. -, é necessário enfatizar o caráter limitado e pouco efetivo de tais políticas diante da profundidade dos processos de precariedade que historicamente incide sobre a população rural brasileira. Assim, sem alternativas de acesso a trabalho e renda em seus locais de origem, os habitantes dos municípios aqui em destaque, tendo como centralidade seu lugar de moradia, se conectam a outros espaços, mobilizando-se em busca de acesso a trabalho e remuneração que lhes permitam a satisfação de suas necessidades e, em última instância, a reprodução do seu grupo familiar.
Embora a migração nos espaços estudados seja uma prática antiga, a partir da segunda metade da década de 1990 houve um adensamento do fluxo migratório, tendo como destino as empresas canavieiras, localizadas especificamente no interior do estado de São Paulo (região de Rio Preto) e no estado do Mato Grosso do Sul.
Essa corrente migratória está relacionada aos atuais processos de expansão das indústrias canavieiras e a consequente demanda de trabalhadores para a colheita de cana-de-açúcar, haja vista que tal atividade era realizada, quase que exclusivamente, de forma manual. Ultimamente com o avanço do processo de mecanização houve uma diminuição no número de trabalhadores contratados por grande parte das usinas do estado de São Paulo. Não obstante, muitas usinas canavieiras continuam demandando trabalhadores para o corte manual, uma vez que o referido processo de mecanização ainda não alcançou 100% da área plantada.
No que tange ao perfil dos trabalhadores-migrantes, pesquisadores têm apontado tratar-se de jovens, do sexo masculino, pouco escolarizados e oriundos da agricultura familiar. Novaes (2007)NOVAES, J. R. Idas e vindas: disparidades regionais: um estudo sobre o trabalho temporário de nordestinos na safra de cana paulista. In: NOVAES, J. R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Carlos: EdUFSCar, 2007. p. 88-117. e Menezes11MENEZES, M. A. Juventudes rurais no nordeste: trabalho, migração e movimentos sociais. Projeto de Pesquisa. Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2009. Mimeografado. relatam que, embora a idade não seja um critério explícito na seleção dos trabalhadores, a maioria dos trabalhadores selecionados e contratados é composta de jovens na faixa etária de 17 a 30 anos.
A preferência por homens jovens e socializados na agricultura é frequentemente justificada pela suposta disposição para o trabalho, dado que os jovens têm mais energia e maiores chances de alcançar altos níveis de produtividade (Silva, 2011SILVA, M. S. Trabalhadores-migrantes nos canaviais paulistas: sociabilidades, condições de trabalho e formas de resistência. 2011. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2011.; Novaes; Alves, 2007NOVAES, J. R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Carlos: EdUFSCar, 2007.).
O recrutamento de futuros cortadores de cana acontece principalmente no mês de janeiro, quando esses trabalhadores são abordados em seus locais de origem - geralmente cidades interioranas dos estados da Paraíba, Pernambuco, Piauí, Maranhão e outros do Nordeste -, por arregimentadores, também conhecidos como “turmeiros” (por formar turmas de trabalhadores) ou “gatos”, os quais têm como função localizar e pré-selecionar os candidatos à vaga de cortador de cana-de-açúcar. A pré-seleção consiste em obter informações sobre os candidatos, levando em consideração o comportamento em seus lugares de origem, em safras anteriores, além da média de produtividade. A ideia é conseguir um trabalhador útil (capaz de atender as médias de produtividade) e, ao mesmo tempo, dócil, ou seja, um trabalhador que não seja sindicalizado, não participe de greve, não questione as ordens dos fiscais e de outros representantes patronais (Saturnino; Menezes, 2007SATURNINO, M.; MENEZES, M. A. As migrações sazonais do sertão paraibano para as usinas canavieiras de São Paulo. In: NOVAES, R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Paulo: EdUFSCar, 2007. p. 233-256.).
Na segunda fase de seleção, o critério principal é a higidez suficiente para o desempenho do trabalho árduo na lavoura. Nessa etapa, o agente da seleção é o médico do trabalho que, em última instância, exclui aqueles trabalhadores que apresentam possibilidade de desenvolver patologias impeditivas da realização do trabalho em questão (Scopinho, 2000SCOPINHO, R. A. Qualidade total, saúde e trabalho: uma análise em empresas sucroalcooleiras paulistas. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 93-112, 2000.). Nessa etapa de seleção, procura-se pelos trabalhadores mais saudáveis por meio de exames admissionais, excluindo assim os doentes nas etapas seguintes. Desse modo, essa prática médica nem sempre objetiva prevenir, identificar, tratar ou reabilitar as possíveis patologias que os trabalhadores tenham ou possam adquirir, mas excluir os doentes e susceptíveis do mundo do trabalho.
Scopinho (2000SCOPINHO, R. A. Qualidade total, saúde e trabalho: uma análise em empresas sucroalcooleiras paulistas. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 93-112, 2000., p. 98) reforça a ideia de Silva (2006)SILVA, M. S. Entre o bagaço da cana e a doçura do mel: migrações e as identidades da juventude rural. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2006. quanto à seleção de trabalhadores quando afirma que “o processo produtivo [nas usinas canavieiras] passou a exigir um tipo de trabalhador, cuja característica principal é ser […] tecnicamente experiente, qualificado e polivalente e […] pessoalmente comprometido com os objetivos empresariais”.
Durante o período da safra (colheita de cana-de-açúcar), esses trabalhadores residem em casas - chamadas por eles de “barracos” - ou em alojamentos. Os alojamentos têm seu espaço físico dividido em dormitórios, banheiros e chuveiros, áreas de convivência, refeitório e lavanderia. Em muitos casos, em cada alojamento reside em média de duzentos a trezentos trabalhadores de uma mesma usina. Com o avanço do processo de mecanização e o declínio no número de trabalhadores contratados para o corte manual, as casas (barracos) constituem atualmente o principal tipo de moradia desses sujeitos. São situadas nas periferias das pequenas cidades e consistem geralmente de poucos cômodos, tendo na maior parte cozinha, banheiro, quarto com beliches, uma pequena sala e uma lavanderia na área externa. Essas casas abrigam em média de oito a dez homens.
