Resumo
O Conselho Municipal de Saúde é uma instância colegiada de participação social no campo das políticas públicas em saúde. De caráter representativo e deliberativo, o conselho é formado por usuários, trabalhadores e gestores do setor da saúde em esfera municipal. Este artigo busca descrever a participação do segmento desses trabalhadores no Conselho Municipal de um município de grande porte da região metropolitana de São Paulo, identificando os fatores que podem se constituir em entraves à efetiva participação dos representantes deste segmento. A abordagem foi qualitativa e a coleta de dados feita por meio de análise documental, da observação de reuniões do Conselho e de entrevistas semiestruturadas. Como resultado, verificou-se que os conselheiros não identificam com clareza os representantes do segmento dos trabalhadores no conselho, desconhecem o papel deste segmento e apresentam uma expectativa sobre o papel técnico-científico a ser desempenhado por eles. No município de Guarulhos, de forma peculiar, denomina-se “promotores da saúde” o conjunto desses trabalhadores e gestores. Observou-se que isso contribuiu para a diluição de seu papel, acentuando os entraves e obstáculos à efetiva participação da sociedade civil nas decisões relativas às políticas de saúde locais.
Palavras-chave:
Participação Social; Conselhos de Saúde; Trabalhadores de Saúde
Abstract
The Municipal Council of Health is a collegiate body of social participation in the field of public health policies. Representative and deliberative council is made up of users, workers and managers in the health sector at the municipal level. This article aims to describe and analyze the participation of health workers segment in the Municipal Health Council of Guarulhos, São Paulo, Brazil. The approach was qualitative and the data were collected through documentary analysis observation of Council meetings and semi-structured interviews. As a result, it was found that members of the city council do not identify clearly the representatives of the segment of workers and unaware of the role of this segment and have an expectation of the scientific-technical role to be played by them. In the municipality of Guarulhos, the worker segment makes up with the segment managers a group called “health promoters”. It was observed that this contributed to the dilution of its role, highlighting the barriers and obstacles to the effective participation of civil society in decisions relating to local health policies. Distortions in representation of the segments that compose the council contribute to accentuate the barriers and obstacles to the effective participation of civil society in decisions about local health policies.
Keywords:
Social Participation; Health Councils; Health Workers
Introdução
A democracia no Brasil, ainda recente e com resquícios dos anos de ditadura militar, está centrada em um modelo de democracia representativa no qual a sociedade escolhe seus representantes e a eles delega o direito de tomar as decisões sobre temas que favoreçam aos seus interesses. Entretanto, essa forma de participação não tem sido suficiente para responder às demandas sociais de forma a consolidar a participação social nas decisões políticas. Estudos indicam que há um distanciamento entre as dinâmicas sociais participativas e o espaço de tomada de decisão das políticas e da gestão pública (Caccia Bava, 2005CACCIA BAVA, S. Democracia e participação. In: TEIXEIRA, A. C. C. (Org.). Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. p. 33-40.; Côrtes, 2009CÔRTES, S. M. V. Conselhos e conferências de saúde: papel institucional e mudança nas relações entre Estado e sociedade. In: FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 102-128.; Gohn, 2003GOHN, M. G. M. Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos atores sociais. Petrópolis: Vozes, 2003.).
No final da década de 1980 foram criados os conselhos de políticas públicas, buscando diminuir esse distanciamento e construir um canal de comunicação entre o governo e o movimento social existente na época, caracterizado pelas organizações de bairro e fortalecimento do movimento sindical. Segundo Côrtes (2009)CÔRTES, S. M. V. Conselhos e conferências de saúde: papel institucional e mudança nas relações entre Estado e sociedade. In: FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 102-128., os conselhos surgiram como resposta à crise de legitimidade das formas tradicionais de representação nas democracias liberais. Nesta década novos atores coletivos da sociedade civil demandavam sua entrada na cena pública, o que não foi absorvido pelo sistema político brasileiro (Caccia Bava, 2005CACCIA BAVA, S. Democracia e participação. In: TEIXEIRA, A. C. C. (Org.). Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. p. 33-40.).
Os conselhos se constituem de forma singular no processo participativo por serem estruturas típicas da democracia representativa, podendo se constituir em espaços para o exercício da participação direta. Os conselheiros, eleitos ou indicados, são representantes que estão próximos de suas bases e que aprendem sobre política e democracia por meio do próprio exercício da participação (Wendhausen; Cardoso, 2007WENDHAUSEN, A.; CARDOSO, S. M. Processo decisório e Conselhos Gestores de Saúde: aproximações teóricas. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 60, n. 5, p. 579-584, 2007.; Bógus, 2009BÓGUS, C. M. Conselhos Gestores de Políticas Públicas no Município de São Paulo: identidade, limitações e potencialidades na perspectiva da Promoção da Saúde. 2009. Tese (Livre-docência) - Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.).
Na área da saúde, os Conselhos foram institucionalizados pela Lei nº 8.142/1990 nas três esferas de governo: o Conselho Nacional de Saúde - CNS, os Conselhos Estaduais de Saúde - CES e os Conselhos Municipais de Saúde - CMS. O texto da Lei dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde, e define que haja participação de usuários, trabalhadores e gestores do setor de saúde em cada esfera do governo (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1990. ). Contudo, não há definição clara quanto ao conceito ou abrangência do que se entenderia por comunidade, bem como não há definição de como se dá sua representação nestes fóruns.
