Resumo
Este artigo analisa a produção bibliográfica sobre a temática de gênero, masculinidades e saúde publicada na revista Saúde e Sociedade. O método se constituiu de uma revisão bibliográfica de narrativa, de caráter qualitativo, que abrangeu a busca segundo os descritores “gênero” e “masculinidades” em todos os números da revista disponibilizados no sistema Scielo. Foram selecionados 49 resumos de trabalhos para análise descritiva; entre esses, foram analisados em profundidade treze artigos que apresentavam enfoque em homens e mulheres ou que utilizavam apenas homens como sujeitos de análise. A análise narrativa dos artigos e o cotejamento com temas, objetos e perspectivas conceituais do campo da saúde coletiva apontam para a expansão da área de investigação em gênero, masculinidade e saúde, mas também para o caráter incipiente das abordagens conceituais, especialmente quanto à interseccionalidade de gênero e outros marcadores sociais da diferença, como classe social, geração e sexualidade. Esta revisão crítica mostra uma área de pesquisa em expansão, em termos de suas potencialidades e fragilidades.
Palavras-chave:
Literatura de Revisão; Pesquisa Qualitativa; Gênero e Saúde; Masculinidades
Introdução
As pesquisas de gênero em saúde constituem um complexo e relacional campo com grandes possibilidades de desenvolvimento. Complexo, pois engloba temas (de saúde, adoecimento e cuidado) que tanto podem ser abordados no interior dos campos da saúde e das ciências humanas e sociais, independentemente, como de uma perspectiva de aproximação e colaboração entre eles. Relacional, e com grandes possibilidades de desenvolvimento, na medida em que diferentes questões têm sido discutidas, perpassando os processos de adoecimento e morte, os modos de assistência e cuidado em saúde, as formulações em termos de políticas sociais voltadas a populações de homens e mulheres e, ainda, a formação de profissionais para atuação em saúde.
Originalmente, a aplicação da perspectiva de gênero em pesquisas no campo da saúde ocorreu em temas da saúde reprodutiva e, em especial, em investigações que privilegiavam o polo feminino (morte materna, cesariana, aleitamento, câncer de colo uterino e de mama etc.). Nas últimas duas décadas, estudos passam a revisitar temas que antes eram considerados sob a perspectiva das mulheres (aborto e decisão sobre via de parto) e voltam a atenção para temas que requerem uma abordagem relacional de gênero (polo masculino e polo feminino), como violência, anticoncepção, doenças sexualmente transmissíveis e HIV/aids. Tal configuração se deve, em parte, ao fato de a categoria “gênero” ter emergido do campo da reflexão feminista, que, tendo inicialmente voltado a atenção para as mulheres, passou paulatinamente a incorporar o polo masculino nas investigações (Couto; Schraiber, 2005COUTO, M. T.; SCHRAIBER, L. B. Homens, saúde e violência: novas questões de gênero no campo da saúde coletiva. In: MINAYO, M. C. S.; COIMBRA JR., C. E. A. (Org.). Críticas e atuantes: Ciências Sociais e Humanas em Saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 687-706.).
No Brasil, a penetração da perspectiva de gênero na saúde e, em particular, no campo da saúde coletiva, tem acompanhado os desdobramentos internacionais, em termos do crescimento do número de publicações, sobretudo a partir dos anos 2000 (Araújo; Schraiber; Cohen, 2011ARAÚJO, M. F.; SCHRAIBER, L. B.; COHEN, D. D. Penetração da perspectiva de gênero e análise crítica do desenvolvimento do conceito na produção científica da saúde coletiva. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 15, n. 38, p. 805-818, 2011.) e dos debates teórico metodológicos. Publicações voltadas ao levantamento e à revisão da produção nacional (Aquino, 2006AQUINO, E. M. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 121-132, 2006. Edição especial.; Vilella; Monteiro; Vargas, 2009VILELLA, W.; MONTEIRO, S.; VARGAS, E. A incorporação de novos temas e saberes nos estudos em saúde coletiva: o caso do uso da categoria gênero. Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 997-1006, 2009.; Araújo; Schraiber; Cohen, 2011ARAÚJO, M. F.; SCHRAIBER, L. B.; COHEN, D. D. Penetração da perspectiva de gênero e análise crítica do desenvolvimento do conceito na produção científica da saúde coletiva. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 15, n. 38, p. 805-818, 2011.) destacam as principais temáticas que incorporam a perspectiva de gênero - sexualidade, reprodução, agravos à saúde, violência de gênero e suas variações, trabalho e masculinidades, além de outros temas emergentes ou pouco explorados, como envelhecimento e saúde mental. Em termos das subáreas da saúde coletiva - ciências humanas e sociais, epidemiologia e políticas, planejamento e avaliação -, a última delas é a que menos incorporou a abordagem de gênero nas pesquisas (Aquino, 2006AQUINO, E. M. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 121-132, 2006. Edição especial.).