O processo migratório aqui analisado envolve, no entanto, mais do que a saída desses homens de seus locais de origem em busca de recursos para uma melhoria de vida. Esse deslocamento para o trabalho nos canaviais implica essencialmente na inserção desses homens em um processo de trabalho penoso, perigoso e insalubre (Silva; Menezes, 2010SILVA, M. S.; MENEZES, M. A. “A cana judia de nós!”: os impactos da migração e da atividade de cortar cana-de-açúcar sobre a saúde dos trabalhadores-migrantes nordestinos. In: CONGRESSO LATINOAMERICANO DE SOCIOLOGIA RURAL, 8., 2010, Porto de Galinhas. Anais… Porto de Galinhas: ALASRU, 2010.; Alessi; Scopinho, 1994ALESSI, N. P.; SCOPINHO, R. A. A saúde do trabalhador do corte da cana-de-açúcar. In: ALESI, N. P. et al. (Org.). Saúde e trabalho no Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 121-151.).
Segundo Alves (2007ALVES, F. Migração de trabalhadores rurais do Maranhão e Piauí para o corte de cana em São Paulo: será esse um fenômeno casual ou recorrente da estratégia empresarial do Complexo Agroindustrial Canavieiro? In: NOVAES, R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Paulo: EdUFSCar, 2007. p. 21-54., p. 30),
O processo de trabalho no corte de cana consiste desde a década de 1970, perdurando até hoje, no fato de o trabalhador cortar toda a cana de um retângulo, com 8,5 metros de largura, contendo cinco ruas de cana (linhas em que é plantada a cana, com 1,5 metros de distância entre elas), por um comprimento que varia de trabalhador para trabalhador. Esse pequeno retângulo, contido no retângulo maior, que é o talhão, é chamado de eito pelos trabalhadores.
Ainda segundo Alves (2007)ALVES, F. Migração de trabalhadores rurais do Maranhão e Piauí para o corte de cana em São Paulo: será esse um fenômeno casual ou recorrente da estratégia empresarial do Complexo Agroindustrial Canavieiro? In: NOVAES, R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Paulo: EdUFSCar, 2007. p. 21-54., o tamanho do eito varia para cada trabalhador, pois depende da quantidade de cana que ele consegue cortar durante um dia de trabalho, sendo medido em metros lineares. Tal quantidade é determinada, entre outros fatores, pelo tipo de cana (cana boa, cana ruim), bem como pela resistência física de cada trabalhador, pelo ritmo de trabalho e, portanto, por suas condições físicas e psicológicas. É por essa razão que a empresa busca controlar os diversos âmbitos da vida do trabalhador controlando, inclusive, a vivência de seu tempo livre, visando garantir uma força de trabalho altamente produtiva.
No entanto, conforme Alves (2007)ALVES, F. Migração de trabalhadores rurais do Maranhão e Piauí para o corte de cana em São Paulo: será esse um fenômeno casual ou recorrente da estratégia empresarial do Complexo Agroindustrial Canavieiro? In: NOVAES, R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Paulo: EdUFSCar, 2007. p. 21-54., o trabalho no corte não se resume apenas a atividade de cortar cana, uma vez que, além de cortar a planta, a empresa prescreve ainda como obrigação do trabalhador: (1) limpar a cana, eliminando o pendão (parte superior da cana); (2) transportar a cana até a linha central do eito (3ª linha); e, (3) arrumar a cana, nessa terceira linha, para o carregamento.
Além disso, Alves (2007)ALVES, F. Migração de trabalhadores rurais do Maranhão e Piauí para o corte de cana em São Paulo: será esse um fenômeno casual ou recorrente da estratégia empresarial do Complexo Agroindustrial Canavieiro? In: NOVAES, R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Paulo: EdUFSCar, 2007. p. 21-54. chama a atenção para o alto desgaste de energia do trabalhador da colheita de cana-de-açúcar. Em suas palavras:
Um cortador que corta seis toneladas de cana, em um eito de 200 metros de comprimento, por 8,5 de largura, caminha, durante o dia, aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 20 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 66.666 golpes no dia (considerando uma cana em pé, de primeiro corte, não caída e não enrolado e que tenha densidade de dez canas a cada 30 cm). Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que, a cada 30 cm, abaixar-se e torcer-se para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima. Além disso, ainda transporta os vários feixes de cana cortada para a linha central. Isso significa que ele transporta, em seu braço 6 toneladas de cana em montes de peso equivalente a 15 kg, a uma distância que varia de 1,5m a 3 metros, ou seja, durante parte dos 4.400 metros (Alves, 2007ALVES, F. Migração de trabalhadores rurais do Maranhão e Piauí para o corte de cana em São Paulo: será esse um fenômeno casual ou recorrente da estratégia empresarial do Complexo Agroindustrial Canavieiro? In: NOVAES, R.; ALVES, F. (Org.). Migrantes: trabalho e trabalhadores no Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Paulo: EdUFSCar, 2007. p. 21-54., p. 33-34).
Ao analisar o dia de trabalho de um cortador de cana, Santos e Souza (2012)SANTOS, A. M. F. T.; SOUZA, F. E. Cana doce, trabalho amargo: a superexploração do trabalhador canavieiro no município de Itaberaí-GO. Revista Pegada, Presidente Prudente, v. 13, n. 2, p. 102-127, 2012. asseguram que os números mencionados anteriormente podem ser maiores, uma vez que as usinas têm privilegiado a contratação de trabalhadores que superem a meta de 10 toneladas de cana por dia.
Apesar de a força física ser um fator considerado no processo de seleção para a contratação, nem sempre o trabalhador de maior massa muscular será o que apresentará o melhor desempenho no quesito produtividade. A resistência física do trabalhador será o diferencial no desenvolvimento da atividade repetida exaustivamente e realizada a céu aberto, num ambiente no qual os trabalhadores estão expostos às condições climáticas, além da poeira, fuligem e fumaça durante uma jornada de trabalho que varia entre 8 e 12 horas diárias, seis dias por semana (Alves, 2006ALVES, F. Por que morrem os cortadores de cana? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 90-98, 2006.).
Para desenvolver as atividades no corte da cana, os trabalhadores são instruídos a usar Equipamentos de Proteção Individual (EPI). A indumentária utilizada é composta por chapéu ou boné, óculos, lenços cobrindo o pescoço e o rosto, camisa de manga comprida com mangote, calças compridas, botina com biqueira de aço, caneleiras até o joelho e luvas de raspa de couro (Rocha, 2007ROCHA, F. L. R. Análise dos fatores de risco do corte manual e mecanizado da cana-de-açúcar no Brasil segundo o referencial da Promoção da Saúde. 2007. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007.; Alves, 2006ALVES, F. Por que morrem os cortadores de cana? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 90-98, 2006.).