Manifestando preocupação com a composição desses conselhos, o Conselho Nacional de Saúde editou as resoluções CNS números 33/1992 (Brasil, 1993BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 33, de 23 de dezembro de 1992. Aprova o documento “Recomendações para a Constituição e Estruturação dos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 jan. 1993. Disponível em: <Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_92.htm >. Acesso em: 23 nov. 2016.
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/... ), 333/2003 (Brasil, 2003BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 333, de 4 de novembro de 2003. Aprova as diretrizes para criação, reformulação, estruturação e funcionamento dos Conselhos de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 nov. 2003. Disponível em: <Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_03.htm >. Acesso em: 22 nov. 2016.
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/... ) e 453/2012 (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 453, de 10 de maio de 2012. Aprova diretrizes para instituição, reformulação, reestruturação e funcionamento dos Conselhos de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 jul. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_12.htm >. Acesso em: 22 nov. 2016.
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/... ) que recomendam haver paridade entre o número de representantes dos segmentos dos trabalhadores e dos gestores em relação ao segmento dos usuários, o que indica uma preocupação com a representação do segmento dos trabalhadores, de forma independente dos gestores.
O equilíbrio numérico entre os segmentos presentes no conselho, ou seja, entre o grupo de trabalhadores e gestores, e o grupo de usuários, é fundamental para a garantia da representação, mas há dúvidas se isso tem reflexos sobre a inserção dos conselheiros no processo político. Desigualdade de recursos como renda e escolaridade, e diferentes graus de engajamento nas políticas públicas resultam em iniquidades na participação, tanto individual como na representação feita por meio das entidades (Tatagiba, 2005TATAGIBA, L. Conselhos gestores de políticas públicas e democracia participativa: aprofundando o debate. In: FUKS, M.; PERISSINOTTO, R. M.; SOUZA, N. R. (Org.). Democracia e Participação: os conselhos gestores do Paraná. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 209-213, 2005.).
O segmento dos trabalhadores é composto por diferentes categorias profissionais, o que acentua a diferença desses recursos. Há uma tendência das entidades que representam as diferentes categorias com nível universitário, em particular as entidades médicas, de reforçar as competências técnico-burocráticas, reduzindo a participação nas discussões de estratégias das políticas públicas.
Nesses conselhos, por serem transformados em espaços para discutir a implementação de políticas públicas, apresentadas pelas esferas estadual e nacional, ocorre uma inversão na definição das necessidades, priorizando a competência técnica em detrimento da discussão política. O conhecimento especializado dos trabalhadores pode contribuir para despolitizar a participação deste segmento, resultando na tecnificação da política, que mascara os interesses sociais e burocratiza a atuação dos conselheiros (Cohn, 2009COHN, A. A reforma sanitária brasileira após 20 anos do SUS: reflexões. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, p. 1614-1619, 2009.).
Entendendo o conhecimento como elemento fundamental para o estabelecimento de poder, questiona-se sobre qual percepção é fundamental na atuação dos conselheiros. O conhecimento da realidade, que poderia conceder poder de transformação aos conselheiros que detém maior proximidade com o território, não é valorizado nas relações estabelecidas no conselho. O que se observa é o deslocamento da centralidade do poder legítimo do representante dos trabalhadores, que têm conhecimento das necessidades e estão inseridos no processo das políticas públicas locais, para os conselheiros que detém maior conhecimento técnico-científico.
A inversão entre o técnico e o político pode transformar o conselho em um espaço de discussão de especialistas, comprometendo a construção conjunta de políticas que possam atender às necessidades básicas de saúde em nível local. A expectativa por uma participação baseada nos conhecimentos técnico-científicos dos representantes dos trabalhadores contribui para inibir a participação política, principalmente dos conselheiros com menor formação técnica específica, como os trabalhadores de nível médio e os agentes comunitários de saúde. Gohn, Tatagiba e Côrtes apontam a despolitização das discussões tratadas como o principal problema para uma atuação dos conselhos que caminhe no sentido de permitir mudanças sociais efetivas (Gohn, 2010GOHN, M. G. M. Movimentos sociais e redes de mobilizações civis no Brasil contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2010.; Tatagiba, 2002TATAGIBA, L. Os conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In: DAGNINO, E. (Org.). Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 47.; Côrtes, 2009CÔRTES, S. M. V. Conselhos e conferências de saúde: papel institucional e mudança nas relações entre Estado e sociedade. In: FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 102-128.).
No município de Guarulhos, cenário deste estudo, a participação da sociedade civil soma ações vitoriosas na área da saúde, como a realização da primeira Conferência Municipal de Saúde sem a presença da Secretaria Municipal responsável e o descredenciamento no SUS de um hospital que não atendia às necessidades da população. As lutas e embates da sociedade civil local, mesmo antes da institucionalização dos conselhos municipais na década de 1990, culminaram com o não reconhecimento do CMS, instituído por indicação governamental. As constantes alterações nos dispositivos legais refletem a necessidade de se ajustar a composição do conselho para atender às necessidades dos movimentos sociais existentes no município.
O primeiro conselho municipal de saúde foi instituído em 3 de dezembro de 1990 por meio de decreto municipal que nomeou os membros sem considerar paridade de representação entre usuários e trabalhadores - segmento composto por conselheiros indicados por entidades de diferentes categorias dos trabalhadores da saúde. Somente em 2000 se estabeleceu uma composição garantindo a representatividade de 50% para o segmento dos usuários. Os conselheiros representantes do governo, prestadores de serviços e profissionais da área são denominados “promotores da saúde” desde 2004, uma peculiaridade do município estudado.
Desse modo, o presente artigo busca descrever a participação do segmento dos trabalhadores de saúde no Conselho Municipal de Saúde de Guarulhos, identificando os fatores que podem se constituir em entraves à sua efetiva participação.