Seguindo a revisão internacional de Hammarström et al. (2014HAMMARSTRÖM, A. et al. Central gender theoretical concepts in health research: the state of the art. Journal of Epidemiology & Community Health, London, v. 68, n. 2, p. 185-190, 2014.), essas autoras sublinham que, a despeito da crescente incorporação do termo nas pesquisas no campo da saúde, especialmente na saúde coletiva, as reflexões teóricas e epistemológicas ainda são escassas e incipientes. Adicionalmente, tratando de abordagens interseccionais de gênero e outros marcadores sociais (classe, raça/cor, sexualidade, geração), elas alertam para a dificuldade de incorporação desse referencial mesmo nos estudos que se situam na área de gênero e saúde, o que demonstra que a interseccionalidade se constitui como tendência muito recente, mas ainda pouco explorada. A reflexão de Aquino (2006AQUINO, E. M. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 121-132, 2006. Edição especial.) aponta que o uso da transversalidade de gênero é, ao mesmo tempo, desafio e potência. A perspectiva de gênero oferece amplas possibilidades de enriquecimento da reflexão teórica em saúde e, sobremaneira, na saúde coletiva. Gênero, portanto, “deve se somar a outros esforços intelectuais e políticos para a compreensão da saúde-doença e de seus determinantes na luta contra as desigualdades e pela justiça social” (Aquino, 2006AQUINO, E. M. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 121-132, 2006. Edição especial., p. 128).
Ao focalizarmos o debate acerca da relação entre homens e saúde desde as perspectivas de gênero e masculinidades, vemos que há cerca de quarenta anos surgiram nos Estados Unidos os primeiros estudos sobre o tema, focalizando principalmente déficits de saúde de segmentos masculinos. As pesquisas inicialmente se debruçaram na investigação e resposta ao paradoxo de que, ao mesmo tempo que os homens detinham maior poder que as mulheres, eles tinham desvantagens em relação a elas no que se refere às taxas de morbimortalidade (Gomes; Nascimento, 2006GOMES, R.; NASCIMENTO, E. F. Produção do conhecimento sobre a relação homem saúde: uma revisão bibliográfica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 901-911, 2006.; Couto; Gomes, 2012COUTO, M. T.; GOMES, R. Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2569-2578, 2012.). Esse paradoxo, entre outras ideias, impulsionou, a partir da década de 1990, pesquisadores a focalizar os homens não apenas como organismos do sexo masculino nos estudos do campo da saúde, mas também no âmbito de suas singularidades de sujeitos sociais no processo saúde-doença, baseados numa perspectiva relacional de gênero. Em síntese, em sua recente história, vemos que em alguns momentos o debate sobre a relação entre homens e saúde se distanciou daquele que se constituiu como primado original dos estudos de gênero (foco nas desigualdades das mulheres em relação aos homens), devido ao caráter de autonomia que parte dos pesquisadores buscou constituir na área de men’s studies. Em outros momentos, no entanto, esse debate ajudou a relativizar algumas reduções dos estudos de gênero exclusivamente voltados às mulheres.
Ajustando o olhar para a particularização do modo como a abordagem de gênero penetrou no campo da saúde e na interface entre ciências sociais e saúde, bem como projetou temas, objetos e hipóteses de pesquisa, especialmente voltada à relação entre homens e saúde, este artigo realiza uma revisão narrativa da produção veiculada pela revista Saúde e Sociedade.
Aspectos metodológicos
Para levantamento dos artigos publicados pela revista Saúde e Sociedade foi utilizada a Scientific Electronic Library Online (SciELO), que disponibiliza números do periódico desde o seu primeiro volume, de 1992, além de permitir acesso gratuito e na íntegra aos artigos. Diante do escopo da revista, que divulga a produção científica das diferentes áreas do saber, sobre práticas de saúde, visando ao desenvolvimento interdisciplinar do campo da saúde pública, elegemos para a busca bibliográfica os descritores “gênero” e “masculinidades”. A partir dessa busca, realizada em junho de 2016, encontramos 66 artigos completos. Para a seleção final dos artigos, utilizamos os seguintes critérios de inclusão: os artigos deveriam ter sido publicados no periódico Saúde e Sociedade e apresentar categorias analíticas ou conceituais sob a perspectiva de gênero e/ou masculinidades. Os artigos que apareceram mais de uma vez nos resultados da busca só foram considerados uma vez. Na etapa seguinte, realizou-se a leitura dos títulos e resumos dos 66 trabalhos e, baseando-nos nos critérios de inclusão mencionados, efetuaram-se triagem e seleção de 49 trabalhos para análise descritiva. Em seguida, realizaram-se a caracterização do conjunto da produção e a análise descritiva, que possibilitaram a visualização do conjunto dos artigos segundo: autor(es); ano; gênero como variável; gênero como categoria de análise central; estudos com enfoque em homens e mulheres como sujeitos de análise; estudos com homens como sujeitos de análise; estudos com mulheres como sujeitos de análise; estudo empírico, teórico ou revisão de literatura; estudos interseccionais. A partir dessa caracterização foram selecionados para leitura integral os treze artigos que apresentavam enfoque em homens e mulheres ou trabalhavam apenas com homens como sujeitos de análise. Objetivou-se com essa leitura conhecer a natureza do método e a análise crítica utilizados no estudo e verificar a especificidade de aporte teórico acerca das categorias analíticas “gênero” e “masculinidades”. Na etapa seguinte, realizaram-se análise qualitativa das temáticas e abordagens conceituais desses treze artigos. Assim, a análise buscou apreender o conteúdo geral e identificar a abordagem conceitual utilizada pelos autores, reconhecer as ideias centrais e as perspectivas teóricas em núcleos de sentido, comparar os diferentes núcleos de sentido presentes nos textos analisados, bem como classificar e interpretar os núcleos de sentido em eixos de análise mais abrangentes e realizar sínteses interpretativas a partir dos núcleos de sentido mais recorrentes nos estudos (Minayo, 2008MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2008.).