Durante a execução do trabalho os cortadores de cana estão expostos às altas temperaturas, chuva, poeira, fuligem proveniente da queima da cana, animais peçonhentos (que podem ser encontrados no meio dos canaviais), acidentes de trabalho, a exemplo de cortes, quedas e a realização de intensos movimentos corporais que favorecem a adoção de posturas inadequadas. Esse leque de riscos pode ser agravado devido ao uso das várias camadas de roupas que cobrem o corpo, ou até mesmo pela má qualidade dos EPI disponibilizados pelas usinas para a execução do trabalho (Alessi; Scopinho, 1994ALESSI, N. P.; SCOPINHO, R. A. A saúde do trabalhador do corte da cana-de-açúcar. In: ALESI, N. P. et al. (Org.). Saúde e trabalho no Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 121-151.).
Diante do esforço físico despendido e das situações as quais estão expostos diariamente, o trabalho no corte manual da cana implica numa série de riscos à saúde física e mental dos trabalhadores. Os fatores de riscos são provenientes das condições encontradas no ambiente de trabalho e nas condições de moradia, que podem provocar adoecimentos ou até mesmo a morte (Rocha, 2007ROCHA, F. L. R. Análise dos fatores de risco do corte manual e mecanizado da cana-de-açúcar no Brasil segundo o referencial da Promoção da Saúde. 2007. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007.).
Desse modo, considerando a penosidade e periculosidade do trabalho na colheita de cana-de-açúcar bem como das condições nas quais os trabalhadores migram para o interior do estado de São Paulo, a nossa intenção no espaço deste artigo consiste em compreender as percepções dos trabalhadores-migrantes sobre o trabalho na colheita de cana-de-açúcar, bem como sobre os riscos a que estão sujeitos, seja na viagem, seja no próprio espaço de trabalho. Buscaremos compreender ainda os vários sentidos que os trabalhadores-migrantes atribuem a esses riscos, trabalhando com a hipótese de que a vivência desses riscos está relacionada à afirmação de suas identidades de gênero.
Metodologia
Metodologicamente lançamos mão de uma abordagem qualitativa de cunho fenomenológico. O estudo teve como foco os municípios de Santa Cruz da Baixa Verde, localizado na microrregião do Pajeú, e Tavares (PB), localizado na microrregião da Serra do Teixeira (PB).
Os dados foram gerados no período 2010 a 2014, por meio do uso de entrevistas semiestruturadas, que tem como finalidade a obtenção de informações presentes nos relatos dos entrevistados. Sendo a fala individual reveladora de códigos de sistemas e valores a partir dos relatos, procuramos entender as condições estruturais, os sistemas de valores, normas e símbolos, que expressam as representações de grupos determinados, em condições históricas, sociais, econômicas e culturais específicas.
Dada a natureza do estudo, a amostra de participantes não foi definida anteriormente, e sim construída durante o processo de pesquisa. Assim, o dimensionamento do número de entrevistas seguiu o critério de saturação, que consiste no conhecimento formado pelo pesquisador, no campo de que conseguiu compreender a lógica interna do grupo ou da coletividade em estudo (Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.).
As entrevistas foram realizadas durante a safra, nos locais de destino, e da entressafra, quando os trabalhadores retornam para os seus locais de origem. Desse modo, os participantes desse estudo foram os homens, cortadores de cana, migrantes, de faixas etárias variadas e que já tivessem migrado para o trabalho na colheita manual da cana. Esses homens têm como característica comum serem pequenos produtores ou agricultores familiares que trabalham na terra. Na construção deste artigo fizemos uso de 12 entrevistas de trabalhadores.
O processo de análise consistiu inicialmente com a transcrição integral das entrevistas. Optou-se por utilizar como método o processo de análise temática, com o intuito de descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação, cuja frequência identifique algo para o objeto analítico visado (Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. São Paulo: Hucitec, 2010.; Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.).
Todos os procedimentos realizados durante a pesquisa foram fundamentados no que dispõe a Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Os(as) entrevistados(as) participaram de forma voluntária, mediante o seu livre consentimento e aprovação, sendo que todos tiveram a sua identidade preservada, utilizando nomes fictícios para garantir anonimato dos participantes e o sigilo das informações. O protocolo foi aprovado pelo comitê de ética das Faculdades Integradas de Patos (FIP) sob o número 037/2011.
A experiência dos trabalhadores-migrantes sobre o trabalho
Indagados sobre o que acham do trabalho na colheita de cana, os trabalhadores-migrantes entrevistados tendem a iniciar sua fala dizendo que “nas canas, o serviço é bom, não é muito ruim, não” (Dário, 40 anos, trabalhador-migrante oriundo do município de Tavares). Dizer que o serviço é bom não significa, no entanto, que os trabalhadores não tenham consciência de seus aspectos desumanos e mesmo indecentes. Dessa forma, para entendermos o qualificativo bom atribuído pelos trabalhadores, precisamos entender o que esse trabalho significa para eles, como acena esse trecho de uma entrevista com dois trabalhadores migrantes, ambos do município de Tavares.
- E o trabalho? O que vocês acham? (Pesquisador).
- É pesado… Eu assisti a uma reunião daquela mulher falando na TV, ela disse que um trabalhador tem capacidade de dar sete mil golpeadas [referência aos golpes de facão] por dia. (Vanildo).
- É luta, rapaz, o trabalho não é fácil não, é trabalho sofrido, viu… (Adilson).
- Agora que o Nordeste, aqui, da gente mesmo, levantou noventa por cento, por causa do corte de cana. (Pesquisador).
- De qualquer maneira, Vanildo, por sofrido que seja, tem ajudado muito o povo nordestino. Porque o nosso Nordeste sempre é um nordeste pobre mesmo, e nós que vamos para as usinas, a gente trabalha… Quem usa a cabeça de valorizar o que ganha sofrido, você vê que tem um progressinho: compra uma casinha, um pedacinho de terra, uma moto, uma junta de bois, então tem livrado muita coisa mesmo… (Adilson).
- Tem ajudado… (Pesquisador).
- Eu mesmo acredito que tem ajudado muito, tem ajudado bastante. (Vanildo).