Material e métodos
Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa e coleta de dados feita por meio de análise documental, observação e entrevistas semiestruturadas.
A análise documental foi realizada a partir das atas e pautas do Conselho Municipal de Saúde de Guarulhos (CMS-GRS), disponíveis no site da Secretaria Municipal de Guarulhos; da legislação sobre o CMS-GRS, disponível no site da Câmara Municipal de Guarulhos; e dos documentos específicos do CMS-GRS. Foram analisadas as atas do período de 09/02/2012 a 13/02/2014, no qual ocorreram 35 reuniões, sendo 24 ordinárias e 11 extraordinárias.
Por meio da análise dessas atas foi possível identificar os conselheiros com maior participação, tanto em relação à presença nas reuniões como em relação à intervenção nas discussões, o que serviu de orientação para a escolha dos entrevistados.
As reuniões do pleno e das Comissões do CMS-GRS foram acompanhadas no período de novembro de 2013 a abril de 2014, incluindo a reunião de avaliação da gestão do CMS-GRS no período de 2012 a 2014, a reunião de posse dos conselheiros, a escolha da mesa diretiva e a composição das comissões para o triênio 2014-2016.
As entrevistas foram previamente agendadas, realizadas individualmente entre novembro de 2013 e março de 2014, e transcritas na íntegra. Foram entrevistados representantes dos três segmentos do conselho municipal, sendo eles: dez conselheiros representantes dos trabalhadores (100% dos representantes do segmento), seis representantes dos usuários (30% dos representantes do segmento) e seis representantes dos gestores (60% dos representantes do segmento), escolhidos de acordo com a maior frequência de participação nas reuniões, identificados a partir da consulta às atas das reuniões do pleno.
Para iniciar a entrevista, utilizou-se das perguntas: “Conte sobre sua participação no CMS. O que você sabe sobre o conselho? Como você começou a participar?”. Assim, a partir de questões gerais levantadas pelo pesquisador, os entrevistados apresentaram suas questões, preocupações, satisfações ou críticas em relação ao objeto investigado.
Todos os entrevistados assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
Resultados e discussão
A história da formação do CMS de Guarulhos está associada a lutas e embates da sociedade civil local antes da institucionalização dos conselhos municipais na década de 1990, quando o primeiro CMS de Guarulhos foi formado e realizou a primeira Conferência Municipal de Saúde sem a participação dos profissionais, não obtendo o reconhecimento da secretaria municipal de saúde. Havia uma tensão entre as ações de participação social e as medidas burocráticas da gestão municipal para criar os conselhos.
Quando saiu a lei das Conferências de Saúde, o prefeito formou do jeito dele e foi ele que formou seus fiscalizadores, os amiguinhos dele, e isso foi por três mandatos: 90, 92, 94 (G5)
O conselho municipal daqui era muito engraçado, porque ele era indicado pelo prefeito e ele não tinha paridade, era um conselho com não mais do que 20 elementos, as atas eram feitas pela própria assistente do secretario de saúde, […] eram os decretos, existiam vários decretos, era feito um decreto e mais ou menos saía aquela conformação do conselho, a primeira constituição do conselho era mais associações de bairro, e muitas eram do partido mesmo que estava no governo, eram da situação, […] mas essas associações de bairro, elas não tinham uma representação legítima de todos os segmentos da população, e aqueles movimentos populares de saúde, que a gente via que eram movimentos legítimos, eles não tinham acesso (G1).
Passado pouco mais de 20 anos encontram-se entre os conselheiros atuais alguns daqueles que participaram do processo de formação do primeiro conselho, hoje atuando como representantes dos segmentos dos gestores ou dos usuários. O CMS de Guarulhos é composto atualmente por quarenta conselheiros titulares e quarenta suplentes, sendo vinte representantes de usuários, dez representantes dos trabalhadores da saúde e dez gestores ou prestadores de serviço.
No CMS de Guarulhos, 80% dos representantes do segmento dos trabalhadores têm nível universitário, 40% são médicos e, destes, 75% estão no segundo mandato. Está composto, de acordo com a Lei Municipal nº 6.878/2011, por seis representantes de entidades atuantes no município, dos conselhos e associações de profissionais de saúde, dois representantes dos sindicatos dos trabalhadores em saúde sediados no município, e dois representantes do segmento dos trabalhadores nos conselhos gestores (Guarulhos, 2011GUARULHOS. Lei nº 6.878, de 30 de junho de 2011. Dispõe sobre o conselho municipal de saúde de Guarulhos. Boletim Oficial, Guarulhos, 1º jul. 2011. Disponível em: <Disponível em: http://leismunicipa.is/nqmld >. Acesso em: 20 out. 2016.
http://leismunicipa.is/nqmld... ). No que se refere à renda, escolaridade e engajamento político-social, os conselheiros do CMS de Guarulhos são semelhantes ao que é encontrado na literatura, como relatado por Tatagiba:
os resultados da pesquisa reforçam avaliações presentes em outros estudos: os conselheiros, no que se refere a renda, escolaridade e engajamento político-partidário, estão bem acima da média nacional. A heterogeneidade na composição, verificada pela diversidade das organizações representadas nos conselhos, caminha, assim, ao lado de uma tendência à elitização da participação (Tatagiba, 2005TATAGIBA, L. Conselhos gestores de políticas públicas e democracia participativa: aprofundando o debate. In: FUKS, M.; PERISSINOTTO, R. M.; SOUZA, N. R. (Org.). Democracia e Participação: os conselhos gestores do Paraná. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 209-213, 2005., p. 209).