A produção em masculinidades e saúde em revista
Conforme assinalado, foram selecionados para análise descritiva dos resumos 49 artigos que traziam gênero e/ou masculinidades como categorias de análise. Observa-se que a distribuição da publicação de artigos com a temática de gênero foi irregular, com maior número a partir do ano de 2007, sendo que houve impulsos nos anos de 2008 e 2011, dos quais é originado maior número de artigos. Além disso, é importante destacar que a primeira publicação encontrada com as categorias “gênero” e/ou “masculinidades” ocorreu em 1997, apesar de o periódico Saúde e Sociedade ter publicado sua primeira edição em 1992.Até 2003 o periódico publicava apenas dois números por ano; entre 2004 e 2007, foram publicados três por ano; e, desde 2008, quatro por ano. Além disso, percebeu-se que nos números de 2008, 2010, 2011 e 2013 houve publicações especiais, com estudos voltados à área da saúde coletiva e às ciências humanas e sociais, o que pode explicar os maiores números de artigos sobre gênero e masculinidades nesses anos. Em 2008, ocorreu a publicação dos artigos temáticos “Gênero, corpo e conhecimento”, bem como de um número com a temática “violência no campo da saúde pública”. Em publicação de 2010 houve número relacionado a HIV/aids e negritude. O primeiro número de 2011 apresentou artigos originados do II Encontro Paulista de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, e outro número de 2011 apresentou bloco de quatro artigos que tratam da transversalidade entre gênero e saúde pública. Em 2013 houve publicação de número com artigos referentes às interfaces entre as ciências sociais e a saúde pública/coletiva, com destaque às questões de gênero.
A organização e publicação de números com temáticas relacionadas a gênero parece refletir uma resposta do corpo editorial a demandas da área da saúde por temas até então pouco valorizados nas publicações da área de saúde pública, contribuindo fortemente para a difusão de novas perspectivas, conceitos e abordagens. Entre os 49 resumos analisados nessa fase, 40 apresentavam gênero como variável de análise e 39 apresentavam gênero como categoria analítica central, encontrando-se 30 resumos com gênero tanto como categoria analítica central quanto como variável de análise. A partir desses dados, percebe-se que o gênero começa a ser seriamente apreendido conceitualmente, expressando e questionando as relações socio-históricas e as formas de existência da realidade social a partir dessa categoria. Observou-se ainda que prevalecem os estudos de gênero que tratam especificamente das mulheres. Dos 49 estudos, 10 possuíam homens e mulheres como sujeitos de pesquisa, 4 trabalhavam apenas com homens e 17 enfocavam as mulheres como sujeitos. 18 estudos eram teóricos ou revisões de literatura com temáticas de gênero ou masculinidades, ou apresentavam terceiros (operadores sociais e profissionais da saúde) como sujeitos para tratar das temáticas de gênero ou masculinidades. Como já apontado, considera-se que a perspectiva de gênero vem ganhando reconhecimento e legitimação, estando presente como ferramenta teórico-metodológica e política para problematizar e intervir sobre processos que instituem e sustentam desigualdades entre homens e mulheres. Esse processo de institucionalização de perspectivas de gênero resultou, de forma multifacetada, rivalizada e negociada, com o feminismo e a partir dele e dos movimentos de mulheres, discutindo as desigualdades de gênero e as opressões sofridas pelas mulheres. No entanto, apesar de as lutas feministas serem legítimas e terem possibilitado o reconhecimento das necessidades e direitos desse grupo, a ênfase que foi dada sobre a mulher no início dos estudos de gênero pode ter dificultado que as desigualdades de gênero fossem olhadas mais amplamente, que as situações de desigualdade que os homens sofrem também fossem trabalhadas e que os homens não fossem considerados apenas quando em prol das mulheres (Meyer, 2004MEYER, D. E. Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e desafios atuais. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 57, n. 1, p. 13-18, 2004.; Arilha, 2010ARILHA, M. Nações Unidas, população e gênero: homens em perspectiva. Jundiaí: In House, 2010.). Couto e Gomes (2012COUTO, M. T.; GOMES, R. Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2569-2578, 2012.) afirmam que esse enfoque em estudos relativos a homens e masculinidades apenas ganharam alguma visibilidade nas abordagens de gênero nas últimas duas décadas no país, o que parece estar refletido nos estudos deste periódico.Com relação ao tipo de estudo, observa-se preponderância de estudos empíricos - 36 artigos baseados no plano de experiências práticas de pesquisas, com diferentes metodologias; 10 artigos teóricos; e 3 revisões de literatura. É possível perceber a prevalência de estudos empíricos, diante da produção teórica e epistemológica, que visa à compreensão não apenas de como as relações de gênero afetam a saúde, mas também problematizando o uso do conceito de gênero como produtor de conhecimento científico em saúde, buscando uma nova forma de olhar o assunto.