Dessa forma, não é que os trabalhadores não sintam o peso do trabalho, trata-se do fato de que na hora de avaliarem o trabalho nos canaviais eles o fazem tomando como parâmetro as suas condições nos locais de origem. Além disso, enfatizam o papel da migração e de sua inserção nos canaviais do estado de São Paulo para a reprodução própria e de seus grupos familiares. Isso tem favorecido, inclusive, processos de dinamização econômica dos pequenos municípios nordestinos de onde parte essa força de trabalho. É a partir dessas considerações que podemos entender a fala dos trabalhadores abaixo transcrita:
Se lá [referência ao município onde reside com a família no sertão de Pernambuco] tivesse serviço para o povo, o cabra não vinha se meter aqui, não… Levantando às quatro horas da manhã, na chuva ou no sol, mas tem que vim, pois o trabalho lá é na roça, quando tem inverno. A diária lá [o pagamento por um dia de trabalho] é de quinze reais; aqui o cabra tira trinta, quarenta, cinquenta reais. Além de que, lá é difícil arrumar serviço a semana toda (Francisco, 24 anos, solteiro, oriundo de Santa Cruz da Baixa Verde - PE).
Eu também não posso falar do serviço também, não, porque é o seguinte, eu estou com dez, doze viagem que eu venho para cá [Usinas] e quando eu entrei pra dentro de casa com uma mulher que eu tenho lá, eu só levei um cama velha e um pouquinho de feijão de corda, furado, que meu pai me deu; eu não levei outra coisa que eu não tinha, e hoje graças a Deus, um bocado de coisa que eu já tenho foi arrumado aqui também; então eu não posso falar que o serviço aqui é ruim… (Edvaldo, 30 anos, casado, oriundo de Santa Cruz da Baixa Verde - PE).
Alguns trabalhadores, embora avaliem de forma positiva o trabalho na colheita de cana-de-açúcar, fazem-no a partir de outro parâmetro, qual seja: suas atividades laborais anteriores, a exemplo de Cícero, 34 anos, 5ª série, oriundo de Princesa Isabel (PB), o qual encontramos em Novo Horizonte (SP), onde ele mora com a esposa, três filhos (7, 10 e 9 anos) e dois irmãos, sendo uma irmã (18 anos) e um irmão (20 anos). Para Cícero, o trabalho nos canaviais é a sorte. Em suas palavras, aqui é nossa sorte, que é pesado, sim; a gente encara porque precisa; e continua: imagine você, 11h30 - 12h, um calor sufocante e tendo que cortar, fazer ao menos vinte reais, sendo que 60% da cana é cana caída [cana de rolo]. Cícero chegou à cidade de Novo Horizonte em 2003, antes morou em Sorocaba (SP) de 2000 a 2002. No primeiro ano, morou em casa de um cunhado, trabalhando numa fábrica de tijolos, numa cerâmica de coluna de cimento. Diz que era pior e mais pesado do que as canas. Segundo ele, na fábrica, às 11 horas tinha que pegar a coluna com as mãos limpas para carregar o caminhão. Diz que era “muito, muito pesado”; e continua:
Eu ficava com a mão em sangue. Tinha placa [coluna] que pesava até 100 kg. Moço, se eu ficasse lá mais um ano, eu não saia de lá vivo, não. Tinha semana que eu não aguentava nem pegar num prato, e isto por R$ 450,00 reais. Pedi demissão, aí atrasou feira, atrasou tudo, voltei para casa [Princesa Isabel] passei 6 ou 8 meses, aí vazei para cá onde estou até hoje. Trabalhei três anos e meio na usina São José, só cortando cana. Depois saí da São José, eles estavam mandando gente embora, eu pedi um tempo, eles aceitaram, fiquei recebendo seguro desemprego. Em 2007 trabalhei para o fornecedor. Pretendo sair para lá [Princesa Isabel]. Vou ver se vai dar certo, mas tem que ver, são muitas passagens, talvez não tenha condições. (Cícero).
O conceito de experiência, forjado pelo historiador E. P. Thompson, ajuda-nos a compreender essa atitude dos trabalhadores-migrantes. Com efeito, para Thompson (1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981., p. 182), os homens e as mulheres tendem a experimentar “suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades, interesses e antagonismo. Em seguida tratam essa experiência em sua consciência e sua cultura”. Em outras palavras, eles elaboram seus sentimentos, suas maneiras de pensar e de agir a partir do seu universo cultural e de pertencimento (Silva; Menezes, 1999SILVA, M. A. M.; MENEZES, M. A. Migrantes temporários: fim dos narradores? NEHO-história, São Paulo, n. 1, p. 11-32, nov. 1999.).
Nesse sentido, a avaliação que fazem sobre o trabalho nos canaviais está impregnada não apenas por suas experiências laborais anteriores ou sua situação nos pequenos municípios dos estados de Paraíba e Pernambuco, mas também pelo valor que atribuem ao trabalho, pela relação valorativa entre ser homem, provedor e trabalhador. Tal qual os trabalhadores da construção civil, entrevistados por Borsoi (2010)BORSOI, I. C. F. Os sentidos do trabalho na construção civil: o “esforço alegre” sem a alegria do esforço. In: JACQUES, M. G.; CODO, W. (Org.). Saúde mental & trabalho: leituras. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 309-324., entre os trabalhadores nordestinos, que atuam na colheita de cana-de-açúcar, o trabalho é entendido como valor relacionado à identidade de gênero. Ser homem é ser, concomitantemente, bom trabalhador e provedor. Em outras palavras, para esses sujeitos:
O trabalho é entendido muito cedo como algo que exige força, disposição física, esforço. Foi esse o sentido que aprenderam desde a infância. E não só, o trabalho é sinônimo de sobrevivência, quase orgânico, naturalizado e, por isso, deve ser enfrentado e jamais temido, seja qual for a tarefa proposta/imposta (Borsoi, 2010BORSOI, I. C. F. Os sentidos do trabalho na construção civil: o “esforço alegre” sem a alegria do esforço. In: JACQUES, M. G.; CODO, W. (Org.). Saúde mental & trabalho: leituras. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 309-324., p. 311).