Entre os representantes das entidades, dois conselheiros não são trabalhadores da secretaria de saúde: um deles não é trabalhador da área e representa um clube de desportos. O outro conselheiro é um funcionário contratado para exercer a função de fiscal no conselho de determinada categoria profissional e não é exatamente um trabalhador do serviço de saúde do município. Há um distanciamento destes conselheiros do processo de apropriação da realidade local, perdendo-se a oportunidade de aproximar as decisões do conselho às necessidades do município.
Uma característica particular do CMS de Guarulhos é a junção dos representantes dos segmentos de gestores e trabalhadores em um único segmento denominado “promotores da saúde”. Essa denominação aparece na composição do conselho de acordo com a Lei Municipal nº 6.010, de 12 de abril de 2004, que traz a seguinte redação:
Art. 5º. O Conselho Municipal de Saúde será composto por um conjunto paritário de 34 (trinta e quatro) membros, atendendo a dois segmentos sociais, a saber:
I - Representantes dos Promotores de Atividades Relacionadas à Saúde;
II - Representantes dos Usuários do Sistema Único de Saúde (Guarulhos, 2004GUARULHOS. Lei Municipal nº 6.010, de 12 de abril de 2004. Dispõe Sobre o Conselho Municipal de Saúde e dá Providências Correlatas. Diário Oficial do Município, Guarulhos, 13 abr. 2004. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2ggyNFG >. Acesso em: 23 nov. 2016.
http://bit.ly/2ggyNFG... ).
Não foi possível identificar junto aos entrevistados a intenção desta denominação. Um dos conselheiros, representante dos gestores, embora afirme desconhecer a intenção dessa denominação, sugeriu que pudesse ter sido uma forma de horizontalizar a participação, aproximando gestores e trabalhadores.
Os entrevistados não identificaram essa denominação única aos dois segmentos como um limitante à participação, mas se evidenciou nas respostas que os representantes dos trabalhadores são identificados como distintos ao segmento dos gestores. Não há clareza para os entrevistados de que as entidades de classe, conselhos, associações, sindicatos de trabalhadores da saúde e representantes dos conselhos gestores fazem parte de um mesmo segmento dentro do conselho.
O que eu vejo aqui em Guarulhos é: 50% dos usuários, isso é inquestionável, a outra metade eu vejo entidades de classe de tudo quanto é tipo. [...] (T3).
Trabalhador da saúde só tem eu lá, né, que eu conheço, a maioria lá são médicos, são gerentes, trabalhador mesmo que é funcionário acho que só eu, se tem outros de outras regiões eu não conheço (T9).
Para Almeida, a composição paritária dos conselhos “torna o processo decisório mais permeável aos diversos interesses implicados na elaboração e execução das políticas públicas favorecendo decisões mais justas e legítimas” (Almeida; Tatagiba, 2012ALMEIDA, C.; TATAGIBA, L. Os conselhos gestores sob o crivo da política: balanços e perspectivas. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 109, p. 68-92, 2012., p. 68).
Em 2011, se observou que era impossível cumprir a recomendação CNS nº 333 quanto à paridade entre representantes de gestores e de trabalhadores porque o segmento dos promotores tinha número ímpar, como justificado no texto da Lei nº 6.878/2011:
Considerando que a norma municipal não está perfeitamente adaptada à legislação federal, em razão de uma distribuição inadequada dos membros do Conselho Municipal de Saúde, o que tem gerado inconvenientes à Administração, carecendo imediata correção, propõe:
A alteração do caput do artigo 5º aumentando o número total de membros de 34 para 40, pois o número de 34 dividido em 50% é igual a 17 (usuários), 25% representa o número de 8,5 membros, impossibilitando o fiel cumprimento da legislação (Guarulhos, 2011GUARULHOS. Lei nº 6.878, de 30 de junho de 2011. Dispõe sobre o conselho municipal de saúde de Guarulhos. Boletim Oficial, Guarulhos, 1º jul. 2011. Disponível em: <Disponível em: http://leismunicipa.is/nqmld >. Acesso em: 20 out. 2016.
http://leismunicipa.is/nqmld... ).
Este fato contribuiu para a diluição do segmento dos trabalhadores. De acordo com os entrevistados, a composição do Conselho Municipal de Saúde de Guarulhos tem uma delimitação bastante clara quanto ao segmento dos usuários. O mesmo não acontece com a divisão entre gestores e trabalhadores.
Observa-se que 57% dos entrevistados desconhece a recomendação sobre a representação paritária entre trabalhadores e gestores. Entre os trabalhadores, dos dez entrevistados, sete não conheciam a recomendação. Um dos conselheiros, representante de entidade médica, afirma saber que 25% das vagas são para os trabalhadores, mas não sabia que a entidade que representava estava neste segmento.
[…] 25%? Tem, aqui é tudo certinho, se você pegar a composição do conselho de Guarulhos, é tudo certinho. […] Se a APM está nestes 25%? Não a APM está nas… entidades… ãh… entra em outra parte, eu tenho aqui, não sei de cor, mas tá no segmento dos gestores, “dos promotores” da secretaria, das associações, olha a gente entra nas associações (T4).
Uma representante de entidade médica respondeu que os trabalhadores não participam e que faltam muito, em uma clara indicação de que não se sente como representante dos trabalhadores.
Trabalhadores? É pouco, muito pouco, muito pouco, eles faltam, os sindicatos faltam, se você for pegar a frequência, eu era da comissão executiva, vários faltam, não têm interesse em participar (T4).
