Saúde e Sociedade: um espaço aberto à reflexão e à expressão de perspectivas críticas no diálogo entre as ciências sociais e humanas e a saúde pública/saúde coletiva

Eunice Nakamura Aurea Ianni

Este editorial especial destaca dois fatos que concorreram para a consolidação e o reconhecimento da Saúde e Sociedade como uma revista que tem viabilizado o diálogo entre as ciências sociais e humanas e a saúde pública/saúde coletiva: seus 25 anos de contribuição à divulgação de conhecimentos produzidos nesse diálogo e a afirmação de sua linha editorial.

A Saúde e Sociedade ocupa, hoje, o quarto lugar entre as publicações em língua portuguesa do campo da Saúde Coletiva e o nono lugar entre as mais citadas, segundo o ranking de 2016 do Google Acadêmico. O lugar de destaque assumido pela revista no campo da saúde pública/saúde coletiva nesses 25 anos indica alguns acertos e aponta perspectivas futuras aos caminhos até então percorridos. Nesse sentido, em que pesem os principais desafios colocados à editoria científica da revista e as questões para consolidação de sua linha editorial, chama atenção a “ampliação do seu alcance na produção de conhecimento científico reflexivo e crítico sobre os mais variados temas e objetos do campo da saúde pública e coletiva, sob a inspiração dos olhares das ciências sociais e humanas” (Ianni; Nakamura, 2015IANNI, A.; NAKAMURA, E. Editorial. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 7, 2015., p. 7).

A Saúde e Sociedade procurou manter nesses anos a divulgação de uma produção reflexiva e crítica em consonância com as mudanças históricas, socioculturais e políticas não apenas na área da saúde, mas também em outras a ela relacionadas. Desde a sua origem, a revista vem acompanhando e atualizando o pensamento reflexivo e crítico produzido tanto por profissionais da academia como por gestores e trabalhadores da saúde e de outros setores das políticas públicas. Particularmente na área da saúde, os artigos publicados após a implantação do SUS expressam o percurso da produção do conhecimento segundo os caminhos e descaminhos da prática, permanecendo, nos dias atuais, na defesa da abordagem das questões relativas à afirmação do direito universal à saúde e ao reconhecimento do direito às diversidades.

Em artigos publicados mais recentemente destaca-se, assim, a retomada de temas “tradicionais” do campo da saúde pública/saúde coletiva, concomitantemente à necessidade de compreensão de temas relacionados a mudanças socioculturais e políticas observadas nas sociedades contemporâneas. No entrecruzamento de desafios e de possibilidades de reflexão crítica de velhos e novos temas destacam-se artigos que têm abordado questões mais amplas sobre o papel do Estado, financiamento, política, gestão e participação social, cuidado e acesso aos serviços de saúde, ao lado de temas específicos relativos às políticas de saúde mental, saúde ambiental, saúde do trabalhador, saúde bucal, situações de violência, atravessadas por questões relativas às experiências socioculturais de classe, gênero e sexualidade, geração, raça/etnia, dentre outros marcadores sociais. Evidenciam-se nessas abordagens os desafios à reflexão da/na saúde pública/saúde coletiva, reforçando assim a importância do diálogo e da aproximação com referenciais teórico-conceituais e metodológicos das ciências sociais e humanas.

Esses temas, recorrentes nos últimos anos, parecem expressar algumas inquietações do debate acadêmico e político no campo da saúde pública/saúde coletiva. A primeira delas parece estar relacionada à questão da fragilidade da consolidação dos princípios da universalidade e da igualdade de direitos em contextos de desigualdade e diversidade. A segunda refere-se à complexidade da consolidação do direito à diversidade nesses contextos, principalmente quando se considera a interseccionalidade de diferentes marcadores sociais. Finalmente, uma terceira inquietação, nesse debate, emerge mais fortemente no atual momento político de ameaças e incertezas em relação aos direitos sociais, colocando em questão a relação Estado-Sociedade, mais especificamente o papel do Estado nas políticas públicas de direitos, em particular do direito à saúde.