Outro ponto a ser questionado é a produção a respeito do planejamento e das políticas de saúde com enfoque em gênero, havendo três estudos sobre avaliação de políticas: “Políticas de saúde materna no Brasil: os nexos com indicadores de saúde materno-infantil” (Santos Neto et al., 2008SANTOS NETO, E. T. et al. Políticas de saúde materna no Brasil: os nexos com indicadores de saúde materno-infantil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 107-119, 2008.), “Uma análise das políticas de enfrentamento ao HIV/aids na perspectiva da interseccionalidade de raça e gênero” (López, 2011LÓPEZ, L. C. Uma análise das políticas de enfrentamento ao HIV/Aids na perspectiva da interseccionalidade de raça e gênero. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 3, p. 590-603, 2011.) e “Saúde do homem e masculinidades na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: uma revisão bibliográfica” (Separavich; Canesqui, 2013SEPARAVICH, M. A.; CANESQUI, A. M. Saúde do homem e masculinidades na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: uma revisão bibliográfica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 415-428, 2013.). Podemos nos questionar sobre quanto esse possível afastamento da perspectiva de gênero dos estudos teóricos e políticos em direção a uma abordagem das práticas em saúde pode contribuir para uma lacuna em relação ao exercício crítico e à produção de conhecimentos que possam instrumentalizar essas práticas. Além disso, percebe-se a necessidade de ampliar a articulação da categoria de gênero a outras como raça/etnia, classe social e geração. Observou-se a presença de 16 (32%) estudos que utilizavam a interseccionalidade de categorias. O gênero, enquanto marcador que posiciona os indivíduos nas relações de poder e é conformado em associação com marcadores de classe e raça/etnia, opera mecanismos que delimitam experiências particulares de adoecimento e cuidado em saúde, bem como de acesso a recursos de saúde e de uso de serviços. Percebe-se que a interseccionalidade tem ganhado espaço nos estudos em saúde coletiva; gênero, geração, raça/etnia e classe estão sendo consideradas por oferecerem amplas possibilidades de enriquecimento da reflexão teórica nesse campo, podendo se somar para a compreensão de mecanismos que delimitam experiências particulares de adoecimento e cuidado em saúde, bem como de acesso a recursos de saúde e de uso de serviços. Percebe-se, a partir da análise qualitativa dos treze artigos analisados em profundidade, que os temas podem ser reunidos em cinco subgrupos: reprodução e contracepção; saúde do trabalhador; violência de gênero; sexualidade e saúde, com ênfase nas DST/aids; e envelhecimento. Entre os treze artigos analisados profundamente, encontraram-se três que trabalham a relação entre gênero e saúde do trabalhador. Nessa temática, encontraram-se dois estudos qualitativos e um quantitativo, de cunho epidemiológico.
No artigo “Engendrando gênero na compreensão das lesões por esforços repetitivos” (Oliveira; Barreto, 1997OLIVEIRA, E. M.; BARRETO, M. Engendrando gênero na compreensão das lesões por esforços repetitivos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 77-99, 1997.), a partir de reflexão construída com base no atendimento às trabalhadoras e aos trabalhadores que portam lesões por esforço repetitivo (LER), as autoras utilizam a categoria gênero para compreender os diferentes impactos que as LER podem ter sobre a saúde e a vida de maneira geral de trabalhadores mulheres e homens. O artigo de Llorca Rubio e Gil-Monte (2013LLORCA-RUBIO, J. L.; GIL-MONTE, P. R. Occupational risks prevention and their relationships to workers’ gender. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 727-735, 2013.), quantitativo, também utilizando sujeitos de ambos os sexos, analisou as diferenças na gestão preventiva de riscos em empresas segundo o gênero dos trabalhadores; os autores defendem a existência de uma discriminação negativa em relação às trabalhadoras, que são desfavorecidas com respeito à prevenção, apesar de constituírem 45% da força de trabalho na Espanha. Outro estudo com enfoque em gênero e trabalho é “Representações de trabalhadores portuários de Santos-SP sobre a relação trabalho saúde” (Machin; Couto; Rossi, 2009MACHIN, R.; COUTO, M. T.; ROSSI, C. C. S. Representações de trabalhadores portuários de Santos SP sobre a relação trabalho saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 4, p. 639-651, 2009.), que analisou as representações de trabalhadores portuários de Santos acerca das mudanças no processo e nas condições do trabalho e da relação trabalho saúde a partir da perspectiva de gênero e das masculinidades. Em ambiente de trabalho majoritariamente masculino, com a análise sobre as vivências da masculinidade dos entrevistados na relação com o trabalho portuário e seus significados e consequências para a saúde e o cuidado, as autoras trazem questionamento sobre a dimensão da masculinidade hegemônica entre portuários como potencializadora da exposição dos trabalhadores a riscos de adoecimento.