As entidades de classe têm uma participação constante no que diz respeito à sua presença nas comissões do Conselho. Os sindicatos têm baixa participação em termos de frequência, intervenções nas reuniões do pleno e participação nas comissões. Os representantes dos conselhos gestores de unidades, escolhidos diretamente entre os trabalhadores das unidades, têm uma participação tímida tanto em relação à frequência nas reuniões do pleno como nas discussões que ocorrem.
Analisando a participação nas reuniões do ano de 2013, observa-se que o segmento “trabalhadores da saúde” teve 36% de participação. A participação do sindicato dos trabalhadores em saúde e da associação dos trabalhadores municipais foi de 27,7%, e a participação dos representantes dos conselhos gestores foi menor que 50%, além de duas substituições nesse segmento. Os representantes da categoria médica foram os mais assíduos à reunião, com a participação do titular e do suplente em quase 100% das reuniões.
Considerando a presença como condição necessária para que a participação ocorra, seria possível supor que as entidades médicas pudessem exercer a representação dos trabalhadores nas deliberações do Conselho. Entretanto, a maioria destes representantes não se identifica, e não são identificados pelos demais, como representantes dos trabalhadores. Por vezes, são considerados como “representantes de entidades”, entendendo que comporiam o mesmo grupo das entidades e ONGs que representam o segmento dos usuários. Outras vezes são identificados como gestores por ocuparem cargos de gerência nas unidades de saúde.
Quanto à forma de escolha dos representantes dos trabalhadores, a maioria dos entrevistados demonstrou desconhecer como se dá esse processo: alguns acham que há eleição, outros que são indicados pelos gestores municipais.
Os trabalhadores são votados entre eles também, alguns parecem que são de confiança do gestor, ele que escolhe, sindicato, sociedade anônima, são votados pela classe (U5).
É problema deles, né, nós, desde o fórum de saúde lá atrás, queríamos que tivesse a votação entre as entidades dos trabalhadores, mas eles se indicam (U4).
Dos trabalhadores a gente tem a representação formal através dos sindicatos que estão ali representados, […] os conselhos de classe também entram nessa parte se estão aptos ou não, e aí fazem um acordo de quem vai ser o titular, quem vai ser o suplente e vão fazendo essas composições (G3).
As entidades têm diretoria eleita pelas categorias de base, o que as legitima a ocupar vagas na representação do segmento dos trabalhadores. A indicação de quem vai ser o representante da entidade no conselho está associada ao fato do profissional trabalhar na rede pública ou estar inserido em projetos relacionados às unidades de saúde.
Um dos problemas identificados pelos conselheiros quanto à composição deste segmento é a limitação à participação das entidades que têm sede em Guarulhos. Categorias numericamente importantes na saúde, como a dos profissionais de enfermagem, não estavam representadas no conselho até a gestão 2011-2013 em virtude dos seus conselhos, associações e sindicatos não terem sede no município. Esta limitação sobre ter sede no município é uma exigência adotada apenas em Guarulhos.
O CMS de Guarulhos no período de 2011 a 2013 apresentou a seguinte composição:
Representantes dos promotores de atividades relacionadas à saúde:
Representantes da Secretaria Municipal de Saúde;
Representantes da Secretaria de Estado da Saúde, sendo dois hospitais estaduais sediados no Município;
Representantes dos serviços conveniados e/ou contratados sediados no Município;
Representantes das Associações e Conselhos dos profissionais de saúde, com Regional sediada no Município: Associação Paulista de Medicina, Conselho Regional de Odontologia, Conselho Regional de Farmácia, Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas, Conselho Regional de Medicina, Associação dos Servidores Municipais de Guarulhos;
Representantes do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde, com Regional sediada no Município: Conselheiros Gestores Trabalhadores.
Representantes dos usuários do Sistema Único de Saúde:
Associações de Bairro/Comitês de Saúde;
Entidades Filantrópicas: Pastoral de Saúde, Fórum de Saúde, Pastoral de Saúde do Cocaia;
Associações de Portadores de Necessidades Especiais e Patologia;
Centrais Sindicais e Sindicatos de Trabalhadores;
Conselheiros Gestores Usuários: Regiões de Saúde I - Centro; II - Cantareira; e IV - Cumbica/Pimentas.
Para o biênio 2014-2015, a inclusão de representantes da enfermagem e dos fisioterapeutas foi aceita após muita discussão sobre o tema e acordou-se que estas duas entidades deveriam compor uma única vaga, sendo uma titular e a outra suplente.
Aí foi uma controvérsia com o pessoal da APM (sobre a determinação de só participar entidades que têm sede no município). A APM tem sede aqui, e eles queriam que continuasse, […] o Coren não tem e é muito importante porque representa uma categoria muito grande que são os enfermeiros, técnicos e auxiliares. Talvez o peso maior na secretaria seja essas categorias e o Coren não tem sede, então de repente tem um que tem muito menos e pode e ele não pode (G3).
São sempre os mesmos dos mesmos, a APM, a CRM, a APCD, agora a gente conseguiu trazer o Coren, agora, primeira vez que o Coren entra, e o Crefito (G6).
Os aspectos encontrados com relação a esta questão apresentam duas concepções sobre participação, uma que privilegia a instituição formal da categoria como pré-requisito para participar do conselho, e outra que defende a representação proporcional ao número de trabalhadores da categoria. Até o mandato analisado, a categoria de enfermagem não tinha tido nenhum representante no CMS de Guarulhos, enquanto a categoria de médicos e a de cirurgiões dentistas tinha quatro representantes cada uma, dois titulares e dois suplentes. Considerando o peso numérico da categoria de enfermagem, é surpreendente que não estivesse presente no conselho municipal.