O cabra tem que trabalhar! Esta é uma expressão frequente utilizada pelos trabalhadores-migrantes. Dita por um e por outro, seu sentido, no entanto, é um só: o trabalho e o trabalho pesado fazem parte da vida, aliás, ele é condição para a própria vida. Sem trabalho, o cabra não vive, dizia João (trabalhador-migrante oriundo do município de Tavares); e, quando lhes indagávamos sobre o porquê da frase, complementava: a não ser que vá fazer besteira, viver à custa dos outros, roubar… Ser homem e homem direito, honesto, de caráter, confunde-se, portanto, com ser trabalhador. Daí a desconfiança em relação àqueles que, nos lugares de origem, ostentam riqueza que não está relacionada ao trabalho pesado.
Sarti (1996)SARTI, C. A. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: Autores Associados, 1996. aponta para a importância do valor do trabalho para a afirmação da identidade masculina entre os pobres. Para a autora, “o trabalho é muito mais do que o instrumento de sobrevivência material, mas constitui o substrato da identidade masculina, forjando um jeito de ser homem. É condição de sua autonomia moral, ou seja, da afirmação positiva de si” (Sarti, 1996SARTI, C. A. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: Autores Associados, 1996., p. 66).
É através do trabalho que o trabalhador-migrante se afirma, e isso duplamente: enquanto gente, boa gente, e enquanto homem. Mas a autora salienta, que, se a afirmação da virilidade passa pelo trabalho e pela disposição para trabalhar, estando por isso associada à noção de saúde, ela demanda também a existência de uma “família”, de modo que “a moral do homem, que tem força e disposição [saúde] para trabalhar, articula-se à moral do provedor que traz dinheiro para dentro de casa” (Sarti, 1996SARTI, C. A. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: Autores Associados, 1996., p. 72-73).
Aí reside a importância do trabalho, mesmo que penoso, para os trabalhadores-migrantes, uma vez que é por meio desse trabalho que eles conseguem se afirmar socialmente, bem como atenderem as expectativas sociais de seus grupos de origem.
Tendo interiorizado o trabalho como valor, mediante processo de socialização, os trabalhadores-migrantes, mesmo reconhecendo a penosidade do trabalho na colheita de cana-de-açúcar, tendem a julgar tal atividade tendo como referência o trabalho agrícola nos pequenos municípios das microrregiões de Princesa Isabel e do Sertão do Pajeú. Dessa avaliação, fica um saldo positivo para o trabalho na colheita de cana-de-açúcar, já que os dois tipos de trabalho são pesados, mas, ao contrário do roçado, trabalhar na cana “dá dinheiro”, abrindo-lhes as portas de acesso à renda ao possibilitar, no retorno, o acesso a bens e serviços.
Mais: o trabalho, inclusive por ser pesado, possibilita a afirmação de suas identidades de gênero, já que a imagem de homem, por eles interiorizada, é identificada à imagem do ser que “trabalha” e esta, por sua vez, é fonte de prestígio social no âmbito de suas redes de vizinhança e parentesco.
Mas, se por um lado, o trabalho nos canaviais, ao favorecer a inserção laboral desses trabalhadores dos sertões paraibano e pernambucano, tem contribuído para sua autoafirmação enquanto homens e provedores de seus grupos familiares; por outro lado, as condições e relações de trabalho nos canaviais do estado de São Paulo têm impactado corpos e mentes desses trabalhadores, marcando-os com o signo do adoecimento e acarretando inclusive a morte de muitos desses sujeitos. Como desabafou Dárcio (24 anos, trabalhador-migrante oriundo de Juru/PB), “a gente só vai porque precisa, aqui não tem outro jeito… Sabe quem vai, mas não sabe quem volta… Um ano que você corta cana equivale a dois anos de vida” (Dárcio).
A experiência dos riscos pelos trabalhadores-migrantes nordestinos
Os trabalhadores aqui em foco constituem, pois, um grupo social vulnerável, por estarem inseridos em condições e relações de trabalho marcadas pela penosidade, insalubridade e periculosidade. Importa salientar que sua inserção nos ambientes de trabalho das empresas do setor canavieiro - na função de cortadores de cana-de-açúcar - resulta dos processos de vulnerabilidade de seus espaços de vida nos pequenos municípios dos estados nordestinos, marcados como já exposto, pela dificuldade de acesso à terra, pela má qualidade dos solos, irregularidades das chuvas e ausência de políticas públicas de desenvolvimento orientadas efetivamente pela redução da pobreza.
Mesmo considerando o processo de formalização das relações de trabalho no âmbito das empresas canavieiras, processo que favoreceu uma significativa diminuição da informalidade no setor; e, ainda, os vários acordos firmados por empresas, sindicatos e Estado pela decência do trabalho, visando garantir patamares mínimos de dignidade aos trabalhadores, é importante não perder de vista que tais acordos nunca se efetivaram totalmente, funcionando na prática apenas para disseminar a imagem do etanol como combustível limpo produzido no bojo de condições e relações de trabalho decentes (Santos; Gurgel, 2013SANTOS, C. C. S.; GURGEL, I. G. D. Condições de trabalho na cana-de-açúcar: qual o nosso compromisso. In: CONGRESSO LATINOAMERICANO DE SOCIOLOGIA, 29., 2013, Santiago do Chile. Anais… Santiago: Acta Científica, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2fnNv2i >. Acesso em: 15 abr. 2016.
http://bit.ly/2fnNv2i... ).
O que se observa ao visitar a maior parte dos canaviais brasileiros é que, por trás das folhagens, a exploração do trabalho continua. As pausas para as refeições (almoço e lanche) não são respeitadas; os trabalhadores são incentivados a atingirem e mesmo ultrapassarem as médias de produtividades vigentes.
No desempenho de suas funções os trabalhadores estão expostos a vários riscos. A Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador classifica os riscos ocupacionais em três tipos, a saber: (1) Riscos ambientais: físicos, químicos e biológicos; (2) Situacionais: ergonômicos e psicossociais; (3) Humanos ou comportamental: mecânicos e de acidentes.
No que diz respeito aos riscos ambientais, a Norma Regulamentadora nº 9 (NR-9), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), assim reza: “consideram-se riscos ambientais os agentes físicos, químicos e biológicos existentes nos ambientes de trabalho que, em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador” (Brasil, 1994BRASIL. Ministério do Trabalho. Norma regulamentadora 9: riscos ambientais: Programa de Prevenção de Riscos Ambientais. Brasília, DF, 1994.).