Nos três trabalhos vê-se em comum a defesa do emprego da perspectiva de gênero para a compreensão de questões da dinâmica do trabalho, de suas prescrições e de como elas afetam a saúde do trabalhador, pautando-se nas relações sociais e em seus contextos para construção de inferências. Além disso, com estudos relacionais de gênero, os autores problematizam a identificação do ambiente de trabalho masculino como universal, apontando estereótipos de masculinidade e feminilidade incorporados à lógica dominante da divisão sexual do trabalho anteriormente construída e latente entre os sujeitos. Entre os estudos analisados em profundidade, percebe-se que todos aqueles que tratam de adolescentes se voltam aos temas da sexualidade, com ênfase na contracepção e prevenção de diversas DST e de aids. No ensaio etnográfico “A ‘fiel’, a ‘amante’ e o ‘jovem macho sedutor’: sujeitos de gênero na periferia racializada” (Pinho, 2007PINHO, O. A “fiel”, a “amante” e o “jovem macho sedutor”: sujeitos de gênero na periferia racializada. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 133-145, 2007.), por meio de grupos focais e entrevistas, o autor buscou compreender os efeitos estruturantes da modernização sobre as práticas relacionais de gênero e raça entre jovens moradores do loteamento popular Jardim Catarina, na região metropolitana do Rio de Janeiro. O autor apresenta a experiência da juventude do Jardim Catarina e as condições objetivas para a (re)produção das desigualdades de gênero e violência, elaborando questões importantes para reflexão sobre políticas adequadas para esse grupo geracional. O artigo de Sampaio et al. (2011SAMPAIO, J. et al. Ele não quer com camisinha e eu quero me prevenir: exposição de adolescentes do sexo feminino às DST/Aids no semiárido nordestino. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 171-181, 2011.), “Ele não quer com camisinha e eu quero me prevenir: exposição de adolescentes do sexo feminino às DST/aids no semiárido nordestino”, buscou analisar a exposição de adolescentes de ambos os sexos às DST e à aids no semiárido nordestino. As autoras enfatizam a importância das iniquidades de gênero, assim como a organização e o modo de funcionamento dos serviços de saúde sobre a efetivação de práticas de prevenção das DST e da aids entre adolescentes. É trazida crítica às práticas normatizadoras, que inviabilizam o diálogo com as adolescentes e seu acesso ao preservativo, ao planejamento reprodutivo e à assistência à saúde sexual. Argumenta-se que as iniquidades de gênero orientam discursos, comportamentos e relações cotidianas, com efeitos diretos na qualidade de vida de mulheres adolescentes e adultas. Outro artigo que trabalha as questões da interferência das iniquidades de gênero sobre as sexualidades de jovens é o de Sena et al. (2016SENA, A. C. et al. Eu virei homem!: a construção das masculinidades para adolescentes participantes de um projeto de promoção de saúde sexual e reprodutiva. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 186-197, 2016.), que discute a construção das masculinidades no discurso de adolescentes em relação às saúdes sexual e reprodutiva. Em uma abordagem qualitativa, os autores analisaram as percepções dos sujeitos sobre o corpo masculino, observando a necessidade dos adolescentes de aspectos concretos e visíveis para assimilar a transformação do corpo, havendo dificuldade e resistência para entrar em contato e discutir sobre o próprio corpo. Além disso, levantou-se a dificuldade dos adolescentes em compreender as relações de gênero e em elaborar concepção sobre a sexualidade, fundamentando-se nas experiências divergentes para homens e mulheres, permeadas pelas construções culturais estereotipadas. Também se perceberam transformações nas concepções de paternidade. Entre os três estudos citados, vê-se em comum a crítica ao discurso biomédico e à associação da sexualidade dos jovens unicamente como evento biológico, explicando-a como explosão dos hormônios e impulsividade natural dessa fase de desenvolvimento; em vez disso, há a busca por analisar o contexto sociocultural em que as decisões sobre as práticas sexuais são tomadas. No entanto, ainda cabe a reflexão sobre o enfoque dado às temáticas da contracepção e prevenção de DST e aids, sinalizando o incômodo e a possível persistência de um caráter assertivo e normativo nas práticas em educação sexual dos adolescentes nos serviços, constituída pelo enfoque sobre o sexo como “promiscuidade” e “perigo”, negligenciando o empoderamento desses sujeitos. Assim, deve-se estar atento ao risco da patologização das adolescências e da superficialidade da discussão “adolescência e sexualidade”, trabalhando a questão da cultura na consolidação de papéis de gênero. A prevalência de estudos com enfoque em análises da sexualidade e da saúde reprodutiva permanece ao tratar dos adultos, havendo estudos sobre concepção, contracepção e saúde sexual. Outro aspecto também presente nesses artigos refere-se à consideração de gênero como uma categoria estrutural no modo como a experiência sexual é vivenciada pelos sujeitos, na medida em que as experiências masculinas e femininas são mostradas como radicalmente distintas, não pelas diferenças existentes em seus corpos, mas sobretudo devido à maneira como se constroem as expectativas e as imagens em relação à experimentação sexual na sociedade.
Entre esses estudos está o de Vargas (2010VARGAS, E. P. Saúde, razão prática e dimensão simbólica dos usos da internet: notas etnográficas sobre os sentidos da reprodução. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 135-146, 2010.), que buscou, por meio de entrevistas com casais inférteis, analisar os usos da internet no acesso às informações sobre o tema da infertilidade conjugal, indicando haver impactos diferentes sobre os gêneros em relação à impossibilidade de reprodução voluntária. O sentimento do fracasso diante da impossibilidade de ter filhos recai principalmente sobre a mulher, que carrega estereótipo de cuidadora, é associada à figura da mãe e recebe estigma depreciativo quando não tem filhos. O artigo “Vulnerabilidades ao HIV/aids no contexto brasileiro: iniquidades de gênero, raça e geração” (Garcia; Souza, 2010GARCIA, S.; SOUZA, F. M. Vulnerabilidades ao HIV/Aids no contexto brasileiro: iniquidades de gênero, raça e geração. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, p. 9-20, 2010. Suplemento 2.) analisou o conhecimento de jovens e adultos, brancos e negros, sexualmente ativos e de ambos os sexos, sobre DST e aids, bem como os discursos sobre o uso de preservativo e sobre as práticas sexuais, a partir das perspectivas racial, geracional e de gênero. Na pesquisa, as autoras destacam como questão importante a vulnerabilidade de mulheres à aids, sobretudo entre aquelas com parcerias estáveis, devido a aspectos socioeconômicos e culturais; ainda, apontam a necessidade de investimentos em ações de informação e comunicação para a população em geral e de forma contínua.