A vinculação com o território é importante do ponto de vista da inserção do representante na realidade local. Entretanto, a vinculação é do profissional e não da sede da entidade. Portanto, essa exigência deve ser revista, evitando o cerceamento da representação de categorias na composição do conselho.
Quanto à presidência do conselho, de acordo com o regimento interno do CMS de Guarulhos há uma alternância entre os segmentos dos usuários e promotores da saúde: quando o presidente for do segmento dos promotores da saúde, o vice-presidente será obrigatoriamente dos usuários, alternando no biênio seguinte. Não há nenhuma recomendação quanto à escolha do presidente para representar os promotores da saúde entre gestores, prestadores e trabalhadores, sendo que em todas as gestões têm sido os gestores a representar esse segmento.
Quando questionados sobre o papel do segmento dos trabalhadores no CMS de Guarulhos, alguns conselheiros responderam nunca terem pensado nisso.
É engraçado isso. Na verdade eu nunca parei pra pensar nisso (G6).
A representação do trabalhador ainda é tímida, mas já começa, eu acho que o primeiro desafio nosso era a segmento dos usuários e ele foi assim legítimo e agora é a inclusão dos trabalhadores (G1).
Uma representante do conselho gestor identifica a necessidade de levar as discussões do Conselho para os trabalhadores, mas teme que isso possa atrapalhar o desenvolvimento do seu trabalho, indicando que a função de representante não é vista como uma atividade profissional.
Como representante dos trabalhadores, meu papel seria passar a informação dos trabalhadores, mas pela distância não é possível, pois meu trabalho, minha primeira função é a visita domiciliar, se eu começasse a ser mais presente atrás dos trabalhadores, meu trabalho seria prejudicado (T5).
O entendimento da participação como uma tarefa separada da atividade profissional aparece na fala de outra representante que, quando questionada sobre a possibilidade de outras formas de participação além da presença na reunião do conselho, afirma:
É uma coisa assim que eu fugiria da parte técnica, e como é que eu posso falar, seria assim um voluntariado (T2).
O apoio ao segmento do usuário, dando embasamento técnico às discussões, foi citado por representantes dos três segmentos:
Eles ajudam muito a gente, dá dica e tudo, fala “a gente tem que fazer isso, pode fazer” (U1).
E depois entraram os técnicos, nós tivemos o apoio da Dra. Vera que era diretora do Hospital, ela era a presidente do conselho, eleita por nós e nos ajudou muito nesta questão (G5).
Eles levam algumas questões, mas é mais no sentido de ajudar, às vezes, a ter o parecer técnico de alguma coisa, ter o senso crítico de falar “Ah, não, acho que essa proposta não está boa” (G3).
A finalidade de a APM participar primeiro é porque a APM se julga uma entidade com capacidade de avaliar bem as ações de saúde e os interesses da comunidade, os profissionais que estão na APM não são profissionais da APM, são profissionais do município, das unidades, da rede pública e privada também que estão dentro da APM, então são profissionais que têm conhecimento do que ocorre na política de saúde do município, então, esse papel de neutralidade, esse papel de buscar o melhor para a sociedade (T3).
O apoio à gestão como principal função do conselho foi apontado por dois representantes do segmento dos trabalhadores:
É um grupo que tá aí pra correr atrás, pra melhorar e pra apoiar também o gestor, eu acho que a principal atividade do Conselho é apoio do gestor, na maioria das vezes a gente apoia (T7).
Então, eu acho que o conselho é um órgão assim, de fundamental importância para a regulação dos serviços prestados à população […] às vezes faltam os medicamentos básicos que eles não encontram nos postos, então a secretária vem e explica porque que tá faltando, […] então quando o foco cai, a pessoa tá lá pra justificar ou contestar, sempre com o intuito de melhorar o serviço (T1).
O papel dos representantes dos trabalhadores deveria ser distinto do papel dos representantes dos gestores no Conselho de Saúde, mas considerando a dificuldade dos entrevistados em identificar os representantes dos trabalhadores, podemos supor que também a distinção dos papéis destes segmentos não é percebida pelos conselheiros.
Os conselheiros atribuíram diferentes papéis ao segmento dos trabalhadores no conselho municipal de saúde, mas ambos consideraram apenas o papel técnico: alguns destacaram a colaboração com a gestão, enquanto outros apontaram o apoio técnico para as discussões apresentadas no conselho. Este fato evidencia que há uma acomodação frente à redução do papel do representante dos trabalhadores a uma atividade de apoio técnico no conselho, assim, o trabalhador não assume uma postura de disputa por maior espaço político no CMS estudado.
Ao se analisarem as pautas dos conselhos durante o ano de 2013, observou-se que somente o segmento dos gestores apresentou temas para debate. As atas analisadas mostraram a participação dos representantes das entidades em informes e convites para atividades da entidade. Também há participação nos debates do conselho, mas não foi identificada nenhuma proposta de pauta trazida pelo segmento dos trabalhadores.
Os representantes do segmento dos gestores apontaram como dificuldade o fato de os representantes dos usuários proporem poucos temas para debate, mas nada referiram sobre a ausência do segmento dos trabalhadores em apresentar temas:
E muito… eu não diria fraco, mas a gente teve a APM, é… Uma presença forte para os dois conselheiros que estavam, eles eram bem participativos, mas é uma exceção, via de regra, eu não vejo o pessoal dos outros conselhos se manifestando muito (G3).