Do diálogo com as ciências sociais e humanas parecem abrir-se novas perspectivas de compreensão das duas primeiras inquietações apontadas, na medida em que se torna possível refletir sobre os dilemas da (in)justiça social e cultural - especialmente no período que alguns autores denominam como “pós-socialista” - a partir de conceitos como “reconhecimento” (das diferenças culturais) e “redistribuição” (diante das desigualdades socioeconômicas) (Fraser, 2006FRASER, N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 15, n. 14/15, p. 231-239, 2006. ), considerada a perspectiva dialética existente entre esses conceitos. Não se trata, pois, de contrapor possibilidades de direitos universais ou particulares, mas de considera-los em sua complexidade, desvelando “as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação”, conforme proposto no conceito de interseccionalidade (Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento pra o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. , p.177). Nesse sentido, no que se refere ao direito universal à saúde, deve-se refletir também sobre os direitos (ou não direitos) socioeconômicos e culturais quando se considera homens/mulheres, negros/negras, jovens/idosos e pobres. Colocar em debate o reconhecimento dos direitos desses grupos em relação a questões da área da saúde é o caminho para afirmar a possível universalidade do direito à saúde, ao mesmo tempo em que se aproximam as reflexões críticas tanto do campo da saúde pública/saúde coletiva como das ciências sociais e humanas, expressando nossas inquietações comuns.

Fundamentados nessas inquietações, a proximidade e o diálogo entre essas áreas do conhecimento assumem maior relevância, principalmente no tocante à terceira inquietação, relativa ao papel do Estado. Não se trata aqui apenas da possível contribuição de referenciais teórico-conceituais e metodológicos das ciências sociais e humanas para a compreensão do momento atual de incertezas em relação aos rumos dos direitos sociais - em particular, das ameaças ao SUS e ao direito à saúde. Pelo contrário, o diálogo se concretiza na indignação expressada em discursos de diferentes sujeitos políticos - da saúde e das ciências sociais e humanas -, cuja publicização amplificada talvez possa contribuir para evitar o que Amélia Cohn apontou como “o desmonte da essência do SUS, do que o moveu e o segue movendo: o ideário da justiça social, do direito à saúde, da equidade, e do seu caráter civilizatório” (Cohn, 2016COHN, A. A ofensiva raivosa no desmonte do SUS. Plataforma Política Social, [s.l. ], artigo 17, 11 jun. 2016. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2fsAbnR >. Acesso em: 28 out. 2016.
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).

Espera-se, portanto, que tais inquietações, longe de imobilizar o pensamento reflexivo e crítico, inspirem o movimento em busca de respostas, de novas possibilidades explicativas e de atuação política, apontando algumas “direções a (per)seguir” (Ianni; Nakamura, 2016IANNI, A.; NAKAMURA, E. 25 anos de Saúde e Sociedade: qual o lugar das ciências sociais e humanas no campo da Saúde Pública/Coletiva no Brasil? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 7-8, 2016., p. 8). Nesse sentido, a Saúde e Sociedade pretende contribuir para a afirmação e estímulo desse diálogo.

Eunice NakamuraAurea Ianni

Referências

  • COHN, A. A ofensiva raivosa no desmonte do SUS. Plataforma Política Social, [s.l. ], artigo 17, 11 jun. 2016. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2fsAbnR >. Acesso em: 28 out. 2016.
    » http://bit.ly/2fsAbnR
  • CRENSHAW, K. Documento pra o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.
  • FRASER, N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 15, n. 14/15, p. 231-239, 2006.
  • IANNI, A.; NAKAMURA, E. Editorial. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 7, 2015.
  • IANNI, A.; NAKAMURA, E. 25 anos de Saúde e Sociedade: qual o lugar das ciências sociais e humanas no campo da Saúde Pública/Coletiva no Brasil? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 7-8, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br