A referida portaria considera agentes físicos “as diversas formas de energia a que possam estar expostos os trabalhadores, tais como: ruído, vibrações, pressões anormais, temperaturas extremas, radiações ionizantes etc.”. Já os agentes químicos seriam “substâncias, compostos ou produtos que possam penetrar no organismo pela via respiratória, nas formas de poeiras, fumos, névoas, neblinas, gases ou vapores, ou que possam ter contato ou ser absorvidos pelo organismo através da pele ou por ingestão”. Por fim, os agentes biológicos são “as bactérias, fungos, bacilos, parasitas, protozoários, vírus, entre outros” (Brasil, 1994BRASIL. Ministério do Trabalho. Norma regulamentadora 9: riscos ambientais: Programa de Prevenção de Riscos Ambientais. Brasília, DF, 1994.).
No que tange aos riscos situacionais, os agentes fazem referência tanto à postura irregular dos trabalhadores (riscos ergonômicos) quanto à fadiga e tensão relacionadas, dentre outras coisas, ao ritmo acelerado de trabalho (Chiodi; Marziale, 2006CHIODI, M. B.; MARZIALE, M. H. P. Riscos ocupacionais para trabalhadores de Unidades Básicas de Saúde: revisão bibliográfica. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 212-217, 2006.). Por fim, os riscos humanos ou comportamentais são inerentes a cada ambiente de trabalho, a exemplo de condições do piso ou iluminação inadequada (Silva; Zeitoune, 2009SILVA, M. K. D.; ZEITOUNE, R. C. G. Riscos ocupacionais em um setor de hemodiálise na perspectiva dos trabalhadores da equipe de enfermagem. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 279-286, 2009.).
Considerando especificamente o processo migratório aqui em questão, como também a atividade de colheita da cana-de-açúcar, podemos apontar os principais riscos a que os trabalhadores-migrantes estariam susceptíveis.
No desempenho de suas funções de cortadores de cana-de-açúcar, os trabalhadores-migrantes estão susceptíveis a riscos oriundos do ambiente do trabalho. São riscos físicos, decorrentes das altas temperaturas e da recorrente exposição aos raios ultravioletas. Há também os riscos provenientes da exposição à fuligem da cana, bem como aos agentes biológicos, como por exemplo, as picadas de cobras.
Existem, ainda, os riscos situacionais relacionados ao ritmo acelerado de trabalho. Além disso, a colheita da cana é uma atividade que demanda muitos movimentos corporais, tais como: abaixar-se, abraçar certa quantidade de cana, levantar e baixar o facão, carregar a cana-de-açúcar cortada até determinado lugar, organizando-as em montes para facilitar o trabalho das máquinas colhedeiras. Todo esse movimento repetitivo pode acarretar sérias sequelas físicas aos trabalhadores, tais como lesões por esforço repetitivo (LER) e outros problemas osteomusculares e osteoarticulares.
Há, por fim, os riscos de acidentes, tanto durante o percurso migratório (saída e retorno aos municípios de “origem”) quanto no próprio local de trabalho, já que, sendo remunerados por produção e trabalhando a céu aberto, os trabalhadores não podem monitorar de forma adequada o terreno no qual pisam.
De acordo com Lupton (1999)LUPTON, D. Risk. Canadá: Routledge, 1999., o risco tanto pode ser abordado a partir de uma perspectiva realista ou técnico-científica quanto mediante uma abordagem construcionista social. Nesse último caso, levam-se em consideração os aspectos sociais e culturais do risco, permitindo a sua desnaturalização. Trata-se de problematizar a noção de risco, considerando que sujeitos distintos tendem a perceber, vivenciar e dar sentidos distintos às situações de riscos.
Os trabalhadores-migrantes revelam ter consciência de grande parte dos riscos a que estão expostos na colheita de cana-de-açúcar. Assim é que o Sr. Damião (40 anos, casado, oriundo de Tavares) revela:
O perigo é cortar cana na palha, porque pode ter cobra, porque tem muita cobra. Mais não vi ninguém que morreu por picada de cobra, não. Tem sim [muita cobra], é porque tem lugar onde o fogo não passa… aí elas correm do fogo e ficam escondidas nas palhas [as cobras]. O cara acostuma com o medo dos bichos. Não disse que o cabra se acostuma com o que é ruim, né? O cara nem liga… eu não tinha medo não.
Em termos de doenças… tem aquele carvão que a gente respira. Aquilo ofende o cara com muito tempo depois que tá trabalhando. Eu tive foi uma pneumonia que eu peguei lá. Depois que eu cheguei aqui não senti mais nada não. (Damião).
O interlocutor faz menção aos riscos biológicos (pode ter cobra) e também aos riscos oriundos dos fatores químicos (o carvão que a gente respira). Para o Sr. Damião, com o fim das queimadas e com a introdução da colhedeira mecânica, os riscos biológicos tendem a aumentar uma vez que o corte da cana crua, isto é, sem ter passado pelo processo das queimadas, torna iminente o encontro do trabalhador com animais peçonhentos, especificamente, cobras. Por outro lado, quando a cana é queimada, os riscos biológicos diminuem; no entanto, aumentam os riscos provenientes dos fatores químicos (o carvão que é inalado). Roseiro e Takayanagui (2004ROSEIRO, M. N.; TAKAYANAGUI, A. M. M. Meio ambiente e poluição atmosférica: o caso da cana-de-açúcar. Revista Saúde, Santa Maria, v. 30, n. 1 e 2, p. 76-83, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.ecoa.org.br/arquivos/455009624.pdf > Acesso em: 15 abr. 2015.
http://www.ecoa.org.br/arquivos/45500962... , p. 80) escrevem que,
Este processo acaba interferindo diretamente na saúde da população, pois a combustão da palha da cana-de-açúcar libera poluentes e o principal dano é o prejuízo à qualidade do ar, e, consequentemente, da saúde, pela excessiva emissão de monóxido de carbono e ozônio, trazendo, também, danos ao solo, às plantas naturais e cultivadas, à fauna e à população.
Para Fabiano (30 anos, casado, residente no município de Santa Cruz da Baixa Verde/PE), trabalhar na colheita de cana-de-açúcar implica em correr riscos constantemente. Em suas palavras:
Com cinco dia que chego lá começou o trabalho. Sem tá fichado. É ruim, né. A gente corre o risco. A gente corre o risco de sofrer algum acidente, corte, né. Ser picado por cobra. O ruim é isso aí, de trabalhar sem ser fichado.