Nas comissões eu também não vejo muita gente… Olha, quem participa mais são os usuários, de forma geral são eles e os gestores da Gestão Municipal, são esses dois segmentos que movimentam mais, mesmo o sindicato eu não vejo como uma coisa importante dentro do conselho […] já chegou até o usuário fazer reclamação de falta de condições de trabalho, mas falando em nome do trabalhador (G3).
Este tema foi abordado em estudo apresentado por Wendhausen e Cardoso sobre um conselho de saúde do sul do país:
dificilmente algum assunto de pauta é proposto por profissionais da saúde.[…] O segmento dos profissionais de saúde e usuários bem pouco interferiam, tanto na agenda como nas decisões. Agiam frequentemente de modo reativo frente ao que era trazido pelo segmento governamental (Wendhausen; Cardoso, 2007WENDHAUSEN, A.; CARDOSO, S. M. Processo decisório e Conselhos Gestores de Saúde: aproximações teóricas. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 60, n. 5, p. 579-584, 2007., p. 581).
A despolitização das discussões foi apontada por um representante dos usuários como o principal entrave à efetivação da participação social.
Infelizmente o conselho está imaturo ainda, acho que tem muito pra se criar no conselho, as pessoas que vêm apresentar, técnica, aquelas coisas, a tarde toda falando, blá, blá, blá, você toma uma lição de tecnologia ali, só que nada funciona, e enquanto isso a gente perde o tempo de estar debatendo a política social, não se discute política social no conselho, aí que entra o direito do trabalhador, o direito do usuário, vamos lá, até o respeito com o gestor (U5).
Outro tema que apareceu espontaneamente nas respostas dos representantes dos usuários foi o medo do representante dos trabalhadores de sofrer punição por participar. Destaca-se que nenhum representante dos trabalhadores apontou este como um fator limitante.
Ah, os que representam os trabalhadores, eles são um pouco mais amarrados do que nós, né, porque eles têm o trabalho deles, né?… pra você ter uma ideia, nós somos 50%, eles só são 25, nós temos mais poder que eles (U1).
Tem diferença, porque eles se prendem em determinados cargos, determinados valores, eles ficam mais presos no salário deles, tem uma hora que daqui não passa, e nós, a gente pode passar um pouquinho mais, nós falamos à vontade, a gente não se prende […] o medo, os trabalhadores têm medo, eles têm direito de ir nas reuniões e falar, nosso secretário é muito aberto (U2).
Eles são funcionários, então têm um limite, eu particularmente penso assim (U3).
Tímido, tímido, é isso que eu lamento, tímido, porque tem o seguinte, você tem um salário, você depende daquele salário, quem paga esse salário é o gestor (U5).
Embora não questionados diretamente sobre isto, alguns conselheiros representantes dos trabalhadores e gestores apontaram a falta de conhecimento técnico dos usuários como um problema ao funcionamento do CMS-GRU.
Às vezes a população é manipulada, eles têm um limite de conhecimento e mesmo que você tente dar não é tão fácil assim (T4).
Tem uma dificuldade que eu vejo na questão dos conselheiros, […] que nas ações, nas execuções das ações, eles têm uma dificuldade um pouco maior. […] Então eu acho que essa capacitação é muito importante pra não nivelar, mas pra que todos tenham ideia, consenso do que deve ser feito, […] quem tem um pouco mais de noção, um pouco mais de conhecimento, consegue, às vezes, não é manipular, mas é fazer prevalecer o pensamento, a diretriz pra quem a discussão está sendo feita (G2).
Eu acho que no conselho, da parte dos populares, são poucos que entendem de administração pública, quer dizer, nenhum entende, né? […] devia ter um ou outro que pudesse fazer uma discussão absolutamente técnica, […] pelo menos uns dois que fossem formados na área (G4).
Esta concepção presente no CMS-GRS reforça a ideia de que os conselheiros necessitariam “ser” advogados, médicos ou administradores para poder opinar sobre o que é melhor para o conselho. O conselheiro gestor sugere que o conselho deveria ter “pelo menos uns dois que fossem formados na área” referindo-se à área de finanças. Ficam evidentes concepções afinadas com a afirmação de Chauí (2005)CHAUÍ, M. A. Considerações sobre a democracia e os obstáculos à sua concretização. In: TEIXEIRA, A. C. C. (Org.). Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. p. 23-30. sobre a ideologia da competência:
A separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros, que recebem educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas apenas sabem executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer. […] Dessa maneira, as decisões escapam inteiramente dos cidadãos, consolidando o fenômeno da despolitização da sociedade (Chauí, 2005CHAUÍ, M. A. Considerações sobre a democracia e os obstáculos à sua concretização. In: TEIXEIRA, A. C. C. (Org.). Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. p. 23-30., p. 28).
Dois representantes, um do segmento dos usuários e um do segmento dos gestores, manifestaram preocupação com a “profissionalização” do representante.
Por outro lado, quando eu falo na formação do conselheiro, eu tenho uma preocupação porque é a essência do conselho, sobretudo o segmento dos usuários, é essa vivência da realidade, é esse estar junto com a população, é essa clareza, agora, a maneira quando você forma, o cuidado que você tem que ter, pra não ficar profissionalizando o conselheiro, isso eu acho que é um problema. A gente tem que ter muito cuidado com isso porque há uma tendência pra isso… E você acaba especializando o conselheiro (G6).
Até porque o segmento deles é mais elitizado, por que eles têm o conhecimento de como funciona a máquina. […] Então, os conceitos de usuário, trabalhador e gestor são diferentes por isso (U4).