Em estudo realizado na Espanha com estudantes universitários de ambos os sexos, Lameiras et al. (2011LAMEIRAS, M. et al. Evaluación del uso del preservativo femenino promovido desde un programa de educación para la salud: un enfoque cualitativo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 410-424, 2011.) analisaram a percepção dos sujeitos sobre o uso de camisinhas femininas. Os autores enfatizam a necessidade de incentivo a conhecimento e uso desse método - que é controlado pela mulher - por meio do desenvolvimento de estratégias educativas que tragam a possibilidade de uso da camisinha feminina e discutam estereótipos de gênero e feminilidade que tradicionalmente negam à mulher o direito de conhecer seu próprio corpo e explorar o prazer sexual. Esse estudo, ao discutir a possibilidade de empoderamento feminino, apresenta fatores de ordem sociocultural que tornam tabu as práticas, expressões e manifestações dos desejos para as mulheres, muitos desses casos em que a sexualidade feminina é constrangida e silenciada. Enquanto para os homens a vivência de sua sexualidade é considerada como algo de sua natureza intrínseca, incentivada, o mesmo não ocorre para as mulheres. Ainda tratando de sexualidade, o estudo “Redes sociais e comportamento sexual: para uma visão relacional da sexualidade, do risco e da prevenção” (Aboim, 2011ABOIM, S. Redes sociais e comportamento sexual: para uma visão relacional da sexualidade, do risco e da prevenção. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 207 224, 2011.), realizado com população entre 18 e 65 anos em Portugal, investigou o impacto das redes sociais sobre os comportamentos sexuais dos indivíduos. Por meio da percepção normativa dos investigados sobre a moral sexual dos seus amigos e familiares, o autor buscou obter um retrato das redes sociais para compreender a variedade de comportamentos sexuais e os riscos de infecção dos indivíduos. Segundo o autor, redes constituídas por amigos mais liberais em termos de moral sexual tendem a influenciar o comportamento dos sujeitos, levando a uma exploração mais ativa da sexualidade, sobretudo no caso das mulheres.
A partir dos textos com temáticas relacionadas à sexualidade foram observados inúmeros fatores que concorrem para a estruturação das relações afetivas e sexuais igualitárias, a exemplo da situação socioeconômica, racial e geracional, da assimetria nas relações de gênero e do vínculo social e amoroso. Percebe-se que são discutidas estratégias coletivas, contrapondo-se aos modelos centrados na ação individual como modo de aproximação dos contextos que impedem a adesão dos sujeitos às práticas sexuais mais seguras.
No entanto, destaca-se a pouca inclusão dos homens para além do caráter preventivo de infecções e gestações, além da pouca reflexão sobre a importância de construção de novos arranjos que promovam a desmistificação de construções hegemônicas e a igualdade entre os gêneros, a partir de narrativas que produzam novas práticas de saúde e olhares para a vivência da sexualidade.
Tratando especificamente da relação entre homens/masculinidades e saúde, foi encontrado apenas um artigo que tivesse apenas homens ou homens e mulheres como sujeitos de pesquisa. Em “Masculinidades e práticas de saúde na região metropolitana de Belo Horizonte MG” (Nascimento et al., 2011NASCIMENTO, A. R. et al. Masculinidades e práticas de saúde na região metropolitana de Belo Horizonte MG. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 182-194, 2011.), investigaram-se por meio de entrevistas as representações sociais de saúde e de doença e as práticas em saúde dos homens adultos residentes na região metropolitana de Belo Horizonte, destacando a questão da influência das masculinidades hegemônicas sobre os cuidados em saúde. Os autores apontam a necessidade de haver trabalhos que procurem, além das causas do não cuidado, as motivações identificadas por homens que cuidam de forma adequada da própria saúde.
A pouca presença de estudos relativos à saúde do homem leva-nos a questionar a presença e a consolidação desse novo campo de produção do conhecimento em saúde: essa abordagem ainda caminha em processo de avanço ou se trata de demanda não reconhecida. Seria necessária análise sobre os homens dos diferentes estratos sociais, com suas diferentes especificidades, e engajamento de profissionais de saúde para que fosse possível ancorar o debate num campo empírico e de produção de conhecimentos que pudessem instrumentalizar as práticas de saúde masculina.
A análise dos artigos também aponta a pouca presença de estudos referentes ao impacto de gênero quanto ao processo de envelhecimento, sendo a categoria geracional pouco explorada nos estudos. “O sentido da velhice para homens e mulheres idosos” (Fernandes; Garcia, 2010FERNANDES, M. D.; GARCIA, L. G. O sentido da velhice para homens e mulheres idosos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 4, p. 771-783, 2010.) é o único artigo analisado que trabalha a temática “velhice e gênero”. Os autores apontam a heterogeneidade da velhice e da sua vivência, destacando a abordagem da velhice em uma perspectiva de gênero e verificando diferenças na percepção de homens e mulheres do processo de envelhecimento, havendo entre os homens uma visão mais negativa desse período, ligada aos estereótipos do masculino, à pouca valorização social da aposentadoria e à ameaça a sua autonomia e independência.