O que tá lá, trabalhando, tá se arriscando, né. E a família, além de tá aqui também, a gente não sabe o que precisa também né. Às vezes precisa de alguma coisa e a gente tá longe, num pode ajudar. Aí, tudo fica ruim. E trabalhar fora, a gente não arruma nada também não, a não ser doença, né. Porque ninguém nunca enricou com corte de cana. Sempre vai, sempre arruma só doença.
Esse trabalho pode trazer doença. Não só para mim, para todo mundo né. É muito perigoso isso aí. É muito veneno, você trabalha com muito veneno forte. Prejudica muito a saúde da pessoa. Só sei dizer que é muito perigoso. O pó da cana também pode prejudicar bastante coisa na pessoa. Sujeira no pulmão pode prejudicar até câncer, né. E aquele pó que você respira, aí fica dentro do pulmão, aí pode causar aquelas manchas pretas dentro. Principalmente, pode levar a morte, né.
Além dos riscos gerados pelos fatores químicos (venenos, sujeira da cana), Fabiano pontua, também, os riscos de acidentes, sinalizando para os cortes com o manuseio do facão (podão) ou até mesmo com a folha da cana quando é cortada crua. Esse tipo de acidente pode ser considerado frequente. Além dos cortes superficiais, há ocorrências de cortes mais profundos, que podem ocasionar lesões que acarretem a perda de membros ou incapacitações físicas. Na fala de Antônio (60 anos, casado, residente no município de Santa Cruz da Baixa Verde/PE), podemos identificar esse tipo de incidente quando ele menciona já haver se acidentado e até mesmo presenciado acidentes graves com o instrumento de trabalho.
Vi acidente de corte. Vi muito. A pessoa ficava sem os dedos, ou dos pés e das mãos. Eu ainda cheguei a me acidentar, ainda… Não, não foi grande o acidente. Mas ainda me acidentei. Eu fui amolar o facão, e o dedo e a mão escapuliu e cortou no facão. Fiquei parado só uns dias e pouco, uns três, quatro dias. Só foi esse acidente que sofri só, Graças a Deus!
Outro tipo de acidente comum nos canaviais são as quedas ou tombos, ocorridos pelas condições irregulares do terreno. Além de tomar o cuidado com a atividade de cortar a cana, os trabalhadores precisam estar atentos às condições do terreno sobre o qual trabalham. O acidente sofrido por Benedito (30 anos, casado, residente no município de Tavares/PB) na safra de 2007 o deixou impossibilitado de continuar trabalhando. Ao escorregar na palha da cana ele caiu com uma perna dentro de um buraco, lesionando a articulação do joelho e prejudicando os movimentos de sua perna.
Eu trabalhava na lavoura, cortando cana. Aí eu fui cortar cana na palha né, essa era na palha nesse dia. Aí eu caí num buraco de tatu, aí o jeito que caí, desci no buraco, aí eu digo “eita torceu o joelho” mas aí fiquei sentindo, isso eu trabalhei ainda um mês ainda desse jeito… Aí devido eu cair nesse buraco de tatu, aí deu uma torção no joelho. Torceu, aí eu fiquei lá né, ia nos médicos e eles ficavam lá só enrolando, a firma lá sem querer né, aí dizia isso aí apenas é só um desgaste. Não posso trabalhar, não posso, isso aqui eu não posso pegar peso, devido a perna que encurtou também.
Entendemos que o efeito social dos riscos é produzido independente da solidez das interpretações a partir de uma perspectiva científica (Beck, 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.). Os escritos do autor nos ajudam a pensar a construção dos riscos na Modernidade e como poderíamos enxergá-los quando analisamos essa construção no âmbito da vida e do trabalho dos cortadores de cana.
No discurso da Segurança do Trabalho podemos encontrar elementos e condutas que foram desenvolvidos com o objetivo de identificar e prevenir as situações individuais de risco vivenciadas por esses trabalhadores. Muitos são os EPI disponíveis no mercado que têm como função prevenir acidentes de trabalho, porém as dificuldades na adaptação dos equipamentos ao corpo podem influenciar diretamente na opção de uso desses equipamentos de proteção por parte dos trabalhadores. Porto (2012PORTO, M. F. S. Uma ecologia política dos riscos: princípios para integrarmos o local e o global na promoção da saúde e da justiça ambiental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012., p. 35) chama a atenção para o fato de que “uma análise contextualizada […] poderia revelar que muitas vezes os EPIs são ineficientes, custosos, extremamente desconfortáveis em ambientes quentes, ou ainda incompatíveis com as exigências de produtividade exigidas pela gerência”.
As empresas ainda fazem palestras e demonstrações sobre a importância da utilização desses equipamentos, enfatizando a responsabilidade do trabalhador no uso e na prevenção dos acidentes. Essa situação oferece aos empregadores e encarregados à possibilidade de abster-se da responsabilidade, uma vez que os regulamentos de segurança foram adotados, mas o uso inadequado dos equipamentos e condutas, ou a ausência deles, serão de responsabilidade dos trabalhadores, o que os tornam, por definição, também responsáveis pelos acidentes, incapacitações e, no limite, pela própria morte.
Por outro lado, quando voltamos o olhar para os riscos mais complexos, como aqueles relacionados ao controle das condições climáticas (chamados riscos ambientais), a inalação da fuligem da cana e dos agrotóxicos usados no plantio da cana (riscos químicos) podemos perceber que raramente esses riscos são mencionados pela Segurança do Trabalho.
Como já enfatizado ao longo deste artigo, os trabalhadores do setor canavieiro estão expostos a vários riscos no desempenho de suas atividades, o que os torna particularmente vulneráveis aos processos de adoecimentos. Silva (2014)SILVA, M. S. Trabalho e adoecimento de trabalhadores-migrantes nos canaviais do estado de São Paulo. In: MENEZES, M. A.; GOMES, R. A. (Org.). Modernização e transformações no mundo rural: trabalho, atores e experiências. João Pessoa: UFPB, 2014. p. 199-235. afirma que acidentes e adoecimentos fazem parte do cotidiano dos trabalhadores que atuam na colheita de cana-de-açúcar. Dentre os adoecimentos o autor chama a atenção para as câimbras, dores musculares, LER, além de infecções, febres, pneumonia etc.
Por retirar o indivíduo do espaço público, confinando-o no espaço privado, a doença representa, para os sujeitos masculinos, o questionamento de suas identidades de gênero. “Para o homem”, diz-nos Dejours (1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez, 1992., p. 33) “a doença corresponde sempre à vergonha de parar de trabalhar”.