Alguns representantes dos trabalhadores, que têm cargos de gestores nas unidades de saúde do município, tiveram uma atuação mais como gestor do que como trabalhador. Uma das entrevistadas afirma que trabalha como gestora em uma unidade e como médica consultante em outra, mas só se sente à vontade para participar do conselho pela unidade em que é gestora.
Aqui eu gosto muito de trabalhar porque eu sou gerente, eu tenho autonomia. Trabalho na prefeitura, como plantonista desde 98, quase 16 anos, lá eu tenho muitas tristezas. […] Lá eu sou do plantão do pronto-socorro, eu não participo do conselho não, e não quero participar, não tenho interesse. Algumas vezes eles perguntam e a reunião é até no dia do meu plantão, mas eu não tenho interesse (T4).
Na discussão sobre a composição da comissão executiva do conselho, ocorrida durante a reunião de posse da nova gestão do CMS-GRU para o triênio 2014-2016, uma representante do CRM foi indicada a uma vaga na comissão executiva pelo segmento dos gestores. Essa representante, indicada à vaga do conselho pelo segmento dos trabalhadores, não percebeu que seu nome estava colocado no segmento dos gestores na comissão. Somente após um tempo de discussão e disputa sobre as vagas é que se fez a correção, passando-a então para o segmento correto. Sobre este fato, um representante do segmento dos gestores comentou:
Eu dei risada, eu dei risada, quando eu vi a composição, e que foi a gestora que falou “você vai lá” e na hora da comissão vai dar problema porque o segmento não vai estar representado, e vai ter duas pessoas falando a mesma coisa, porque vai estar o chefe e o subordinado, e eu falei “ai, ai”, mas isso aqui é uma democracia e até vai ser complicado pra ele, e a hora que ele tiver que se posicionar (G1).
Alguns trabalhadores, ao ocuparem cargos de gerência ou gestão, ou por pertencerem a categorias profissionais nas quais são vistos naturalmente como gestores pelos usuários, ou mesmo por outros trabalhadores, foram confundidos com representantes dos gestores:
e o trabalhador some, ele se coloca no lugar deste, ele confunde os papéis, ele tem que se despojar destas áreas e focar, mas ele não consegue, ele se dilui (G1).
É praticamente impossível que, ao participar do Conselho de Saúde como representante dos trabalhadores, cada trabalhador possa despir-se de todas as outras formas de atuação ou papéis que desempenhe. O desafio é precisamente reconhecer que irá influenciar em outras áreas, de acordo com a forma como se insere na posição de trabalhador. Ter essa consciência é fundamental para que ele possa assumir e desempenhar a função que lhe deve ser atribuída no Conselho Municipal de Saúde.
Conclusões
As entidades representadas no CMS-GRU têm eleições para suas diretorias e conselhos, estando legitimadas a representar os trabalhadores. Entretanto, a maioria dos representantes das entidades não se percebe com essa função.
O segmento dos trabalhadores está representado no Conselho, de forma majoritária, por representantes de nível universitário (conselhos de classe, associações profissionais e sindicatos de profissionais de nível universitário), no entanto, o termo “trabalhadores” foi frequentemente atribuído exclusivamente aos profissionais de nível médio.
As entidades representantes da categoria médica têm uma participação constante no que se refere à sua presença e à participação nas comissões do Conselho. Os sindicatos têm baixa participação em termos de frequência, intervenções nas reuniões do pleno e participação nas comissões. Os representantes dos conselhos gestores, escolhidos diretamente entre os trabalhadores das unidades, têm uma participação tímida nas comissões e nas discussões das reuniões, onde sua frequência é baixa.
A forma de escolha das entidades que representam os trabalhadores, bem como a do representante de cada entidade, exerce influência no tipo de representação que se deseja, de modo que sua identificação pode ajudar a entender os limites e as possibilidades dessa representação.
Entre as entidades médicas de Guarulhos, um dos critérios de escolha é o servidor ser funcionário da secretaria, principalmente se for gestor. Isso foi apontado por três entre os quatro médicos entrevistados. Esse critério pode gerar distorções na representação do trabalhador que é visto como gestor pelos demais conselheiros.
Outros aspectos que interferem na participação social encontrados em Guarulhos foram: a representação de algumas entidades feita por um funcionário que não é trabalhador da saúde; a concentração de entidades da mesma categoria (como a de médicos e dentistas) em detrimento da representação de categorias numericamente significativas no quadro de funcionários da secretaria municipal, como a categoria de enfermagem; a permanência de conselheiros por mais de dois mandatos, ou seja, a manutenção do mesmo conselheiro mudando apenas a entidade ou o segmento que representa.
As diferenças na força política de cada categoria profissional, e entre elas na política de saúde nacional, manifestam-se também nas dinâmicas internas do conselho de Guarulhos. Categorias com conselhos de classe e sindicatos mais fortes e inseridos na política nacional têm participação maior nos Conselhos de Saúde, em número de representantes, frequência às reuniões e intervenções nas discussões.
Os arranjos internos na composição do CMS-GRS contribuíram para diluir a participação do segmento dos trabalhadores. A denominação de “promotores da saúde”, aglutinando os segmentos dos representantes dos gestores e trabalhadores, polariza os segmentos de usuários e promotores da saúde, contribuindo para a diluição do papel de representação do segmento dos trabalhadores. Assim diluídos, eles deixam de exercer a representação deste segmento, acentuando os entraves e obstáculos à efetiva participação da sociedade civil nas decisões relativas às políticas de saúde locais.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
- Recebido
04 Jul 2016 - Revisado
20 Out 2016 - Aceito
26 Out 2016