Entre os estudos analisados que tratavam da temática da violência, apenas um esteve entre aqueles que apresentavam homens e mulheres ou apenas homens como sujeitos de pesquisa. Nesse único, por meio de questionários, Mesquita Filho, Eufrásio e Batista (2011MESQUITA FILHO, M.; EUFRÁSIO, C.; BATISTA, M. A. Estereótipos de gênero e sexismo ambivalente em adolescentes masculinos de 12 a 16 anos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 3, p. 554-67, 2011.) apontaram a presença de preconceitos nas manifestações dos estereótipos de gênero e sexismo ambivalente em adolescentes do sexo masculino. Os autores, a partir dos resultados encontrados, discutem a associação das representações distorcidas do feminino com a dominação, a discriminação e a violência contra a mulher. Segundo Couto, d’Oliveira e Schraiber (2006COUTO, M. T.; D’OLIVEIRA, A. F.; SCHRAIBER, L. B. Violência e saúde: estudos científicos recentes. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 112-120, 2006. Edição especial.), as violências podem ser explicadas a partir das condições históricas e sociais de construção relacional entre feminino e masculino, que geram atributos, posições e expectativas diversas para os sexos em relação ao seu meio social, engendrando formas específicas de violência: violência feminina vivida no espaço privado, violência masculina vivida nos espaços públicos. No entanto, percebe-se que, apesar de a abordagem de gênero aparecer nas dimensões constitutiva e explicativa das relações entre homens e mulheres, e mesmo só entre homens e só entre mulheres, e de gênero ser entendido como uma categoria relacional, transversal, e instauradora e reprodutora de assimetrias de poder (Couto; Gomes, 2012COUTO, M. T.; GOMES, R. Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2569-2578, 2012.), pouco se observaram estudos que incluíram os homens em seus discursos e trataram das vulnerabilidades dos homens à exposição à violência, enquanto vítimas ou agressores.
Considerações finais
Na tentativa de promover um debate em torno das questões que norteiam os estudos na área de gênero, masculinidades e saúde e a produção veiculada pela revista Saúde e Sociedade, um primeiro aspecto merece consideração: o conjunto dos artigos publicados aponta para o reconhecimento da legitimidade do argumento de que processos sociais relacionados a gênero (e a masculinidades em particular) produzem diferenças no padrão de morbimortalidade de homens e mulheres, bem como nos comportamentos de proteção à saúde. Na direção de tal reconhecimento, merece atenção a sintonia entre as questões que mobilizam investigadores dos campos disciplinares das ciências sociais e da saúde - entre elas, como e quanto os aspectos de cuidado em saúde são contemplados nas práticas de homens e mulheres, quais as estratégias que homens e mulheres utilizam para lidar com o adoecimento e o modo como os comportamentos em diversas esferas da vida (lazer, família, sexualidade, trabalho etc.) têm reflexo no padrão coletivo de morbimortalidade para segmentos de homens e mulheres na população - e a produção da Revista, especialmente a da última década.
A questão que as páginas anteriores buscaram responder consiste em: qual a importância da perspectiva de gênero e das masculinidades para as análises sobre homens e mulheres em termos dos processos de saúde-adoecimento e cuidado?
Sem dúvida, o acúmulo de pesquisas empíricas e especialmente de trabalhos etnográficos, sintetizados por diferentes autores no início da década de 2000, revela dois importantes aspectos, que também podem ser visualizados na produção analisada: a inexistência de uma masculinidade única ou de um padrão específico de masculinidade e o fato de que as masculinidades podem mudar (Vigoya, 2001VIGOYA, M. V. Contemporary Latin American perspectives on masculinity. Men and Masculinities, New York, v. 3, n. 3, p. 237-260, 2001. Disponível em: <Disponível em: http://jmm.sagepub.com/content/3/3/237 >. Acesso em: 12 mar. 2012.
http://jmm.sagepub.com/content/3/3/237... ). Parecem pouco importantes esses dois argumentos, mas não são. O reconhecimento da pluralidade das masculinidades foi particularmente relevante para o desenvolvimento de formas de conhecimento aplicado. O campo da saúde, por exemplo, foi penetrado por essa nova agenda de pesquisa, passando de uma utilização da noção genérica de homem (ou como uma categoria predominante nos estudos biomédicos) para a busca dos particularismos das formas de ser homem e da relação com os processos de saúde-adoecimento e cuidado. Um segundo aspecto que chama atenção são as ainda incipientes conceitualização e apropriação teóricas da perspectiva das masculinidades. Mas o que entendemos por masculinidade? Qual a importância de as investigações apresentarem e operacionalizarem o conceito? Podemos iniciar apontando que a necessidade de utilizar o termo masculinidade remete à importância de fazer referência a um campo de investigação na área dos estudos sobre gênero. “Masculinidades”, em termos conceituais, reporta a significados culturais ideologicamente remetidos para o terreno da “essência” dos homens, aplicáveis, por meio de processos metafóricos, às mais variadas áreas da interação humana e da vida sociocultural. Men’s studies foi uma alternativa encontrada para criar simetria em relação a women’s studies, ainda nos anos de 1980, mas tanto um quanto outro são termos infelizes, pois situam o gênero no sexo, numa perspectiva de construção social primária que vê o gênero como elaboração cultural de um suposto sexo natural, tornando gênero dependente de um sexo biológico anterior (Vale de Almeida, 2005VALE DE ALMEIDA, M. Masculinidade (verbete). In: MACEDO, A. G.; AMARAL, A. L. (Org.). Dicionário da Crítica Feminista. Porto: Afrontamento, 2005. p. 122-123.).