Nardi (1998)NARDI, H. C. O ethos masculino e o adoecimento relacionado ao trabalho. In: DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (Org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 95-104. realça que a doença ou o acidente de trabalho retira o sujeito masculino do espaço público, confinando-o na esfera do privado (lugar do feminino no imaginário desses grupos sociais). Dessa forma, estar acidentado ou doente implica em sofrimento psíquico para o sujeito que tende, assim, a sentir-se envergonhado e culpado por não mais poder atender as demandas imbuídas no papel de trabalhador e provedor. Para os trabalhadores aqui em questão, há de se levar em conta, ainda, o medo de, estando acidentado ou doente, não conseguir se manter longe de casa, passando a viver da caridade dos companheiros de trabalho (Silva, 2014SILVA, M. S. Trabalho e adoecimento de trabalhadores-migrantes nos canaviais do estado de São Paulo. In: MENEZES, M. A.; GOMES, R. A. (Org.). Modernização e transformações no mundo rural: trabalho, atores e experiências. João Pessoa: UFPB, 2014. p. 199-235.).
Há que se fazer referência ainda aos mecanismos de exploração presentes nas empresas canavieiras, visando garantir os altos níveis de produtividades e que passa pela forma de pagamento - por produção - a qual tem sido apontada como causa do esgotamento dos trabalhadores (Guanais, 2011GUANAIS, J. B. Degeneração física, acidentes de trabalho e mortes: o nexo causal entre o pagamento por produção e o adoecimento dos cortadores de cana. Saúde Coletiva em Debate, Serra Talhada, v. 1, n. 1, p. 40-53, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2efuZ9O >. Acesso em: 15 abr. 2016.
http://bit.ly/2efuZ9O... ). Longe de suas famílias, esses sujeitos precisam garantir a sobrevivência no interior do estado de São Paulo, enviar mensalmente ajuda financeira para os membros da família que permaneceram nos estados nordestinos e, ainda, conseguir poupar recursos que possibilitem algum investimento - compra de gado, terreno, reforma de casas etc. - ao retornarem para seus locais de origem. É este contexto que explica o fato dos trabalhadores se esforçarem para atender as metas de produção estipuladas pelas empresas canavieiras, mesmo sabendo que tanto esforço pode levá-los ao adoecimento e mesmo à morte.
Aqueles trabalhadores que recusam se sacrificar no altar do progresso representado pelo setor canavieiro, e também aqueles que mesmo buscando não conseguem atender as exigências do setor, acabam sendo vistos como fracassados. Até recentemente era comum, no espaço do trabalho, os trabalhadores receberem títulos como “podão de ouro” (os trabalhadores mais produtivos) e “podão de borracha” (os menos produtivos). Estes frequentemente eram motivo de chacotas entre seus companheiros, além de serem desvalorizados por fiscais e recrutadores de turma e terem seus nomes inscritos nas listas negras das usinas, marcados pela “pouca produção” para serem descartados nas safras futuras.
Atualmente, dado o avanço da mecanização da colheita de cana, as usinas podem selecionar os trabalhadores mais produtivos para a realização do trabalho manual. No entanto, como atesta o trabalho de Rocha (2007)ROCHA, F. L. R. Análise dos fatores de risco do corte manual e mecanizado da cana-de-açúcar no Brasil segundo o referencial da Promoção da Saúde. 2007. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007., mesmo no âmbito do trabalho mecanizado a exploração tem se intensificado.
Quanto aos ex-cortadores de cana que foram e continuam sendo substituídos pelas máquinas, eles vêm ocupando outros setores produtivos, a exemplo da construção civil, no qual a penosidade, periculosidade e insalubridade do trabalho não deixam a desejar para o corte de cana-de-açúcar. Há uma dificuldade, por parte desses sujeitos, de acessarem postos de trabalhos decentes em consequência, principalmente de seus baixos níveis de instrução escolar (Menezes; Silva; Cover, 2011MENEZES, M. A.; SILVA, M. S.; COVER, M. Os impactos da mecanização da colheita da cana-de-açúcar sobre os trabalhadores migrantes. Revista Ideias, Campinas, v. 2, n. 1, p. 60-87, 2011.).
Considerações finais
Diante do exposto neste artigo, fica claro que os trabalhadores-migrantes do setor sucroalcooleiro estão constantemente expostos a fatores de risco que podem vir a desencadear ou desenvolver, em algum momento da sua vida, as mais variadas patologias. No decorrer do trabalho foi possível entender que os trabalhadores-migrantes nomeiam e reconhecem os eventos considerados arriscados no corte de cana, sendo a noção de risco fortemente marcada e organizada pelo discurso da Saúde e da Segurança do Trabalho, que ancorado nesse conhecimento determinam quais as condutas saudáveis, seguras e corretas que os cortadores devem seguir.
Os dados permitem-nos afirmar ainda a existência de uma relação intrínseca entre os riscos que se corre e a afirmação da identidade de gênero dos sujeitos investigados. Foi possível identificar que há uma relação valorativa entre ser homem, provedor e trabalhador e que é através do trabalho, mesmo este sendo desgastante e perigoso, que é afirmada a identidade masculina. Essa autoafirmação de virilidade passa pelo trabalho e pela disposição para trabalhar, estando por isso associada à noção de saúde. Além disso, essa representação está intimamente ligada à existência de uma “família” que demanda o sustento por parte desse trabalhador.
É mister enfatizar que a vulnerabilidade social dos trabalhadores-migrantes os tornam também vulneráveis em seus ambientes de trabalho nas usinas canavieiras, expondo-os aos riscos e adoecimentos. Uma vez acidentados ou doentes, tais trabalhadores passam a questionar suas próprias identidades de gênero, já que acidentes ou doenças os retiram do lugar ocupado por aquele que trabalha e, que por isso, podem prover a si próprio e ao seu grupo familiar. Ser homem acidentado, doente, remete a ser incapacitado, marginalizado, motivando a culpa pela situação enfrentada e que tende a ser vivenciada sob o signo do sofrimento psíquico. Impedir que esse sofrimento se prolifere implica em nos engajarmos na luta por condições e ambientes de trabalho saudáveis e decentes. Eis aqui o desafio dos que estão no campo da atual saúde do trabalhador.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
- Recebido
31 Jan 2015 - Revisado
20 Maio 2016 - Aceito
26 Set 2016