Connell (1995CONNELL, R. Masculinities: knowledge, power and social change. Berkeley: University of California Press, 1995.), um dos autores mais citados em termos dos referenciais de masculinidade na produção analisada, aborda as configurações gerais e locais de gênero nas masculinidades e desenvolve um referencial de análise que coloca gênero interseccionado com outros marcadores sociais (raça/cor, classe social, geração). Para a autora, para entender gênero, então, é necessário ir constantemente além do próprio gênero. O mesmo se aplica inversamente. Não podemos entender nem classe, nem raça ou desigualdade global sem considerar constantemente gênero. Essa perspectiva de interseccionalidade11O termo surge na produção da teórica negra e feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw, no início da década de 1990, ao discutir o entrelaçamento de diferenças na produção de desigualdades sociais (Henning, 2015). A expressão ou o campo “interseccionalidade” traz em sua origem as marcas do feminismo e do antirracismo (Moutinho, 2014). Instrumento elaborado por Webster et al. (1995) e publicado pela Universidade Simon Fraser, no Canadá. Escala criada por Robert Hare (1991). levou Connell, desde seus textos mais antigos (Connell, 1995CONNELL, R. Masculinities: knowledge, power and social change. Berkeley: University of California Press, 1995.) até os mais recentes (Connell; Messerschmidt, 2005CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, Oakland, v. 16, n. 6, p. 829-859, 2005.; Connell, 2014CONNELL, R. The study of masculinities. Qualitative Research Journal, Cardiff, v. 14, n. 1, p. 5-15, 2014.), a trabalhar as relações de poder entre os homens a partir da noção de masculinidade hegemônica e masculinidades subordinadas. Para ela, não se trata de fixar os tipos de masculinidades, mas de perceber e analisar as relações de poder (entre homens) como jogos, e não estados. Para tanto, ela parte do pressuposto de que o poder (coletivo) dos homens não é construído apenas nas formas como os homens o interiorizam, individualizam e reforçam, mas também nas (e pelas) instituições sociais.
Finalmente, é necessário destacar que o aporte da interseccionalidade em pesquisas no campo da saúde coletiva no Brasil, cujas produções da área na revista Saúde e Sociedade parecem constituir um espelho, é escasso e requer comprometimento em termos de esforço investigativo e analítico urgente.
Deve-se reconhecer que o debate sobre a perspectiva da interseccionalidade dos marcadores sociais da diferença na saúde é recente, tendo ganhado espaço apenas na última década. Há, ainda, uma falta de clareza conceitual, além da necessidade de mais desenvolvimento teórico e de problematização do uso de conceitos teóricos centrais como sexo, gênero, corporificação, igualdade e equidade. A melhora no rigor conceitual do uso desses conceitos possibilitaria avanço nos estudos, bem como na comunicação entre pesquisadores da área da saúde e no diálogo interdisciplinar com outras áreas, especificamente com as ciências sociais (Hankivsky, 2012HANKIVSKY O. Women’s health, men’s health, and gender and health: implications of intersectionality. Social Science & Medicine, Oxford, v. 74, n. 11, p. 1712-1720, 2012.; Connell, 2014CONNELL, R. The study of masculinities. Qualitative Research Journal, Cardiff, v. 14, n. 1, p. 5-15, 2014.).
Para Hankivsky (2012HANKIVSKY O. Women’s health, men’s health, and gender and health: implications of intersectionality. Social Science & Medicine, Oxford, v. 74, n. 11, p. 1712-1720, 2012.), a interseccionalidade é uma poderosa ferramenta que deve ser utilizada nos estudos de saúde da mulher e saúde do homem e na relação entre gênero e saúde. A interseccionalidade potencializa repensar os modelos e métodos de pesquisa, bem como as práticas e as políticas de saúde. Entretanto, Hankivsky (2012HANKIVSKY O. Women’s health, men’s health, and gender and health: implications of intersectionality. Social Science & Medicine, Oxford, v. 74, n. 11, p. 1712-1720, 2012.) também aponta que, caso a perspectiva adotada da interseccionalidade proceda a um favorecimento do marcador de gênero - como a primeira e principal dimensão da saúde -, poderemos assistir à falência dos esforços de compreender e intervir no complexo do processo de saúde, adoecimento e cuidado de ambos, homens e mulheres. Para a autora, considerando que gênero, classe social, raça e sexualidade são construídos socialmente e interagem mutualmente a depender do tempo e lugar, é importante tomar interseccionalidade como ferramenta direcionadora de análises nas quais nenhum marcador social da diferença é, a priori, considerado como o mais “opressor”, ou seja, como se um deles tivesse poder maior de explicação sobre os outros.
Ainda segundo Hankivsky (2012HANKIVSKY O. Women’s health, men’s health, and gender and health: implications of intersectionality. Social Science & Medicine, Oxford, v. 74, n. 11, p. 1712-1720, 2012.), não se trata de dar o mesmo peso na análise para todas as variáveis (marcadores sociais), mas de ter a vigilância de que a intersecção entre elas opera em uma lógica complexa. Ademais, ao trabalharmos com os marcadores sociais, interseccionando-os, é preciso pensarmos como as categorias agem em combinação, potencializando um determinado marcador em detrimento do outro.
Diante do reconhecimento do crescimento da produção em gênero e masculinidades no campo da saúde coletiva e, em particular, na interface entre ciências humanas, ciências sociais e da saúde, e das tendências das investigações em termos de temas, objetos e aportes teórico-metodológicos, a revisão apresentada potencializa uma visão crítica dessa área de pesquisa em expansão, em termos de suas potencialidades e fragilidades.
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- 1O termo surge na produção da teórica negra e feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw, no início da década de 1990, ao discutir o entrelaçamento de diferenças na produção de desigualdades sociais (Henning, 2015HENNING, C. E. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações, Londrina, v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015.). A expressão ou o campo “interseccionalidade” traz em sua origem as marcas do feminismo e do antirracismo (Moutinho, 2014MOUTINHO, L. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 201-248, 2014.). Instrumento elaborado por Webster et al. (1995) e publicado pela Universidade Simon Fraser, no Canadá. Escala criada por Robert Hare (1991).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
- Recebido
08 Ago 2016 - Aceito
19 Ago 2016